Gorongosa, paraíso natural de Moçambique: O Parque Nacional da Gorongosa em Moçambique ressurge após anos de guerra e abandono, graças a projetos de desenvolvimento e reflorestação.
Microplásticos, a ameaça invisível: Grandes quantidades de lixo plástico desintegram-se em minúsculos fragmentos que poluem os oceanos e são ingeridos por peixes e outros animais.
Incêndios, uma luta sem quartel: Bombeiros de elite lançam-se de paraquedas
2. N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T | M A I O 2 0 1 9
LeonardoUM GÉNIO À FRENTE DO SEU TEMPO
GORONGOSA,
PARAÍSO NATURAL
DE MOÇAMBIQUE
INCÊNDIOS,
UMA LUTA
SEM QUARTEL
MICROPLÁSTICOS,
A AMEAÇA
INVISÍVEL
2019
PL ANE T A
OU
PLÁ ST I CO
5603965000006
00218
N.º218MENSAL€4,95(CONT.)
3.
4. N AT I O N A L G E O G R A P H I C M A I O 2 0 1 9
Na capa
Retrato de Leonardo
da Vinci, Biblioteca Real
de Turim. Considerado
até há pouco um
auto-retrato, existem
hoje sérias dúvidas sobre
a sua autoria. Alguns
autores atribuem-na
a um pintor anónimo.
STUART GREGORY/GETTY IMAGES
S U M Á R I O
PAOLO WOODS E GABRIELE GALIMBERTI (EM CIMA)
2Leonardo: um génio
à frente do seu tempo
Cinco séculos após a morte de Leonardo da Vinci, a sua
criatividade imparável e espírito pioneiro continuam a
inspirar o mundo da arte, da anatomia, da ciência, da música
e da engenharia. Numa reportagem que nos levou de
Florença a Londres, dos arredores de Paris aos Estados
Unidos, desvendamos as múltiplas facetas do génio
florentino e o que ainda podemos aprender com ele.
T E X TO D E C L AU D I A K A L B
F OTO G R A F I A S D E PAO LO WO O D S E GA B R I E L E GA L I M B E RT I
5. R E P O R T A G E N S S E C Ç Õ E S
A S UA F OTO
V I S Õ E S
E X P LO R E
Aranhas voadoras
A arte rupestre de que
(ainda) não se fala
Embalagens tóxicas
I N ST I N TO BÁ S I C O
Um forte ímpeto sexual
G R A N D E A N G U L A R
A vida no fundo
das grutas
E D I TO R I A L
N A T E L E V I SÃO
P RÓX I MO N ÚM E RO
DE CIMA PARA BAIXO: CHARLIE HAMILTON JAMES; DAVID LIITTSCHWAGER; MARK THIESSEN
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40
64
78
Gorongosa, paraíso natural
de Moçambique
O Parque Nacional da Gorongosa
ressurge após 15 anos de guerra
civil e um longo período de
transição em Moçambique, graças
ao sucesso dos projectos de
desenvolvimento e reflorestação.
T E X TO D E DAV I D Q UA M M E N
F OTO G R A F I A S D E
C H A R L I E H A M I LTO N JA M E S
Microplásticos
Todos os anos, chegam ao
mar cerca de nove milhões de
toneladas de lixo plástico. Uma
parte desse volume desintegra-se
em minúsculos fragmentos: os
microplásticos. São tão abundantes
que as larvas dos peixes consomem-
-nos nos primeiros dias de vida.
T E X TO D E L AU R A PA R K E R
F OTO G R A F I A S D E DAV I D
L I I T T S C H WAG E R
Incêndios, uma luta sem quartel
Todos os verões no Alasca, uma
unidade de bombeiros de elite
lança-se de pára-quedas sobre
as florestas em chamas numa
perigosa corrida contra o fogo.
O objectivo é travar precocemente
os incêndios antes que estes
atinjam dimensões catastróficas.
T E X TO D E M A R K J E N K I N S
F OTO G R A F I A S D E M A R K T H I E S S E N
w
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portugal
6.
7. V I S Õ E S | A S U A F O T O
N O R B E RTO E ST E V E S Esquivo mas curioso, este pequeno mocho-galego iludiu como pôde a máquina do fotógrafo na
ria de Alvor. Acabou por pousar num poste de média tensão, com este “olhar misto de inocência e curiosidade”.
J OÃO A N D R É B RA N C O O complexo residencial de Yik Cheong em Hong Kong é também conhecido como Monster
Building. É uma das zonas mais densamente povoadas do planeta. Vários apartamentos têm apenas 30m2
de área disponível.
8. G I C R I STÓVÃO A Rota dos Túneis, entre Barca d’Alva e Fregeneda, foi em tempos território do comboio, mas a desactivação
da linha alimenta agora o tráfego dos caminheiros. Na escuridão da noite, as estrelas brilham com mais intensidade.
9.
10. A The Navigator Company e a National
Geographic, dão assim um grande passo
em direção a um mundo mais verde.
Todos os dias somos confrontados com diversas
escolhas. Cabe-nos a nós acertar, rumo a um
futuro mais sustentável. Comece também
a optar por papel, um material renovável,
reciclável e biodegradável.
A sua revista agora é entregue
em envelope de papel.
12. Brasil
Sob a luz do crepúsculo e um
céu tempestuoso, as flores
de sempre-viva (género Paepa-
lanthus) atapetam uma pradaria
do Parque Nacional da Chapada
dos Veadeiros, uma área
protegida no centro do país
onde abundam os endemismos.
MARCIO CABRAL/BIOSPHOTO/AGE FOTOSTOCK
14. Indonésia
Um társio (Tarsius tarsier) espreita
a partir de uma concavidade de
uma árvore na Reserva Natural
de Tangkoko, nas ilhas Celebes.
Estes pequenos primatas de olhos
enormes têm hábitos nocturnos,
pelo que frequentemente perma-
necem ocultos durante o dia.
CHIEN LEE/MINDEN PICTURES/AGE FOTOSTOCK
15.
16. Irão
Uma mulher entra na mesquita
Nasil al-Molk, também conhe-
cida como Mesquita Rosa,
na cidade de Shiraz. O vistoso
chador parece fundir-se com os
azulejos que decoram o interior
deste templo construído na
segunda metade do século XIX.
TUUL & BRUNO MORANDI/GETTY IMAGES
17. N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Aranha voadora
(espécie
continental)
Anteriores
Seda de
voo
Médias
Fieiras
posteriores
Tricobótrio
Outras
pilosidades
Glândulas
Fieiras
Seda de ancoragem
presa pela
pata traseira
Seda de voo
composta por
70 a 140 nanofibras
Seda de
ancoragem
Carga por
fricção
Carga
intrínseca Carga
adquirida
SUPERFÍCIE TERRESTRE
(CARGA NEGATIVA)
Em pontas
A aranha trepa até um ponto elevado,
segura-se com uma espécie de âncora e
avalia as condições com as patas
anteriores. De seguida, apoia-se na
extremidade das patas posteriores,
eleva o abdómen e liberta a seda.
1
Finas pilosidades denominadas
tricobótrios reagem às
condições eólicas e eléctricas
e actuam de acordo com elas.
A aranha ergue as
patas dianteiras para
avaliar as condições.
As glândulas sericígenas
segregam múltiplos tipos de
fios de seda libertados através
de pares de fieiras.
A seda pode
transportar a própria carga
intrínseca ou adquiri-la
por fricção ou do ar.
Quando faz bom tempo, a
atmosfera apresenta uma
carga positiva e a superfície
terrestre negativa. As cargas
atraem-se mutuamente.
O campo eléctrico é mais
potente nas zonas mais altas,
como as extremidades das flores.
Quadro eléctrico global
NÁUFRAGOS CELESTES
Poucas aranhas voam, mas as que o fazem
são excelentes colonizadoras. Algumas
transportam ovos com os quais expandem
a sua população, mas o motivo que as
leva a voar ainda é desconhecido.
Aranhas voadoras
C H A R L E S DA RW I N F I C O U FA S C I N A D O com as aranhas que
pousaram no HMS Beagle há quase dois séculos. Estes arac-
nídeos não têm asas, mas conseguiram aterrar no navio a 100
quilómetros de terra firme. Como chegaram ali? As últimas
investigações trazem novas pistas sobre o possível papel
desempenhado pelo campo eléctrico da Terra nesta façanha
aérea. As aranhas voadoras elevam-se no ar como se empreen-
dessem um voo aerostático: orientam o corpo em direcção ao
fluxo de ar e libertam fios de seda que aproveitam o vento e
o campo eléctrico para levantar voo. Voam em busca de melho-
res locais e, uma vez no ar, conseguem controlar os seus movi-
mentos, mas não a direcção para onde rumam.
E X P L O R E
18. 0 km 4
FORÇA
ELECTROSTÁTICA
VENTO HORIZONTAL
(As aranhas voam apenas quando o vento
é inferior a 3 metros por segundo)
VENTO VERTICAL
ASCENDENTE
A 6 6 8 QUI L Ó M E T R O S D A C O S TA
Entre
8
e
10
m
durante
o
vooA
s
ed
a
m
e
de
entr
e
3
e
5
m
SUSTENTAÇÃO
POR
ELECTROSTÁTICA
SUSTENTAÇÃO
PELO
VENTO
(com
vento
suave)em
a
s
cen
s
ão
Repulsão
mútua
Ilha Robinson
Crusoé, Chile
Santiago
San Juan
Bautista
Ilha Robinson
Crusoé
Arquipélago de
Juan Fernández
668KM
ÁREA EM
DESTAQUE
EM BAIXO
CHILE
AMÉRICA
DO SUL
ÁREA DO
MAPA
Zarpando
Com a força obtida no campo eléctrico
A e o impulso ascendente da brisa B ,
a aranha eleva-se no ar e “voa”, depois
de quebrar a linha de âncora e de criar
um “pára-quedas” em forma de leque
feito com fibras de seda.
Voo de alto risco
Asaranhaspodemalcançar4,5
quilómetrosdealturaevoarmilhares
dequilómetrossemáguaoualimento,
masmuitasnãosobrevivemaestas
arriscadasviagens.Emcontrapartida,
amaioriadosvoossãocurtos.
2 3
Aranha em voo,
tamanho real
Em vez de se emaranharem, os fios
de seda carregados esticam-se
devido ao efeito de repulsão,
outro indício de que o campo
eléctrico da Terra poderá intervir
no movimento de elevação.
Os ventos mais lentos e próximos
da superfície da Terra reagem
com os ventos mais altos e
rápidos, criando remoinhos
que podem ser usados pelas
aranhas para ganhar altura.
A aranha solta o fio de âncora e
estica as patas para se equilibrar
ou controlar a velocidade.
O fio de voo é tão fino
que até a mais leve brisa
consegue sustentá-lo.
Impulso eléctrico Corrente ascendenteA B
TEXTO: DAISY CHUNG. CLARE TRAINOR, NGM (MAPA); MESA SCHUMACHER. FONTES: MOONSUNG CHO, UNIVERSIDADE TÉCNICA DE BERLIM; ERICA L. MORLEY, UNIVERSIDADE
DE BRISTOL; GUSTAVO HORMIGA, UNIVERSIDADE GEORGE WASHINGTON; ROBERT B. SUTER, VASSAR COLLEGE, MOLECULAR PHYLOGENETICS AND EVOLUTION 107 (2017)
19. Aarterupestrede
que(ainda)nãosefala
T E X T O E F O T O G R A F I A S D E H U G O M A R Q U E S
Imagineumpequenogrupodepessoas
naIdadedoBronze(entrecercade2500
a 1500 a.C) reunidos em frente de uma
alongada e baixa cavidade granítica
na sub-região entre o Sabor e o Douro.
Semiescondidos e quase deitados no
espaçoapertadodacavidade,masmuni-
dos de pequenas ferramentas líticas,
iniciam a gravação de um conjunto de
formasgeométricaseantropomórficas,
utilizandotécnicasdepicotagemeabra-
são que resultarão num dos mais belos
exemplosdearteesquemáticadoterritó-
rioanortedoDouro.Nuncasaberemos
os significados concretos atribuídos a
cadasímbolo,maspodemosconjecturar.
Os tempos dos caçadores-recolecto-
res do Paleolítico Superior no vale do
Côa já passaram há muito e, neste ter-
ritório, prosperam agora comunidades
agropastoris,commodosdevidaseden-
tários.Apesardessaenormemudança,
a ligação do homem ao simbólico con-
tinuaapersistireestestraçosrepetem-
-se por muitos sítios arqueológicos na
Península Ibérica. Esta demonstração
de uma cultura própria, mas também
partilhada nos seus símbolos, indicia
contactos entre os grupos humanos.
Passados 4.500 anos, os dedos de
Maria de Jesus Sanches, docente da
Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, percorrem com suavidade as
linhasepequenascovasquesecruzam
neste abrigo pré-histórico. O abrigo da
Solhapa na freguesia de Duas Igrejas,
no concelho de Miranda do Douro, foi
dado a conhecer em 1955 pelo padre
António Maria Mourinho, apaixonado
por arqueologia e etnografia que, tal
como o abade de Baçal (que tratava
por mestre), se dedicou à divulgação
do património cultural transmontano.
Otrabalhodestainvestigadoradebru-
çou-sesobreasformasalirepresentadas.
Utilizandodiversastécnicasdecontraste
cromático, foi possível definir melhor
oselementosrepresentadosnogranito.
Entrepequenascovasesulcos,quetêm
em si significado simbólico desconhe-
cido, identificam-se figuras humanas
antropomórficas e de cariz sexuado,
dada a exibição fálica, e um equídeo
possivelmente montado por um cava-
leiro,quepoderáestarapisaralguém.
A vida destas pessoas estava muito
mais ligada aos ciclos da natureza, e a
explicaçãodosfactosnaturais,ouatéde
eventos heróicos,queéhoje mais cien-
tífica,serianopassadomaissimbólica,
ousobrenatural.Astentativasderepre-
sentar e apelar a esse mundo pouco
conhecido expressam-se em vários
sítios arqueológicos que começam
agora a redefinir a nossa compreensão
da ocupação deste território.
O ABRIGO DO PASSADEIRO, em Pala-
çoulo,noconcelhodeMirandadoDouro,
confluicomumapequenalinhadeágua.
Foialiqueseencontrouaimagemdeum
cervídeo realizado seguindo a técnica
depicotadofino,comumadataçãoque
poderá recuar até ao Mesolítico (cerca
de7000,6000 a.C.).Dasrepresentações
de veados, auroques e cavalos, muito
comunsnoPaleolíticoSuperior(30000
a10000a.C.),sóosveadosprosseguiram
em períodos mais recentes. A relação
do homem com o mundo natural não
se perdeu apesar das grandes trans-
formações nas sociedades humanas.
“UNHADAS D O DIAB O”, PICOTAD O S, GRAVURAS – HÁ UM MUND O
DE ARTE PRÉ-HISTÓRICA QUE COMEÇÁMO S AG ORA A DES COBRIR
E X P L O R E | A R T E R U P E S T R E
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
20. A caça continua a ser uma forma de
suprir necessidades alimentares e a
cavernaeoabrigoaindasãoosespaços
paramanifestaçõesartísticasemágicas.
Sãopassagensparaummundoinferior
na interpretação de pré-historiadores
consagradoscomoJeanClottes.
No meio de um veado representado
numaposiçãodinâmica,MariadeJesus
Sanchesfoisurpreendidaporaquiloque
localmente é designado por “unhadas
do diabo”, que lhe são anteriores no
tempo. São marcas que acabam por
cruzar o corpo do animal e cuja moti-
vação nos escapa. Os censos de sítios
semelhantestêmcomprovadoqueestas
marcas se repetem nas bacias dos rios
Douro, Tejo e Guadiana. Teriam um
significadocomunitárioouseriamuma
primitiva forma de escrita?
NÃO É, CONTUDO, POSSÍVEL FALAR
do Douro e das terras de Miranda
sem reflectir a presença do grande rio
ibérico. Nas enormes arribas de uma
naturezaquaseembruto,asmarcasdo
passadolongínquoirrompemportodo
o lado. Sobranceiro ao rio, está implan-
tado, numa fraga na aldeia de Picote,
um arqueiro com o seu arco retesado
que parece vigiar quem por ali passa.
Estelugartemumaauramágicapela
associação que a população local faz
à lenda de um cavaleiro cristão que,
perseguido pelos mouros, teria saltado
do território que hoje é Espanha sobre
o rio e aterrado na fraga do Puio, dei-
xando ali a sua marca. Pelo contexto
arqueológico associado à zona e por
aspectos estilísticos, é possível que
esta gravura seja datada do quarto
ou terceiro milénio antes de Cristo.
O homem empunhando um arco
poderáterumainterpretaçãoguerreira,
massabemosqueospovosdestaépoca
ainda estavam muito dependentes da
recolecção. O arqueiro será mais um
elemento do “universo cosmológico e
ontológicodaspopulaçõesquealivive-
ram”, afirma a investigadora.
Num lugar com uma paisagem deslumbrante, a figura
do arqueiro da fraga do Puio destaca-se com o equipa-
mento de luz rasante da arqueóloga Mónica Salgado (em
cima). Na página anterior, a investigadora Maria de Jesus
Sanches no interior do abrigo do Passadeiro em Palaçoulo.
Em baixo, a pala do abrigo da Solhapa na freguesia de
Duas Igrejas destaca-se no planalto mirandês.
COMPOSIÇÃO DE MARIA JOSÉ SANCHES (FLUP)
21. E X P L O R E | A R T E R U P E S T R E
A figura de um cervídeo com cerca de nove mil anos sobrepõe-se a um cruzamento de inúmeras “unhadas do diabo”
no abrigo do Passadeiro. Conjectura-se que estas marcas talvez fossem uma forma primitiva de escrita (em cima).
No interior do abrigo da Solhapa em Duas Igrejas (em baixo), Maria de Jesus Sanches observa atentamente um dos
mais belos exemplos de arte esquemática no território transmontano. Muito do património de arte rupestre de
Trás-os-Montes permanece por classificar.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
22.
23. E X P L O R E | C I Ê N C I A
DE CIMA PARA BAIXO: ANTAGAIN, GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO; RICHARD KIRBY; JOE PETERSBURGER, NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE
Baratas afastam picadas zombie
“Como não ser transformado num zombie.” Foi assim que o biólogo Kenneth Catania
intitulou o seu relatório sobre o parasitismo das baratas americanas por vespas-jóia. Se for
picada no cérebro, a barata segue a vespa para um buraco onde a vespa faz uma postura.
Depois, fecha o buraco, deixando a barata como alimento para a larva. No seu estudo, o
investigador percebeu que as baratas que se defenderam pontapeando vigorosamente
com as pernas evitaram as picadas em 63% das ocasiões.
GENÉTICA
O poder
das papoilas
Os seres humanos há
muito que extraem
morfina e codeína
das papoilas do
ópio. Mas de que
forma a evolução
dotou estas flores
de poderes
analgésicos? Não
foi simples. O DNA
da papoila revela
que, ao longo de
110 milhões de anos,
boa parte do seu
genoma duplicou
duas vezes, e
dois genes
suplementares
fundiram-se num
que é crucial para
a formação
do narcótico.
A descoberta
pode contribuir
para o melhor
conhecimento
dos opiáceos.
PLÁSTICOS
A CONTAMINAÇÃO
PROVÉM DE MINÚSCULAS
EMBALAGENS TÓXICAS
O O C E A N O E S TÁ S O B R E C A R R E G A D O D E M I C RO F I B R A S
D E P L Á S T I C O. E O P L Â N C TO N C O N S OM E -A S .
O emaranhado de microfibras que se vê em cima tem menos de
quatro milímetros de diâmetro, aproximadamente o tamanho
dos pequenos organismos aquáticos conhecidos como plâncton.
Semanalmente o cientista Richard Kirby parte da costa de Ply-
mouth, em Inglaterra, com uma rede de arrasto enganchada ao
seu barco para recolher plâncton. Ultimamente, encontra quase
tanto plástico como plâncton. Estima-se que anualmente mais
de 600 mil toneladas de microfibras de plástico, libertadas durante
a lavagem de lãs, poliéster e outros tecidos sintéticos, cheguem
ao oceano. O plâncton pode comê-las ou ficar enredado nelas, e
os impactes ecológicos ainda não são conhecidos. “A nossa polui-
ção estendeu-se até ao fim da cadeia alimentar marinha”, diz
Kirby. “Alterámos o plâncton, causando efeitos que durarão sécu-
los ou milénios.”
24. ESTAS BONITAS LESMAS-DO-MAR australianas, da espécie Siphopteron qua-
drispinosum, usam simultaneamente os órgãos sexuais masculinos e femi-
ninos durante o acasalamento e apresentam um curioso pénis de duas
pontas. Através de uma delas, o esperma é transferido de maneira “tradi-
cional”, ou seja, é depositado no tracto genital feminino.
A outra extremidade, um apêndice semelhante a um estilete, é usada
para injectar um fluido prostático na cabeça do parceiro, que, de acordo
com os investigadores da Universidade de Tübingen, na Alemanha, “pode-
ria aumentar a capacidade de fertilização do próprio espermatozóide ou
inibir o esperma depositado por parceiros sexuais anteriores”, diz Rolanda
Lange, co-autora do estudo.
Este método brutal já fora observado noutros invertebrados. Em 1913,
dois entomólogos britânicos, Walter S. Patton e Francis W. Cragg, referiram
que certos animais levavam a cabo uma inseminação traumática inoculando
o esperma directamente no sistema sanguíneo através de um ferimento
causado por um pénis semelhante a um estilete. No entanto, é a primeira
vez que se observa o dardo inserido entre os olhos da consorte. “Devem
existir vantagens que compensam o dano corporal que isso acarreta. Ou
pelo menos deverão ter existido nas fases iniciais da evolução”, prossegue
a especialista.
Talvez seja assim que o esperma é depositado mais perto dos óvulos do
que com o acasalamento normal. De facto, muitos invertebrados (insectos
e certos vermes achatados e poliquetas) desenvolveram tácticas similares
de acasalamento”. Será necessário continuar a investigar para descobrir
que virtudes escondem estes lacerantes pénis multifuncionais.
E X P L O R E | I N S T I N T O B Á S I C O
TEXTO: EVA VAN DEN BERG. FOTOGRAFIA: DENNIS McCREA. ILUSTRAÇÃO: DAVID MARTÍNEZ.
FONTE: PROCEEDINGS OF THE ROYAL SOCIETY B: BIOLOGICAL SCIENCES, 2014
DESCRIÇÃO
As lesmas-do-mar
ou opistobrânquios
são moluscos
gastrópodes marinhos.
A Siphopteron
quadrispinosum
mede cerca de cinco
milímetros e regista
coloração amarela,
laranja e vermelha.
HABITAT
Vive na areia, em
profundidades de
6 a 27 metros. Por
norma, abriga-se no
interior das formações
de macroalgas.
DISTRIBUIÇÃO
Siphopteron
quadrispinosum foi
descrita no Hawai e na
Papua Nova-Guiné.
Também está presente
nas águas do Japão,
Nova Caledónia e no
Nordeste da Austrália.
Um forte ímpeto sexual
Esboço da sequência
de acasalamento entre
lesmas. Nas fases iniciais
da relação sexual, os dois
indivíduos aproximam-se
e entrelaçam-se.
De seguida, dá-se
uma cópula recíproca (tal
como as lacerações) que
termina num emparelha-
mento unilateral.
25. G R A N D E A N G U L A R
O pseudo-escorpião-gigante
das grutas do Algarve reina
num habitat frágil e pouco
conhecido, onde a luz não
entra, a humidade é elevada
e a sobrevivência difícil.
Num mundo que se rege
em milímetros, os seus
centímetros, aliados ao
veneno e às poderosas
pinças, tornam-no um
predador temível.
POR BAIXO DO ALGARVE
QUE CONHECEMOSE M G R U T A S N O A L G A R V E E N O U T R O S P O N T O S D E P O R T U G A L ,
U M A E Q U I P A D E B I O E S P E L E Ó L O G O S T E M A C U M U L A D O
D E S C O B E R T A S D E N O VA S E S P É C I E S E G É N E R O S D E O R G A N I S M O S .
O F U N D O D A S G R U T A S É A G O R A A N O VA F R O N T E I R A .
T E X T O E F O T O G R A F I A S D E A N T Ó N I O L U Í S C A M P O S
26.
27. N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OO DIA NASCE NO E STUÁRIO e os primeiros raios de sol
começam a dourar a paisagem. De galochas e fatos de
espeleólogo enlameados, com passo apressado, vários
vultos dirigem-se para a margem da ria de Alvor. O lodo
acinzentado já foi coberto por uma fina camada de água.
Não serão muitos os caminhantes a aventurar-se por
um trilho que promete lama, lama e mais lama.
A urgência nota-se nos olhares inquietos e rostos
franzidos: a maré está mais alta do que o previsto e
corre-se o risco de a entrada da gruta Ibn’Ammar e do
lago interior já estar inacessível. Esta é uma das prin-
cipais cavidades do sistema subterrâneo do Algarve,
que foi classificado em 2016 como hotspot mundial de
biodiversidade cavernícola pela “Science”, uma das
mais importantes revistas científicas.
De cabelo arruivado sob o capacete, a bioespeleóloga
da Universidade de Copenhaga Ana Sofia Reboleira
explica que são poucos os locais na Terra com essa
designação, significando que, numa dada gruta, exis-
tem pelo menos vinte espécies cavernícolas diferentes
terrestres ou aquáticas. Nos últimos anos, o Algarve
tem proporcionado surpresas. Novas espécies para a
ciência têm sido descobertas a um ritmo alucinante.
Numa zona onde são muitos os interesses económicos
em colisão com a conservação da natureza, as ameaças
acumulam-se e a urgência do estudo destas diminutas
e elusivas espécies cavernícolas cresce.
Em comum entre estas descobertas, destacam-se as
adaptações evolutivas encontradas. Muitos destes
organismos mudaram para sobreviver num habitat tão
agreste e diferente como o das grutas. Alguns sofreram
despigmentação, o que os tornou maioritariamente
pálidos; noutros, registou-se degeneração das estru-
turas oculares por não haver luz solar. Em compensa-
ção, ganharam um acentuado alongamento dos
apêndices (antenas, patas, pinças).
O melhor e maior exemplo (literalmente!) é o pseu-
do-escorpião gigante das grutas do Algarve (Titano-
bochicamagna), que os investigadores carinhosamente
designam por “gigante do Sul”. Tudo é relativo: um
adulto pode medir 30 milímetros de envergadura, com
pinças poderosas e uma mordedura venenosa, que o
torna um superpredador à sua escala – talvez compa-
rável ao Tiranossaurus rex em terra, contemporâneo
dos antepassados deste pseudo-escorpião. As origens
da família Bochicidae, a que pertence, remontam ao
Jurássico, há 170 milhões de anos, antes ainda da sepa-
ração continental, como atesta o registo fóssil. Agora,
no ambiente escuro para o qual a evolução o dotou
de armas decisivas, o Titanobochica magna é também
uma fera.
Apesar de o pseudo-escorpião ter maravilhado a
comunidade científica pela dimensão e espectacula-
ridade morfológica, ele tem companhia: o peixinho-
-de-prata Squamatinia algharbica, primo afastado dos
que habitam nos interstícios de nossas casas, foi tam-
bém recentemente descoberto. E, na saída de campo
fotografada para esta reportagem, foi recolhido um
grande exemplar de centopeia, que deverá ser breve-
mente descrita como nova espécie para a ciência. Será
a primeira centopeia cavernícola de Portugal.
E ST E C A M P O C I E N T Í F I C O tem avançado a galope nos
últimos anos em Portugal. O número de espécies
conhecidas no nosso país triplicou. No Algarve, está
identificada uma dezena de cavidades, mas o facto de
se encontrarem espécies semelhantes em diferentes
locais sugere que o sistema de grutas é muito vasto,
embora as ligações entre si ainda não sejam conheci-
das. Pelo país, há outras zonas importantes para a bio-
diversidade cavernícola, como a Arrábida, Montejunto
e as serras de Aire e Candeeiros e Sicó.
Um dos projectos internacionais em que Portugal
participa denomina-se “HiddenRisk”. Segundo Ana
Sofia Reboleira, “buscamos compreender os impactes
das actividades humanas nos ecossistemas subterrâ-
neos e avaliar a importância destes para a saúde
pública”. Apesar de quase invisíveis e pouco apelativos
para o público, o seu papel é fulcral e influencia-nos
globalmente: 97% da água disponível para consumo
humano provém de aquíferos de profundidade (esse
valor ronda os 50% em Portugal).
Nas palavras da bióloga, “os animais subterrâneos
são responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica
que se infiltra até aos lençóis freáticos, garantindo
a qualidade da água e o seu equilíbrio ecológico”.
Esse processo é fundamental “para a agricultura, flo-
restas, nascentes e fontes. São mesmo importantes
para nós!”, acrescenta.
Na ria de Alvor, o grupo de bioespeleólogas progride
em direcção à gruta de Ibn’Ammar, cujo lago interior
(em baixo) alberga espécies aquáticas responsáveis
pela purificação das águas superficiais. A cada saída
de campo, a probabilidade de descobrir novas
espécies para a ciência é elevada.
G R A N D E A N G U L A R | B I O D I V E R S I D A D E
28.
29. N AT I O N A L G E O G R A P H I C
G R A N D E A N G U L A R | B I O D I V E R S I D A D E
A centopeia fotografada numa das grutas de Loulé
“não existe” para a ciência. Está actualmente em
processo de descrição, razão pela qual ainda não
tem nome. Não existe ainda nenhuma espécie
de centopeia cavernícola em Portugal.
colecções. São infindáveis corredores escuros envol-
vidos num silêncio sepulcral, com milhares de exem-
plares conservados em frascos de todos os tamanhos
e feitios, protegidos por uma assustadora guarda de
honra de avestruzes, lobos ou javalis embalsamados,
capaz de pôr os cabelos em pé ao mais batido investi-
gador de campo! Ali está conservada a maioria dos
espécimes recolhidos por Ana Sofia Reboleira.
São mais de setenta novas espécies descritas para a
ciência, 37 das quais em Portugal, incluindo quatro
novos géneros, que abarcam pseudo-escorpiões,
milípedes, bichos-de-conta, insectos e fungos ectopa-
rasíticos de artrópodes. Em Setembro de 2009, a edição
portuguesa da National Geographic noticiou a desco-
berta das primeiras novas espécies de escaravelhos
cavernícolas, Trechus gamae e Trechus lunai, no
maciço estremenho. Na década seguinte, Ana Sofia
Reboleira e os colegas conduziram o conhecimento
para outro patamar.
Entretanto, uma nova geração de biólogos vai sur-
gindo. Andrea Castaño, investigadora espanhola a
desenvolver o doutoramento na Universidade de Cope-
nhaga, conduz um estudo sobre os efeitos de contami-
nantes em organismos subterrâneos. Nos laboratórios
A LG UM A S C E N T E N A S D E Q U I LÓM E T RO S a norte, em
pleno Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros,
no Algar do Pena (que, com 125.000m3
, é a maior sala
subterrânea conhecida do país), procura-se envolver
a sociedade civil com a comunidade científica. Um
“troglobiário” (laboratório subterrâneo) proporciona
apoio à investigação com experimentação em animais
vivos no seu habitat, mas constitui também uma opor-
tunidade única de educação ambiental, ao permitir a
observação de animais cavernícolas in situ.
Ao abrigo do projecto pedagógico “Citizens &
Science”, alunos do ensino secundário local são res-
ponsáveis por tarefas de manutenção (limpeza de
aquários, alimentação, preparação de terrários), com-
preendendo em primeira mão a importância da con-
servação dos organismos subterrâneos.
Aliás, à superfície, as ameaças são bastante palpáveis,
pois o cenário é preocupante: centenas de pedreiras,
muitas das quais especializadas na produção de pedra
de calçada, ameaçam o mundo subterrâneo: apesar de
visualmente este tipo de extracção de inertes parecer
menos grave do que as grandes unidades de profundi-
dade, elas ocupam vastas áreas, afectando os ecossiste-
mas cavernícolas e alterando os padrões de infltração de
água, bem como as suas características físico-químicas.
NUM DIA ANORMALMENTE QUENTE no Inverno escan-
dinavo, a porta da garagem do Museu Zoológico de
Copenhaga abre-se. Passando por sofisticados sistemas
de segurança electrónica, chegamos finalmente às
30. M A I O 2 0 1 9
do museu, tem lugar também um estudo sobre os efei-
tos do aquecimento global, com espécies oriundas de
Sicó, a sul de Coimbra, através do aumento gradual da
temperatura ambiente (ramping) e analisando minu-
ciosamente os efeitos sobre a fauna.
É importante recordar que este conhecimento começa
por ser obtido em condições bem diferentes, quase anta-
gónicas, das do laboratório dinamarquês. De roupa clara
e corte elegante, Ana Sofia Reboleira analisa agora à lupa
animais que “não existem” (para a ciência), mas recorda
que a “prospecção de taberna” é uma parte importante
do processo. É um termo curioso. Evoca as ocasiões em
que os membros da comunidade científica, ao balcão
dos cafés e tabernas, de copo na mão, conversam com
pastores, agricultores e habitantes locais que conhecem
o terreno e desvendam a localização de cavidades que
poderão ser depois exploradas.
As lamacentas, escuras e húmidas grutas de onde pro-
vêm estes insuspeitos animais podem estar a milhares
de quilómetros de distância, mas, de olhos postos num
microscópio electrónico de varrimento, com ampliação
máxima de 400 mil vezes, a investigadora recorda com
admiração o seu mais ilustre precursor, Barros Machado,
o pai da bioespeleologia nacional e autor do “Inventário
das Cavernas de Portugal”. Quarenta anos depois, esse
trabalho pioneiro ainda é uma referência!
Em jovem, Barros Machado explorou mais de trezen-
tas grutas, com o irmão Bernardino (nas décadas de
1930 e 1940). Neto do presidente da República Bernar-
dino Machado, o seu incansável trabalho foi dificultado
por motivos políticos (o avô vivia então um exílio
forçado entre Espanha e França por desavenças
com o governo que emergiu do golpe de Estado de
1926) e o cientista acabou por passar também uma
larga temporada em Angola. As suas explorações
eram épicas: percorria as serranias de norte a sul,
montado em burros e progredia pelas grutas à luz
de velas, preso a cordas artesanais.
COM ACESSOS BEM MAIS FÁCEIS, AnaSofiaReboleira
eamestrandaRitaEusébioestãoderegressoàsentra-
nhas de terras algarvias, em Loulé, contorcendo-se
por buracos apertados, com recurso a complexos
sistemas de cordas. A jornada é de progressão maio-
ritariamente vertical. A busca de animais quase invi-
síveis continua, com a excitação própria de quem
sabe que cada visita pode desvendar novos segredos.
Cada dia de campo pode fazer a diferença dado
o desconhecimento e falta de sensibilidade do
público para a preservação destes habitats, bem
patente no cenário exterior, onde um enorme aterro
ilegal de entulho cresce à vista de todos, amea-
çando tapar a única entrada conhecida desta
jóia cavernícola. j
Ana Sofia Reboleira (em cima) nas colecções
do Museu Zoológico da Universidade de
Copenhaga. Desde 2014, a cientista portuguesa
é investigadora da instituição e lecciona as
disciplinas de Entomologia e Zoologia Terrestre.
32. M A I O | E D I T O R I A L
OcicloneeMoçambiqueGORONGOSA
O ciclone Idai foi o mais
grave no hemisfério sul
desde que há registos.
Entrou pelo centro de
Moçambique no dia 15 de
Março e causou prejuízos
avultados e mais de mil
mortos em quatro países.
arrancadas da paisagem pela força incon-
troláveldaságuas.Pelasestimativasrecen-
tes, mais de mil pessoas perderam a vida
em Moçambique, Madagáscar, Malawi e
Zimbabwe como resultado directo da
catástrofe. Na Beira, a pouco mais de cem
quilómetros da Gorongosa, o ciclone pro-
vocou um ciclo terrível de destruição,
isolamento,fomeeatéumsurtodecólera.
Durante alguns dias, o contacto com a
regiãofoidifícil.MaisdemetadedoParque
NacionaldaGorongosaficousubmersa.No
finaldeMarço,porém,apósumasequência
dediastenebrosos,surgiramluzesaofundo
dotúnel.Ogovernomoçambicano,adirec-
çãodaáreaprotegidaeváriasorganizações
nãogovernamentaiscomeçaramacoorde-
narosesforçosdesocorroeabastecimento
daspopulações.Duranteareportagem,Greg
Carr tinha sublinhado a missão que uma
áreaprotegida,nasuavisãomoderna,deve
abraçar:adefornecimentodecompetências
e meios para as populações humanas vizi-
nhasaentenderemcomoumaforçavivade
progressoenãocomoumobstáculo.
Na tragédia, o PN Gorongosa desem-
penhou essa missão. Os helicópteros
realizaram voos para ligar aldeias isola-
das. Os vigilantes e demais funcionários
ajudaram como puderam as cerca de 200
mil pessoas que vivem na zona-tampão
da área protegida, levando 70 toneladas
dealimentos,medicamentose,sobretudo,
conforto. Teve lugar uma generosa anga-
riação de fundos. No infortúnio, o PN
Gorongosa foi mais um amigo dos
moçambicanos.
E sim: a vida selvagem, tanto quando
se sabe neste momento, resistiu ao
impacte do desastre natural. A maioria
da fauna ter-se-á deslocado para as zonas
de maior altitude, resistindo ao Idai.
Areportagemquepublicamosestemês
tem por isso esse valor acrescentado.
AsraízesdoParqueNaturaldaGorongosa
estão bem fincadas no solo.
UM DOS PIORE S PE SADELOS imagináveis
para uma redacção sucede quando um
acontecimento imprevisto e disruptivo
perturba a planificação cuidadosa de
vários meses, criando um novo cenário
para a realidade já descrita e tornando
“velhas” as fotografias recolhidas. Na
preparaçãodestaedição,experimentámos
na pele este velho adágio do jornalismo.
Durante meses, o fotógrafo Charlie
Hamilton James e o jornalista David
Quammen visitaram o Parque Nacional
daGorongosa,emMoçambique,captando
a extraordinária biodiversidade ali con-
centrada e os esforços de promoção de
desenvolvimento sustentável das comu-
nidades residentes no parque ou nos
limites da área protegida.
No dia 15 de Março, tudo mudou.
O ciclone Idai avançou pelo centro de
Moçambique, devastando tudo à sua pas-
sagem, naquele que se tornou o ciclone
mais poderoso alguma vez registado no
hemisfério sul. Dias depois, o cenário era
dantesco. Estradas e pontes tinham sido
NASA
34. A ETERNA GENIALIDADE
Te xto de C L AU D I A K A L B
Fot o gra fia s d e
PAO L O WO O D S E
G A B R I E L E G A L I M B E RT I
Quinhentos anos após a
sua morte, a criatividade
assombrosa e a inovação de
Leonardo da Vinci na ciência,
nas artes e na engenharia
continuam a maravilhar-nos.
3
35.
36. O trabalho de engenharia
desta bola de cobre
dourada, concluída durante
a aprendizagem com
o artista Andrea del
Verrocchio em Florença,
deixou um impacte
duradouro em Leonardo
da Vinci. Examinando-a
em busca de danos
causados por raios,
Sandro Schievenin emerge
da esfera, instalada no
topo da Catedral de Santa
Maria del Fiore.
PÁGINAS ANTERIORES
Pensa-se que Mona Lisa de
Leonardo retrata Lisa
Gherardini, mulher de
Francesco del Giocondo,
um mercador de seda
florentino. Todos os anos,
milhões de visitantes
acotovelam-se para a ver
no Museu do Louvre, em
Paris. O quadro, protegido
por uma espessa camada
de vidro que tem de ser
limpa com regularidade,
nunca foi restaurado.
37.
38. L E O N A R D O 7
Em Florença,
Leonardo tornou-se
conhecido pelo seu
talento prodigioso e
recebeu as primeiras
encomendas. Era
“um ornamento, um
símbolo de poder”,
diz o estudioso Paolo
Galluzzi. Nesta imagem,
o artista de rua Valter
Conti personifica o
estatuto de celebridade
de Leonardo ao passear
pela Galeria dos Ofícios
para posar em
fotografias com
os turistas.
Do lado de fora das muralhas altas, os turistas tiram selfies e inspeccionam
as bugigangas expostas nas lojas de lembranças. No interior, uma vez trans-
posto o portal em arco e decorado com gárgulas, Leonardo conduz-me de
regresso ao Renascimento.
Quase consigo ouvir os sussurros do artista, ao contemplar um álbum de
cabedal, encadernado em finais do século XVI, na majestosa sala das gra-
vuras do castelo. Decorações de ouro adornam a lombada do volume, com
seis centímetros e meio de largura. Na capa, manchada e desgastada pelas
dedadas imperceptíveis de gerações sucessivas, lê-se: Disegni di Leonardo
da Vinci Restaurati da Pompeo Leoni (desenhos de Leonardo da Vinci, res-
taurados por Pompeo Leoni).
Ninguém sabe ao certo em que circunstâncias este álbum chegou a
Inglaterra, mas a sua proveniência é inequívoca: o escultor italiano Leo-
ni adquiriu os desenhos de Leonardo ao filho de Francesco Melzi, aluno
dedicado do artista, e encadernou-os em, pelo menos, dois volumes. Em
1690, a Encadernação Leoni, como é conhecida, foi incorporada na Royal
Collection, com os seus 234 fólios mostrando as divagações da mente
curiosa de Leonardo.
À medida que Martin Clayton, responsável pelas gravuras e desenhos da
Royal Collection Trust, vai dispondo diante de nós uma selecção das pági-
nas – actualmente separadas em 60 caixas – o âmbito da temática abrangi-
da por Leonardo desdobra-se de forma grandiosa: botânica, geologia, hi-
dráulica, arquitectura, engenharia militar, design de vestuário, geometria,
cartografia, óptica, anatomia. O artista desenhava esboços para compreen-
der fenómenos desconhecidos, explorando os enigmas do universo a tinta,
giz e ponta de prata.
Numinstante,osséculos
colidem.Éummomento
emnadacomparávelàs
experiênciasquejávivi.
VimaoCastelodeWindsor
visitaracolecçãode
desenhosdeLeonardoda
Vincipertencenteàrainha.
39.
40. Após um restauro de
cinco anos, a Adoração
dos Magos revela
pinceladas, cores e
imagens há muito
escondidas sob a sujidade
e o verniz escurecido.
O quadro inacabado,
encomendado a Leonardo
em 1481, também fornece
provas do processo
de raciocínio do artista,
incluindo modificações
produzidas à medida
que ia trabalhando.
O quadro está exposto
numa sala dos Ofícios
reservada a Leonardo.
44. O ANATOMISTA DE HOJE
Michael Grimaldi
(ao centro), director
de desenho da
Academia de Arte
de Nova Iorque,
adorava Leonardo
desde a infância. Numa
colaboração com a
Faculdade de Medicina
da Universidade
Drexel, os alunos de
arte de Grimaldi (com
batas de laboratório
brancas emprestadas)
juntam-se aos alunos
de medicina
(batas coloridas)
para examinarem
e desenharem o
corpo humano.
As dissecações têm
muito mais impacte
do que as palestras,
diz Michael Grimaldi.
45. ca 1473
Tobias
e o Anjo
ca 1473-74
Anunciação
ca 1479-1481
Adoração
dos Magos
ca 1483-1490
Virgem dos
Rochedos
ca 1485
Retrato de
um Músico
ca 1504-07
Salvator Mundi
ca 1501-07
Virgem do Fuso
Sandro Botticelli
Pormenor de
Nascimento
de Vénus,
Botticelli,
1484–86
(em baixo)
Leonardo da Vinci Sandro Botticelli
Em alguns casos, disputas legais e pedidos
populares poderão ter levado Leonardo a
criar múltiplas versões da mesma obra.
TOTAL DE PINTURAS 24
ca 1503-1516
Mona Lisa
Leonardo da Vinci
Com
contribuição
de Andrea del
Verrocchio
2
Com
colaboração
5
6
2
5
Perdida
Número de
trabalhos de
Leonardo
questionados
Inacabada
A
B
(A) (B)
Linhas
esbatidasLeonardo não assinava os seus
quadros. A colaboração era uma
prática comum no seu tempo e hoje
dificulta a identificação dos autores.
No entanto, as 24 obras à direita são
associadas, pelo menos parcialmente,
ao mestre. Duas delas, a Mona Lisa
e A Última Ceia contam-se entre
as mais famosas do mundo.
AVANÇOS
ARTÍSTICOS
Especialista em sfumato
O seu conhecimento da anatomia do olho
influenciou o sfumato, uma técnica de
sombreamento. O esbatimento do traço
suaviza os contornos, criando um efeito
tridimensional.
Noção de espaço
Observador entusiasta da natureza,
Leonardo reproduziu o efeito da atmosfera
em objectos distantes. Os contornos difusos
da paisagem transmitem uma sensação de
distância numa tela bidimensional.
FERNANDO G. BAPTISTA, MONICA SERRANO E EVE CONANT, NGM; LAWSON PARKER. FONTES: MARTIN KEMP, MATTHEW LANDRUS, UNIVERSIDADE DE OXFORD;
MARTIN CLAYTON, ROYAL COLLECTION TRUST; PAOLO GALLUZZI, MUSEU GALILEU. CRÉDITOS DAS PINTURAS, DE CIMA PARA BAIXO E DA ESQUERDA PARA A DIREITA: NATIONAL
GALLERY, LONDRES/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRIDGEMAN; COLECÇÕES DE PINTURA DO ESTADO DA BAVIERA, MUNIQUE/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRI-
DGEMAN; NATIONAL GALLERY OF ART, WASHINGTON, DC/ ART RESOURCE, NY; HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO/BRIDGEMAN; MUSEUS VATICANOS/SCALA/ART RESOURCE, NY;
UFFIZI, FLORENÇA/DE AGOSTINI/GETTY IMAGES; LOUVRE, PARIS/BRIDGEMAN; PINACOTECA AMBROSIANA, MILÃO/BRIDGEMAN; MUSEU NACIONAL DE CRACÓVIA/BRIDGEMAN;
46. ca 1475-76
A Virgem
do Cravo
ca 1476
O Baptismo
de Cristo
ca 1476-78
Ginevra de' Benci
ca 1480-82
São Jerónimo
no Deserto
ca 1479-1480
A Virgem
e o Menino
ca 1490
Retrato de Cecilia
Gallerani (Dama
com Arminho)
ca 1495-1508
Virgem dos
Rochedos
ca 1496-97
La Belle
Ferronière
ca 1495-98
A Última Ceia
ca 1498-99
Sala delle
Asse*
ca 1501-07
Virgem do
Fuso
ca 1508-1517
A Virgem e o
Menino com
Santa Ana
ca 1508-1516
São João
Baptista
ca 1513-16
São João
Baptista**
ca 1506
A Batalha de Anghiari
(cópia de Peter Paul Rubens)
ca 1506-08
Leda e o Cisne
(cópia de Cesare
da Sesto)
A
B
2,2m 4,4m
4,6m
Ponto
de fuga
ideal
*A IMAGEM MOSTRA UMA PEQUENA SELECÇÃO DOS MURAIS PINTADOS POR LEONARDO E PELOS SEUS ASSISTENTES NUM CONJUNTO DE SALAS DO CASTELO SFORZESCO.
** OS ATRIBUTOS DE BACO (UMA COROA DE HERA E UM BASTÃO, OU TIRSO) FORAM ACRESCENTADOS NO SÉCULO XVII POR UM ARTISTA DESCONHECIDO.
Enganando o olhar
Leonardo partia de um ponto de
fuga ideal e depois recorria a ilusões
ópticas para fazer as outras perspectivas
parecerem igualmente ideais. O resultado foi um
mural que parecia fazer parte natural da sala.
(A) Leonardo trabalhou a perspectiva
para atrair o olhar para um único ponto
de fuga, neste caso incidindo sobre Jesus,
para salientar o elemento mais
importante da composição.
(B) Ao tirar partido do ponto
de fuga ideal, Leonardo
permitiu que um observador
ao nível do solo olhasse para
a mesa vista de cima
SANTA MARIA DELLE GRAZIE, MILÃO/BRIDGEMAN; NATIONAL GALLERY, LONDRES/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, ABU DHABI/BRIDGEMAN; CASTELO SFORZESCO, MILÃO/BRIDGE-
MAN; COLECÇÃO PRIVADA/GETTY IMAGES; GALERIAS NACIONAIS DA ESCÓCIA/HIP/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; CHRISTIE’S IMAGES/BRIDGEMAN;
LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; WILTON HOUSE, WILSHIRE/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, PARIS/
ERICH LESSING/ART RESOURCE NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRIDGEMAN; ERICH LESSING/ART RESOURCE NY (PORMENORES)
49. 18 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Ao longo da sua carreira de 46 anos, passada sobretudo em Florença e
Milão, Leonardo sentiu-se seduzido pelo conhecimento, movido por um
olhar permanentemente curioso e determinado a segui-lo. Estudou latim,
coleccionou poesia e leu Euclides e Arquimedes. Enquanto os outros se
entregavam ao perceptível, ele esquadrinhava minudências – ângulos geo-
métricos, a dilatação da pupila – saltando de uma disciplina para a outra
e procurando ligações entre elas. Desenhava esboços de flores e máqui-
nas voadoras, projectava equipamentos de guerra para o duque Ludovico
Sforza, seu patrono, construía ornamentos teatrais com penas de pavão e
elaborou um plano para desviar o Arno entre Florença e Pisa.
Leonardo documentava tudo com um espantoso nível de pormenor, no
verso e no canto dos papéis, com apontamentos minúsculos escritos à mão
para serem lidos com um espelho, da direita para a esquerda. Algumas des-
tas páginas existem hoje como folhas avulsas. Outras foram encadernadas
nos volumes actualmente conhecidos como cadernos de apontamentos
ou códices. Não existe uma ordem evidente, nem mesmo em cada página
individualizada, e temas semelhantes figuram frequentemente em folhas
diferentes, completadas anos depois. Tudo isto torna difícil, até para os es-
pecialistas, acompanhar o ritmo acelerado da sua mente, confessa Paolo
Galluzzi enquanto folheia, maravilhado, reproduções de cadernos de apon-
tamentos de Leonardo. Sempre que fazia uma observação, surgia-lhe na
mente uma pergunta, que invariavelmente conduzia a outra, diz o director
do Museu Galileu, em Florença.
É difícil abarcar a ímpar capacidade de Leonardo para superar o trabalho
dos seus antecessores: fê-lo questionando os seus temas e invalidando os
seus próprios veredictos. No Codex Leicester, Leonardo investiga a manei-
ra como a água chega ao topo das montanhas, acabando por rejeitar a sua
convicção inicial de que o calor a atraía para cima. Em vez disso, percebeu
que a água circula através da evaporação, das nuvens e da chuva. “Mais im-
portante do que descobrir a forma como os riachos da montanha funcio-
nam, era descobrir como… se poderia descobri-lo”, afirma o biógrafo Walter
Isaacson. “Ele contribuiu para a invenção do método científico.”
Para Leonardo, os preceitos da ciência (observação, hipótese e experi-
mentação) eram fundamentais para a arte. Deslocava-se fluidamente entre
os dois reinos, retirando lições de um para informar o outro, diz Francesca
Fiorani, directora associada de artes e humanidades na Universidade de
Virgínia. O seu maior talento era a capacidade de tornar o conhecimento
visível”, acrescenta. “É aí que reside o seu poder.”
É no estudo da anatomia que esse talento mais se evidencia. Dissecou
cadáveres humanos, separando a musculatura subjacente em três dimen-
sões, para ver com os próprios olhos de que maneira uma perna ou um bra-
ço flectiam. Os contemporâneos de Leonardo, incluindo o seu rival Miguel
Ângelo, estudaram músculos e ossos para melhorar a sua representação ar-
tística do corpo humano. “Leonardo foi para além disso”, diz o historiador
de ciência Domenico Laurenza, radicado em Roma. “A sua abordagem à
anatomia era a de um verdadeiro anatomista.”
Os dados científicos reunidos por Leonardo nos seus cadernos de apon-
tamentos estão subjacentes a cada traço do seu pincel. Os estudos ana-
tómicos desmontaram a biologia das expressões faciais. Quais os nervos
que levam a “franzir as sobrancelhas”, ou a “fazer beicinho, ou um sorriso,
ou uma expressão de espanto?”, interrogava-se nos seus apontamentos.
A sua análise da luz e da sombra permitiu-lhe iluminar contornos com
uma subtileza inigualável.
LEONARDO
O
engenheiroFascinado pelos
princípios da
engenharia, Leonardo
desenhou planos para
pontes, edifícios e
equipamentos militares.
Acima de tudo, ansiava
por desenhar uma
máquina voadora para
seres humanos e, por
isso, passou mais de
duas décadas a estudar
o voo animal. Numa
página do Codex
Atlanticus, esboçou um
projecto para uma asa
mecânica.
VENERANDA BIBLIOTECA
AMBROSIANA/BRIDGEMAN IMAGES(Continua na pg. 28)
50.
51. Capacete
de madeira
Desenho de
Leonardo
7m
Manuscrito B,
f 75r
Manuscrito B,
f 79r
2 ou 4 asas
Codex Atlanticus,
f 749r
Voosda
imaginaçãoLeonardoencontravainspiração
nanatureza.Assuasobservações
deavesemorcegoscontribuíram
paraaperfeiçoarmáquinas
voadoras–umasmaisbem-
-sucedidasdoqueoutras.Asua
demandaparaconcretizarovoo
tripuladomanteve-oocupado
durantequaseduasdécadas.
AVA N Ç O S A É R E O S
Piloto horizontal, c. 1488
Quase todas as partes do
corpo desempenhavam um
papel. As mãos e os pés
faziam funcionar as asas, e a
faixa para a cabeça ligada a
um arnês controlava a cauda.
Pára-quedas, c. 1485
Um pára-quedista britânico
testou, com sucesso, o pára-
-quedas de Leonardo no ano 2000,
mas libertou-se do dispositivo
antes de aterrar para evitar ser
esmagado pelos seus 85kg.
Parafuso aéreo, c. 1489
Leonardo sabia que, ao ser
comprimido, o ar torna-se mais
denso. Desenhou este dispositivo
como entretenimento para uma
festa. O conceito foi depois
usado em helicópteros.
Inclinómetro, c. 1485
Quando a bola está
no meio, o piloto sabe
que está paralelo ao
solo. A campânula
impede o vento de
deslocar a bola.
Piloto vertical, c. 1495
Neste desenho, ele experimen-
tou posições verticais: “o
homem também possui mais
força nas pernas do que é
exigido pelo seu peso”.
Reparou que as asas
membranosas dos
morcegos exigiam menos
energia do que as asas
com penas. O desenho
original não especifica
quais as tarefas
reservadas aos braços.
Este design aproveita
os músculos fortes das
pernas para bater as asas
através de um sistema
de roldanas operado por
suportes para os pés.
O desenho original
não especifica a forma
como se deviam
mover os braços.
Batimento de asas
As primeiras máquinas voadoras
eram quase todas desenhadas
com asas, que seriam controladas
por um piloto. Depois, o artista
descobriu que os seres humanos
não conseguem bater asas com
força suficiente para se susterem
em voo. Estas máquinas não
teriam funcionado.
52. Banda
Leme
Madrid
Manuscrito I,
f 64r
Manuscrito B,
f 80r
Móvel
Móvel
Rígido
Codex Atlanticus,
f 846v
Batimento
Voador horizontal, c. 1487-1490
A posição do piloto é uma imitação
próxima da assumida pela ave em
voo. Muitos desenhos de Leonardo
concentravam-se num elemento
essencial para o movimento das asas.
Veículo voador, c. 1488-89
A princípio, muitos desenhos não
eram concebidos à escala. Leonardo
esboçou este veículo, fornecendo
posteriormente as dimensões
para uma versão maior.
Quando uma perna está estendida,
baixa um par de asas. A manivela
manual levanta a outra.
Sistema de aterragem
Leonardo concebeu um
sistema para levantar voo e
aterrar para o seu veículo
em forma de tigela que
incluía escadas retrácteis e
apoios com amortecedores.
Planador, c. 1495-96
A secção central das asas, próxima do
piloto, era rígida. As componentes
exteriores flexíveis das asas, controladas
por cabos, ajudavam a controlar a
inclinação, navegação e curvar.
Abas, c. 1489
Para minimizar a resistência e
maximizar a impulsão, abas de
“pele” permitiam que o ar fluísse
através das asas no movimento
ascendente, fechando-se no
movimento descendente.
Planador, c. 1495
Identificou correctamente
a relação entre o centro
de gravidade e o centro
de pressão num planador,
mas o seu projecto precisava
de uma cauda para funcionar.
Planar
Suspeitando que os seres
humanos não possuíam o rácio
força-peso das aves, Leonardo
alterou os seus estudos para
planar em vez de bater asas. Estes
dois projectos, testados na época
contemporânea, funcionaram com
algumas alterações.
53. Comprimento: 25GatilhoCabrestante Parafuso Projéctil de pedra
21
1
3
Manuscrito B, f 98r
Manivelas
Rodas
2
2
3
Carroçaria blindada, c. 1487-1490
Nova abordagem a um conceito
da Idade Média, o tanque de Leonardo
tinha novos sistemas de movimento
e um conjunto de canhões
para permitir ataques com
um alcance de 360 graus.
Besta gigante,
c. 1485-1490
Mais de trinta esboços ilustram
a ambição de Leonardo para
este arco capaz de lançar balas
de canhão. Foi construído, mas
não no seu tempo de vida.
Retalhador de velas, c. 1484-86
Uma foice montada num poste de
madeira gira 360 graus e, quando
activada por remadores, consegue
rasgar as velas e os mastros dos
navios inimigos.
O arco é apontado
para a esquerda e
para a direita,
levantando a parte
de trás e girando as
rodas da frente.
Os homens carregam
o arco com uma bala
de pedra de 45kg
e activam o gatilho
com uma alavanca
ou golpe de martelo.
Cabrestantes fazem
rodar uma engrena-
gem ligada a uma
rosca que puxa para
trás as cordas e o
gatilho.
Projécteis ovais, c. 1500-1505
Leonardo sabia que a
trajectória de uma bala de
canhão é influenciada pelo ar
em seu redor. Para melhorar a
pontaria, as balas eram bicudas,
como as modernas.
Ignissor automático, c. 1497-1500
A roda com bloqueio inflama a
pólvora de diversas armas. Um
gatilho faz girar uma roda através de
uma mola. A roda em movimento
raspa na pedra, provocando o calor
necessário para atear a pólvora.
INFORMAÇÃO SOBRE OS CRÉDITOS DOS
DESENHOS DE LEONARDO EM NGM.COM/MAY2019.
FERNANDO G. BAPTISTA, MONICA SERRANO,
EVE CONANT; LAWSON PARKER
FONTES: MARTIN KEMP, MATTHEW LANDRUS,
UNIVERSIDADE DE OXFORD; PAOLO GALLUZZI,
DOMENICO LAURENZA, MUSEU GALILEU; LEONARDO3;
MUSEU NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Oito homens giravam
as manivelas para
mover as rodas.
O torreão ajuda a
fazer pontaria.
AVANÇOS MECANICOS
Aarteda
guerraPacifista e talvez vegetariano,
Leonardo chamava à guerra
“loucura animalesca”. No
entanto, o génio artístico foi
atraído para a concepção de
armas pelos seus clientes e
pelo desafio criativo de
imaginar ferramentas capazes
de aumentar a força humana.
A maioria das suas armas
eram muito ambiciosas e
nunca foram construídas.
54. Codex Atlanticus,
f 149 Br
5 metros
Codex Atlanticus,
f 855r
Codex Atlanticus,
f 24r
Sapatos para
caminhar na água
Carreta autopro-
pulsionada
Estrutura de
palco para
teatro
Poço de
perfuração
vertical
Serra
hidráulica
Grua
Museu Britânico
Ponte giratória, c. 1487-89
Uma ponte de madeira amovível poderia
ser rodada 90 graus em torno de um poste
estacionário para permitir a passagem de
navios e travar forças inimigas.
Marcador de ficheiros, c. 1480
Quando activada pela manivela, a máquina
funciona automaticamente. Um martelo é
levantado por uma roda e depois cai sobre
um pedaço de metal que é empurrado em
frente por um parafuso.
Leque de
projectos
Pedras contrabalançam
o peso da ponte
até esta ficar assente
em terra.
O martelo, com cabeças
afiadas e intermutáveis,
deixa marcas em
ziguezague.
Leonardo inventou
ou reimaginou uma
variedade aparentemente
interminável de máquinas.
Leonardo especificou
que a armação deveria
ser composta por
camadas de vigas,
interligadas para
melhorar a flexibilidade.
Rolamento, c. 1497
Leonardo percebeu que a
fricção limita a transferência
de movimento. Os seus
rolamentos eram um método
engenhoso de reduzir a
fricção entre as superfícies.
Engrenagem em espiral, c. 1499
Leonardo concebeu uma
engrenagem em espiral capaz
de manter a força de uma mola
enquanto esta se ia desenrolando.
A questão fora problemática
com os relógios.
A representação artística
tem um defeito: no
desenho conceptual de
Leonardo, as rodas giravam
em direcções opostas,
impedindo o movimento.
Mestreem
movimentoAs inovações de Leonardo
eram frequentemente
experiências conceptuais,
desenvolvidas para clientes
ou para sua própria satisfa-
ção. O seu talento para a
engenharia, porém, estava
presente em inúmeros
desenhos que tentavam
melhorar peças básicas do
quotidiano como o parafuso,
a roda e a mola.
55.
56. O ENGENHEIRO MODERNO
Estudantes de
doutoramento no
laboratório de David
Lentink, em Stanford,
estudam o impacte da
velocidade do ar e da
turbulência numa ave
robótica, o PigeonBot,
no interior de um túnel
de vento especialmente
concebido para o efeito.
Os dados recolhidos
ajudarão a compreender a
mecânica do voo das aves.
57. 28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Leonardo eliminou os contornos tradicionais, optando por suavizar os
contornos de figuras e objectos com uma técnica conhecida como sfumato.
A óptica e a geometria resultaram num sofisticado sistema de perspectiva,
exemplificada em A Última Ceia. Observações minuciosas permitiram-lhe
retratar profundidade emocional nos sujeitos que pintava, que parecem
sensíveis em vez de rígidos.
A inventividade de Leonardo, porém, tinha um preço. Aborrecia os seus
clientes com constantes atrasos e muitas obras ficaram por acabar, incluin-
do A Adoração dos Magos. Os especialistas atribuíram esse facto ao seu
entusiasmo por novos temas e ao perfeccionismo: o desafio de fazer algo
superava a expectativa de o terminar. Para Leonardo, o que importa ver-
dadeiramente é o processo, diz Carmen Bambach, curadora de desenhos e
gravuras do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. “Não é, de todo,
o resultado final.”
Com efeito, quanto mais conhecimento adquiria através dos estudos
apontados nos seus cadernos, mais difícil se tornava para Leonardo des-
cobrir a meta final na sua arte. “À medida que pintava, sem parar, percebia
que era possível criar gradações infinitesimais de tom e transição, entre a
luz mais clara e intensa e a sombra mais profunda”, explica a especialista.
Exames de raios X ao trabalho de Leonardo revelam alterações abundan-
tes, conhecidas como pentimenti. O infinito transformou-se num conceito
muito real, com implicações práticas: havia sempre mais para aprender.
“Em muitos aspectos, é um processo intelectual interminável”, comenta.
Isto pode ajudar a explicar o motivo pelo qual Leonardo nunca publi-
cou os seus cadernos de apontamentos. Ele tencionava completar tratados
sobre muitos temas, incluindo geologia e anatomia. Em vez disso, a orga-
nização dos seus esboços e manuscritos ficou ao cuidado do seu fiel com-
panheiro Melzi. Nas décadas seguintes à morte de Leonardo, dois terços a
três quartos das suas páginas originais foram provavelmente roubadas ou
perderam-se. A maioria das páginas sobreviventes começou a ser publica-
da apenas no final do século XVIII, mais de duzentos anos após a sua morte.
Por essa razão, diz Domenico Laurenza, “sabemos pouco sobre o legado de
Leonardo como cientista”.
As investigações,teses e descobertas deLeonardoforamconfiadas aos que
se seguiram. Séculos mais tarde, ainda estamos a tentar acompanhá-lo.
o legado dos cadernos de apontamentos de Leonardo é palpável hoje
em dia. J. Calvin Coffey, chefe de cirurgia na Graduate Entry Medical School
da Universidade de Limerick, na Irlanda, estava a desenvolver uma investi-
gação há alguns anos quando fez uma descoberta espantosa: uma observação
feita por Leonardo, por volta de 1508, confirmava uma teoria que ele tentava
validar. Calvin Coffey estuda o mesentério, uma estrutura em forma de leque
que liga os intestinos delgado e grosso à parede traseira do abdómen. Desde
a publicação de Gray’sAnatomy, em 1858 (na altura intitulado Anatomy: Des-
criptive and Surgical), que os alunos aprendiam que o mesentério era for-
mado por várias estruturas separadas. Todavia, ao realizar um número
crescente de cirurgias colo-rectais, Calvin Coffey começou a suspeitar que o
mesentério era um órgão contínuo.
Enquanto ele e os colegas examinavam a anatomia da estrutura para pro-
var esta hipótese, o médico descobriu um desenho de Leonardo represen-
tando o mesentério como uma estrutura ininterrupta. O momento consti-
tuiu um instante de clareza. A princípio, olhou para ele e desviou o olhar.
Depois olhou novamente.
LEONARDO
OinventorLeonardo encheu
cadernos de
apontamentos com
invenções que nunca
construiu, incluindo este
dispositivo concebido
para permitir aos
mergulhadores respirar
debaixo de água.
Pacifista, Leonardo
afirmava que não
divulgaria como fabricar
os seus dispositivos
subaquáticos “por causa
da natureza maldosa
dos homens”. O artista
temia que pudessem
ser utilizados para
destruir navios.
BRITISH LIBRARY BOARD/
BRIDGEMAN IMAGES
58.
59.
60. O INVENTOR DE HOJE
Embora rudimentares,
os projectos
subaquáticos de
Leonardo anteciparam
equipamentos
actualmente utilizados
pelas forças armadas.
Na cidade portuária de
Messina, um membro
das forças especiais da
Marinha italiana treina
num fato de mergulho
pressurizado, capaz de
atingir uma profundi-
dade de 300 metros.
61.
62. “Fiquei boquiaberto com o que vi”, afirma. “Correlacionava-se exacta-
mente com o que observávamos. É simplesmente uma obra-prima.”
No resumo das conclusões da sua equipa, publicado em 2015, Calvin
Coffey incluiu os desenhos de Leonardo e atribuiu-lhe os créditos no
texto: “Sabemos agora que a interpretação de Da Vinci estava correcta.”
O médico mostra um diapositivo do desenho de Leonardo nas suas apre-
sentações científicas, maravilhando-se com a sua capacidade para disse-
car o órgão na sua totalidade: uma proeza complicada devido à complexa
estratificação da estrutura. “Ele foi sério na sua interpretação da natureza
e da biologia”, diz Coffey. “Ainda hoje, há cirurgiões que não conseguem
reproduzir o que ele fez.”
A acuidade visual de Leonardo foi motivada pela sua fé inabalável nos
desígnios da natureza, fosse a raiz de uma árvore ou um hipopótamo.
O engenho humano, escreveu, “nunca criará invenções mais belas, nem
mais simples, nem mais objectivas do que as da natureza, porque nas suas
invenções nada falta e nada é supérfluo”. Cada artéria, cada tecido, cada ór-
gão existia com um objectivo, uma revelação que mudou o rumo da carreira
de Francis Charles Wells.
Em 1977, Wells, cirurgião cardiovascular sénior no Hospital Real de
Papworth, em Cambridge (Inglaterra), visitou acidentalmente uma expo-
sição dos desenhos anatómicos de Leonardo na Academia Real de Artes,
no bairro londrino de Piccadilly. O bilhete de entrada custava uma libra e a
recompensa revelou-se incomensurável. “Foi arrebatador”, diz.
LEONARDO
OmúsicoMúsico talentoso,
Leonardo fez
investigações sobre
acústica, cantou e
improvisou melodias na
sua lira da braccio (um
instrumento de cordas
curvo do
Renascimento).
Também desenhou
vários instrumentos
musicais, incluindo
tambores, campainhas e
madeiras. Nesta
imagem, ele pensa em
ideias para uma
combinação de teclado
e cordas conhecida
como viola organista.
Sławomir Zubrzycki,
que construiu uma viola
organista mais tarde,
diz que Leonardo
“desenhou um
instrumento perfeito”.
VENERANDA BIBLIOTECA
AMBROSIANA/BRIDGEMAN IMAGES
ACTUALIDADE
Na sua casa de Cracóvia,
na Polónia, Zubrzycki toca
a viola organista
que fabricou, inspirado
por Leonardo. Um pedal
activa quatro arcos
circulares revestidos
a crina de cavalo, que
friccionam as cordas para
criar um som melodioso.
65. Após dissecar o corpo de um homem de 100 anos, Leonardo apresentou a
primeira descrição da aterosclerose da história da medicina. “Este revesti-
mento dos vasos funciona no homem como nas laranjas, cuja pele engrossa
para que a polpa diminua à medida que envelhecem”, escreveu.
A sua investigação sobre válvulas cardíacas, a especialidade de Francis
Wells, foi igualmente presciente. Para perceber como funcionavam, Leo-
nardo desenhou um modelo de vidro da válvula aórtica, cheio de água e se-
mentes de erva, o que lhe permitiu conceptualizar os padrões da circulação
sanguínea e a forma como as válvulas se abrem e fecham. Esses pormeno-
res foram definitivamente confirmados na década de 1960.
Acima de tudo, os desenhos de Leonardo abriram os olhos do cirurgião
para a requintada lógica da estrutura e da mecânica do coração. Numa ma-
nhã de Outono, Francis Wells estava debruçado sobre o peito aberto de um
paciente na sala de operações de Papworth e chamou-me para perto dele.
“Está a ver? É fabuloso”, disse, apontando para a válvula mitral. “Imagine
a complexidade necessária para o organismo fabricar esta válvula.” A abor-
dagem cirúrgica de Wells é guiada pela máxima que aprendeu com Leo-
nardo: cada parte da complexa composição da válvula (os seus folículos,
cordas e músculos papilares) tem o seu papel e foi concebida para suster as
forças por ela suportadas.
Isso moldou essencialmente a forma como Francis Wells remenda válvu-
las lesionadas. “Vê esta peça pequenina no meu fórceps? É a corda partida”,
afirma. “É a origem do problema.”
O cirurgião poderia optar por remover a válvula inteira e substituí-la por
um modelo artificial, uma abordagem preferida por muitos cirurgiões. Em
vez disso, vejo-o meticulosamente substituir cada corda com suturas de
gore-tex, preservando o máximo possível da estrutura. Leonardo não pode-
ria prever uma abordagem cirúrgica, mas ensinou Francis Wells a observar
cuidadosamente, a parar e pensar, e a compreender a habilidade inerente
da válvula para fazer este trabalho, uma capacidade que o cirurgião procura
O CARTÓGRAFO ACTUAL
Sediada no estado
de Virgínia (EUA),
a Agência Nacional
de Inteligência
Geoespacial usa
tecnologia sofisticada
para recolher dados
sobre características
físicas. Estes mapas
fornecem informação
em situações de crise.
Aqui, vêem-se imagens
de alta resolução
da Antárctida.
66. L E O N A R D O 37
conservar em cada intervenção cardíaca que realiza. “Essa foi a mudança
de paradigma”, diz Wells, que compilou os seus conhecimentos num livro
de 256 páginas: “The Heart of Leonardo” [sem tradução portuguesa].
A um continente de distância, o Codex de Leonardo sobre o Voo das Aves
impregnou na totalidade o Laboratório de Investigação e Design Bio-Ins-
pirados (BIRD) da Universidade de Stanford, dirigido pelo biólogo e enge-
nheiro mecânico David Lentink. Quando o visito, David dá-me uma folha
com questões exploradas por Leonardo que ele e os seus dez alunos de pós-
-graduação ainda estão a tentar responder: de que modo o movimento das
asas no ar gera propulsão? Como controlam os músculos das aves o bati-
mento das asas? Como planam as aves? “Todas as suas perguntas ainda são
relevantes”, diz o investigador.
David Lentink e a sua equipa têm acesso a ferramentas de tecnologia
avançada. Os sensores e a fotografia de alta velocidade permitem-lhes me-
dir a força de sustentação gerada pelas aves no voo. Uma secção de um tú-
nel de vento com quase dois metros, com condições personalizadas, simula
uma atmosfera serena ou uma atmosfera de turbulência, fornecendo pistas
sobre como as asas das aves mudam de forma.
Um dos projectos mais importantes do laboratório é uma ave mecânica
chamada PigeonBot, que tem asas com penas elaboradas por Laura Matloff
e um sistema de controlo de rádio dirigido pelo bolseiro de pós-graduação
Eric Chang. Laura utilizou um microscópio com raios X, para determinar as
características das penas. O esqueleto e os conectores, que fixam as penas,
foram fabricados numa impressora 3D. O PigeonBot está equipado com ace-
lerómetro, giroscópio, barómetro, sensor de velocidade aérea, GPS, bússolas
e radiotransmissores que passam informação sobre o voo a um computador.
Encontrei-me com os dois para um teste de voo. Quando Eric Chang diz:
“Pronto!”, Laura Matloff lança o robot ao ar. Vemo-lo voar cerca de dez me-
tros num segundo até Eric o fazer aterrar. O PigeonBot não é só um enge-
nho para dar nas vistas. O processo de retroengenharia de uma ave permite
aos cientistas estudar a mecânica de voo passo a passo e compreender me-
lhor a função de cada parte do corpo, tarefa que Leonardo não seria capaz
de concluir. A engenharia contemporânea poderá, um dia, recompensar a
curiosidade fervorosa de Leonardo respondendo aos mistérios que o fasci-
naram. “Acho que vamos lá chegar”, diz David Lentink.
os cadernos de apontamentos de Leonardo incluem pensamentos
especulativos com potencial. Desenhos contidos no Codex Atlanticus e em
vários cadernos de apontamentos mais pequenos levaram o pianista polaco
Sławomir Zubrzycki a investigar. Ele ansiava por ouvir a música de Leonardo.
Entremuitosinteresses,Leonardoimprovisavamelodiasnaliradabraccio,
um instrumento de cordas do Renascimento, e estudava a complexidade da
acústica e das composições musicais nos seus cadernos. Em 2009, Sławomir
Zubrzycki deu por si hipnotizado pelos esboços de uma viola organista, um
instrumento de teclas com cordas arqueadas. Cativado pela possibilidade de
uminstrumentofundirduasfamíliasmusicais,opianistadecidiuconstruí-lo.
Em nenhum dos desenhos Leonardo fornecia uma matriz pormenoriza-
da. Durante quatro anos, Sławomir passou cinco horas por dia a investigar
e a formular o seu design. Testou amostras de madeira, decidiu que pre-
cisaria de 61 teclas e desvendou o enigma de como construir quatro arcos
circulares revestidos a crina de cavalo, com capacidade para friccionar as
cordas e gerar música. Para dar vida ao instrumento, baseou-se na mesma
força vital que motivara Leonardo: a imaginação.
67. 38 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O resultado é espectacular. A graciosa viola organista de Zubrzycki alia
a capacidade polifónica de um teclado – permitindo tocar várias melodias
em simultâneo – ao leque de emoções dos instrumentos de cordas.
Numa noite de Verão, Sławomir Zubrzycki senta-se para dar um concerto
de música do Renascimento no Castelo de Kalmar, na costa meridional da
Suécia. Embora a sua viola organista pareça um piano de cauda bebé, com-
porta-se como um conjunto completo de cordas.
Para Leonardo, só a pintura suplantava a música e esta estava mesmo
acima da escultura: ele descrevia-a como figurazione delle cose invisibili, a
modelação das coisas invisíveis. Para a centena de espectadores no recital
de Sławomir Zubrzycki, este momento de exaltação ocorreu enquanto o Sol
se punha sobre o mar Báltico, ao mesmo tempo que alguns rabiscos do ca-
derno de apontamentos de Leonardo se transformavam em música.
a ultima incursão de leonardo, no Outono de 1516,
levou-o a Amboise, em França, onde o rei Francisco I, um grande admirador,
lheofereceuumestipêndioealiberdadeparacriaroquequisesse.Aos64anos,
Leonardo mudou-se para um château modesto, hoje conhecido como Clos
Lucé, com muitos dos seus desenhos e os três quadros dos quais nunca se
separava–SãoJoãoBaptista,AVirgemeoMeninocomSantaAnaeMonaLisa.
Durante os seus anos em Clos Lucé, concebeu projectos hidráulicos para
o reino, planos para uma nova residência real e encenou alegres festivida-
des para o rei. No meio de tudo isto, saboreava os prazeres simples da vida.
Antes de morrer, no dia 2 de Maio de 1519, aos 67 anos, Leonardo con-
cluiu vários desenhos sobre o dilúvio, representando vagalhões cataclís-
micos de água e vento. No final, Leonardo virou o seu olhar, como sempre,
para a natureza.
Actualmente, Clos Lucé é um monumento vivo a Leonardo, no meio de
um enorme parque cheio de sálvia e outras plantas. As crianças brincam
numa ponte parabólica oscilante e num tanque blindado semelhante à
carapaça de uma tartaruga, inspirados nos cadernos de Leonardo. Cami-
nhando no local num dia soalheiro, François Saint Bris, o director de Clos
Lucé, afirma ter esperanças de que o local onde Leonardo passou os seus
últimos anos inspire as próximas gerações.
É um objectivo partilhado por muitos. Novas investigações estão a desco-
brir material para alimentar os especialistas do futuro. Domenica Laurenza
e Martin Kemp colaboraram numa nova análise do Codex Leicester e o seu
estudo revela que este talvez influenciasse o nascimento da geologia con-
temporânea. Ao fim de mais de duas décadas de investigação meticulosa
sobre a vida e a obra de Leonardo, o Met’s Bambach vai publicar uma série
de quatro volumes intitulada “Leonardo da Vinci Rediscovered” [A Redes-
coberta de Leonardo Da Vinci].
Os cadernos de apontamentos de Leonardo começam agora a chegar
ao grande público. Paolo Galluzzi é o responsável por uma elegante base
de dados com motor de busca do Codex Atlanticus, o maior dos cadernos.
Walter Isaacson imagina um dia em que todos serão totalmente traduzidos
e digitalizados por um único consórcio internacional. “Então veremos Leo-
nardo em toda a sua glória”, afirma.
Da mesma forma que Leonardo não via um fim para a sua busca de co-
nhecimento, os seus cadernos de apontamentos parecem estar preparados
para a redescoberta e a posteridade. “Estou sempre a pensar que já fiz tudo
o que tinha a fazer com Leonardo”, diz Martin Kemp, que escreve sobre este
tópico há cinco décadas. “Mas ele regressa sempre.” j
Nas famosas pedreiras
de Carrara, no
Noroeste de Itália
— o local visitado por
Miguel Ângelo, há cinco
séculos, para escolher
mármore para estátuas
— encontra-se uma
escultura de Leonardo.
A figura, feita pela
Torart, uma empresa
italiana especializada
em escultura robótica,
é uma réplica de uma
estátua do século XIX
que vigia o pórtico
da Galeria dos Ofícios.
Os artesãos utilizam
esquemas gerados por
computador, bisturis
robóticos, jactos de
água a alta pressão
e o seu próprio talento
manual para fabricar
reproduções e peças
originais.
´
70. Te xto de D AV I D Q UA M M E N
Fo tografias de
CHARLIE HAMILTON JAME S
DIZIMADA POR UMA LONGA
GUERRA CIVIL , A VIDA
SELVAGEM DO PARQUE
NACIONAL DA GORONGOSA
ESTÁ A RECUPERAR. O FUTURO
DOS ANIMAIS DEPENDE DA
ESPERANÇA QUE FOR DADA
ÀS COMUNIDADES QUE VIVEM
NAS REDONDEZAS.
EM MOÇAMBIQUE
71. Aninhados na extremidade
meridional do Grande
Vale do Rifte, em África,
os 4.000 quilómetros
quadrados da Gorongosa
incluem montanhas,
planaltos florestados,
desfiladeiros com escarpas,
savanas cobertas de
palmeiras e zonas húmidas.
Os inselbergs de Bunga
(antigos pedaços de rocha
vulcânica deixados para
trás pela erosão do solo
mais macio em redor)
interrompem a imensidão
da floresta.
PÁGINAS ANTERIORES
Um elefante come um
petisco nocturno no Parque
Nacional da Gorongosa,
em Moçambique. Muitos
elefantes do parque foram
abatidos e o seu marfim
usado para comprar armas
durante a guerra civil
de 15 anos que terminou
em 1992. Com a caça furtiva
controlada, a população
destes animais está
a recuperar.
72.
73.
74. Os mabecos-africanos
deixaram completamente
de existir na Gorongosa
durante a guerra. Com
algumas populações de
presas a crescer, o parque
precisa de predadores.
Uma matilha de 14
mabecos proveniente da
África do Sul foi libertada
em 2018 e está agora
a contribuir para o
equilíbrio do ecossistema.
75.
76. Patos-assobiadores-
-de-faces-brancas levantam
voo acima de um esquadrão
de pelicanos e cegonhas
pousados no rio Sungué,
na Gorongosa, que alimenta
o lago Urema. Mesmo na
época seca, o lago e os
seus canais tributários
acolhem um número
abundante de aves.
77. 48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Jacinta Sainet
Miquirosse cuida
do lume para cozinhar
em sua casa, na serra
da Gorongosa.
Durante décadas, as
comunidades serranas
viveram uma existência
precária, cortando
árvores para cultivar
milho, a sua cultura
de sustento. Agora,
Jacinta e os seus
vizinhos participam
num projecto do
parque que introduziu
o cafeeiro como cultura
nas suas explorações
agrícolas, contribuindo
simultaneamente para
a reflorestação da
montanha com árvores
de sombra.
UMA MANHÃ QUENTE do final da estação seca, no
início de Novembro, um helicóptero vermelho e
preto deslocava-se velozmente para leste, sobre-
voando a savana coberta de vegetação do Parque
Nacional da Gorongosa, em Moçambique.
O piloto veterano Mike Pingo, originário do
Zimbabwe, controlava a manete. Louis van
Wyk, especialista sul-africano em captura de
animais selvagens, tinha o corpo parcialmente
do lado de fora do habitáculo e segurava uma
arma de cano longo com dardos carregados de
anestésicos. Ao lado de Mike Pingo, sentava-se
Dominique Gonçalves, uma jovem ecologista
moçambicana que é responsável pela gestão dos
elefantes no parque.
Mais de 650 elefantes vivem actualmente na
Gorongosa, um aumento robusto desde os anos
da guerra civil no país (1977-1992), período em
que a maioria dos elefantes do parque foi chaci-
nada e a sua carne e marfim vendidos para com-
prar armas e munições. Com a população de
elefantes novamente em recuperação, Domini-
que queria instalar um marcador de GPS numa
fêmea adulta de cada grupo matriarcal.
Seleccionou um animal de uma manada que
corria numa clareira, onde as árvores cresciam
com pouco espaço entre si. Mike Pingo condu-
ziu o helicóptero para perto do solo, tanto quan-
to as árvores o permitiam. Dez elefantes adultos
– com crias pequenas a seu lado e acompanha-
dos de perto por juvenis – fugiram do ronco
dos rotores. Embora obrigado a disparar a uma
distância superior à habitual, Louis van Wyk
acertou com um dardo no quadril direito da fê-
mea escolhida.
N
LUGARES SELVAGENS
O Parque Nacional da Gorongosa
é um parceiro de conservação da iniciativa
Últimos Lugares Selvagens da
National Geographic Society.
78. G O R O N G O S A 49
Mike pousou e os dois especialistas saltaram do
helicóptero, avançando pelo meio do capim espe-
zinhado até alcançarem a fêmea sedada. Minu-
tos mais tarde, chegou uma equipa de terra com
equipamento mais pesado, técnicos auxiliares
e um vigilante da natureza armado. Dominique
Gonçalves fixou um pequeno pau na ponta da
tromba do elefante, abrindo-a de modo a garan-
tir uma respiração desobstruída. Deitado sobre o
flanco direito, o animal começou a ressonar alto.
Um técnico recolheu uma amostra de sangue de
uma veia da orelha esquerda. Outro técnico aju-
dou Louis a instalar a coleira de marcação logo
abaixo do pescoço da fêmea.
Dominique recolheu um esfregaço de saliva
do animal e um esfregaço rectal, guardando-os
em frascos e selando-os. Calçou uma luva de
plástico no braço esquerdo e inseriu-o profun-
damente no recto do animal, retirando um pu-
nhado de fezes fibrosas cor de ocre que seriam
utilizadas para analisar a composição do regi-
me alimentar do elefante. O grande flanco do
animal subia e descia suavemente, ao ritmo do
murmúrio de trombone emitido pela tromba.
“Louis, podes ver se está prenhe?”, perguntou
a investigadora.
“Falta pouco para parir”, respondeu Louis de-
pois de analisar o leite aguado que escorria dos
úberes distendidos da fêmea.
Este artigo foi apoiado pela Wyss Campaign
for Nature, que está a colaborar com a National
Geographic Society e outras organizações para ajudar a
proteger 30% do nosso planeta até 2030.
79. 50 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
da vizinha Rodésia (actual Zimbabwe) e da Áfri-
ca do Sul. Quando o exército nacional avançou
para confrontá-los, travaram-se combates no
terreno, ataques com foguetes à sede do parque.
Registou-se uma carnificina na savana.
Além do massacre de elefantes, milhares de
zebras e outros animais de grande porte foram
mortos para consumo da sua carne ou por mera
diversão. Uma trégua travou a guerra em 1992,
mas a caça furtiva continuou e mesmo as comu-
nidades vizinhas instalavam armadilhas para
capturar quaisquer animais comestíveis que
restassem. Na viragem para o século XXI, o Par-
que Nacional da Gorongosa estava arruinado.
As circunstâncias eram igualmente sombrias
para as aldeias em redor da Gorongosa. Cerca
de cem mil pessoas viviam num território que
os responsáveis pelo ordenamento classificam
actualmente como zona-tampão – a maioria das
famílias trabalhava na produção de milho e de
outras culturas de subsistência, mal conseguin-
do alimentar-se. As crianças careciam de ensino
e cuidados de saúde.
O crescimento da população de elefantes é
apenas uma parte das boas notícias relativas à
Gorongosa. A maioria dos animais de grande
porte, incluindo leões, búfalos-africanos, hipo-
pótamos e gnus, existe agora em número muito
superior ao registado em 1994, pouco depois do
fim da guerra. No reino da conservação, no qual
demasiados indicadores anunciam pessimismo
e desespero, o sucesso em grande escala é raro.
Louis van Wyk acabou de ajustar a coleira
de marcação e Dominique Gonçalves arrumou
as amostras. Foi injectado um fármaco na veia
da orelha para despertar o animal e a equipa
recuou até uma distância segura. Passado um
minuto, a fêmea levantou-se, abanando a cabe-
ça ensonada, e afastou-se a passos largos, jun-
tando-se à manada. A monitorização dos dados
informará Dominique e os colegas sobre os pa-
drões de deslocação dos elefantes, alertando-os
caso a manada atravesse uma fronteira do par-
que em direcção a um campo agrícola, permi-
tindo assim ao agricultor tomar medidas para
salvar as suas culturas.
É assim que funciona o Projecto de Restauro
da Gorongosa, uma parceria iniciada em 2004
entre o governo moçambicano e a Fundação
Gregory C. Carr, sediada nos EUA. Para que ele-
fantes, hipopótamos e leões prosperem num
parque delimitado, é preciso garantir que os
seres humanos que vivem fora do parque tam-
bém prosperem.
E STENDENDO - SE SOBRE UMA PLANÍCIE de aluvião
situada na extremidade meridional do Grande
Vale do Rifte, em África, abrangendo savanas,
florestas, zonas húmidas e um grande corpo de
água chamado lago Urema, a Gorongosa foi em
tempos uma reserva de caça: a administração
colonial portuguesa criou-a em 1921 para a prática
de desportos de lazer, removendo do território as
pessoas que ali partilhavam a paisagem com a
vida selvagem. Em 1960, a data da classificação
como parque nacional, a Gorongosa continha
cerca de 2.200 elefantes, duzentos leões e 14 mil
búfalos-africanos, bem como hipopótamos,
impalas, zebras, gnus e outros exemplares icóni-
cos da fauna africana.
No entanto, o seu isolamento revelou-se fatal.
Na devastadora guerra civil de 15 anos que se se-
guiu à independência em 1975, a Gorongosa ser-
viu de refúgio à Resistência Nacional Moçam-
bicana (ou RENAMO), as forças rebeldes com
ideologia de direita que receberam apoio militar
80. G O R O N G O S A 51
À ESQUERDA
Os Clubes de Raparigas
da Gorongosa, como
este da aldeia de
Mussinhá, reúnem-se
diariamente, antes ou
depois das aulas, em
aldeias vizinhas do
parque. Juntam-se mais
de duas mil raparigas.
As actividades do clube
centram-se na
alfabetização, na saúde
reprodutiva e na
diversão, contribuindo
para manter as raparigas
na escola. As suas
canções promovem
o ensino, os direitos
das crianças e formas
de evitar o VIH/Sida.
EM BAIXO
A força de vigilantes
da natureza do parque
inclui onze mulheres.
Patrulhas como esta
recebem instruções por
SMS todas as manhãs
e fazem as suas rondas,
procurando armadilhas
de laço e dissuadindo
a actividade dos
caçadores furtivos.
81. No final da estação seca,
um charco remanescente
no canal do rio Mussicadzi
atrai bandos de aves
esfomeadas, incluindo
garças e duas espécies
de cegonhas, juntamente
com um casal de inhacosos
sedentos. A riqueza avícola
de Gorongosa aumenta na
estação húmida quando as
aves migradoras chegam
para se alimentarem.