2. INT. QUARTO BRANCO - ATEMPORAL1
Um relógio de parede branco de ponteiros pretos está pendurado
em uma parede totalmente branca. Os ponteiros estão parados e
assim permanecem por algum tempo. A câmera se afasta devagar
até o momento que os ponteiros começam a funcionar. Por alguns
segundos não ouvimos o som, apenas assistimos o movimento dos
ponteiros. Até que em alguns segundos, se inicia um tic-tac
rítmico, desproporcionalmente alto, ecoando demoradamente:
podemos sentir que o quarto é enorme e vazio.
Uma garota vestida de branco está sentada sobre uma cadeira
branca. Ela é OFÉLIA. A imagem está completamente desfocada e
uma fonte de luz incide diretamente contra a câmera. Uma música
melancólica surge aos poucos e crescendo, mesclando suas notas
ao eco dos ponteiros do relógio.
Estamos bem próximos do seu rosto agora, cabisbaixo, triste.
Ela está encharcada. Então, mira a câmera com o olhar e mexe os
lábios, como se dissesse algo que não podemos escutar.
Outra garota está sentada no chão, também vestida de branco.
Ela é GABRIELA. Ela vira a cabeça pro lado, como se tivesse
escutado o que OFÉLIA acabou de dizer. Depois de alguns
instantes, escutamos a voz de OFÉLIA dizendo o que não
conseguimos escutar.
OFÉLIA
(enquanto vemos GABRIELA)
Você... simplesmente não é boa
suficiente pra mim.
Percebemos então que todo o som do filme é escutado com alguns
segundos de atraso, sobrepondo-se à imagem posterior ao momento
que foi inaugurado, representada sempre pela próxima garota.
Seguindo este modelo, Gabriela move os lábios e não a
escutamos. Alguns segundos depois ouvimos sua fala.
GABRIELA
(enquanto vemos OFÉLIA
balançando a cabeça
positivamente e mexendo os
lábios)
Isso... não é realmente o que você
pensa.
OFÉLIA
(enquanto vemos GABRIELA
balançando a cabeça
negativamente e mexendo os
lábios)
Não, é sim! Posso te garantir. Nunca
tive tanta certeza do que digo.
3. 2.
GABRIELA
(OFÉLIA incisiva,
acusadora)
Sua certeza é dotada de uma tristeza
profunda, dá pra sentir isso.
OFÉLIA
(GABRIELA com curiosidade
na face)
Minha tristeza é responsabilidade
sua. Só você é culpada por qualquer
das minhas decisões.
GABRIELA
(OFÉLIA em tom afirmativo
e imponente, perguntando
no final)
Como posso ser responsável por
qualquer coisa que a atinja se não
sou tão boa pra você?
OFÉLIA
(GABRIELA mexendo nos
cabelos, levemente
confusa)
Pois você vive em mim, apesar de não
querê-la mais... é difícil de
entender?
GABRIELA
(OFÉLIA afirma e
questiona)
E você me possui... me tem como se
fosse sua, me joga fora como se fosse
sua.
OFÉLIA
(GABRIELA nega)
Tu és! Não vê?
GABRIELA
(OFÉLIA se cala)
Não... Não!
OFÉLIA permanece em silêncio por algum tempo. Move os lábios
gritantemente, acusadoramente.
OFÉLIA
(enquanto vemos GABRIELA
mexendo os lábios
despreocupada e sorrindo)
A guerreira, a esperança e a flor da
minha casa, o espelho da elegância e
(MAIS)
4. 3.
OFÉLIA (CONT.)
o molde da etiqueta... o alvo das
deferências... como decaistes!
GABRIELA
(OFÉLIA esclarecida, como
se soubesse todas as
respostas pra todas as
perguntas)
Tudo isto porque pedi que se
internasse? Num convento ou cabaré?
Sinto... mas só o que está dando
certo é a citação das referências...
continue!
OFÉLIA
(GABRIELA afastando seu
corpo, se levantando)
A única verdade é que só nos
entenderíamos se nossos discursos
assumissem um mesmo ritmo, se talvez
parasse de debochar e tentasse
entender.
GABRIELA
(OFÉLIA sorri: Acha graça
da situação pela primeira
vez)
Eu entendo você! Nem por isso tem
direito de me obrigar a dançar a sua
dança. O ritmo não precisa ser o seu,
pode ser o nosso, nosso ritmo.
OFÉLIA
(Gabriela se cala,
perplexa)
Seu instinto de defesa chega a ser
cômico, infantil. Por vezes me
ofende, por vezes me ataca, e então
pede trégua... você realmente sabe o
que quer?
GABRIELA permanece calada e incrédula.
GABRIELA
(OFÉLIA cabisbaixa)
Eu achei que tinhamos acertado o
ritmo.
OFÉLIA
(GABRIELA suplicante)
Não tem mais nenhum ritmo pra
acertar.
5. 4.
GABRIELA
(OFÉLIA compreensiva)
Talvez devêssemos simplificar as
coisas...
OFÉLIA
(GABRIELA esperançosa)
Entender o que dizemos, antes de
responder...
GABRIELA
(OFÉLIA decidida)
Seria o segredo para não acabar o que
temos.
OFÉLIA
(GABRIELA enraivecida)
Não quero que não acabe... tudo vai
bem.
GABRIELA
(OFÉLIA cansada)
Sua melancolia precede sua incerteza.
OFÉLIA
(GABRIELA questiona)
E você me observa sem sequer me
entender.
GABRIELA
(Ofélia responde)
No final, o que nós somos ou sabemos?
OFÉLIA
(Gabriela sorri calada)
No final, não passamos de virgens
suicidas!
Gabriela olha para o lado como se enxergasse OFÉLIA ao seu lado.
Um plano geral nos mostra que ela está sozinha, num vazio
branco. Começa a mover os lábios, iniciando um novo diálogo
que, continuamente, é percebido na próxima cena.
O relógio branco na parede branca pára, mas o som dos seus
ponteiros só o fazem segundos depois.
FUSÃO PARA
EXT. PAISAGENS INÓSPITAS - DIA/NOITE2