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N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T | M A I O 2 0 1 9
LeonardoUM GÉNIO À FRENTE DO SEU TEMPO
GORONGOSA,
PARAÍSO NATURAL
DE MOÇAMBIQUE
INCÊNDIOS,
UMA LUTA
SEM QUARTEL
MICROPLÁSTICOS,
A AMEAÇA
INVISÍVEL
2019
PL ANE T A
OU
PLÁ ST I CO
5603965000006
00218
N.º218MENSAL€4,95(CONT.)
N AT I O N A L G E O G R A P H I C M A I O 2 0 1 9
Na capa
Retrato de Leonardo
da Vinci, Biblioteca Real
de Turim. Considerado
até há pouco um
auto-retrato, existem
hoje sérias dúvidas sobre
a sua autoria. Alguns
autores atribuem-na
a um pintor anónimo.
STUART GREGORY/GETTY IMAGES
S U M Á R I O
PAOLO WOODS E GABRIELE GALIMBERTI (EM CIMA)
2Leonardo: um génio
à frente do seu tempo
Cinco séculos após a morte de Leonardo da Vinci, a sua
criatividade imparável e espírito pioneiro continuam a
inspirar o mundo da arte, da anatomia, da ciência, da música
e da engenharia. Numa reportagem que nos levou de
Florença a Londres, dos arredores de Paris aos Estados
Unidos, desvendamos as múltiplas facetas do génio
florentino e o que ainda podemos aprender com ele.
T E X TO D E C L AU D I A K A L B
F OTO G R A F I A S D E PAO LO WO O D S E GA B R I E L E GA L I M B E RT I
R E P O R T A G E N S S E C Ç Õ E S
A S UA F OTO
V I S Õ E S
E X P LO R E
Aranhas voadoras
A arte rupestre de que
(ainda) não se fala
Embalagens tóxicas
I N ST I N TO BÁ S I C O
Um forte ímpeto sexual
G R A N D E A N G U L A R
A vida no fundo
das grutas
E D I TO R I A L
N A T E L E V I SÃO
P RÓX I MO N ÚM E RO
DE CIMA PARA BAIXO: CHARLIE HAMILTON JAMES; DAVID LIITTSCHWAGER; MARK THIESSEN
Assinaturas e
atendimento
ao cliente
Telefone 21 433 70 36
(de 2.ª a 6.ª feira)
E-mail: assinaturas@vasp.pt
40
64
78
Gorongosa, paraíso natural
de Moçambique
O Parque Nacional da Gorongosa
ressurge após 15 anos de guerra
civil e um longo período de
transição em Moçambique, graças
ao sucesso dos projectos de
desenvolvimento e reflorestação.
T E X TO D E DAV I D Q UA M M E N
F OTO G R A F I A S D E
C H A R L I E H A M I LTO N JA M E S
Microplásticos
Todos os anos, chegam ao
mar cerca de nove milhões de
toneladas de lixo plástico. Uma
parte desse volume desintegra-se
em minúsculos fragmentos: os
microplásticos. São tão abundantes
que as larvas dos peixes consomem-
-nos nos primeiros dias de vida.
T E X TO D E L AU R A PA R K E R
F OTO G R A F I A S D E DAV I D
L I I T T S C H WAG E R
Incêndios, uma luta sem quartel
Todos os verões no Alasca, uma
unidade de bombeiros de elite
lança-se de pára-quedas sobre
as florestas em chamas numa
perigosa corrida contra o fogo.
O objectivo é travar precocemente
os incêndios antes que estes
atinjam dimensões catastróficas.
T E X TO D E M A R K J E N K I N S
F OTO G R A F I A S D E M A R K T H I E S S E N
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V I S Õ E S | A S U A F O T O
N O R B E RTO E ST E V E S Esquivo mas curioso, este pequeno mocho-galego iludiu como pôde a máquina do fotógrafo na
ria de Alvor. Acabou por pousar num poste de média tensão, com este “olhar misto de inocência e curiosidade”.
J OÃO A N D R É B RA N C O O complexo residencial de Yik Cheong em Hong Kong é também conhecido como Monster
Building. É uma das zonas mais densamente povoadas do planeta. Vários apartamentos têm apenas 30m2
de área disponível.
G I C R I STÓVÃO A Rota dos Túneis, entre Barca d’Alva e Fregeneda, foi em tempos território do comboio, mas a desactivação
da linha alimenta agora o tráfego dos caminheiros. Na escuridão da noite, as estrelas brilham com mais intensidade.
A The Navigator Company e a National
Geographic, dão assim um grande passo
em direção a um mundo mais verde.
Todos os dias somos confrontados com diversas
escolhas. Cabe-nos a nós acertar, rumo a um
futuro mais sustentável. Comece também
a optar por papel, um material renovável,
reciclável e biodegradável.
A sua revista agora é entregue
em envelope de papel.
V I S Õ E S
Brasil
Sob a luz do crepúsculo e um
céu tempestuoso, as flores
de sempre-viva (género Paepa-
lanthus) atapetam uma pradaria
do Parque Nacional da Chapada
dos Veadeiros, uma área
protegida no centro do país
onde abundam os endemismos.
MARCIO CABRAL/BIOSPHOTO/AGE FOTOSTOCK
Encontre esta e outras fotografias em nationalgeographic.pt
Indonésia
Um társio (Tarsius tarsier) espreita
a partir de uma concavidade de
uma árvore na Reserva Natural
de Tangkoko, nas ilhas Celebes.
Estes pequenos primatas de olhos
enormes têm hábitos nocturnos,
pelo que frequentemente perma-
necem ocultos durante o dia.
CHIEN LEE/MINDEN PICTURES/AGE FOTOSTOCK
Irão
Uma mulher entra na mesquita
Nasil al-Molk, também conhe-
cida como Mesquita Rosa,
na cidade de Shiraz. O vistoso
chador parece fundir-se com os
azulejos que decoram o interior
deste templo construído na
segunda metade do século XIX.
TUUL & BRUNO MORANDI/GETTY IMAGES
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Aranha voadora
(espécie
continental)
Anteriores
Seda de
voo
Médias
Fieiras
posteriores
Tricobótrio
Outras
pilosidades
Glândulas
Fieiras
Seda de ancoragem
presa pela
pata traseira
Seda de voo
composta por
70 a 140 nanofibras
Seda de
ancoragem
Carga por
fricção
Carga
intrínseca Carga
adquirida
SUPERFÍCIE TERRESTRE
(CARGA NEGATIVA)
Em pontas
A aranha trepa até um ponto elevado,
segura-se com uma espécie de âncora e
avalia as condições com as patas
anteriores. De seguida, apoia-se na
extremidade das patas posteriores,
eleva o abdómen e liberta a seda.
1
Finas pilosidades denominadas
tricobótrios reagem às
condições eólicas e eléctricas
e actuam de acordo com elas.
A aranha ergue as
patas dianteiras para
avaliar as condições.
As glândulas sericígenas
segregam múltiplos tipos de
fios de seda libertados através
de pares de fieiras.
A seda pode
transportar a própria carga
intrínseca ou adquiri-la
por fricção ou do ar.
Quando faz bom tempo, a
atmosfera apresenta uma
carga positiva e a superfície
terrestre negativa. As cargas
atraem-se mutuamente.
O campo eléctrico é mais
potente nas zonas mais altas,
como as extremidades das flores.
Quadro eléctrico global
NÁUFRAGOS CELESTES
Poucas aranhas voam, mas as que o fazem
são excelentes colonizadoras. Algumas
transportam ovos com os quais expandem
a sua população, mas o motivo que as
leva a voar ainda é desconhecido.
Aranhas voadoras
C H A R L E S DA RW I N F I C O U FA S C I N A D O com as aranhas que
pousaram no HMS Beagle há quase dois séculos. Estes arac-
nídeos não têm asas, mas conseguiram aterrar no navio a 100
quilómetros de terra firme. Como chegaram ali? As últimas
investigações trazem novas pistas sobre o possível papel
desempenhado pelo campo eléctrico da Terra nesta façanha
aérea. As aranhas voadoras elevam-se no ar como se empreen-
dessem um voo aerostático: orientam o corpo em direcção ao
fluxo de ar e libertam fios de seda que aproveitam o vento e
o campo eléctrico para levantar voo. Voam em busca de melho-
res locais e, uma vez no ar, conseguem controlar os seus movi-
mentos, mas não a direcção para onde rumam.
E X P L O R E
0 km 4
FORÇA
ELECTROSTÁTICA
VENTO HORIZONTAL
(As aranhas voam apenas quando o vento
é inferior a 3 metros por segundo)
VENTO VERTICAL
ASCENDENTE
A 6 6 8 QUI L Ó M E T R O S D A C O S TA
Entre
8
e
10
m
durante
o
vooA
s
ed
a
m
e
de
entr
e
3
e
5
m
SUSTENTAÇÃO
POR
ELECTROSTÁTICA
SUSTENTAÇÃO
PELO
VENTO
(com
vento
suave)em
a
s
cen
s
ão
Repulsão
mútua
Ilha Robinson
Crusoé, Chile
Santiago
San Juan
Bautista
Ilha Robinson
Crusoé
Arquipélago de
Juan Fernández
668KM
ÁREA EM
DESTAQUE
EM BAIXO
CHILE
AMÉRICA
DO SUL
ÁREA DO
MAPA
Zarpando
Com a força obtida no campo eléctrico
A e o impulso ascendente da brisa B ,
a aranha eleva-se no ar e “voa”, depois
de quebrar a linha de âncora e de criar
um “pára-quedas” em forma de leque
feito com fibras de seda.
Voo de alto risco
Asaranhaspodemalcançar4,5
quilómetrosdealturaevoarmilhares
dequilómetrossemáguaoualimento,
masmuitasnãosobrevivemaestas
arriscadasviagens.Emcontrapartida,
amaioriadosvoossãocurtos.
2 3
Aranha em voo,
tamanho real
Em vez de se emaranharem, os fios
de seda carregados esticam-se
devido ao efeito de repulsão,
outro indício de que o campo
eléctrico da Terra poderá intervir
no movimento de elevação.
Os ventos mais lentos e próximos
da superfície da Terra reagem
com os ventos mais altos e
rápidos, criando remoinhos
que podem ser usados pelas
aranhas para ganhar altura.
A aranha solta o fio de âncora e
estica as patas para se equilibrar
ou controlar a velocidade.
O fio de voo é tão fino
que até a mais leve brisa
consegue sustentá-lo.
Impulso eléctrico Corrente ascendenteA B
TEXTO: DAISY CHUNG. CLARE TRAINOR, NGM (MAPA); MESA SCHUMACHER. FONTES: MOONSUNG CHO, UNIVERSIDADE TÉCNICA DE BERLIM; ERICA L. MORLEY, UNIVERSIDADE
DE BRISTOL; GUSTAVO HORMIGA, UNIVERSIDADE GEORGE WASHINGTON; ROBERT B. SUTER, VASSAR COLLEGE, MOLECULAR PHYLOGENETICS AND EVOLUTION 107 (2017)
Aarterupestrede
que(ainda)nãosefala
T E X T O E F O T O G R A F I A S D E H U G O M A R Q U E S
Imagineumpequenogrupodepessoas
naIdadedoBronze(entrecercade2500
a 1500 a.C) reunidos em frente de uma
alongada e baixa cavidade granítica
na sub-região entre o Sabor e o Douro.
Semiescondidos e quase deitados no
espaçoapertadodacavidade,masmuni-
dos de pequenas ferramentas líticas,
iniciam a gravação de um conjunto de
formasgeométricaseantropomórficas,
utilizandotécnicasdepicotagemeabra-
são que resultarão num dos mais belos
exemplosdearteesquemáticadoterritó-
rioanortedoDouro.Nuncasaberemos
os significados concretos atribuídos a
cadasímbolo,maspodemosconjecturar.
Os tempos dos caçadores-recolecto-
res do Paleolítico Superior no vale do
Côa já passaram há muito e, neste ter-
ritório, prosperam agora comunidades
agropastoris,commodosdevidaseden-
tários.Apesardessaenormemudança,
a ligação do homem ao simbólico con-
tinuaapersistireestestraçosrepetem-
-se por muitos sítios arqueológicos na
Península Ibérica. Esta demonstração
de uma cultura própria, mas também
partilhada nos seus símbolos, indicia
contactos entre os grupos humanos.
Passados 4.500 anos, os dedos de
Maria de Jesus Sanches, docente da
Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, percorrem com suavidade as
linhasepequenascovasquesecruzam
neste abrigo pré-histórico. O abrigo da
Solhapa na freguesia de Duas Igrejas,
no concelho de Miranda do Douro, foi
dado a conhecer em 1955 pelo padre
António Maria Mourinho, apaixonado
por arqueologia e etnografia que, tal
como o abade de Baçal (que tratava
por mestre), se dedicou à divulgação
do património cultural transmontano.
Otrabalhodestainvestigadoradebru-
çou-sesobreasformasalirepresentadas.
Utilizandodiversastécnicasdecontraste
cromático, foi possível definir melhor
oselementosrepresentadosnogranito.
Entrepequenascovasesulcos,quetêm
em si significado simbólico desconhe-
cido, identificam-se figuras humanas
antropomórficas e de cariz sexuado,
dada a exibição fálica, e um equídeo
possivelmente montado por um cava-
leiro,quepoderáestarapisaralguém.
A vida destas pessoas estava muito
mais ligada aos ciclos da natureza, e a
explicaçãodosfactosnaturais,ouatéde
eventos heróicos,queéhoje mais cien-
tífica,serianopassadomaissimbólica,
ousobrenatural.Astentativasderepre-
sentar e apelar a esse mundo pouco
conhecido expressam-se em vários
sítios arqueológicos que começam
agora a redefinir a nossa compreensão
da ocupação deste território.
O ABRIGO DO PASSADEIRO, em Pala-
çoulo,noconcelhodeMirandadoDouro,
confluicomumapequenalinhadeágua.
Foialiqueseencontrouaimagemdeum
cervídeo realizado seguindo a técnica
depicotadofino,comumadataçãoque
poderá recuar até ao Mesolítico (cerca
de7000,6000 a.C.).Dasrepresentações
de veados, auroques e cavalos, muito
comunsnoPaleolíticoSuperior(30000
a10000a.C.),sóosveadosprosseguiram
em períodos mais recentes. A relação
do homem com o mundo natural não
se perdeu apesar das grandes trans-
formações nas sociedades humanas.
“UNHADAS D O DIAB O”, PICOTAD O S, GRAVURAS – HÁ UM MUND O
DE ARTE PRÉ-HISTÓRICA QUE COMEÇÁMO S AG ORA A DES COBRIR
E X P L O R E | A R T E R U P E S T R E
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A caça continua a ser uma forma de
suprir necessidades alimentares e a
cavernaeoabrigoaindasãoosespaços
paramanifestaçõesartísticasemágicas.
Sãopassagensparaummundoinferior
na interpretação de pré-historiadores
consagradoscomoJeanClottes.
No meio de um veado representado
numaposiçãodinâmica,MariadeJesus
Sanchesfoisurpreendidaporaquiloque
localmente é designado por “unhadas
do diabo”, que lhe são anteriores no
tempo. São marcas que acabam por
cruzar o corpo do animal e cuja moti-
vação nos escapa. Os censos de sítios
semelhantestêmcomprovadoqueestas
marcas se repetem nas bacias dos rios
Douro, Tejo e Guadiana. Teriam um
significadocomunitárioouseriamuma
primitiva forma de escrita?
NÃO É, CONTUDO, POSSÍVEL FALAR
do Douro e das terras de Miranda
sem reflectir a presença do grande rio
ibérico. Nas enormes arribas de uma
naturezaquaseembruto,asmarcasdo
passadolongínquoirrompemportodo
o lado. Sobranceiro ao rio, está implan-
tado, numa fraga na aldeia de Picote,
um arqueiro com o seu arco retesado
que parece vigiar quem por ali passa.
Estelugartemumaauramágicapela
associação que a população local faz
à lenda de um cavaleiro cristão que,
perseguido pelos mouros, teria saltado
do território que hoje é Espanha sobre
o rio e aterrado na fraga do Puio, dei-
xando ali a sua marca. Pelo contexto
arqueológico associado à zona e por
aspectos estilísticos, é possível que
esta gravura seja datada do quarto
ou terceiro milénio antes de Cristo.
O homem empunhando um arco
poderáterumainterpretaçãoguerreira,
massabemosqueospovosdestaépoca
ainda estavam muito dependentes da
recolecção. O arqueiro será mais um
elemento do “universo cosmológico e
ontológicodaspopulaçõesquealivive-
ram”, afirma a investigadora.
Num lugar com uma paisagem deslumbrante, a figura
do arqueiro da fraga do Puio destaca-se com o equipa-
mento de luz rasante da arqueóloga Mónica Salgado (em
cima). Na página anterior, a investigadora Maria de Jesus
Sanches no interior do abrigo do Passadeiro em Palaçoulo.
Em baixo, a pala do abrigo da Solhapa na freguesia de
Duas Igrejas destaca-se no planalto mirandês.
COMPOSIÇÃO DE MARIA JOSÉ SANCHES (FLUP)
E X P L O R E | A R T E R U P E S T R E
A figura de um cervídeo com cerca de nove mil anos sobrepõe-se a um cruzamento de inúmeras “unhadas do diabo”
no abrigo do Passadeiro. Conjectura-se que estas marcas talvez fossem uma forma primitiva de escrita (em cima).
No interior do abrigo da Solhapa em Duas Igrejas (em baixo), Maria de Jesus Sanches observa atentamente um dos
mais belos exemplos de arte esquemática no território transmontano. Muito do património de arte rupestre de
Trás-os-Montes permanece por classificar.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
E X P L O R E | C I Ê N C I A
DE CIMA PARA BAIXO: ANTAGAIN, GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO; RICHARD KIRBY; JOE PETERSBURGER, NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE
Baratas afastam picadas zombie
“Como não ser transformado num zombie.” Foi assim que o biólogo Kenneth Catania
intitulou o seu relatório sobre o parasitismo das baratas americanas por vespas-jóia. Se for
picada no cérebro, a barata segue a vespa para um buraco onde a vespa faz uma postura.
Depois, fecha o buraco, deixando a barata como alimento para a larva. No seu estudo, o
investigador percebeu que as baratas que se defenderam pontapeando vigorosamente
com as pernas evitaram as picadas em 63% das ocasiões.
GENÉTICA
O poder
das papoilas
Os seres humanos há
muito que extraem
morfina e codeína
das papoilas do
ópio. Mas de que
forma a evolução
dotou estas flores
de poderes
analgésicos? Não
foi simples. O DNA
da papoila revela
que, ao longo de
110 milhões de anos,
boa parte do seu
genoma duplicou
duas vezes, e
dois genes
suplementares
fundiram-se num
que é crucial para
a formação
do narcótico.
A descoberta
pode contribuir
para o melhor
conhecimento
dos opiáceos.
PLÁSTICOS
A CONTAMINAÇÃO
PROVÉM DE MINÚSCULAS
EMBALAGENS TÓXICAS
O O C E A N O E S TÁ S O B R E C A R R E G A D O D E M I C RO F I B R A S
D E P L Á S T I C O. E O P L Â N C TO N C O N S OM E -A S .
O emaranhado de microfibras que se vê em cima tem menos de
quatro milímetros de diâmetro, aproximadamente o tamanho
dos pequenos organismos aquáticos conhecidos como plâncton.
Semanalmente o cientista Richard Kirby parte da costa de Ply-
mouth, em Inglaterra, com uma rede de arrasto enganchada ao
seu barco para recolher plâncton. Ultimamente, encontra quase
tanto plástico como plâncton. Estima-se que anualmente mais
de 600 mil toneladas de microfibras de plástico, libertadas durante
a lavagem de lãs, poliéster e outros tecidos sintéticos, cheguem
ao oceano. O plâncton pode comê-las ou ficar enredado nelas, e
os impactes ecológicos ainda não são conhecidos. “A nossa polui-
ção estendeu-se até ao fim da cadeia alimentar marinha”, diz
Kirby. “Alterámos o plâncton, causando efeitos que durarão sécu-
los ou milénios.”
ESTAS BONITAS LESMAS-DO-MAR australianas, da espécie Siphopteron qua-
drispinosum, usam simultaneamente os órgãos sexuais masculinos e femi-
ninos durante o acasalamento e apresentam um curioso pénis de duas
pontas. Através de uma delas, o esperma é transferido de maneira “tradi-
cional”, ou seja, é depositado no tracto genital feminino.
A outra extremidade, um apêndice semelhante a um estilete, é usada
para injectar um fluido prostático na cabeça do parceiro, que, de acordo
com os investigadores da Universidade de Tübingen, na Alemanha, “pode-
ria aumentar a capacidade de fertilização do próprio espermatozóide ou
inibir o esperma depositado por parceiros sexuais anteriores”, diz Rolanda
Lange, co-autora do estudo.
Este método brutal já fora observado noutros invertebrados. Em 1913,
dois entomólogos britânicos, Walter S. Patton e Francis W. Cragg, referiram
que certos animais levavam a cabo uma inseminação traumática inoculando
o esperma directamente no sistema sanguíneo através de um ferimento
causado por um pénis semelhante a um estilete. No entanto, é a primeira
vez que se observa o dardo inserido entre os olhos da consorte. “Devem
existir vantagens que compensam o dano corporal que isso acarreta. Ou
pelo menos deverão ter existido nas fases iniciais da evolução”, prossegue
a especialista.
Talvez seja assim que o esperma é depositado mais perto dos óvulos do
que com o acasalamento normal. De facto, muitos invertebrados (insectos
e certos vermes achatados e poliquetas) desenvolveram tácticas similares
de acasalamento”. Será necessário continuar a investigar para descobrir
que virtudes escondem estes lacerantes pénis multifuncionais.
E X P L O R E | I N S T I N T O B Á S I C O
TEXTO: EVA VAN DEN BERG. FOTOGRAFIA: DENNIS McCREA. ILUSTRAÇÃO: DAVID MARTÍNEZ.
FONTE: PROCEEDINGS OF THE ROYAL SOCIETY B: BIOLOGICAL SCIENCES, 2014
DESCRIÇÃO
As lesmas-do-mar
ou opistobrânquios
são moluscos
gastrópodes marinhos.
A Siphopteron
quadrispinosum
mede cerca de cinco
milímetros e regista
coloração amarela,
laranja e vermelha.
HABITAT
Vive na areia, em
profundidades de
6 a 27 metros. Por
norma, abriga-se no
interior das formações
de macroalgas.
DISTRIBUIÇÃO
Siphopteron
quadrispinosum foi
descrita no Hawai e na
Papua Nova-Guiné.
Também está presente
nas águas do Japão,
Nova Caledónia e no
Nordeste da Austrália.
Um forte ímpeto sexual
Esboço da sequência
de acasalamento entre
lesmas. Nas fases iniciais
da relação sexual, os dois
indivíduos aproximam-se
e entrelaçam-se.
De seguida, dá-se
uma cópula recíproca (tal
como as lacerações) que
termina num emparelha-
mento unilateral.
G R A N D E A N G U L A R
O pseudo-escorpião-gigante
das grutas do Algarve reina
num habitat frágil e pouco
conhecido, onde a luz não
entra, a humidade é elevada
e a sobrevivência difícil.
Num mundo que se rege
em milímetros, os seus
centímetros, aliados ao
veneno e às poderosas
pinças, tornam-no um
predador temível.
POR BAIXO DO ALGARVE
QUE CONHECEMOSE M G R U T A S N O A L G A R V E E N O U T R O S P O N T O S D E P O R T U G A L ,
U M A E Q U I P A D E B I O E S P E L E Ó L O G O S T E M A C U M U L A D O
D E S C O B E R T A S D E N O VA S E S P É C I E S E G É N E R O S D E O R G A N I S M O S .
O F U N D O D A S G R U T A S É A G O R A A N O VA F R O N T E I R A .
T E X T O E F O T O G R A F I A S D E A N T Ó N I O L U Í S C A M P O S
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
OO DIA NASCE NO E STUÁRIO e os primeiros raios de sol
começam a dourar a paisagem. De galochas e fatos de
espeleólogo enlameados, com passo apressado, vários
vultos dirigem-se para a margem da ria de Alvor. O lodo
acinzentado já foi coberto por uma fina camada de água.
Não serão muitos os caminhantes a aventurar-se por
um trilho que promete lama, lama e mais lama.
A urgência nota-se nos olhares inquietos e rostos
franzidos: a maré está mais alta do que o previsto e
corre-se o risco de a entrada da gruta Ibn’Ammar e do
lago interior já estar inacessível. Esta é uma das prin-
cipais cavidades do sistema subterrâneo do Algarve,
que foi classificado em 2016 como hotspot mundial de
biodiversidade cavernícola pela “Science”, uma das
mais importantes revistas científicas.
De cabelo arruivado sob o capacete, a bioespeleóloga
da Universidade de Copenhaga Ana Sofia Reboleira
explica que são poucos os locais na Terra com essa
designação, significando que, numa dada gruta, exis-
tem pelo menos vinte espécies cavernícolas diferentes
terrestres ou aquáticas. Nos últimos anos, o Algarve
tem proporcionado surpresas. Novas espécies para a
ciência têm sido descobertas a um ritmo alucinante.
Numa zona onde são muitos os interesses económicos
em colisão com a conservação da natureza, as ameaças
acumulam-se e a urgência do estudo destas diminutas
e elusivas espécies cavernícolas cresce.
Em comum entre estas descobertas, destacam-se as
adaptações evolutivas encontradas. Muitos destes
organismos mudaram para sobreviver num habitat tão
agreste e diferente como o das grutas. Alguns sofreram
despigmentação, o que os tornou maioritariamente
pálidos; noutros, registou-se degeneração das estru-
turas oculares por não haver luz solar. Em compensa-
ção, ganharam um acentuado alongamento dos
apêndices (antenas, patas, pinças).
O melhor e maior exemplo (literalmente!) é o pseu-
do-escorpião gigante das grutas do Algarve (Titano-
bochicamagna), que os investigadores carinhosamente
designam por “gigante do Sul”. Tudo é relativo: um
adulto pode medir 30 milímetros de envergadura, com
pinças poderosas e uma mordedura venenosa, que o
torna um superpredador à sua escala – talvez compa-
rável ao Tiranossaurus rex em terra, contemporâneo
dos antepassados deste pseudo-escorpião. As origens
da família Bochicidae, a que pertence, remontam ao
Jurássico, há 170 milhões de anos, antes ainda da sepa-
ração continental, como atesta o registo fóssil. Agora,
no ambiente escuro para o qual a evolução o dotou
de armas decisivas, o Titanobochica magna é também
uma fera.
Apesar de o pseudo-escorpião ter maravilhado a
comunidade científica pela dimensão e espectacula-
ridade morfológica, ele tem companhia: o peixinho-
-de-prata Squamatinia algharbica, primo afastado dos
que habitam nos interstícios de nossas casas, foi tam-
bém recentemente descoberto. E, na saída de campo
fotografada para esta reportagem, foi recolhido um
grande exemplar de centopeia, que deverá ser breve-
mente descrita como nova espécie para a ciência. Será
a primeira centopeia cavernícola de Portugal.
E ST E C A M P O C I E N T Í F I C O tem avançado a galope nos
últimos anos em Portugal. O número de espécies
conhecidas no nosso país triplicou. No Algarve, está
identificada uma dezena de cavidades, mas o facto de
se encontrarem espécies semelhantes em diferentes
locais sugere que o sistema de grutas é muito vasto,
embora as ligações entre si ainda não sejam conheci-
das. Pelo país, há outras zonas importantes para a bio-
diversidade cavernícola, como a Arrábida, Montejunto
e as serras de Aire e Candeeiros e Sicó.
Um dos projectos internacionais em que Portugal
participa denomina-se “HiddenRisk”. Segundo Ana
Sofia Reboleira, “buscamos compreender os impactes
das actividades humanas nos ecossistemas subterrâ-
neos e avaliar a importância destes para a saúde
pública”. Apesar de quase invisíveis e pouco apelativos
para o público, o seu papel é fulcral e influencia-nos
globalmente: 97% da água disponível para consumo
humano provém de aquíferos de profundidade (esse
valor ronda os 50% em Portugal).
Nas palavras da bióloga, “os animais subterrâneos
são responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica
que se infiltra até aos lençóis freáticos, garantindo
a qualidade da água e o seu equilíbrio ecológico”.
Esse processo é fundamental “para a agricultura, flo-
restas, nascentes e fontes. São mesmo importantes
para nós!”, acrescenta.
Na ria de Alvor, o grupo de bioespeleólogas progride
em direcção à gruta de Ibn’Ammar, cujo lago interior
(em baixo) alberga espécies aquáticas responsáveis
pela purificação das águas superficiais. A cada saída
de campo, a probabilidade de descobrir novas
espécies para a ciência é elevada.
G R A N D E A N G U L A R | B I O D I V E R S I D A D E
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
G R A N D E A N G U L A R | B I O D I V E R S I D A D E
A centopeia fotografada numa das grutas de Loulé
“não existe” para a ciência. Está actualmente em
processo de descrição, razão pela qual ainda não
tem nome. Não existe ainda nenhuma espécie
de centopeia cavernícola em Portugal.
colecções. São infindáveis corredores escuros envol-
vidos num silêncio sepulcral, com milhares de exem-
plares conservados em frascos de todos os tamanhos
e feitios, protegidos por uma assustadora guarda de
honra de avestruzes, lobos ou javalis embalsamados,
capaz de pôr os cabelos em pé ao mais batido investi-
gador de campo! Ali está conservada a maioria dos
espécimes recolhidos por Ana Sofia Reboleira.
São mais de setenta novas espécies descritas para a
ciência, 37 das quais em Portugal, incluindo quatro
novos géneros, que abarcam pseudo-escorpiões,
milípedes, bichos-de-conta, insectos e fungos ectopa-
rasíticos de artrópodes. Em Setembro de 2009, a edição
portuguesa da National Geographic noticiou a desco-
berta das primeiras novas espécies de escaravelhos
cavernícolas, Trechus gamae e Trechus lunai, no
maciço estremenho. Na década seguinte, Ana Sofia
Reboleira e os colegas conduziram o conhecimento
para outro patamar.
Entretanto, uma nova geração de biólogos vai sur-
gindo. Andrea Castaño, investigadora espanhola a
desenvolver o doutoramento na Universidade de Cope-
nhaga, conduz um estudo sobre os efeitos de contami-
nantes em organismos subterrâneos. Nos laboratórios
A LG UM A S C E N T E N A S D E Q U I LÓM E T RO S a norte, em
pleno Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros,
no Algar do Pena (que, com 125.000m3
, é a maior sala
subterrânea conhecida do país), procura-se envolver
a sociedade civil com a comunidade científica. Um
“troglobiário” (laboratório subterrâneo) proporciona
apoio à investigação com experimentação em animais
vivos no seu habitat, mas constitui também uma opor-
tunidade única de educação ambiental, ao permitir a
observação de animais cavernícolas in situ.
Ao abrigo do projecto pedagógico “Citizens &
Science”, alunos do ensino secundário local são res-
ponsáveis por tarefas de manutenção (limpeza de
aquários, alimentação, preparação de terrários), com-
preendendo em primeira mão a importância da con-
servação dos organismos subterrâneos.
Aliás, à superfície, as ameaças são bastante palpáveis,
pois o cenário é preocupante: centenas de pedreiras,
muitas das quais especializadas na produção de pedra
de calçada, ameaçam o mundo subterrâneo: apesar de
visualmente este tipo de extracção de inertes parecer
menos grave do que as grandes unidades de profundi-
dade, elas ocupam vastas áreas, afectando os ecossiste-
mas cavernícolas e alterando os padrões de infltração de
água, bem como as suas características físico-químicas.
NUM DIA ANORMALMENTE QUENTE no Inverno escan-
dinavo, a porta da garagem do Museu Zoológico de
Copenhaga abre-se. Passando por sofisticados sistemas
de segurança electrónica, chegamos finalmente às
M A I O 2 0 1 9
do museu, tem lugar também um estudo sobre os efei-
tos do aquecimento global, com espécies oriundas de
Sicó, a sul de Coimbra, através do aumento gradual da
temperatura ambiente (ramping) e analisando minu-
ciosamente os efeitos sobre a fauna.
É importante recordar que este conhecimento começa
por ser obtido em condições bem diferentes, quase anta-
gónicas, das do laboratório dinamarquês. De roupa clara
e corte elegante, Ana Sofia Reboleira analisa agora à lupa
animais que “não existem” (para a ciência), mas recorda
que a “prospecção de taberna” é uma parte importante
do processo. É um termo curioso. Evoca as ocasiões em
que os membros da comunidade científica, ao balcão
dos cafés e tabernas, de copo na mão, conversam com
pastores, agricultores e habitantes locais que conhecem
o terreno e desvendam a localização de cavidades que
poderão ser depois exploradas.
As lamacentas, escuras e húmidas grutas de onde pro-
vêm estes insuspeitos animais podem estar a milhares
de quilómetros de distância, mas, de olhos postos num
microscópio electrónico de varrimento, com ampliação
máxima de 400 mil vezes, a investigadora recorda com
admiração o seu mais ilustre precursor, Barros Machado,
o pai da bioespeleologia nacional e autor do “Inventário
das Cavernas de Portugal”. Quarenta anos depois, esse
trabalho pioneiro ainda é uma referência!
Em jovem, Barros Machado explorou mais de trezen-
tas grutas, com o irmão Bernardino (nas décadas de
1930 e 1940). Neto do presidente da República Bernar-
dino Machado, o seu incansável trabalho foi dificultado
por motivos políticos (o avô vivia então um exílio
forçado entre Espanha e França por desavenças
com o governo que emergiu do golpe de Estado de
1926) e o cientista acabou por passar também uma
larga temporada em Angola. As suas explorações
eram épicas: percorria as serranias de norte a sul,
montado em burros e progredia pelas grutas à luz
de velas, preso a cordas artesanais.
COM ACESSOS BEM MAIS FÁCEIS, AnaSofiaReboleira
eamestrandaRitaEusébioestãoderegressoàsentra-
nhas de terras algarvias, em Loulé, contorcendo-se
por buracos apertados, com recurso a complexos
sistemas de cordas. A jornada é de progressão maio-
ritariamente vertical. A busca de animais quase invi-
síveis continua, com a excitação própria de quem
sabe que cada visita pode desvendar novos segredos.
Cada dia de campo pode fazer a diferença dado
o desconhecimento e falta de sensibilidade do
público para a preservação destes habitats, bem
patente no cenário exterior, onde um enorme aterro
ilegal de entulho cresce à vista de todos, amea-
çando tapar a única entrada conhecida desta
jóia cavernícola. j
Ana Sofia Reboleira (em cima) nas colecções
do Museu Zoológico da Universidade de
Copenhaga. Desde 2014, a cientista portuguesa
é investigadora da instituição e lecciona as
disciplinas de Entomologia e Zoologia Terrestre.
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M A I O | E D I T O R I A L
OcicloneeMoçambiqueGORONGOSA
O ciclone Idai foi o mais
grave no hemisfério sul
desde que há registos.
Entrou pelo centro de
Moçambique no dia 15 de
Março e causou prejuízos
avultados e mais de mil
mortos em quatro países.
arrancadas da paisagem pela força incon-
troláveldaságuas.Pelasestimativasrecen-
tes, mais de mil pessoas perderam a vida
em Moçambique, Madagáscar, Malawi e
Zimbabwe como resultado directo da
catástrofe. Na Beira, a pouco mais de cem
quilómetros da Gorongosa, o ciclone pro-
vocou um ciclo terrível de destruição,
isolamento,fomeeatéumsurtodecólera.
Durante alguns dias, o contacto com a
regiãofoidifícil.MaisdemetadedoParque
NacionaldaGorongosaficousubmersa.No
finaldeMarço,porém,apósumasequência
dediastenebrosos,surgiramluzesaofundo
dotúnel.Ogovernomoçambicano,adirec-
çãodaáreaprotegidaeváriasorganizações
nãogovernamentaiscomeçaramacoorde-
narosesforçosdesocorroeabastecimento
daspopulações.Duranteareportagem,Greg
Carr tinha sublinhado a missão que uma
áreaprotegida,nasuavisãomoderna,deve
abraçar:adefornecimentodecompetências
e meios para as populações humanas vizi-
nhasaentenderemcomoumaforçavivade
progressoenãocomoumobstáculo.
Na tragédia, o PN Gorongosa desem-
penhou essa missão. Os helicópteros
realizaram voos para ligar aldeias isola-
das. Os vigilantes e demais funcionários
ajudaram como puderam as cerca de 200
mil pessoas que vivem na zona-tampão
da área protegida, levando 70 toneladas
dealimentos,medicamentose,sobretudo,
conforto. Teve lugar uma generosa anga-
riação de fundos. No infortúnio, o PN
Gorongosa foi mais um amigo dos
moçambicanos.
E sim: a vida selvagem, tanto quando
se sabe neste momento, resistiu ao
impacte do desastre natural. A maioria
da fauna ter-se-á deslocado para as zonas
de maior altitude, resistindo ao Idai.
Areportagemquepublicamosestemês
tem por isso esse valor acrescentado.
AsraízesdoParqueNaturaldaGorongosa
estão bem fincadas no solo.
UM DOS PIORE S PE SADELOS imagináveis
para uma redacção sucede quando um
acontecimento imprevisto e disruptivo
perturba a planificação cuidadosa de
vários meses, criando um novo cenário
para a realidade já descrita e tornando
“velhas” as fotografias recolhidas. Na
preparaçãodestaedição,experimentámos
na pele este velho adágio do jornalismo.
Durante meses, o fotógrafo Charlie
Hamilton James e o jornalista David
Quammen visitaram o Parque Nacional
daGorongosa,emMoçambique,captando
a extraordinária biodiversidade ali con-
centrada e os esforços de promoção de
desenvolvimento sustentável das comu-
nidades residentes no parque ou nos
limites da área protegida.
No dia 15 de Março, tudo mudou.
O ciclone Idai avançou pelo centro de
Moçambique, devastando tudo à sua pas-
sagem, naquele que se tornou o ciclone
mais poderoso alguma vez registado no
hemisfério sul. Dias depois, o cenário era
dantesco. Estradas e pontes tinham sido
NASA
LEONARDO
A ETERNA GENIALIDADE
Te xto de C L AU D I A K A L B
Fot o gra fia s d e
PAO L O WO O D S E
G A B R I E L E G A L I M B E RT I
Quinhentos anos após a
sua morte, a criatividade
assombrosa e a inovação de
Leonardo da Vinci na ciência,
nas artes e na engenharia
continuam a maravilhar-nos.
3
O trabalho de engenharia
desta bola de cobre
dourada, concluída durante
a aprendizagem com
o artista Andrea del
Verrocchio em Florença,
deixou um impacte
duradouro em Leonardo
da Vinci. Examinando-a
em busca de danos
causados por raios,
Sandro Schievenin emerge
da esfera, instalada no
topo da Catedral de Santa
Maria del Fiore.
PÁGINAS ANTERIORES
Pensa-se que Mona Lisa de
Leonardo retrata Lisa
Gherardini, mulher de
Francesco del Giocondo,
um mercador de seda
florentino. Todos os anos,
milhões de visitantes
acotovelam-se para a ver
no Museu do Louvre, em
Paris. O quadro, protegido
por uma espessa camada
de vidro que tem de ser
limpa com regularidade,
nunca foi restaurado.
L E O N A R D O 7
Em Florença,
Leonardo tornou-se
conhecido pelo seu
talento prodigioso e
recebeu as primeiras
encomendas. Era
“um ornamento, um
símbolo de poder”,
diz o estudioso Paolo
Galluzzi. Nesta imagem,
o artista de rua Valter
Conti personifica o
estatuto de celebridade
de Leonardo ao passear
pela Galeria dos Ofícios
para posar em
fotografias com
os turistas.
Do lado de fora das muralhas altas, os turistas tiram selfies e inspeccionam
as bugigangas expostas nas lojas de lembranças. No interior, uma vez trans-
posto o portal em arco e decorado com gárgulas, Leonardo conduz-me de
regresso ao Renascimento.
Quase consigo ouvir os sussurros do artista, ao contemplar um álbum de
cabedal, encadernado em finais do século XVI, na majestosa sala das gra-
vuras do castelo. Decorações de ouro adornam a lombada do volume, com
seis centímetros e meio de largura. Na capa, manchada e desgastada pelas
dedadas imperceptíveis de gerações sucessivas, lê-se: Disegni di Leonardo
da Vinci Restaurati da Pompeo Leoni (desenhos de Leonardo da Vinci, res-
taurados por Pompeo Leoni).
Ninguém sabe ao certo em que circunstâncias este álbum chegou a
Inglaterra, mas a sua proveniência é inequívoca: o escultor italiano Leo-
ni adquiriu os desenhos de Leonardo ao filho de Francesco Melzi, aluno
dedicado do artista, e encadernou-os em, pelo menos, dois volumes. Em
1690, a Encadernação Leoni, como é conhecida, foi incorporada na Royal
Collection, com os seus 234 fólios mostrando as divagações da mente
curiosa de Leonardo.
À medida que Martin Clayton, responsável pelas gravuras e desenhos da
Royal Collection Trust, vai dispondo diante de nós uma selecção das pági-
nas – actualmente separadas em 60 caixas – o âmbito da temática abrangi-
da por Leonardo desdobra-se de forma grandiosa: botânica, geologia, hi-
dráulica, arquitectura, engenharia militar, design de vestuário, geometria,
cartografia, óptica, anatomia. O artista desenhava esboços para compreen-
der fenómenos desconhecidos, explorando os enigmas do universo a tinta,
giz e ponta de prata.
Numinstante,osséculos
colidem.Éummomento
emnadacomparávelàs
experiênciasquejávivi.
VimaoCastelodeWindsor
visitaracolecçãode
desenhosdeLeonardoda
Vincipertencenteàrainha.
Após um restauro de
cinco anos, a Adoração
dos Magos revela
pinceladas, cores e
imagens há muito
escondidas sob a sujidade
e o verniz escurecido.
O quadro inacabado,
encomendado a Leonardo
em 1481, também fornece
provas do processo
de raciocínio do artista,
incluindo modificações
produzidas à medida
que ia trabalhando.
O quadro está exposto
numa sala dos Ofícios
reservada a Leonardo.
10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Os desenhos são arrebatadores pela sua lucidez. O mais pequeno, um
fragmento menor do que um polegar, apresenta um tronco feminino, em
poucos traços subtis. O mais icónico, ternamente traçado a sanguínea e ha-
chura, representa um feto enrolado sobre si no interior do útero.
Tudoépostoàprovacomprecisãovisual:umestudodepanejamentospara
Nossa Senhora; morteiros bombardeando uma fortaleza; a umbra e a penum-
bra de uma sombra; crânio, o coração, um pé e as variantes do rosto humano
– desde a beleza radiosa de Leda às feições desgastadas de um velho.
“O aspecto mais evidente dos desenhos de Leonardo, em algumas das
suas folhas, é a maneira totalmente livre de saltar de um tópico para outro”,
afirma Martin Clayton. “É fascinante ver uma mente trabalhar desta forma
extraordinariamente abrangente.”
Leonardo procurava vorazmente o conhecimento. As suas listas de tarefas
incluíam entradas como “fazer óculos para ver a Lua maior” e “descrever a
causa do riso”, ao mesmo tempo que tentava encontrar respostas para per-
guntas como: qual a distância entre a sobrancelha e o ponto de junção do
lábio com o queixo? Por que razão são as estrelas visíveis durante a noite e
não durante o dia? O que separa a água do ar? Onde se localiza a alma? O que
são o espirro, o bocejo, a fome, a sede e a luxúria?
A riqueza dos manuscritos e desenhos de Leonardo põem a nu as engre-
nagens internas do seu génio. A sua mente fértil é evocada em cada uma das
sete mil folhas conservadas em Windsor, em bibliotecas de Paris, Londres,
Madrid, Turim e Milão, e na colecção particular de Bill Gates.
A propósito do 500.º aniversário da morte de Leonardo, que se celebra
este ano, regista-se um renascimento próprio dos cadernos de apontamen-
tos do artista. Vários museus organizam exposições dos esboços e peritos
publicam novas análises, aprofundando a amplitude das suas criações.
Algumas páginas dos cadernos de apontamentos de Leonardo estão a ser
estudadas por especialistas dos próprios domínios técnicos, desde a medi-
cina à engenharia mecânica, passando pela música. Recuando séculos no
tempo, estão a colher novos conhecimentos, analisando a obra de Leonardo
para melhor documentarem o seu próprio trabalho. Nesta época em que a
ciência, a medicina e a tecnologia rompem as barreiras daquilo que pode-
mos fazer e da maneira como podemos fazê-lo, os cadernos de apontamen-
tos de Leonardo revelam muito que ainda precisamos de aprender.
Citando as palavras de Martin Kemp, historiador da arte e especialista em
Leonardo, “não houve um único dos seus antecessores ou contemporâneos
que tivesse produzido algo semelhante em âmbito, fulgor especulativo e in-
tensidade visual. E não conhecemos nada verdadeiramente comparável nos
séculos que se seguiram.”
os pais de leonardo não eram casados quando
ele nasceu no dia 15 de Abril de 1452, perto de Vinci, uma vila situada numa
colina da zona rural da Toscana, entre Florença e Pisa. Na opinião de muitos,
a sua mãe foi Caterina di Meo Lippi, uma camponesa local. O pai, Ser Piero
da Vinci, beneficiava do elevado estatuto de notário, uma carreira profissional
potencialmente previsível para Leonardo, não fosse a circunstância de o nas-
cimento ter ocorrido fora do casamento.
A vila de Vinci funcionou como pano de fundo inspirador para este rapaz
dotado de ampla visão. Do alto de uma açoteia do castelo da aldeia, datado
do século XII, a paisagem da Toscana revela-se hoje como teria sido na ju-
ventude de Leonardo: olivais, colinas sombrias e uma serrania ao largo da
costa ocidental de Itália.
OS DESENHOS DE LEONARDO
Milhares de esboços,
observações e dúvidas
(anotadas numa distinta
escrita invertida) mostram
a interminável busca
de conhecimento de
Leonardo. Muitas das páginas
originais perderam-se. As que
restam, muitas das quais
compiladas em cadernos,
revelam uma interacção fluida
entre os seus estudos
científicos meticulosos
e a sua arte monumental.
LEONARDO
O
anatomistaDecidido a
compreender cada
fibra do corpo,
Leonardo dissecou
cadáveres humanos
e animais. Nesta folha,
desenhou os ossos
e músculos do braço,
ombro e pé. Leonardo
tencionava publicar
um tratado anatómico,
mas nunca o fez. Caso o
tivesse feito, poderia
ter sido reconhecido
como o fundador
da anatomia contem-
porânea, distinção
posteriormente
atribuída a Andreas
Vesalius.
ROYAL COLLECTION TRUST/© SUA
MAJESTADE, A RAINHA ISABEL II, 2018(Continua na pg. 18)
O ANATOMISTA DE HOJE
Michael Grimaldi
(ao centro), director
de desenho da
Academia de Arte
de Nova Iorque,
adorava Leonardo
desde a infância. Numa
colaboração com a
Faculdade de Medicina
da Universidade
Drexel, os alunos de
arte de Grimaldi (com
batas de laboratório
brancas emprestadas)
juntam-se aos alunos
de medicina
(batas coloridas)
para examinarem
e desenharem o
corpo humano.
As dissecações têm
muito mais impacte
do que as palestras,
diz Michael Grimaldi.
ca 1473
Tobias
e o Anjo
ca 1473-74
Anunciação
ca 1479-1481
Adoração
dos Magos
ca 1483-1490
Virgem dos
Rochedos
ca 1485
Retrato de
um Músico
ca 1504-07
Salvator Mundi
ca 1501-07
Virgem do Fuso
Sandro Botticelli
Pormenor de
Nascimento
de Vénus,
Botticelli,
1484–86
(em baixo)
Leonardo da Vinci Sandro Botticelli
Em alguns casos, disputas legais e pedidos
populares poderão ter levado Leonardo a
criar múltiplas versões da mesma obra.
TOTAL DE PINTURAS 24
ca 1503-1516
Mona Lisa
Leonardo da Vinci
Com
contribuição
de Andrea del
Verrocchio
2
Com
colaboração
5
6
2
5
Perdida
Número de
trabalhos de
Leonardo
questionados
Inacabada
A
B
(A) (B)
Linhas
esbatidasLeonardo não assinava os seus
quadros. A colaboração era uma
prática comum no seu tempo e hoje
dificulta a identificação dos autores.
No entanto, as 24 obras à direita são
associadas, pelo menos parcialmente,
ao mestre. Duas delas, a Mona Lisa
e A Última Ceia contam-se entre
as mais famosas do mundo.
AVANÇOS
ARTÍSTICOS
Especialista em sfumato
O seu conhecimento da anatomia do olho
influenciou o sfumato, uma técnica de
sombreamento. O esbatimento do traço
suaviza os contornos, criando um efeito
tridimensional.
Noção de espaço
Observador entusiasta da natureza,
Leonardo reproduziu o efeito da atmosfera
em objectos distantes. Os contornos difusos
da paisagem transmitem uma sensação de
distância numa tela bidimensional.
FERNANDO G. BAPTISTA, MONICA SERRANO E EVE CONANT, NGM; LAWSON PARKER. FONTES: MARTIN KEMP, MATTHEW LANDRUS, UNIVERSIDADE DE OXFORD;
MARTIN CLAYTON, ROYAL COLLECTION TRUST; PAOLO GALLUZZI, MUSEU GALILEU. CRÉDITOS DAS PINTURAS, DE CIMA PARA BAIXO E DA ESQUERDA PARA A DIREITA: NATIONAL
GALLERY, LONDRES/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRIDGEMAN; COLECÇÕES DE PINTURA DO ESTADO DA BAVIERA, MUNIQUE/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRI-
DGEMAN; NATIONAL GALLERY OF ART, WASHINGTON, DC/ ART RESOURCE, NY; HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO/BRIDGEMAN; MUSEUS VATICANOS/SCALA/ART RESOURCE, NY;
UFFIZI, FLORENÇA/DE AGOSTINI/GETTY IMAGES; LOUVRE, PARIS/BRIDGEMAN; PINACOTECA AMBROSIANA, MILÃO/BRIDGEMAN; MUSEU NACIONAL DE CRACÓVIA/BRIDGEMAN;
ca 1475-76
A Virgem
do Cravo
ca 1476
O Baptismo
de Cristo
ca 1476-78
Ginevra de' Benci 
ca 1480-82
São Jerónimo
no Deserto
ca 1479-1480
A Virgem
e o Menino
ca 1490
Retrato de Cecilia
Gallerani (Dama
com Arminho)
ca 1495-1508
Virgem dos
Rochedos
ca 1496-97
La Belle
Ferronière
ca 1495-98
A Última Ceia
ca 1498-99
Sala delle
Asse*
ca 1501-07
Virgem do
Fuso
ca 1508-1517
A Virgem e o
Menino com
Santa Ana
ca 1508-1516
São João
Baptista
ca 1513-16
São João
Baptista**
ca 1506
A Batalha de Anghiari
(cópia de Peter Paul Rubens)
ca 1506-08
Leda e o Cisne
(cópia de Cesare
da Sesto)
A
B
2,2m 4,4m
4,6m
Ponto
de fuga
ideal
*A IMAGEM MOSTRA UMA PEQUENA SELECÇÃO DOS MURAIS PINTADOS POR LEONARDO E PELOS SEUS ASSISTENTES NUM CONJUNTO DE SALAS DO CASTELO SFORZESCO.
** OS ATRIBUTOS DE BACO (UMA COROA DE HERA E UM BASTÃO, OU TIRSO) FORAM ACRESCENTADOS NO SÉCULO XVII POR UM ARTISTA DESCONHECIDO.
Enganando o olhar
Leonardo partia de um ponto de
fuga ideal e depois recorria a ilusões
ópticas para fazer as outras perspectivas
parecerem igualmente ideais. O resultado foi um
mural que parecia fazer parte natural da sala.
(A) Leonardo trabalhou a perspectiva
para atrair o olhar para um único ponto
de fuga, neste caso incidindo sobre Jesus,
para salientar o elemento mais
importante da composição.
(B) Ao tirar partido do ponto
de fuga ideal, Leonardo
permitiu que um observador
ao nível do solo olhasse para
a mesa vista de cima
SANTA MARIA DELLE GRAZIE, MILÃO/BRIDGEMAN; NATIONAL GALLERY, LONDRES/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, ABU DHABI/BRIDGEMAN; CASTELO SFORZESCO, MILÃO/BRIDGE-
MAN; COLECÇÃO PRIVADA/GETTY IMAGES; GALERIAS NACIONAIS DA ESCÓCIA/HIP/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; CHRISTIE’S IMAGES/BRIDGEMAN;
LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; WILTON HOUSE, WILSHIRE/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, PARIS/
ERICH LESSING/ART RESOURCE NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRIDGEMAN; ERICH LESSING/ART RESOURCE NY (PORMENORES)
LEONARDO
OcientistaLeonardo não se
limitou a observar
e a documentar
o mundo natural
nos seus cadernos
de apontamentos.
Também realizou
experiências para
compreender
a mecânica do
funcionamento.
Interessou-se
particularmente pelas
propriedades da água.
Nesta folha, desenhou o
movimento da água
quando perturbada por
uma barreira (no topo)
e ao cair de uma eclusa
para um lago (em
baixo), formando
redemoinhos.
ROYAL COLLECTION TRUST/© SUA
MAJESTADE, A RAINHA ISABEL II, 2018
ACTUALIDADE
Leonardo não dispunha de
ferramentas para demonstrar
a sua hipótese de o ar e a água
partilharem propriedades.
Nesta imagem, Gary Settles,
da Universidade Estadual
da Pensilvânia, usa a técnica
de imagem schlieren para
visualizar o indiscernível: a
turbulência na atmosfera.
Em Vinci, este panorama é conhecido como orizzonti geniali, ou “hori-
zontes de génio”, afirma Stefania Marvogli, do Museu Leonardiano. É uma
duradoura alusão a Leonardo. Manta de retalhos de tipos diversos de solo
reúnem-se para formar um todo coerente. A paisagem reflecte as ligações
que Leonardo procurava na natureza: padrões de unificação do universo.
Algures durante a adolescência, é provável que o pai reconhecesse os
seus dotes artísticos e mostrasse os seus desenhos a um cliente, o artista
Andrea del Verrocchio, que aceitou receber Leonardo como aprendiz na
sua oficina de Florença.
Leonardo suplantou os seus pares desde o início e não tardou a suplantar
o próprio mestre. A mais antiga das obras conhecidas de Leonardo, uma
paisagem desenhada a pena do vale do Arno, data de 1473 e foi produzida
quando o pintor tinha 21 anos. Passados alguns anos, já recebia as primei-
ras encomendas: um retábulo para uma capela no Palazzo della Signoria e a
pintura A Adoração dos Magos para um grupo de monges agostinhos.
Leonardo deixou-nos poucas memórias da sua vida, mas conseguimos
vislumbrar o homem. Era quase certamente homossexual: os seus compa-
nheiros de toda a vida eram do sexo masculino e foi duas vezes acusado de
sodomia. Amigo dos animais, comprava aves engaioladas no mercado para
depois as libertar. Canhoto e bonito, era admirado pela sua generosidade de
espírito e requinte social. Seria certamente divertido tê-lo como convidado
num jantar, conjectura Gary Radke, professor emérito de história da arte.
“Não era um desses génios imperscrutáveis, meditabundos e resmungões.”
18 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Ao longo da sua carreira de 46 anos, passada sobretudo em Florença e
Milão, Leonardo sentiu-se seduzido pelo conhecimento, movido por um
olhar permanentemente curioso e determinado a segui-lo. Estudou latim,
coleccionou poesia e leu Euclides e Arquimedes. Enquanto os outros se
entregavam ao perceptível, ele esquadrinhava minudências – ângulos geo-
métricos, a dilatação da pupila – saltando de uma disciplina para a outra
e procurando ligações entre elas. Desenhava esboços de flores e máqui-
nas voadoras, projectava equipamentos de guerra para o duque Ludovico
Sforza, seu patrono, construía ornamentos teatrais com penas de pavão e
elaborou um plano para desviar o Arno entre Florença e Pisa.
Leonardo documentava tudo com um espantoso nível de pormenor, no
verso e no canto dos papéis, com apontamentos minúsculos escritos à mão
para serem lidos com um espelho, da direita para a esquerda. Algumas des-
tas páginas existem hoje como folhas avulsas. Outras foram encadernadas
nos volumes actualmente conhecidos como cadernos de apontamentos
ou códices. Não existe uma ordem evidente, nem mesmo em cada página
individualizada, e temas semelhantes figuram frequentemente em folhas
diferentes, completadas anos depois. Tudo isto torna difícil, até para os es-
pecialistas, acompanhar o ritmo acelerado da sua mente, confessa Paolo
Galluzzi enquanto folheia, maravilhado, reproduções de cadernos de apon-
tamentos de Leonardo. Sempre que fazia uma observação, surgia-lhe na
mente uma pergunta, que invariavelmente conduzia a outra, diz o director
do Museu Galileu, em Florença.
É difícil abarcar a ímpar capacidade de Leonardo para superar o trabalho
dos seus antecessores: fê-lo questionando os seus temas e invalidando os
seus próprios veredictos. No Codex Leicester, Leonardo investiga a manei-
ra como a água chega ao topo das montanhas, acabando por rejeitar a sua
convicção inicial de que o calor a atraía para cima. Em vez disso, percebeu
que a água circula através da evaporação, das nuvens e da chuva. “Mais im-
portante do que descobrir a forma como os riachos da montanha funcio-
nam, era descobrir como… se poderia descobri-lo”, afirma o biógrafo Walter
Isaacson. “Ele contribuiu para a invenção do método científico.”
Para Leonardo, os preceitos da ciência (observação, hipótese e experi-
mentação) eram fundamentais para a arte. Deslocava-se fluidamente entre
os dois reinos, retirando lições de um para informar o outro, diz Francesca
Fiorani, directora associada de artes e humanidades na Universidade de
Virgínia. O seu maior talento era a capacidade de tornar o conhecimento
visível”, acrescenta. “É aí que reside o seu poder.”
É no estudo da anatomia que esse talento mais se evidencia. Dissecou
cadáveres humanos, separando a musculatura subjacente em três dimen-
sões, para ver com os próprios olhos de que maneira uma perna ou um bra-
ço flectiam. Os contemporâneos de Leonardo, incluindo o seu rival Miguel
Ângelo, estudaram músculos e ossos para melhorar a sua representação ar-
tística do corpo humano. “Leonardo foi para além disso”, diz o historiador
de ciência Domenico Laurenza, radicado em Roma. “A sua abordagem à
anatomia era a de um verdadeiro anatomista.”
Os dados científicos reunidos por Leonardo nos seus cadernos de apon-
tamentos estão subjacentes a cada traço do seu pincel. Os estudos ana-
tómicos desmontaram a biologia das expressões faciais. Quais os nervos
que levam a “franzir as sobrancelhas”, ou a “fazer beicinho, ou um sorriso,
ou uma expressão de espanto?”, interrogava-se nos seus apontamentos.
A sua análise da luz e da sombra permitiu-lhe iluminar contornos com
uma subtileza inigualável.
LEONARDO
O
engenheiroFascinado pelos
princípios da
engenharia, Leonardo
desenhou planos para
pontes, edifícios e
equipamentos militares.
Acima de tudo, ansiava
por desenhar uma
máquina voadora para
seres humanos e, por
isso, passou mais de
duas décadas a estudar
o voo animal. Numa
página do Codex
Atlanticus, esboçou um
projecto para uma asa
mecânica.
VENERANDA BIBLIOTECA
AMBROSIANA/BRIDGEMAN IMAGES(Continua na pg. 28)
Capacete
de madeira
Desenho de
Leonardo
7m
Manuscrito B,
f 75r
Manuscrito B,
f 79r
2 ou 4 asas
Codex Atlanticus,
f 749r
Voosda
imaginaçãoLeonardoencontravainspiração
nanatureza.Assuasobservações
deavesemorcegoscontribuíram
paraaperfeiçoarmáquinas
voadoras–umasmaisbem-
-sucedidasdoqueoutras.Asua
demandaparaconcretizarovoo
tripuladomanteve-oocupado
durantequaseduasdécadas.
AVA N Ç O S A É R E O S
Piloto horizontal, c. 1488
Quase todas as partes do
corpo desempenhavam um
papel. As mãos e os pés
faziam funcionar as asas, e a
faixa para a cabeça ligada a
um arnês controlava a cauda.
Pára-quedas, c. 1485
Um pára-quedista britânico
testou, com sucesso, o pára-
-quedas de Leonardo no ano 2000,
mas libertou-se do dispositivo
antes de aterrar para evitar ser
esmagado pelos seus 85kg.
Parafuso aéreo, c. 1489
Leonardo sabia que, ao ser
comprimido, o ar torna-se mais
denso. Desenhou este dispositivo
como entretenimento para uma
festa. O conceito foi depois
usado em helicópteros.
Inclinómetro, c. 1485
Quando a bola está
no meio, o piloto sabe
que está paralelo ao
solo. A campânula
impede o vento de
deslocar a bola.
Piloto vertical, c. 1495
Neste desenho, ele experimen-
tou posições verticais: “o
homem também possui mais
força nas pernas do que é
exigido pelo seu peso”.
Reparou que as asas
membranosas dos
morcegos exigiam menos
energia do que as asas
com penas. O desenho
original não especifica
quais as tarefas
reservadas aos braços.
Este design aproveita
os músculos fortes das
pernas para bater as asas
através de um sistema
de roldanas operado por
suportes para os pés.
O desenho original
não especifica a forma
como se deviam
mover os braços.
Batimento de asas
As primeiras máquinas voadoras
eram quase todas desenhadas
com asas, que seriam controladas
por um piloto. Depois, o artista
descobriu que os seres humanos
não conseguem bater asas com
força suficiente para se susterem
em voo. Estas máquinas não
teriam funcionado.
Banda
Leme
Madrid
Manuscrito I,
f 64r
Manuscrito B,
f 80r
Móvel
Móvel
Rígido
Codex Atlanticus,
f 846v
Batimento
Voador horizontal, c. 1487-1490
A posição do piloto é uma imitação
próxima da assumida pela ave em
voo. Muitos desenhos de Leonardo
concentravam-se num elemento
essencial para o movimento das asas.
Veículo voador, c. 1488-89
A princípio, muitos desenhos não
eram concebidos à escala. Leonardo
esboçou este veículo, fornecendo
posteriormente as dimensões
para uma versão maior.
Quando uma perna está estendida,
baixa um par de asas. A manivela
manual levanta a outra.
Sistema de aterragem
Leonardo concebeu um
sistema para levantar voo e
aterrar para o seu veículo
em forma de tigela que
incluía escadas retrácteis e
apoios com amortecedores.
Planador, c. 1495-96
A secção central das asas, próxima do
piloto, era rígida. As componentes
exteriores flexíveis das asas, controladas
por cabos, ajudavam a controlar a
inclinação, navegação e curvar.
Abas, c. 1489
Para minimizar a resistência e
maximizar a impulsão, abas de
“pele” permitiam que o ar fluísse
através das asas no movimento
ascendente, fechando-se no
movimento descendente.
Planador, c. 1495
Identificou correctamente
a relação entre o centro
de gravidade e o centro
de pressão num planador,
mas o seu projecto precisava
de uma cauda para funcionar.
Planar
Suspeitando que os seres
humanos não possuíam o rácio
força-peso das aves, Leonardo
alterou os seus estudos para
planar em vez de bater asas. Estes
dois projectos, testados na época
contemporânea, funcionaram com
algumas alterações.
Comprimento: 25GatilhoCabrestante Parafuso Projéctil de pedra
21
1
3
Manuscrito B, f 98r
Manivelas
Rodas
2
2
3
Carroçaria blindada, c. 1487-1490
Nova abordagem a um conceito
da Idade Média, o tanque de Leonardo
tinha novos sistemas de movimento
e um conjunto de canhões
para permitir ataques com
um alcance de 360 graus.
Besta gigante,
c. 1485-1490
Mais de trinta esboços ilustram
a ambição de Leonardo para
este arco capaz de lançar balas
de canhão. Foi construído, mas
não no seu tempo de vida.
Retalhador de velas, c. 1484-86
Uma foice montada num poste de
madeira gira 360 graus e, quando
activada por remadores, consegue
rasgar as velas e os mastros dos
navios inimigos.
O arco é apontado
para a esquerda e
para a direita,
levantando a parte
de trás e girando as
rodas da frente.
Os homens carregam
o arco com uma bala
de pedra de 45kg
e activam o gatilho
com uma alavanca
ou golpe de martelo.
Cabrestantes fazem
rodar uma engrena-
gem ligada a uma
rosca que puxa para
trás as cordas e o
gatilho.
Projécteis ovais, c. 1500-1505
Leonardo sabia que a
trajectória de uma bala de
canhão é influenciada pelo ar
em seu redor. Para melhorar a
pontaria, as balas eram bicudas,
como as modernas.
Ignissor automático, c. 1497-1500
A roda com bloqueio inflama a
pólvora de diversas armas. Um
gatilho faz girar uma roda através de
uma mola. A roda em movimento
raspa na pedra, provocando o calor
necessário para atear a pólvora.
INFORMAÇÃO SOBRE OS CRÉDITOS DOS
DESENHOS DE LEONARDO EM NGM.COM/MAY2019.
FERNANDO G. BAPTISTA, MONICA SERRANO,
EVE CONANT; LAWSON PARKER
FONTES: MARTIN KEMP, MATTHEW LANDRUS,
UNIVERSIDADE DE OXFORD; PAOLO GALLUZZI,
DOMENICO LAURENZA, MUSEU GALILEU; LEONARDO3;
MUSEU NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Oito homens giravam
as manivelas para
mover as rodas.
O torreão ajuda a
fazer pontaria.
AVANÇOS MECANICOS
Aarteda
guerraPacifista e talvez vegetariano,
Leonardo chamava à guerra
“loucura animalesca”. No
entanto, o génio artístico foi
atraído para a concepção de
armas pelos seus clientes e
pelo desafio criativo de
imaginar ferramentas capazes
de aumentar a força humana.
A maioria das suas armas
eram muito ambiciosas e
nunca foram construídas.
Codex Atlanticus,
f 149 Br
5 metros
Codex Atlanticus,
f 855r
Codex Atlanticus,
f 24r
Sapatos para
caminhar na água
Carreta autopro-
pulsionada
Estrutura de
palco para
teatro
Poço de
perfuração
vertical
Serra
hidráulica
Grua
Museu Britânico
Ponte giratória, c. 1487-89
Uma ponte de madeira amovível poderia
ser rodada 90 graus em torno de um poste
estacionário para permitir a passagem de
navios e travar forças inimigas.
Marcador de ficheiros, c. 1480
Quando activada pela manivela, a máquina
funciona automaticamente. Um martelo é
levantado por uma roda e depois cai sobre
um pedaço de metal que é empurrado em
frente por um parafuso.
Leque de
projectos
Pedras contrabalançam
o peso da ponte
até esta ficar assente
em terra.
O martelo, com cabeças
afiadas e intermutáveis,
deixa marcas em
ziguezague.
Leonardo inventou
ou reimaginou uma
variedade aparentemente
interminável de máquinas.
Leonardo especificou
que a armação deveria
ser composta por
camadas de vigas,
interligadas para
melhorar a flexibilidade.
Rolamento, c. 1497
Leonardo percebeu que a
fricção limita a transferência
de movimento. Os seus
rolamentos eram um método
engenhoso de reduzir a
fricção entre as superfícies.
Engrenagem em espiral, c. 1499
Leonardo concebeu uma
engrenagem em espiral capaz
de manter a força de uma mola
enquanto esta se ia desenrolando.
A questão fora problemática
com os relógios.
A representação artística
tem um defeito: no
desenho conceptual de
Leonardo, as rodas giravam
em direcções opostas,
impedindo o movimento.
Mestreem
movimentoAs inovações de Leonardo
eram frequentemente
experiências conceptuais,
desenvolvidas para clientes
ou para sua própria satisfa-
ção. O seu talento para a
engenharia, porém, estava
presente em inúmeros
desenhos que tentavam
melhorar peças básicas do
quotidiano como o parafuso,
a roda e a mola.
O ENGENHEIRO MODERNO
Estudantes de
doutoramento no
laboratório de David
Lentink, em Stanford,
estudam o impacte da
velocidade do ar e da
turbulência numa ave
robótica, o PigeonBot,
no interior de um túnel
de vento especialmente
concebido para o efeito.
Os dados recolhidos
ajudarão a compreender a
mecânica do voo das aves.
28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Leonardo eliminou os contornos tradicionais, optando por suavizar os
contornos de figuras e objectos com uma técnica conhecida como sfumato.
A óptica e a geometria resultaram num sofisticado sistema de perspectiva,
exemplificada em A Última Ceia. Observações minuciosas permitiram-lhe
retratar profundidade emocional nos sujeitos que pintava, que parecem
sensíveis em vez de rígidos.
A inventividade de Leonardo, porém, tinha um preço. Aborrecia os seus
clientes com constantes atrasos e muitas obras ficaram por acabar, incluin-
do A Adoração dos Magos. Os especialistas atribuíram esse facto ao seu
entusiasmo por novos temas e ao perfeccionismo: o desafio de fazer algo
superava a expectativa de o terminar. Para Leonardo, o que importa ver-
dadeiramente é o processo, diz Carmen Bambach, curadora de desenhos e
gravuras do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. “Não é, de todo,
o resultado final.”
Com efeito, quanto mais conhecimento adquiria através dos estudos
apontados nos seus cadernos, mais difícil se tornava para Leonardo des-
cobrir a meta final na sua arte. “À medida que pintava, sem parar, percebia
que era possível criar gradações infinitesimais de tom e transição, entre a
luz mais clara e intensa e a sombra mais profunda”, explica a especialista.
Exames de raios X ao trabalho de Leonardo revelam alterações abundan-
tes, conhecidas como pentimenti. O infinito transformou-se num conceito
muito real, com implicações práticas: havia sempre mais para aprender.
“Em muitos aspectos, é um processo intelectual interminável”, comenta.
Isto pode ajudar a explicar o motivo pelo qual Leonardo nunca publi-
cou os seus cadernos de apontamentos. Ele tencionava completar tratados
sobre muitos temas, incluindo geologia e anatomia. Em vez disso, a orga-
nização dos seus esboços e manuscritos ficou ao cuidado do seu fiel com-
panheiro Melzi. Nas décadas seguintes à morte de Leonardo, dois terços a
três quartos das suas páginas originais foram provavelmente roubadas ou
perderam-se. A maioria das páginas sobreviventes começou a ser publica-
da apenas no final do século XVIII, mais de duzentos anos após a sua morte.
Por essa razão, diz Domenico Laurenza, “sabemos pouco sobre o legado de
Leonardo como cientista”.
As investigações,teses e descobertas deLeonardoforamconfiadas aos que
se seguiram. Séculos mais tarde, ainda estamos a tentar acompanhá-lo.
o legado dos cadernos de apontamentos de Leonardo é palpável hoje
em dia. J. Calvin Coffey, chefe de cirurgia na Graduate Entry Medical School
da Universidade de Limerick, na Irlanda, estava a desenvolver uma investi-
gação há alguns anos quando fez uma descoberta espantosa: uma observação
feita por Leonardo, por volta de 1508, confirmava uma teoria que ele tentava
validar. Calvin Coffey estuda o mesentério, uma estrutura em forma de leque
que liga os intestinos delgado e grosso à parede traseira do abdómen. Desde
a publicação de Gray’sAnatomy, em 1858 (na altura intitulado Anatomy: Des-
criptive and Surgical), que os alunos aprendiam que o mesentério era for-
mado por várias estruturas separadas. Todavia, ao realizar um número
crescente de cirurgias colo-rectais, Calvin Coffey começou a suspeitar que o
mesentério era um órgão contínuo.
Enquanto ele e os colegas examinavam a anatomia da estrutura para pro-
var esta hipótese, o médico descobriu um desenho de Leonardo represen-
tando o mesentério como uma estrutura ininterrupta. O momento consti-
tuiu um instante de clareza. A princípio, olhou para ele e desviou o olhar.
Depois olhou novamente.
LEONARDO
OinventorLeonardo encheu
cadernos de
apontamentos com
invenções que nunca
construiu, incluindo este
dispositivo concebido
para permitir aos
mergulhadores respirar
debaixo de água.
Pacifista, Leonardo
afirmava que não
divulgaria como fabricar
os seus dispositivos
subaquáticos “por causa
da natureza maldosa
dos homens”. O artista
temia que pudessem
ser utilizados para
destruir navios.
BRITISH LIBRARY BOARD/
BRIDGEMAN IMAGES
O INVENTOR DE HOJE
Embora rudimentares,
os projectos
subaquáticos de
Leonardo anteciparam
equipamentos
actualmente utilizados
pelas forças armadas.
Na cidade portuária de
Messina, um membro
das forças especiais da
Marinha italiana treina
num fato de mergulho
pressurizado, capaz de
atingir uma profundi-
dade de 300 metros.
“Fiquei boquiaberto com o que vi”, afirma. “Correlacionava-se exacta-
mente com o que observávamos. É simplesmente uma obra-prima.”
No resumo das conclusões da sua equipa, publicado em 2015, Calvin
Coffey incluiu os desenhos de Leonardo e atribuiu-lhe os créditos no
texto: “Sabemos agora que a interpretação de Da Vinci estava correcta.”
O médico mostra um diapositivo do desenho de Leonardo nas suas apre-
sentações científicas, maravilhando-se com a sua capacidade para disse-
car o órgão na sua totalidade: uma proeza complicada devido à complexa
estratificação da estrutura. “Ele foi sério na sua interpretação da natureza
e da biologia”, diz Coffey. “Ainda hoje, há cirurgiões que não conseguem
reproduzir o que ele fez.”
A acuidade visual de Leonardo foi motivada pela sua fé inabalável nos
desígnios da natureza, fosse a raiz de uma árvore ou um hipopótamo.
O engenho humano, escreveu, “nunca criará invenções mais belas, nem
mais simples, nem mais objectivas do que as da natureza, porque nas suas
invenções nada falta e nada é supérfluo”. Cada artéria, cada tecido, cada ór-
gão existia com um objectivo, uma revelação que mudou o rumo da carreira
de Francis Charles Wells.
Em 1977, Wells, cirurgião cardiovascular sénior no Hospital Real de
Papworth, em Cambridge (Inglaterra), visitou acidentalmente uma expo-
sição dos desenhos anatómicos de Leonardo na Academia Real de Artes,
no bairro londrino de Piccadilly. O bilhete de entrada custava uma libra e a
recompensa revelou-se incomensurável. “Foi arrebatador”, diz.
LEONARDO
OmúsicoMúsico talentoso,
Leonardo fez
investigações sobre
acústica, cantou e
improvisou melodias na
sua lira da braccio (um
instrumento de cordas
curvo do
Renascimento).
Também desenhou
vários instrumentos
musicais, incluindo
tambores, campainhas e
madeiras. Nesta
imagem, ele pensa em
ideias para uma
combinação de teclado
e cordas conhecida
como viola organista.
Sławomir Zubrzycki,
que construiu uma viola
organista mais tarde,
diz que Leonardo
“desenhou um
instrumento perfeito”.
VENERANDA BIBLIOTECA
AMBROSIANA/BRIDGEMAN IMAGES
ACTUALIDADE
Na sua casa de Cracóvia,
na Polónia, Zubrzycki toca
a viola organista
que fabricou, inspirado
por Leonardo. Um pedal
activa quatro arcos
circulares revestidos
a crina de cavalo, que
friccionam as cordas para
criar um som melodioso.
Leonardo recebeu
encomendas para
desenhar mapas civis
e militares. Esta
representação de uma
região da Toscana
demonstra a sua
capacidade para
comunicar informação
geográfica através da
arte. Séculos antes de
a fotografia aérea e a
programação de alta
tecnologia revoluciona-
rem a cartografia,
Leonardo criou
perspectivas aéreas
de cidades e paisagens.
ROYAL COLLECTION TRUST/© SUA
MAJESTADE, A RAINHA ISABEL II, 2018
LEONARDO
Ocartógrafo
Após dissecar o corpo de um homem de 100 anos, Leonardo apresentou a
primeira descrição da aterosclerose da história da medicina. “Este revesti-
mento dos vasos funciona no homem como nas laranjas, cuja pele engrossa
para que a polpa diminua à medida que envelhecem”, escreveu.
A sua investigação sobre válvulas cardíacas, a especialidade de Francis
Wells, foi igualmente presciente. Para perceber como funcionavam, Leo-
nardo desenhou um modelo de vidro da válvula aórtica, cheio de água e se-
mentes de erva, o que lhe permitiu conceptualizar os padrões da circulação
sanguínea e a forma como as válvulas se abrem e fecham. Esses pormeno-
res foram definitivamente confirmados na década de 1960.
Acima de tudo, os desenhos de Leonardo abriram os olhos do cirurgião
para a requintada lógica da estrutura e da mecânica do coração. Numa ma-
nhã de Outono, Francis Wells estava debruçado sobre o peito aberto de um
paciente na sala de operações de Papworth e chamou-me para perto dele.
“Está a ver? É fabuloso”, disse, apontando para a válvula mitral. “Imagine
a complexidade necessária para o organismo fabricar esta válvula.” A abor-
dagem cirúrgica de Wells é guiada pela máxima que aprendeu com Leo-
nardo: cada parte da complexa composição da válvula (os seus folículos,
cordas e músculos papilares) tem o seu papel e foi concebida para suster as
forças por ela suportadas.
Isso moldou essencialmente a forma como Francis Wells remenda válvu-
las lesionadas. “Vê esta peça pequenina no meu fórceps? É a corda partida”,
afirma. “É a origem do problema.”
O cirurgião poderia optar por remover a válvula inteira e substituí-la por
um modelo artificial, uma abordagem preferida por muitos cirurgiões. Em
vez disso, vejo-o meticulosamente substituir cada corda com suturas de
gore-tex, preservando o máximo possível da estrutura. Leonardo não pode-
ria prever uma abordagem cirúrgica, mas ensinou Francis Wells a observar
cuidadosamente, a parar e pensar, e a compreender a habilidade inerente
da válvula para fazer este trabalho, uma capacidade que o cirurgião procura
O CARTÓGRAFO ACTUAL
Sediada no estado
de Virgínia (EUA),
a Agência Nacional
de Inteligência
Geoespacial usa
tecnologia sofisticada
para recolher dados
sobre características
físicas. Estes mapas
fornecem informação
em situações de crise.
Aqui, vêem-se imagens
de alta resolução
da Antárctida.
L E O N A R D O 37
conservar em cada intervenção cardíaca que realiza. “Essa foi a mudança
de paradigma”, diz Wells, que compilou os seus conhecimentos num livro
de 256 páginas: “The Heart of Leonardo” [sem tradução portuguesa].
A um continente de distância, o Codex de Leonardo sobre o Voo das Aves
impregnou na totalidade o Laboratório de Investigação e Design Bio-Ins-
pirados (BIRD) da Universidade de Stanford, dirigido pelo biólogo e enge-
nheiro mecânico David Lentink. Quando o visito, David dá-me uma folha
com questões exploradas por Leonardo que ele e os seus dez alunos de pós-
-graduação ainda estão a tentar responder: de que modo o movimento das
asas no ar gera propulsão? Como controlam os músculos das aves o bati-
mento das asas? Como planam as aves? “Todas as suas perguntas ainda são
relevantes”, diz o investigador.
David Lentink e a sua equipa têm acesso a ferramentas de tecnologia
avançada. Os sensores e a fotografia de alta velocidade permitem-lhes me-
dir a força de sustentação gerada pelas aves no voo. Uma secção de um tú-
nel de vento com quase dois metros, com condições personalizadas, simula
uma atmosfera serena ou uma atmosfera de turbulência, fornecendo pistas
sobre como as asas das aves mudam de forma.
Um dos projectos mais importantes do laboratório é uma ave mecânica
chamada PigeonBot, que tem asas com penas elaboradas por Laura Matloff
e um sistema de controlo de rádio dirigido pelo bolseiro de pós-graduação
Eric Chang. Laura utilizou um microscópio com raios X, para determinar as
características das penas. O esqueleto e os conectores, que fixam as penas,
foram fabricados numa impressora 3D. O PigeonBot está equipado com ace-
lerómetro, giroscópio, barómetro, sensor de velocidade aérea, GPS, bússolas
e radiotransmissores que passam informação sobre o voo a um computador.
Encontrei-me com os dois para um teste de voo. Quando Eric Chang diz:
“Pronto!”, Laura Matloff lança o robot ao ar. Vemo-lo voar cerca de dez me-
tros num segundo até Eric o fazer aterrar. O PigeonBot não é só um enge-
nho para dar nas vistas. O processo de retroengenharia de uma ave permite
aos cientistas estudar a mecânica de voo passo a passo e compreender me-
lhor a função de cada parte do corpo, tarefa que Leonardo não seria capaz
de concluir. A engenharia contemporânea poderá, um dia, recompensar a
curiosidade fervorosa de Leonardo respondendo aos mistérios que o fasci-
naram. “Acho que vamos lá chegar”, diz David Lentink.
os cadernos de apontamentos de Leonardo incluem pensamentos
especulativos com potencial. Desenhos contidos no Codex Atlanticus e em
vários cadernos de apontamentos mais pequenos levaram o pianista polaco
Sławomir Zubrzycki a investigar. Ele ansiava por ouvir a música de Leonardo.
Entremuitosinteresses,Leonardoimprovisavamelodiasnaliradabraccio,
um instrumento de cordas do Renascimento, e estudava a complexidade da
acústica e das composições musicais nos seus cadernos. Em 2009, Sławomir
Zubrzycki deu por si hipnotizado pelos esboços de uma viola organista, um
instrumento de teclas com cordas arqueadas. Cativado pela possibilidade de
uminstrumentofundirduasfamíliasmusicais,opianistadecidiuconstruí-lo.
Em nenhum dos desenhos Leonardo fornecia uma matriz pormenoriza-
da. Durante quatro anos, Sławomir passou cinco horas por dia a investigar
e a formular o seu design. Testou amostras de madeira, decidiu que pre-
cisaria de 61 teclas e desvendou o enigma de como construir quatro arcos
circulares revestidos a crina de cavalo, com capacidade para friccionar as
cordas e gerar música. Para dar vida ao instrumento, baseou-se na mesma
força vital que motivara Leonardo: a imaginação.
38 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O resultado é espectacular. A graciosa viola organista de Zubrzycki alia
a capacidade polifónica de um teclado – permitindo tocar várias melodias
em simultâneo – ao leque de emoções dos instrumentos de cordas.
Numa noite de Verão, Sławomir Zubrzycki senta-se para dar um concerto
de música do Renascimento no Castelo de Kalmar, na costa meridional da
Suécia. Embora a sua viola organista pareça um piano de cauda bebé, com-
porta-se como um conjunto completo de cordas.
Para Leonardo, só a pintura suplantava a música e esta estava mesmo
acima da escultura: ele descrevia-a como figurazione delle cose invisibili, a
modelação das coisas invisíveis. Para a centena de espectadores no recital
de Sławomir Zubrzycki, este momento de exaltação ocorreu enquanto o Sol
se punha sobre o mar Báltico, ao mesmo tempo que alguns rabiscos do ca-
derno de apontamentos de Leonardo se transformavam em música.
a ultima incursão de leonardo, no Outono de 1516,
levou-o a Amboise, em França, onde o rei Francisco I, um grande admirador,
lheofereceuumestipêndioealiberdadeparacriaroquequisesse.Aos64anos,
Leonardo mudou-se para um château modesto, hoje conhecido como Clos
Lucé, com muitos dos seus desenhos e os três quadros dos quais nunca se
separava–SãoJoãoBaptista,AVirgemeoMeninocomSantaAnaeMonaLisa.
Durante os seus anos em Clos Lucé, concebeu projectos hidráulicos para
o reino, planos para uma nova residência real e encenou alegres festivida-
des para o rei. No meio de tudo isto, saboreava os prazeres simples da vida.
Antes de morrer, no dia 2 de Maio de 1519, aos 67 anos, Leonardo con-
cluiu vários desenhos sobre o dilúvio, representando vagalhões cataclís-
micos de água e vento. No final, Leonardo virou o seu olhar, como sempre,
para a natureza.
Actualmente, Clos Lucé é um monumento vivo a Leonardo, no meio de
um enorme parque cheio de sálvia e outras plantas. As crianças brincam
numa ponte parabólica oscilante e num tanque blindado semelhante à
carapaça de uma tartaruga, inspirados nos cadernos de Leonardo. Cami-
nhando no local num dia soalheiro, François Saint Bris, o director de Clos
Lucé, afirma ter esperanças de que o local onde Leonardo passou os seus
últimos anos inspire as próximas gerações.
É um objectivo partilhado por muitos. Novas investigações estão a desco-
brir material para alimentar os especialistas do futuro. Domenica Laurenza
e Martin Kemp colaboraram numa nova análise do Codex Leicester e o seu
estudo revela que este talvez influenciasse o nascimento da geologia con-
temporânea. Ao fim de mais de duas décadas de investigação meticulosa
sobre a vida e a obra de Leonardo, o Met’s Bambach vai publicar uma série
de quatro volumes intitulada “Leonardo da Vinci Rediscovered” [A Redes-
coberta de Leonardo Da Vinci].
Os cadernos de apontamentos de Leonardo começam agora a chegar
ao grande público. Paolo Galluzzi é o responsável por uma elegante base
de dados com motor de busca do Codex Atlanticus, o maior dos cadernos.
Walter Isaacson imagina um dia em que todos serão totalmente traduzidos
e digitalizados por um único consórcio internacional. “Então veremos Leo-
nardo em toda a sua glória”, afirma.
Da mesma forma que Leonardo não via um fim para a sua busca de co-
nhecimento, os seus cadernos de apontamentos parecem estar preparados
para a redescoberta e a posteridade. “Estou sempre a pensar que já fiz tudo
o que tinha a fazer com Leonardo”, diz Martin Kemp, que escreve sobre este
tópico há cinco décadas. “Mas ele regressa sempre.” j
Nas famosas pedreiras
de Carrara, no
Noroeste de Itália
— o local visitado por
Miguel Ângelo, há cinco
séculos, para escolher
mármore para estátuas
— encontra-se uma
escultura de Leonardo.
A figura, feita pela
Torart, uma empresa
italiana especializada
em escultura robótica,
é uma réplica de uma
estátua do século XIX
que vigia o pórtico
da Galeria dos Ofícios.
Os artesãos utilizam
esquemas gerados por
computador, bisturis
robóticos, jactos de
água a alta pressão
e o seu próprio talento
manual para fabricar
reproduções e peças
originais.
´
LU GA R E S S E LVAG E N S
UM NOVO DIA
Te xto de D AV I D Q UA M M E N
Fo tografias de
CHARLIE HAMILTON JAME S
DIZIMADA POR UMA LONGA
GUERRA CIVIL , A VIDA
SELVAGEM DO PARQUE
NACIONAL DA GORONGOSA
ESTÁ A RECUPERAR. O FUTURO
DOS ANIMAIS DEPENDE DA
ESPERANÇA QUE FOR DADA
ÀS COMUNIDADES QUE VIVEM
NAS REDONDEZAS.
EM MOÇAMBIQUE
Aninhados na extremidade
meridional do Grande
Vale do Rifte, em África,
os 4.000 quilómetros
quadrados da Gorongosa
incluem montanhas,
planaltos florestados,
desfiladeiros com escarpas,
savanas cobertas de
palmeiras e zonas húmidas.
Os inselbergs de Bunga
(antigos pedaços de rocha
vulcânica deixados para
trás pela erosão do solo
mais macio em redor)
interrompem a imensidão
da floresta.
PÁGINAS ANTERIORES
Um elefante come um
petisco nocturno no Parque
Nacional da Gorongosa,
em Moçambique. Muitos
elefantes do parque foram
abatidos e o seu marfim
usado para comprar armas
durante a guerra civil
de 15 anos que terminou
em 1992. Com a caça furtiva
controlada, a população
destes animais está
a recuperar.
Os mabecos-africanos
deixaram completamente
de existir na Gorongosa
durante a guerra. Com
algumas populações de
presas a crescer, o parque
precisa de predadores.
Uma matilha de 14
mabecos proveniente da
África do Sul foi libertada
em 2018 e está agora
a contribuir para o
equilíbrio do ecossistema.
Patos-assobiadores-
-de-faces-brancas levantam
voo acima de um esquadrão
de pelicanos e cegonhas
pousados no rio Sungué,
na Gorongosa, que alimenta
o lago Urema. Mesmo na
época seca, o lago e os
seus canais tributários
acolhem um número
abundante de aves.
48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Jacinta Sainet
Miquirosse cuida
do lume para cozinhar
em sua casa, na serra
da Gorongosa.
Durante décadas, as
comunidades serranas
viveram uma existência
precária, cortando
árvores para cultivar
milho, a sua cultura
de sustento. Agora,
Jacinta e os seus
vizinhos participam
num projecto do
parque que introduziu
o cafeeiro como cultura
nas suas explorações
agrícolas, contribuindo
simultaneamente para
a reflorestação da
montanha com árvores
de sombra.
UMA MANHÃ QUENTE do final da estação seca, no
início de Novembro, um helicóptero vermelho e
preto deslocava-se velozmente para leste, sobre-
voando a savana coberta de vegetação do Parque
Nacional da Gorongosa, em Moçambique.
O piloto veterano Mike Pingo, originário do
Zimbabwe, controlava a manete. Louis van
Wyk, especialista sul-africano em captura de
animais selvagens, tinha o corpo parcialmente
do lado de fora do habitáculo e segurava uma
arma de cano longo com dardos carregados de
anestésicos. Ao lado de Mike Pingo, sentava-se
Dominique Gonçalves, uma jovem ecologista
moçambicana que é responsável pela gestão dos
elefantes no parque.
Mais de 650 elefantes vivem actualmente na
Gorongosa, um aumento robusto desde os anos
da guerra civil no país (1977-1992), período em
que a maioria dos elefantes do parque foi chaci-
nada e a sua carne e marfim vendidos para com-
prar armas e munições. Com a população de
elefantes novamente em recuperação, Domini-
que queria instalar um marcador de GPS numa
fêmea adulta de cada grupo matriarcal.
Seleccionou um animal de uma manada que
corria numa clareira, onde as árvores cresciam
com pouco espaço entre si. Mike Pingo condu-
ziu o helicóptero para perto do solo, tanto quan-
to as árvores o permitiam. Dez elefantes adultos
– com crias pequenas a seu lado e acompanha-
dos de perto por juvenis – fugiram do ronco
dos rotores. Embora obrigado a disparar a uma
distância superior à habitual, Louis van Wyk
acertou com um dardo no quadril direito da fê-
mea escolhida.
N
LUGARES SELVAGENS
O Parque Nacional da Gorongosa
é um parceiro de conservação da iniciativa
Últimos Lugares Selvagens da
National Geographic Society.
G O R O N G O S A 49
Mike pousou e os dois especialistas saltaram do
helicóptero, avançando pelo meio do capim espe-
zinhado até alcançarem a fêmea sedada. Minu-
tos mais tarde, chegou uma equipa de terra com
equipamento mais pesado, técnicos auxiliares
e um vigilante da natureza armado. Dominique
Gonçalves fixou um pequeno pau na ponta da
tromba do elefante, abrindo-a de modo a garan-
tir uma respiração desobstruída. Deitado sobre o
flanco direito, o animal começou a ressonar alto.
Um técnico recolheu uma amostra de sangue de
uma veia da orelha esquerda. Outro técnico aju-
dou Louis a instalar a coleira de marcação logo
abaixo do pescoço da fêmea.
Dominique recolheu um esfregaço de saliva
do animal e um esfregaço rectal, guardando-os
em frascos e selando-os. Calçou uma luva de
plástico no braço esquerdo e inseriu-o profun-
damente no recto do animal, retirando um pu-
nhado de fezes fibrosas cor de ocre que seriam
utilizadas para analisar a composição do regi-
me alimentar do elefante. O grande flanco do
animal subia e descia suavemente, ao ritmo do
murmúrio de trombone emitido pela tromba.
“Louis, podes ver se está prenhe?”, perguntou
a investigadora.
“Falta pouco para parir”, respondeu Louis de-
pois de analisar o leite aguado que escorria dos
úberes distendidos da fêmea.
Este artigo foi apoiado pela Wyss Campaign
for Nature, que está a colaborar com a National
Geographic Society e outras organizações para ajudar a
proteger 30% do nosso planeta até 2030.
50 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
da vizinha Rodésia (actual Zimbabwe) e da Áfri-
ca do Sul. Quando o exército nacional avançou
para confrontá-los, travaram-se combates no
terreno, ataques com foguetes à sede do parque.
Registou-se uma carnificina na savana.
Além do massacre de elefantes, milhares de
zebras e outros animais de grande porte foram
mortos para consumo da sua carne ou por mera
diversão. Uma trégua travou a guerra em 1992,
mas a caça furtiva continuou e mesmo as comu-
nidades vizinhas instalavam armadilhas para
capturar quaisquer animais comestíveis que
restassem. Na viragem para o século XXI, o Par-
que Nacional da Gorongosa estava arruinado.
As circunstâncias eram igualmente sombrias
para as aldeias em redor da Gorongosa. Cerca
de cem mil pessoas viviam num território que
os responsáveis pelo ordenamento classificam
actualmente como zona-tampão – a maioria das
famílias trabalhava na produção de milho e de
outras culturas de subsistência, mal conseguin-
do alimentar-se. As crianças careciam de ensino
e cuidados de saúde.
O crescimento da população de elefantes é
apenas uma parte das boas notícias relativas à
Gorongosa. A maioria dos animais de grande
porte, incluindo leões, búfalos-africanos, hipo-
pótamos e gnus, existe agora em número muito
superior ao registado em 1994, pouco depois do
fim da guerra. No reino da conservação, no qual
demasiados indicadores anunciam pessimismo
e desespero, o sucesso em grande escala é raro.
Louis van Wyk acabou de ajustar a coleira
de marcação e Dominique Gonçalves arrumou
as amostras. Foi injectado um fármaco na veia
da orelha para despertar o animal e a equipa
recuou até uma distância segura. Passado um
minuto, a fêmea levantou-se, abanando a cabe-
ça ensonada, e afastou-se a passos largos, jun-
tando-se à manada. A monitorização dos dados
informará Dominique e os colegas sobre os pa-
drões de deslocação dos elefantes, alertando-os
caso a manada atravesse uma fronteira do par-
que em direcção a um campo agrícola, permi-
tindo assim ao agricultor tomar medidas para
salvar as suas culturas.
É assim que funciona o Projecto de Restauro
da Gorongosa, uma parceria iniciada em 2004
entre o governo moçambicano e a Fundação
Gregory C. Carr, sediada nos EUA. Para que ele-
fantes, hipopótamos e leões prosperem num
parque delimitado, é preciso garantir que os
seres humanos que vivem fora do parque tam-
bém prosperem.
E STENDENDO - SE SOBRE UMA PLANÍCIE de aluvião
situada na extremidade meridional do Grande
Vale do Rifte, em África, abrangendo savanas,
florestas, zonas húmidas e um grande corpo de
água chamado lago Urema, a Gorongosa foi em
tempos uma reserva de caça: a administração
colonial portuguesa criou-a em 1921 para a prática
de desportos de lazer, removendo do território as
pessoas que ali partilhavam a paisagem com a
vida selvagem. Em 1960, a data da classificação
como parque nacional, a Gorongosa continha
cerca de 2.200 elefantes, duzentos leões e 14 mil
búfalos-africanos, bem como hipopótamos,
impalas, zebras, gnus e outros exemplares icóni-
cos da fauna africana.
No entanto, o seu isolamento revelou-se fatal.
Na devastadora guerra civil de 15 anos que se se-
guiu à independência em 1975, a Gorongosa ser-
viu de refúgio à Resistência Nacional Moçam-
bicana (ou RENAMO), as forças rebeldes com
ideologia de direita que receberam apoio militar
G O R O N G O S A 51
À ESQUERDA
Os Clubes de Raparigas
da Gorongosa, como
este da aldeia de
Mussinhá, reúnem-se
diariamente, antes ou
depois das aulas, em
aldeias vizinhas do
parque. Juntam-se mais
de duas mil raparigas.
As actividades do clube
centram-se na
alfabetização, na saúde
reprodutiva e na
diversão, contribuindo
para manter as raparigas
na escola. As suas
canções promovem
o ensino, os direitos
das crianças e formas
de evitar o VIH/Sida.
EM BAIXO
A força de vigilantes
da natureza do parque
inclui onze mulheres.
Patrulhas como esta
recebem instruções por
SMS todas as manhãs
e fazem as suas rondas,
procurando armadilhas
de laço e dissuadindo
a actividade dos
caçadores furtivos.
No final da estação seca,
um charco remanescente
no canal do rio Mussicadzi
atrai bandos de aves
esfomeadas, incluindo
garças e duas espécies
de cegonhas, juntamente
com um casal de inhacosos
sedentos. A riqueza avícola
de Gorongosa aumenta na
estação húmida quando as
aves migradoras chegam
para se alimentarem.
National geographic mai19
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  • 3.
  • 4. N AT I O N A L G E O G R A P H I C M A I O 2 0 1 9 Na capa Retrato de Leonardo da Vinci, Biblioteca Real de Turim. Considerado até há pouco um auto-retrato, existem hoje sérias dúvidas sobre a sua autoria. Alguns autores atribuem-na a um pintor anónimo. STUART GREGORY/GETTY IMAGES S U M Á R I O PAOLO WOODS E GABRIELE GALIMBERTI (EM CIMA) 2Leonardo: um génio à frente do seu tempo Cinco séculos após a morte de Leonardo da Vinci, a sua criatividade imparável e espírito pioneiro continuam a inspirar o mundo da arte, da anatomia, da ciência, da música e da engenharia. Numa reportagem que nos levou de Florença a Londres, dos arredores de Paris aos Estados Unidos, desvendamos as múltiplas facetas do génio florentino e o que ainda podemos aprender com ele. T E X TO D E C L AU D I A K A L B F OTO G R A F I A S D E PAO LO WO O D S E GA B R I E L E GA L I M B E RT I
  • 5. R E P O R T A G E N S S E C Ç Õ E S A S UA F OTO V I S Õ E S E X P LO R E Aranhas voadoras A arte rupestre de que (ainda) não se fala Embalagens tóxicas I N ST I N TO BÁ S I C O Um forte ímpeto sexual G R A N D E A N G U L A R A vida no fundo das grutas E D I TO R I A L N A T E L E V I SÃO P RÓX I MO N ÚM E RO DE CIMA PARA BAIXO: CHARLIE HAMILTON JAMES; DAVID LIITTSCHWAGER; MARK THIESSEN Assinaturas e atendimento ao cliente Telefone 21 433 70 36 (de 2.ª a 6.ª feira) E-mail: assinaturas@vasp.pt 40 64 78 Gorongosa, paraíso natural de Moçambique O Parque Nacional da Gorongosa ressurge após 15 anos de guerra civil e um longo período de transição em Moçambique, graças ao sucesso dos projectos de desenvolvimento e reflorestação. T E X TO D E DAV I D Q UA M M E N F OTO G R A F I A S D E C H A R L I E H A M I LTO N JA M E S Microplásticos Todos os anos, chegam ao mar cerca de nove milhões de toneladas de lixo plástico. Uma parte desse volume desintegra-se em minúsculos fragmentos: os microplásticos. São tão abundantes que as larvas dos peixes consomem- -nos nos primeiros dias de vida. T E X TO D E L AU R A PA R K E R F OTO G R A F I A S D E DAV I D L I I T T S C H WAG E R Incêndios, uma luta sem quartel Todos os verões no Alasca, uma unidade de bombeiros de elite lança-se de pára-quedas sobre as florestas em chamas numa perigosa corrida contra o fogo. O objectivo é travar precocemente os incêndios antes que estes atinjam dimensões catastróficas. T E X TO D E M A R K J E N K I N S F OTO G R A F I A S D E M A R K T H I E S S E N w Torne-se fã da nossa página de Facebook: facebook. com/ngportugal Siga-nos no Twitter em @ngmportugal Envie-nos comentários para nationalgeographic @ rbarevistas.pt Mais informação na nossa página de Internet: nationalgeographic.pt Siga-nos no Instagram em @natgeomagazine- portugal
  • 6.
  • 7. V I S Õ E S | A S U A F O T O N O R B E RTO E ST E V E S Esquivo mas curioso, este pequeno mocho-galego iludiu como pôde a máquina do fotógrafo na ria de Alvor. Acabou por pousar num poste de média tensão, com este “olhar misto de inocência e curiosidade”. J OÃO A N D R É B RA N C O O complexo residencial de Yik Cheong em Hong Kong é também conhecido como Monster Building. É uma das zonas mais densamente povoadas do planeta. Vários apartamentos têm apenas 30m2 de área disponível.
  • 8. G I C R I STÓVÃO A Rota dos Túneis, entre Barca d’Alva e Fregeneda, foi em tempos território do comboio, mas a desactivação da linha alimenta agora o tráfego dos caminheiros. Na escuridão da noite, as estrelas brilham com mais intensidade.
  • 9.
  • 10. A The Navigator Company e a National Geographic, dão assim um grande passo em direção a um mundo mais verde. Todos os dias somos confrontados com diversas escolhas. Cabe-nos a nós acertar, rumo a um futuro mais sustentável. Comece também a optar por papel, um material renovável, reciclável e biodegradável. A sua revista agora é entregue em envelope de papel.
  • 11. V I S Õ E S
  • 12. Brasil Sob a luz do crepúsculo e um céu tempestuoso, as flores de sempre-viva (género Paepa- lanthus) atapetam uma pradaria do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, uma área protegida no centro do país onde abundam os endemismos. MARCIO CABRAL/BIOSPHOTO/AGE FOTOSTOCK
  • 13. Encontre esta e outras fotografias em nationalgeographic.pt
  • 14. Indonésia Um társio (Tarsius tarsier) espreita a partir de uma concavidade de uma árvore na Reserva Natural de Tangkoko, nas ilhas Celebes. Estes pequenos primatas de olhos enormes têm hábitos nocturnos, pelo que frequentemente perma- necem ocultos durante o dia. CHIEN LEE/MINDEN PICTURES/AGE FOTOSTOCK
  • 15.
  • 16. Irão Uma mulher entra na mesquita Nasil al-Molk, também conhe- cida como Mesquita Rosa, na cidade de Shiraz. O vistoso chador parece fundir-se com os azulejos que decoram o interior deste templo construído na segunda metade do século XIX. TUUL & BRUNO MORANDI/GETTY IMAGES
  • 17. N AT I O N A L G E O G R A P H I C Aranha voadora (espécie continental) Anteriores Seda de voo Médias Fieiras posteriores Tricobótrio Outras pilosidades Glândulas Fieiras Seda de ancoragem presa pela pata traseira Seda de voo composta por 70 a 140 nanofibras Seda de ancoragem Carga por fricção Carga intrínseca Carga adquirida SUPERFÍCIE TERRESTRE (CARGA NEGATIVA) Em pontas A aranha trepa até um ponto elevado, segura-se com uma espécie de âncora e avalia as condições com as patas anteriores. De seguida, apoia-se na extremidade das patas posteriores, eleva o abdómen e liberta a seda. 1 Finas pilosidades denominadas tricobótrios reagem às condições eólicas e eléctricas e actuam de acordo com elas. A aranha ergue as patas dianteiras para avaliar as condições. As glândulas sericígenas segregam múltiplos tipos de fios de seda libertados através de pares de fieiras. A seda pode transportar a própria carga intrínseca ou adquiri-la por fricção ou do ar. Quando faz bom tempo, a atmosfera apresenta uma carga positiva e a superfície terrestre negativa. As cargas atraem-se mutuamente. O campo eléctrico é mais potente nas zonas mais altas, como as extremidades das flores. Quadro eléctrico global NÁUFRAGOS CELESTES Poucas aranhas voam, mas as que o fazem são excelentes colonizadoras. Algumas transportam ovos com os quais expandem a sua população, mas o motivo que as leva a voar ainda é desconhecido. Aranhas voadoras C H A R L E S DA RW I N F I C O U FA S C I N A D O com as aranhas que pousaram no HMS Beagle há quase dois séculos. Estes arac- nídeos não têm asas, mas conseguiram aterrar no navio a 100 quilómetros de terra firme. Como chegaram ali? As últimas investigações trazem novas pistas sobre o possível papel desempenhado pelo campo eléctrico da Terra nesta façanha aérea. As aranhas voadoras elevam-se no ar como se empreen- dessem um voo aerostático: orientam o corpo em direcção ao fluxo de ar e libertam fios de seda que aproveitam o vento e o campo eléctrico para levantar voo. Voam em busca de melho- res locais e, uma vez no ar, conseguem controlar os seus movi- mentos, mas não a direcção para onde rumam. E X P L O R E
  • 18. 0 km 4 FORÇA ELECTROSTÁTICA VENTO HORIZONTAL (As aranhas voam apenas quando o vento é inferior a 3 metros por segundo) VENTO VERTICAL ASCENDENTE A 6 6 8 QUI L Ó M E T R O S D A C O S TA Entre 8 e 10 m durante o vooA s ed a m e de entr e 3 e 5 m SUSTENTAÇÃO POR ELECTROSTÁTICA SUSTENTAÇÃO PELO VENTO (com vento suave)em a s cen s ão Repulsão mútua Ilha Robinson Crusoé, Chile Santiago San Juan Bautista Ilha Robinson Crusoé Arquipélago de Juan Fernández 668KM ÁREA EM DESTAQUE EM BAIXO CHILE AMÉRICA DO SUL ÁREA DO MAPA Zarpando Com a força obtida no campo eléctrico A e o impulso ascendente da brisa B , a aranha eleva-se no ar e “voa”, depois de quebrar a linha de âncora e de criar um “pára-quedas” em forma de leque feito com fibras de seda. Voo de alto risco Asaranhaspodemalcançar4,5 quilómetrosdealturaevoarmilhares dequilómetrossemáguaoualimento, masmuitasnãosobrevivemaestas arriscadasviagens.Emcontrapartida, amaioriadosvoossãocurtos. 2 3 Aranha em voo, tamanho real Em vez de se emaranharem, os fios de seda carregados esticam-se devido ao efeito de repulsão, outro indício de que o campo eléctrico da Terra poderá intervir no movimento de elevação. Os ventos mais lentos e próximos da superfície da Terra reagem com os ventos mais altos e rápidos, criando remoinhos que podem ser usados pelas aranhas para ganhar altura. A aranha solta o fio de âncora e estica as patas para se equilibrar ou controlar a velocidade. O fio de voo é tão fino que até a mais leve brisa consegue sustentá-lo. Impulso eléctrico Corrente ascendenteA B TEXTO: DAISY CHUNG. CLARE TRAINOR, NGM (MAPA); MESA SCHUMACHER. FONTES: MOONSUNG CHO, UNIVERSIDADE TÉCNICA DE BERLIM; ERICA L. MORLEY, UNIVERSIDADE DE BRISTOL; GUSTAVO HORMIGA, UNIVERSIDADE GEORGE WASHINGTON; ROBERT B. SUTER, VASSAR COLLEGE, MOLECULAR PHYLOGENETICS AND EVOLUTION 107 (2017)
  • 19. Aarterupestrede que(ainda)nãosefala T E X T O E F O T O G R A F I A S D E H U G O M A R Q U E S Imagineumpequenogrupodepessoas naIdadedoBronze(entrecercade2500 a 1500 a.C) reunidos em frente de uma alongada e baixa cavidade granítica na sub-região entre o Sabor e o Douro. Semiescondidos e quase deitados no espaçoapertadodacavidade,masmuni- dos de pequenas ferramentas líticas, iniciam a gravação de um conjunto de formasgeométricaseantropomórficas, utilizandotécnicasdepicotagemeabra- são que resultarão num dos mais belos exemplosdearteesquemáticadoterritó- rioanortedoDouro.Nuncasaberemos os significados concretos atribuídos a cadasímbolo,maspodemosconjecturar. Os tempos dos caçadores-recolecto- res do Paleolítico Superior no vale do Côa já passaram há muito e, neste ter- ritório, prosperam agora comunidades agropastoris,commodosdevidaseden- tários.Apesardessaenormemudança, a ligação do homem ao simbólico con- tinuaapersistireestestraçosrepetem- -se por muitos sítios arqueológicos na Península Ibérica. Esta demonstração de uma cultura própria, mas também partilhada nos seus símbolos, indicia contactos entre os grupos humanos. Passados 4.500 anos, os dedos de Maria de Jesus Sanches, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, percorrem com suavidade as linhasepequenascovasquesecruzam neste abrigo pré-histórico. O abrigo da Solhapa na freguesia de Duas Igrejas, no concelho de Miranda do Douro, foi dado a conhecer em 1955 pelo padre António Maria Mourinho, apaixonado por arqueologia e etnografia que, tal como o abade de Baçal (que tratava por mestre), se dedicou à divulgação do património cultural transmontano. Otrabalhodestainvestigadoradebru- çou-sesobreasformasalirepresentadas. Utilizandodiversastécnicasdecontraste cromático, foi possível definir melhor oselementosrepresentadosnogranito. Entrepequenascovasesulcos,quetêm em si significado simbólico desconhe- cido, identificam-se figuras humanas antropomórficas e de cariz sexuado, dada a exibição fálica, e um equídeo possivelmente montado por um cava- leiro,quepoderáestarapisaralguém. A vida destas pessoas estava muito mais ligada aos ciclos da natureza, e a explicaçãodosfactosnaturais,ouatéde eventos heróicos,queéhoje mais cien- tífica,serianopassadomaissimbólica, ousobrenatural.Astentativasderepre- sentar e apelar a esse mundo pouco conhecido expressam-se em vários sítios arqueológicos que começam agora a redefinir a nossa compreensão da ocupação deste território. O ABRIGO DO PASSADEIRO, em Pala- çoulo,noconcelhodeMirandadoDouro, confluicomumapequenalinhadeágua. Foialiqueseencontrouaimagemdeum cervídeo realizado seguindo a técnica depicotadofino,comumadataçãoque poderá recuar até ao Mesolítico (cerca de7000,6000 a.C.).Dasrepresentações de veados, auroques e cavalos, muito comunsnoPaleolíticoSuperior(30000 a10000a.C.),sóosveadosprosseguiram em períodos mais recentes. A relação do homem com o mundo natural não se perdeu apesar das grandes trans- formações nas sociedades humanas. “UNHADAS D O DIAB O”, PICOTAD O S, GRAVURAS – HÁ UM MUND O DE ARTE PRÉ-HISTÓRICA QUE COMEÇÁMO S AG ORA A DES COBRIR E X P L O R E | A R T E R U P E S T R E N AT I O N A L G E O G R A P H I C
  • 20. A caça continua a ser uma forma de suprir necessidades alimentares e a cavernaeoabrigoaindasãoosespaços paramanifestaçõesartísticasemágicas. Sãopassagensparaummundoinferior na interpretação de pré-historiadores consagradoscomoJeanClottes. No meio de um veado representado numaposiçãodinâmica,MariadeJesus Sanchesfoisurpreendidaporaquiloque localmente é designado por “unhadas do diabo”, que lhe são anteriores no tempo. São marcas que acabam por cruzar o corpo do animal e cuja moti- vação nos escapa. Os censos de sítios semelhantestêmcomprovadoqueestas marcas se repetem nas bacias dos rios Douro, Tejo e Guadiana. Teriam um significadocomunitárioouseriamuma primitiva forma de escrita? NÃO É, CONTUDO, POSSÍVEL FALAR do Douro e das terras de Miranda sem reflectir a presença do grande rio ibérico. Nas enormes arribas de uma naturezaquaseembruto,asmarcasdo passadolongínquoirrompemportodo o lado. Sobranceiro ao rio, está implan- tado, numa fraga na aldeia de Picote, um arqueiro com o seu arco retesado que parece vigiar quem por ali passa. Estelugartemumaauramágicapela associação que a população local faz à lenda de um cavaleiro cristão que, perseguido pelos mouros, teria saltado do território que hoje é Espanha sobre o rio e aterrado na fraga do Puio, dei- xando ali a sua marca. Pelo contexto arqueológico associado à zona e por aspectos estilísticos, é possível que esta gravura seja datada do quarto ou terceiro milénio antes de Cristo. O homem empunhando um arco poderáterumainterpretaçãoguerreira, massabemosqueospovosdestaépoca ainda estavam muito dependentes da recolecção. O arqueiro será mais um elemento do “universo cosmológico e ontológicodaspopulaçõesquealivive- ram”, afirma a investigadora. Num lugar com uma paisagem deslumbrante, a figura do arqueiro da fraga do Puio destaca-se com o equipa- mento de luz rasante da arqueóloga Mónica Salgado (em cima). Na página anterior, a investigadora Maria de Jesus Sanches no interior do abrigo do Passadeiro em Palaçoulo. Em baixo, a pala do abrigo da Solhapa na freguesia de Duas Igrejas destaca-se no planalto mirandês. COMPOSIÇÃO DE MARIA JOSÉ SANCHES (FLUP)
  • 21. E X P L O R E | A R T E R U P E S T R E A figura de um cervídeo com cerca de nove mil anos sobrepõe-se a um cruzamento de inúmeras “unhadas do diabo” no abrigo do Passadeiro. Conjectura-se que estas marcas talvez fossem uma forma primitiva de escrita (em cima). No interior do abrigo da Solhapa em Duas Igrejas (em baixo), Maria de Jesus Sanches observa atentamente um dos mais belos exemplos de arte esquemática no território transmontano. Muito do património de arte rupestre de Trás-os-Montes permanece por classificar. N AT I O N A L G E O G R A P H I C
  • 22.
  • 23. E X P L O R E | C I Ê N C I A DE CIMA PARA BAIXO: ANTAGAIN, GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO; RICHARD KIRBY; JOE PETERSBURGER, NATIONAL GEOGRAPHIC CREATIVE Baratas afastam picadas zombie “Como não ser transformado num zombie.” Foi assim que o biólogo Kenneth Catania intitulou o seu relatório sobre o parasitismo das baratas americanas por vespas-jóia. Se for picada no cérebro, a barata segue a vespa para um buraco onde a vespa faz uma postura. Depois, fecha o buraco, deixando a barata como alimento para a larva. No seu estudo, o investigador percebeu que as baratas que se defenderam pontapeando vigorosamente com as pernas evitaram as picadas em 63% das ocasiões. GENÉTICA O poder das papoilas Os seres humanos há muito que extraem morfina e codeína das papoilas do ópio. Mas de que forma a evolução dotou estas flores de poderes analgésicos? Não foi simples. O DNA da papoila revela que, ao longo de 110 milhões de anos, boa parte do seu genoma duplicou duas vezes, e dois genes suplementares fundiram-se num que é crucial para a formação do narcótico. A descoberta pode contribuir para o melhor conhecimento dos opiáceos. PLÁSTICOS A CONTAMINAÇÃO PROVÉM DE MINÚSCULAS EMBALAGENS TÓXICAS O O C E A N O E S TÁ S O B R E C A R R E G A D O D E M I C RO F I B R A S D E P L Á S T I C O. E O P L Â N C TO N C O N S OM E -A S . O emaranhado de microfibras que se vê em cima tem menos de quatro milímetros de diâmetro, aproximadamente o tamanho dos pequenos organismos aquáticos conhecidos como plâncton. Semanalmente o cientista Richard Kirby parte da costa de Ply- mouth, em Inglaterra, com uma rede de arrasto enganchada ao seu barco para recolher plâncton. Ultimamente, encontra quase tanto plástico como plâncton. Estima-se que anualmente mais de 600 mil toneladas de microfibras de plástico, libertadas durante a lavagem de lãs, poliéster e outros tecidos sintéticos, cheguem ao oceano. O plâncton pode comê-las ou ficar enredado nelas, e os impactes ecológicos ainda não são conhecidos. “A nossa polui- ção estendeu-se até ao fim da cadeia alimentar marinha”, diz Kirby. “Alterámos o plâncton, causando efeitos que durarão sécu- los ou milénios.”
  • 24. ESTAS BONITAS LESMAS-DO-MAR australianas, da espécie Siphopteron qua- drispinosum, usam simultaneamente os órgãos sexuais masculinos e femi- ninos durante o acasalamento e apresentam um curioso pénis de duas pontas. Através de uma delas, o esperma é transferido de maneira “tradi- cional”, ou seja, é depositado no tracto genital feminino. A outra extremidade, um apêndice semelhante a um estilete, é usada para injectar um fluido prostático na cabeça do parceiro, que, de acordo com os investigadores da Universidade de Tübingen, na Alemanha, “pode- ria aumentar a capacidade de fertilização do próprio espermatozóide ou inibir o esperma depositado por parceiros sexuais anteriores”, diz Rolanda Lange, co-autora do estudo. Este método brutal já fora observado noutros invertebrados. Em 1913, dois entomólogos britânicos, Walter S. Patton e Francis W. Cragg, referiram que certos animais levavam a cabo uma inseminação traumática inoculando o esperma directamente no sistema sanguíneo através de um ferimento causado por um pénis semelhante a um estilete. No entanto, é a primeira vez que se observa o dardo inserido entre os olhos da consorte. “Devem existir vantagens que compensam o dano corporal que isso acarreta. Ou pelo menos deverão ter existido nas fases iniciais da evolução”, prossegue a especialista. Talvez seja assim que o esperma é depositado mais perto dos óvulos do que com o acasalamento normal. De facto, muitos invertebrados (insectos e certos vermes achatados e poliquetas) desenvolveram tácticas similares de acasalamento”. Será necessário continuar a investigar para descobrir que virtudes escondem estes lacerantes pénis multifuncionais. E X P L O R E | I N S T I N T O B Á S I C O TEXTO: EVA VAN DEN BERG. FOTOGRAFIA: DENNIS McCREA. ILUSTRAÇÃO: DAVID MARTÍNEZ. FONTE: PROCEEDINGS OF THE ROYAL SOCIETY B: BIOLOGICAL SCIENCES, 2014 DESCRIÇÃO As lesmas-do-mar ou opistobrânquios são moluscos gastrópodes marinhos. A Siphopteron quadrispinosum mede cerca de cinco milímetros e regista coloração amarela, laranja e vermelha. HABITAT Vive na areia, em profundidades de 6 a 27 metros. Por norma, abriga-se no interior das formações de macroalgas. DISTRIBUIÇÃO Siphopteron quadrispinosum foi descrita no Hawai e na Papua Nova-Guiné. Também está presente nas águas do Japão, Nova Caledónia e no Nordeste da Austrália. Um forte ímpeto sexual Esboço da sequência de acasalamento entre lesmas. Nas fases iniciais da relação sexual, os dois indivíduos aproximam-se e entrelaçam-se. De seguida, dá-se uma cópula recíproca (tal como as lacerações) que termina num emparelha- mento unilateral.
  • 25. G R A N D E A N G U L A R O pseudo-escorpião-gigante das grutas do Algarve reina num habitat frágil e pouco conhecido, onde a luz não entra, a humidade é elevada e a sobrevivência difícil. Num mundo que se rege em milímetros, os seus centímetros, aliados ao veneno e às poderosas pinças, tornam-no um predador temível. POR BAIXO DO ALGARVE QUE CONHECEMOSE M G R U T A S N O A L G A R V E E N O U T R O S P O N T O S D E P O R T U G A L , U M A E Q U I P A D E B I O E S P E L E Ó L O G O S T E M A C U M U L A D O D E S C O B E R T A S D E N O VA S E S P É C I E S E G É N E R O S D E O R G A N I S M O S . O F U N D O D A S G R U T A S É A G O R A A N O VA F R O N T E I R A . T E X T O E F O T O G R A F I A S D E A N T Ó N I O L U Í S C A M P O S
  • 26.
  • 27. N AT I O N A L G E O G R A P H I C OO DIA NASCE NO E STUÁRIO e os primeiros raios de sol começam a dourar a paisagem. De galochas e fatos de espeleólogo enlameados, com passo apressado, vários vultos dirigem-se para a margem da ria de Alvor. O lodo acinzentado já foi coberto por uma fina camada de água. Não serão muitos os caminhantes a aventurar-se por um trilho que promete lama, lama e mais lama. A urgência nota-se nos olhares inquietos e rostos franzidos: a maré está mais alta do que o previsto e corre-se o risco de a entrada da gruta Ibn’Ammar e do lago interior já estar inacessível. Esta é uma das prin- cipais cavidades do sistema subterrâneo do Algarve, que foi classificado em 2016 como hotspot mundial de biodiversidade cavernícola pela “Science”, uma das mais importantes revistas científicas. De cabelo arruivado sob o capacete, a bioespeleóloga da Universidade de Copenhaga Ana Sofia Reboleira explica que são poucos os locais na Terra com essa designação, significando que, numa dada gruta, exis- tem pelo menos vinte espécies cavernícolas diferentes terrestres ou aquáticas. Nos últimos anos, o Algarve tem proporcionado surpresas. Novas espécies para a ciência têm sido descobertas a um ritmo alucinante. Numa zona onde são muitos os interesses económicos em colisão com a conservação da natureza, as ameaças acumulam-se e a urgência do estudo destas diminutas e elusivas espécies cavernícolas cresce. Em comum entre estas descobertas, destacam-se as adaptações evolutivas encontradas. Muitos destes organismos mudaram para sobreviver num habitat tão agreste e diferente como o das grutas. Alguns sofreram despigmentação, o que os tornou maioritariamente pálidos; noutros, registou-se degeneração das estru- turas oculares por não haver luz solar. Em compensa- ção, ganharam um acentuado alongamento dos apêndices (antenas, patas, pinças). O melhor e maior exemplo (literalmente!) é o pseu- do-escorpião gigante das grutas do Algarve (Titano- bochicamagna), que os investigadores carinhosamente designam por “gigante do Sul”. Tudo é relativo: um adulto pode medir 30 milímetros de envergadura, com pinças poderosas e uma mordedura venenosa, que o torna um superpredador à sua escala – talvez compa- rável ao Tiranossaurus rex em terra, contemporâneo dos antepassados deste pseudo-escorpião. As origens da família Bochicidae, a que pertence, remontam ao Jurássico, há 170 milhões de anos, antes ainda da sepa- ração continental, como atesta o registo fóssil. Agora, no ambiente escuro para o qual a evolução o dotou de armas decisivas, o Titanobochica magna é também uma fera. Apesar de o pseudo-escorpião ter maravilhado a comunidade científica pela dimensão e espectacula- ridade morfológica, ele tem companhia: o peixinho- -de-prata Squamatinia algharbica, primo afastado dos que habitam nos interstícios de nossas casas, foi tam- bém recentemente descoberto. E, na saída de campo fotografada para esta reportagem, foi recolhido um grande exemplar de centopeia, que deverá ser breve- mente descrita como nova espécie para a ciência. Será a primeira centopeia cavernícola de Portugal. E ST E C A M P O C I E N T Í F I C O tem avançado a galope nos últimos anos em Portugal. O número de espécies conhecidas no nosso país triplicou. No Algarve, está identificada uma dezena de cavidades, mas o facto de se encontrarem espécies semelhantes em diferentes locais sugere que o sistema de grutas é muito vasto, embora as ligações entre si ainda não sejam conheci- das. Pelo país, há outras zonas importantes para a bio- diversidade cavernícola, como a Arrábida, Montejunto e as serras de Aire e Candeeiros e Sicó. Um dos projectos internacionais em que Portugal participa denomina-se “HiddenRisk”. Segundo Ana Sofia Reboleira, “buscamos compreender os impactes das actividades humanas nos ecossistemas subterrâ- neos e avaliar a importância destes para a saúde pública”. Apesar de quase invisíveis e pouco apelativos para o público, o seu papel é fulcral e influencia-nos globalmente: 97% da água disponível para consumo humano provém de aquíferos de profundidade (esse valor ronda os 50% em Portugal). Nas palavras da bióloga, “os animais subterrâneos são responsáveis pela reciclagem da matéria orgânica que se infiltra até aos lençóis freáticos, garantindo a qualidade da água e o seu equilíbrio ecológico”. Esse processo é fundamental “para a agricultura, flo- restas, nascentes e fontes. São mesmo importantes para nós!”, acrescenta. Na ria de Alvor, o grupo de bioespeleólogas progride em direcção à gruta de Ibn’Ammar, cujo lago interior (em baixo) alberga espécies aquáticas responsáveis pela purificação das águas superficiais. A cada saída de campo, a probabilidade de descobrir novas espécies para a ciência é elevada. G R A N D E A N G U L A R | B I O D I V E R S I D A D E
  • 28.
  • 29. N AT I O N A L G E O G R A P H I C G R A N D E A N G U L A R | B I O D I V E R S I D A D E A centopeia fotografada numa das grutas de Loulé “não existe” para a ciência. Está actualmente em processo de descrição, razão pela qual ainda não tem nome. Não existe ainda nenhuma espécie de centopeia cavernícola em Portugal. colecções. São infindáveis corredores escuros envol- vidos num silêncio sepulcral, com milhares de exem- plares conservados em frascos de todos os tamanhos e feitios, protegidos por uma assustadora guarda de honra de avestruzes, lobos ou javalis embalsamados, capaz de pôr os cabelos em pé ao mais batido investi- gador de campo! Ali está conservada a maioria dos espécimes recolhidos por Ana Sofia Reboleira. São mais de setenta novas espécies descritas para a ciência, 37 das quais em Portugal, incluindo quatro novos géneros, que abarcam pseudo-escorpiões, milípedes, bichos-de-conta, insectos e fungos ectopa- rasíticos de artrópodes. Em Setembro de 2009, a edição portuguesa da National Geographic noticiou a desco- berta das primeiras novas espécies de escaravelhos cavernícolas, Trechus gamae e Trechus lunai, no maciço estremenho. Na década seguinte, Ana Sofia Reboleira e os colegas conduziram o conhecimento para outro patamar. Entretanto, uma nova geração de biólogos vai sur- gindo. Andrea Castaño, investigadora espanhola a desenvolver o doutoramento na Universidade de Cope- nhaga, conduz um estudo sobre os efeitos de contami- nantes em organismos subterrâneos. Nos laboratórios A LG UM A S C E N T E N A S D E Q U I LÓM E T RO S a norte, em pleno Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, no Algar do Pena (que, com 125.000m3 , é a maior sala subterrânea conhecida do país), procura-se envolver a sociedade civil com a comunidade científica. Um “troglobiário” (laboratório subterrâneo) proporciona apoio à investigação com experimentação em animais vivos no seu habitat, mas constitui também uma opor- tunidade única de educação ambiental, ao permitir a observação de animais cavernícolas in situ. Ao abrigo do projecto pedagógico “Citizens & Science”, alunos do ensino secundário local são res- ponsáveis por tarefas de manutenção (limpeza de aquários, alimentação, preparação de terrários), com- preendendo em primeira mão a importância da con- servação dos organismos subterrâneos. Aliás, à superfície, as ameaças são bastante palpáveis, pois o cenário é preocupante: centenas de pedreiras, muitas das quais especializadas na produção de pedra de calçada, ameaçam o mundo subterrâneo: apesar de visualmente este tipo de extracção de inertes parecer menos grave do que as grandes unidades de profundi- dade, elas ocupam vastas áreas, afectando os ecossiste- mas cavernícolas e alterando os padrões de infltração de água, bem como as suas características físico-químicas. NUM DIA ANORMALMENTE QUENTE no Inverno escan- dinavo, a porta da garagem do Museu Zoológico de Copenhaga abre-se. Passando por sofisticados sistemas de segurança electrónica, chegamos finalmente às
  • 30. M A I O 2 0 1 9 do museu, tem lugar também um estudo sobre os efei- tos do aquecimento global, com espécies oriundas de Sicó, a sul de Coimbra, através do aumento gradual da temperatura ambiente (ramping) e analisando minu- ciosamente os efeitos sobre a fauna. É importante recordar que este conhecimento começa por ser obtido em condições bem diferentes, quase anta- gónicas, das do laboratório dinamarquês. De roupa clara e corte elegante, Ana Sofia Reboleira analisa agora à lupa animais que “não existem” (para a ciência), mas recorda que a “prospecção de taberna” é uma parte importante do processo. É um termo curioso. Evoca as ocasiões em que os membros da comunidade científica, ao balcão dos cafés e tabernas, de copo na mão, conversam com pastores, agricultores e habitantes locais que conhecem o terreno e desvendam a localização de cavidades que poderão ser depois exploradas. As lamacentas, escuras e húmidas grutas de onde pro- vêm estes insuspeitos animais podem estar a milhares de quilómetros de distância, mas, de olhos postos num microscópio electrónico de varrimento, com ampliação máxima de 400 mil vezes, a investigadora recorda com admiração o seu mais ilustre precursor, Barros Machado, o pai da bioespeleologia nacional e autor do “Inventário das Cavernas de Portugal”. Quarenta anos depois, esse trabalho pioneiro ainda é uma referência! Em jovem, Barros Machado explorou mais de trezen- tas grutas, com o irmão Bernardino (nas décadas de 1930 e 1940). Neto do presidente da República Bernar- dino Machado, o seu incansável trabalho foi dificultado por motivos políticos (o avô vivia então um exílio forçado entre Espanha e França por desavenças com o governo que emergiu do golpe de Estado de 1926) e o cientista acabou por passar também uma larga temporada em Angola. As suas explorações eram épicas: percorria as serranias de norte a sul, montado em burros e progredia pelas grutas à luz de velas, preso a cordas artesanais. COM ACESSOS BEM MAIS FÁCEIS, AnaSofiaReboleira eamestrandaRitaEusébioestãoderegressoàsentra- nhas de terras algarvias, em Loulé, contorcendo-se por buracos apertados, com recurso a complexos sistemas de cordas. A jornada é de progressão maio- ritariamente vertical. A busca de animais quase invi- síveis continua, com a excitação própria de quem sabe que cada visita pode desvendar novos segredos. Cada dia de campo pode fazer a diferença dado o desconhecimento e falta de sensibilidade do público para a preservação destes habitats, bem patente no cenário exterior, onde um enorme aterro ilegal de entulho cresce à vista de todos, amea- çando tapar a única entrada conhecida desta jóia cavernícola. j Ana Sofia Reboleira (em cima) nas colecções do Museu Zoológico da Universidade de Copenhaga. Desde 2014, a cientista portuguesa é investigadora da instituição e lecciona as disciplinas de Entomologia e Zoologia Terrestre.
  • 31. NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL GONÇALO PEREIRA ROSA, Director TERESA ESMATGES, Directora de Arte HELENA ABREU, Coordenadora editorial JOSÉ LUIS RODRÍGUEZ, Tratamento de imagem CONSELHO DE DIRECÇÃO PEP CABELLO E AUREA DIAZ ESCRIU CONSELHO CIENTÍFICO AIRES BARROS, Presidente; ALEXANDRE QUINTANILHA, Biologia CARLOS FABIÃO, Arqueologia CARVALHO RODRIGUES, Aerospacial CLÁUDIO TORRES, Arqueologia FRANCISCO ALVES, Arqueologia Náutica FRANCISCO PETRUCCI-FONSECA, Zoologia GALOPIM DE CARVALHO, Geologia JOÃO DE PINA CABRAL, Antropologia Social JOÃO PAULO OLIVEIRA E COSTA, História da Expansão RICARDO SERRÃO SANTOS, Ecologia Comportamental e Marinha SALOMÉ PAIS, Botânica SUSANA MATOS VIEGAS, Antropologia Social TERESA LAGO, Astronomia VANDA SANTOS, Paleontologia VIRIATO SOROMENHO-MARQUES, Ambiente VICTOR HUGO FORJAZ, Vulcanologia TRADUÇÃO E REVISÃO Bernardo Sá Nogueira, Coordenação de tradução; Bernardo Sá Nogueira, Erica da Cunha Alves e Luís Pinto, Tradução; Elsa Gonçalves, Revisão COLABORARAM NESTA EDIÇÃO António Luís Campos; Filipa Capela (Internet e redes sociais); Hugo Marques; Jorge Fontes; José Séneca SIGA-NOS TAMBÉM EM nationalgeographic.pt facebook.com/ngportugal twitter.com/ngmportugal zinio.com/NatGeoPT instagram.com/natgeo_revistaportugal Canal National Geographic Portugal no YouTube PROPRIETÁRIA/EDITORA Sede, Redacção e Publicidade RBA Revistas Portugal, Lda Rua Filipe Folque, 46, 4.º, 1050-114 Lisboa Tel.: (351) 213 164 200 rbaportugal@rbarevistas.pt NIF: 507 637 356 Licença de National Geographic Partners, LLC Capital social: € 9.000 CRC LISBOA: n.º 16.241 ACCIONISTAS: RBA Publicaciones, S.L.U. € 5.000 (55,5%) RBA Revistas, S.L. € 4.000 (44,5%) IMPRESSÃO E ENCADERNAÇÃO Rotocayfo, S.L., Carretera de Caldas Km3 08130 Santa Perpétua de Mogoda – Barcelona ASSINATURAS VASP-PREMIUM Tel.: (351) 21 433 70 36 (de 2.ª a 6.ª feira) assinaturas@vasp.pt DISTRIBUIÇÃO VASP, Distribuidora de Publicações, SA MLP – Media Logistic Park Quinta do Grajal 2739-511 Agualva - Cacém Tel.: (351) 214 337 000 Preço no Continente (IVA incluído): € 4,95 Periodicidade: mensal Depósito Legal n.º 160242/01 ISSN 2182-5459 Registo de imprensa n.º 123811 Tiragem média: 40.000 Estatuto editorial: nationalgeographic.pt/lei-transparencia Copyright © 2019 National Geographic Partners, LLC. 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Wolstencroft SENIOR MANAGEMENT CHIEF SCIENTIST AND SVP: Jonathan Baillie CHIEF ADMINISTRATIVE OFFICER: Tara Bunch CHIEF MARKETING OFFICER: Emma Carrasco GENERAL COUNSEL AND SECRETARY: Angelo Grima VP GLOBAL EDUCATION BUSINESS STRATEGY: Lina Gomez SVP PARTNERSHIPS: Leora Hanser VP EDUCATION PROGRAMS: Kim Hulse VP MEDIA INNOVATION: Kaitlin Yarnall BOARD OF TRUSTEES CHAIRMAN: Jean M. Case Brendan P. Bechtel, Michael R. Bonsignore, Katherine Bradley, Ángel Cabrera, Elizabeth (Beth) Comstock, Jack Dangermond, Alexandra Grosvenor Eller, Jane Lubchenco, Mark C. Moore, George Muñoz, Nancy E. Pfund, Peter H. Raven, Lyndon Rive, Edward P. Roski, Jr., Frederick J. Ryan, Jr., Anthony A. Williams, Tracy R. Wolstencroft RESEARCH AND EXPLORATION COMMITTEE CHAIRMAN: Peter H. Raven VICE CHAIRMAN: Jonathan Baillie Kamal Bawa, Justin Brashares, Ruth DeFries, Margaret Honey, Anthony Jackson, Gary Knight, Steven R. Palumbi, Andrew Revkin, Jerry A. Sabloff, Eleanor Sterling EXPLORERS-IN-RESIDENCE Sylvia Earle, Enric Sala EXPLORERS-AT-LARGE Robert Ballard, Lee R. Berger, James Cameron, J. Michael Fay, Beverly Joubert, Dereck Joubert, Louise Leakey, Meave Leakey FELLOWS Katy Croff Bell, Jim Bentley, Steve Boyes, Joe Grabowski, Kavita Gupta, Dan Hammer, Stephanie Harvey, Charlie Hamilton James, Corey Jaskolski, Heather Koldewey, David Lang, Erika Larsen, Tom Lovejoy, Arthur Middleton, Pete Muller, Alex Oberle, Sarah Parcak, Joe Riis, Paul Salopek, Joel Sartore, Shah Selbe, Brian Skerry, Martin Wikelski NATIONAL GEOGRAPHIC PARTNERS CEO Gary E. Knell SENIOR MANAGEMENT CHIEF MARKETING OFFICER: Jill Cress EDITORIAL DIRECTOR: Susan Goldberg GENERAL MANAGER NG MEDIA: David E. Miller GLOBAL NETWORKS CEO: Courteney Monroe EVP SALES AND PARTNERSHIPS: Brendan Ripp EVP BUSINESS AND LEGAL AFFAIRS: Jeff Schneider HEAD OF TRAVEL AND TOUR OPERATIONS: Nancy Schumacher CHIEF FINANCIAL OFFICER: Akilesh Sridharan BOARD OF DIRECTORS Ravi Ahuja, Jean M. Case, Bob Chapek, Nancy Lee, Kevin J. Maroni, Peter Rice, Frederick J. Ryan, Jr., Tracy R. Wolstencroft INTERNATIONAL PUBLISHING SENIOR VICE PRESIDENT: Yulia Petrossian Boyle Ariel Deiaco-Lohr, Gordon Fournier, Ross Goldberg, Kelly Hoover, Jennifer Jones, Jennifer Liu, Rossana Stella membro da ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE CONTROLO DE TIRAGEM TERESA VERA MAGALHÃES, Directora-geral PATRÍCIA ALBUQUERQUE, Chefe de publicidade patricia-albuquerque@rbarevistas.pt NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE EDITOR IN CHIEF Susan Goldberg MANAGING EDITOR, LONG FORM: David Brindley. SENIOR EDITOR, SHORT FORM: Patty Edmonds. DIRECTOR OF PHOTOGRAPHY: Sarah Leen. EDITOR, LONG FORM: David Lindsey. CREATIVE DIRECTOR: Emmet Smith. MANAGING EDITOR, SHORT FORM: Alissa Swango. SENIOR DIRECTOR, MAJOR PROJECTS: Michael Tribble INTERNATIONAL EDITIONS EDITORIAL DIRECTOR: Amy Kolczak. DEPUTY EDITORIAL DIRECTOR: Darren Smith. TRANSLATION MANAGER: Beata Kovacs Nas EDITORIAL SPECIALIST: Leigh Mitnick EDITORS ALEMANHA: Jens Schroeder. AMÉRICA LATINA: Claudia Muzzi Turullols. BRASIL: Ronaldo Ribeiro. BULGÁRIA: Krassimir Drumev. CAZAQUISTÃO: Yerkin Zhakipov. CHINA: Tianrang Mai. COREIA: Junemo Kim. CROÁCIA: Hrvoje Prćić. ESLOVÉNIA: Marija Javornik. ESPANHA: Josep Cabello. ESTÓNIA: Erkki Peetsalu. FRANÇA: Gabriel Joseph-Dezaize. GEÓRGIA: Levan Butkhuzi. HOLANDA/BÉLGICA: Arno Kantelberg. HUNGRIA: Tamás Vitray. ÍNDIA: Lakshmi Sankaran. INDONÉSIA: Didi Kaspi Kasim. ISRAEL: Daphne Raz. ITÁLIA: Marco Cattaneo. JAPÃO: Shigeo Otsuka. LÍNGUA ÁRABE: Alsaad Omar Almenhaly. LÍNGUA FARSI: Babak Nikkhah Bahrami. LITUÂNIA: Frederikas Jansonas. PAÍSES NÓRDICOS: Karen Gunn. POLÓNIA: Agnieszka Franus. PORTUGAL: Gonçalo Pereira Rosa. REPÚBLICA CHECA: Tomáš Tureček. ROMÉNIA: Catalin Gruia. RÚSSIA: Andrei Palamarchuk. SÉRVIA: Igor Rill. TAILÂNDIA: Kowit Phadungruangkij. TAIWAN: Yungshih Lee. TURQUIA: Nesibe Bat _________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________
  • 32. M A I O | E D I T O R I A L OcicloneeMoçambiqueGORONGOSA O ciclone Idai foi o mais grave no hemisfério sul desde que há registos. Entrou pelo centro de Moçambique no dia 15 de Março e causou prejuízos avultados e mais de mil mortos em quatro países. arrancadas da paisagem pela força incon- troláveldaságuas.Pelasestimativasrecen- tes, mais de mil pessoas perderam a vida em Moçambique, Madagáscar, Malawi e Zimbabwe como resultado directo da catástrofe. Na Beira, a pouco mais de cem quilómetros da Gorongosa, o ciclone pro- vocou um ciclo terrível de destruição, isolamento,fomeeatéumsurtodecólera. Durante alguns dias, o contacto com a regiãofoidifícil.MaisdemetadedoParque NacionaldaGorongosaficousubmersa.No finaldeMarço,porém,apósumasequência dediastenebrosos,surgiramluzesaofundo dotúnel.Ogovernomoçambicano,adirec- çãodaáreaprotegidaeváriasorganizações nãogovernamentaiscomeçaramacoorde- narosesforçosdesocorroeabastecimento daspopulações.Duranteareportagem,Greg Carr tinha sublinhado a missão que uma áreaprotegida,nasuavisãomoderna,deve abraçar:adefornecimentodecompetências e meios para as populações humanas vizi- nhasaentenderemcomoumaforçavivade progressoenãocomoumobstáculo. Na tragédia, o PN Gorongosa desem- penhou essa missão. Os helicópteros realizaram voos para ligar aldeias isola- das. Os vigilantes e demais funcionários ajudaram como puderam as cerca de 200 mil pessoas que vivem na zona-tampão da área protegida, levando 70 toneladas dealimentos,medicamentose,sobretudo, conforto. Teve lugar uma generosa anga- riação de fundos. No infortúnio, o PN Gorongosa foi mais um amigo dos moçambicanos. E sim: a vida selvagem, tanto quando se sabe neste momento, resistiu ao impacte do desastre natural. A maioria da fauna ter-se-á deslocado para as zonas de maior altitude, resistindo ao Idai. Areportagemquepublicamosestemês tem por isso esse valor acrescentado. AsraízesdoParqueNaturaldaGorongosa estão bem fincadas no solo. UM DOS PIORE S PE SADELOS imagináveis para uma redacção sucede quando um acontecimento imprevisto e disruptivo perturba a planificação cuidadosa de vários meses, criando um novo cenário para a realidade já descrita e tornando “velhas” as fotografias recolhidas. Na preparaçãodestaedição,experimentámos na pele este velho adágio do jornalismo. Durante meses, o fotógrafo Charlie Hamilton James e o jornalista David Quammen visitaram o Parque Nacional daGorongosa,emMoçambique,captando a extraordinária biodiversidade ali con- centrada e os esforços de promoção de desenvolvimento sustentável das comu- nidades residentes no parque ou nos limites da área protegida. No dia 15 de Março, tudo mudou. O ciclone Idai avançou pelo centro de Moçambique, devastando tudo à sua pas- sagem, naquele que se tornou o ciclone mais poderoso alguma vez registado no hemisfério sul. Dias depois, o cenário era dantesco. Estradas e pontes tinham sido NASA
  • 34. A ETERNA GENIALIDADE Te xto de C L AU D I A K A L B Fot o gra fia s d e PAO L O WO O D S E G A B R I E L E G A L I M B E RT I Quinhentos anos após a sua morte, a criatividade assombrosa e a inovação de Leonardo da Vinci na ciência, nas artes e na engenharia continuam a maravilhar-nos. 3
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  • 36. O trabalho de engenharia desta bola de cobre dourada, concluída durante a aprendizagem com o artista Andrea del Verrocchio em Florença, deixou um impacte duradouro em Leonardo da Vinci. Examinando-a em busca de danos causados por raios, Sandro Schievenin emerge da esfera, instalada no topo da Catedral de Santa Maria del Fiore. PÁGINAS ANTERIORES Pensa-se que Mona Lisa de Leonardo retrata Lisa Gherardini, mulher de Francesco del Giocondo, um mercador de seda florentino. Todos os anos, milhões de visitantes acotovelam-se para a ver no Museu do Louvre, em Paris. O quadro, protegido por uma espessa camada de vidro que tem de ser limpa com regularidade, nunca foi restaurado.
  • 37.
  • 38. L E O N A R D O 7 Em Florença, Leonardo tornou-se conhecido pelo seu talento prodigioso e recebeu as primeiras encomendas. Era “um ornamento, um símbolo de poder”, diz o estudioso Paolo Galluzzi. Nesta imagem, o artista de rua Valter Conti personifica o estatuto de celebridade de Leonardo ao passear pela Galeria dos Ofícios para posar em fotografias com os turistas. Do lado de fora das muralhas altas, os turistas tiram selfies e inspeccionam as bugigangas expostas nas lojas de lembranças. No interior, uma vez trans- posto o portal em arco e decorado com gárgulas, Leonardo conduz-me de regresso ao Renascimento. Quase consigo ouvir os sussurros do artista, ao contemplar um álbum de cabedal, encadernado em finais do século XVI, na majestosa sala das gra- vuras do castelo. Decorações de ouro adornam a lombada do volume, com seis centímetros e meio de largura. Na capa, manchada e desgastada pelas dedadas imperceptíveis de gerações sucessivas, lê-se: Disegni di Leonardo da Vinci Restaurati da Pompeo Leoni (desenhos de Leonardo da Vinci, res- taurados por Pompeo Leoni). Ninguém sabe ao certo em que circunstâncias este álbum chegou a Inglaterra, mas a sua proveniência é inequívoca: o escultor italiano Leo- ni adquiriu os desenhos de Leonardo ao filho de Francesco Melzi, aluno dedicado do artista, e encadernou-os em, pelo menos, dois volumes. Em 1690, a Encadernação Leoni, como é conhecida, foi incorporada na Royal Collection, com os seus 234 fólios mostrando as divagações da mente curiosa de Leonardo. À medida que Martin Clayton, responsável pelas gravuras e desenhos da Royal Collection Trust, vai dispondo diante de nós uma selecção das pági- nas – actualmente separadas em 60 caixas – o âmbito da temática abrangi- da por Leonardo desdobra-se de forma grandiosa: botânica, geologia, hi- dráulica, arquitectura, engenharia militar, design de vestuário, geometria, cartografia, óptica, anatomia. O artista desenhava esboços para compreen- der fenómenos desconhecidos, explorando os enigmas do universo a tinta, giz e ponta de prata. Numinstante,osséculos colidem.Éummomento emnadacomparávelàs experiênciasquejávivi. VimaoCastelodeWindsor visitaracolecçãode desenhosdeLeonardoda Vincipertencenteàrainha.
  • 39.
  • 40. Após um restauro de cinco anos, a Adoração dos Magos revela pinceladas, cores e imagens há muito escondidas sob a sujidade e o verniz escurecido. O quadro inacabado, encomendado a Leonardo em 1481, também fornece provas do processo de raciocínio do artista, incluindo modificações produzidas à medida que ia trabalhando. O quadro está exposto numa sala dos Ofícios reservada a Leonardo.
  • 41. 10 N AT I O N A L G E O G R A P H I C Os desenhos são arrebatadores pela sua lucidez. O mais pequeno, um fragmento menor do que um polegar, apresenta um tronco feminino, em poucos traços subtis. O mais icónico, ternamente traçado a sanguínea e ha- chura, representa um feto enrolado sobre si no interior do útero. Tudoépostoàprovacomprecisãovisual:umestudodepanejamentospara Nossa Senhora; morteiros bombardeando uma fortaleza; a umbra e a penum- bra de uma sombra; crânio, o coração, um pé e as variantes do rosto humano – desde a beleza radiosa de Leda às feições desgastadas de um velho. “O aspecto mais evidente dos desenhos de Leonardo, em algumas das suas folhas, é a maneira totalmente livre de saltar de um tópico para outro”, afirma Martin Clayton. “É fascinante ver uma mente trabalhar desta forma extraordinariamente abrangente.” Leonardo procurava vorazmente o conhecimento. As suas listas de tarefas incluíam entradas como “fazer óculos para ver a Lua maior” e “descrever a causa do riso”, ao mesmo tempo que tentava encontrar respostas para per- guntas como: qual a distância entre a sobrancelha e o ponto de junção do lábio com o queixo? Por que razão são as estrelas visíveis durante a noite e não durante o dia? O que separa a água do ar? Onde se localiza a alma? O que são o espirro, o bocejo, a fome, a sede e a luxúria? A riqueza dos manuscritos e desenhos de Leonardo põem a nu as engre- nagens internas do seu génio. A sua mente fértil é evocada em cada uma das sete mil folhas conservadas em Windsor, em bibliotecas de Paris, Londres, Madrid, Turim e Milão, e na colecção particular de Bill Gates. A propósito do 500.º aniversário da morte de Leonardo, que se celebra este ano, regista-se um renascimento próprio dos cadernos de apontamen- tos do artista. Vários museus organizam exposições dos esboços e peritos publicam novas análises, aprofundando a amplitude das suas criações. Algumas páginas dos cadernos de apontamentos de Leonardo estão a ser estudadas por especialistas dos próprios domínios técnicos, desde a medi- cina à engenharia mecânica, passando pela música. Recuando séculos no tempo, estão a colher novos conhecimentos, analisando a obra de Leonardo para melhor documentarem o seu próprio trabalho. Nesta época em que a ciência, a medicina e a tecnologia rompem as barreiras daquilo que pode- mos fazer e da maneira como podemos fazê-lo, os cadernos de apontamen- tos de Leonardo revelam muito que ainda precisamos de aprender. Citando as palavras de Martin Kemp, historiador da arte e especialista em Leonardo, “não houve um único dos seus antecessores ou contemporâneos que tivesse produzido algo semelhante em âmbito, fulgor especulativo e in- tensidade visual. E não conhecemos nada verdadeiramente comparável nos séculos que se seguiram.” os pais de leonardo não eram casados quando ele nasceu no dia 15 de Abril de 1452, perto de Vinci, uma vila situada numa colina da zona rural da Toscana, entre Florença e Pisa. Na opinião de muitos, a sua mãe foi Caterina di Meo Lippi, uma camponesa local. O pai, Ser Piero da Vinci, beneficiava do elevado estatuto de notário, uma carreira profissional potencialmente previsível para Leonardo, não fosse a circunstância de o nas- cimento ter ocorrido fora do casamento. A vila de Vinci funcionou como pano de fundo inspirador para este rapaz dotado de ampla visão. Do alto de uma açoteia do castelo da aldeia, datado do século XII, a paisagem da Toscana revela-se hoje como teria sido na ju- ventude de Leonardo: olivais, colinas sombrias e uma serrania ao largo da costa ocidental de Itália. OS DESENHOS DE LEONARDO Milhares de esboços, observações e dúvidas (anotadas numa distinta escrita invertida) mostram a interminável busca de conhecimento de Leonardo. Muitas das páginas originais perderam-se. As que restam, muitas das quais compiladas em cadernos, revelam uma interacção fluida entre os seus estudos científicos meticulosos e a sua arte monumental. LEONARDO O anatomistaDecidido a compreender cada fibra do corpo, Leonardo dissecou cadáveres humanos e animais. Nesta folha, desenhou os ossos e músculos do braço, ombro e pé. Leonardo tencionava publicar um tratado anatómico, mas nunca o fez. Caso o tivesse feito, poderia ter sido reconhecido como o fundador da anatomia contem- porânea, distinção posteriormente atribuída a Andreas Vesalius. ROYAL COLLECTION TRUST/© SUA MAJESTADE, A RAINHA ISABEL II, 2018(Continua na pg. 18)
  • 42.
  • 43.
  • 44. O ANATOMISTA DE HOJE Michael Grimaldi (ao centro), director de desenho da Academia de Arte de Nova Iorque, adorava Leonardo desde a infância. Numa colaboração com a Faculdade de Medicina da Universidade Drexel, os alunos de arte de Grimaldi (com batas de laboratório brancas emprestadas) juntam-se aos alunos de medicina (batas coloridas) para examinarem e desenharem o corpo humano. As dissecações têm muito mais impacte do que as palestras, diz Michael Grimaldi.
  • 45. ca 1473 Tobias e o Anjo ca 1473-74 Anunciação ca 1479-1481 Adoração dos Magos ca 1483-1490 Virgem dos Rochedos ca 1485 Retrato de um Músico ca 1504-07 Salvator Mundi ca 1501-07 Virgem do Fuso Sandro Botticelli Pormenor de Nascimento de Vénus, Botticelli, 1484–86 (em baixo) Leonardo da Vinci Sandro Botticelli Em alguns casos, disputas legais e pedidos populares poderão ter levado Leonardo a criar múltiplas versões da mesma obra. TOTAL DE PINTURAS 24 ca 1503-1516 Mona Lisa Leonardo da Vinci Com contribuição de Andrea del Verrocchio 2 Com colaboração 5 6 2 5 Perdida Número de trabalhos de Leonardo questionados Inacabada A B (A) (B) Linhas esbatidasLeonardo não assinava os seus quadros. A colaboração era uma prática comum no seu tempo e hoje dificulta a identificação dos autores. No entanto, as 24 obras à direita são associadas, pelo menos parcialmente, ao mestre. Duas delas, a Mona Lisa e A Última Ceia contam-se entre as mais famosas do mundo. AVANÇOS ARTÍSTICOS Especialista em sfumato O seu conhecimento da anatomia do olho influenciou o sfumato, uma técnica de sombreamento. O esbatimento do traço suaviza os contornos, criando um efeito tridimensional. Noção de espaço Observador entusiasta da natureza, Leonardo reproduziu o efeito da atmosfera em objectos distantes. Os contornos difusos da paisagem transmitem uma sensação de distância numa tela bidimensional. FERNANDO G. BAPTISTA, MONICA SERRANO E EVE CONANT, NGM; LAWSON PARKER. FONTES: MARTIN KEMP, MATTHEW LANDRUS, UNIVERSIDADE DE OXFORD; MARTIN CLAYTON, ROYAL COLLECTION TRUST; PAOLO GALLUZZI, MUSEU GALILEU. CRÉDITOS DAS PINTURAS, DE CIMA PARA BAIXO E DA ESQUERDA PARA A DIREITA: NATIONAL GALLERY, LONDRES/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRIDGEMAN; COLECÇÕES DE PINTURA DO ESTADO DA BAVIERA, MUNIQUE/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRI- DGEMAN; NATIONAL GALLERY OF ART, WASHINGTON, DC/ ART RESOURCE, NY; HERMITAGE, SÃO PETERSBURGO/BRIDGEMAN; MUSEUS VATICANOS/SCALA/ART RESOURCE, NY; UFFIZI, FLORENÇA/DE AGOSTINI/GETTY IMAGES; LOUVRE, PARIS/BRIDGEMAN; PINACOTECA AMBROSIANA, MILÃO/BRIDGEMAN; MUSEU NACIONAL DE CRACÓVIA/BRIDGEMAN;
  • 46. ca 1475-76 A Virgem do Cravo ca 1476 O Baptismo de Cristo ca 1476-78 Ginevra de' Benci  ca 1480-82 São Jerónimo no Deserto ca 1479-1480 A Virgem e o Menino ca 1490 Retrato de Cecilia Gallerani (Dama com Arminho) ca 1495-1508 Virgem dos Rochedos ca 1496-97 La Belle Ferronière ca 1495-98 A Última Ceia ca 1498-99 Sala delle Asse* ca 1501-07 Virgem do Fuso ca 1508-1517 A Virgem e o Menino com Santa Ana ca 1508-1516 São João Baptista ca 1513-16 São João Baptista** ca 1506 A Batalha de Anghiari (cópia de Peter Paul Rubens) ca 1506-08 Leda e o Cisne (cópia de Cesare da Sesto) A B 2,2m 4,4m 4,6m Ponto de fuga ideal *A IMAGEM MOSTRA UMA PEQUENA SELECÇÃO DOS MURAIS PINTADOS POR LEONARDO E PELOS SEUS ASSISTENTES NUM CONJUNTO DE SALAS DO CASTELO SFORZESCO. ** OS ATRIBUTOS DE BACO (UMA COROA DE HERA E UM BASTÃO, OU TIRSO) FORAM ACRESCENTADOS NO SÉCULO XVII POR UM ARTISTA DESCONHECIDO. Enganando o olhar Leonardo partia de um ponto de fuga ideal e depois recorria a ilusões ópticas para fazer as outras perspectivas parecerem igualmente ideais. O resultado foi um mural que parecia fazer parte natural da sala. (A) Leonardo trabalhou a perspectiva para atrair o olhar para um único ponto de fuga, neste caso incidindo sobre Jesus, para salientar o elemento mais importante da composição. (B) Ao tirar partido do ponto de fuga ideal, Leonardo permitiu que um observador ao nível do solo olhasse para a mesa vista de cima SANTA MARIA DELLE GRAZIE, MILÃO/BRIDGEMAN; NATIONAL GALLERY, LONDRES/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, ABU DHABI/BRIDGEMAN; CASTELO SFORZESCO, MILÃO/BRIDGE- MAN; COLECÇÃO PRIVADA/GETTY IMAGES; GALERIAS NACIONAIS DA ESCÓCIA/HIP/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; CHRISTIE’S IMAGES/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; WILTON HOUSE, WILSHIRE/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/BRIDGEMAN; LOUVRE, PARIS/ART RESOURCE, NY; LOUVRE, PARIS/ ERICH LESSING/ART RESOURCE NY; UFFIZI, FLORENÇA/BRIDGEMAN; ERICH LESSING/ART RESOURCE NY (PORMENORES)
  • 47.
  • 48. LEONARDO OcientistaLeonardo não se limitou a observar e a documentar o mundo natural nos seus cadernos de apontamentos. Também realizou experiências para compreender a mecânica do funcionamento. Interessou-se particularmente pelas propriedades da água. Nesta folha, desenhou o movimento da água quando perturbada por uma barreira (no topo) e ao cair de uma eclusa para um lago (em baixo), formando redemoinhos. ROYAL COLLECTION TRUST/© SUA MAJESTADE, A RAINHA ISABEL II, 2018 ACTUALIDADE Leonardo não dispunha de ferramentas para demonstrar a sua hipótese de o ar e a água partilharem propriedades. Nesta imagem, Gary Settles, da Universidade Estadual da Pensilvânia, usa a técnica de imagem schlieren para visualizar o indiscernível: a turbulência na atmosfera. Em Vinci, este panorama é conhecido como orizzonti geniali, ou “hori- zontes de génio”, afirma Stefania Marvogli, do Museu Leonardiano. É uma duradoura alusão a Leonardo. Manta de retalhos de tipos diversos de solo reúnem-se para formar um todo coerente. A paisagem reflecte as ligações que Leonardo procurava na natureza: padrões de unificação do universo. Algures durante a adolescência, é provável que o pai reconhecesse os seus dotes artísticos e mostrasse os seus desenhos a um cliente, o artista Andrea del Verrocchio, que aceitou receber Leonardo como aprendiz na sua oficina de Florença. Leonardo suplantou os seus pares desde o início e não tardou a suplantar o próprio mestre. A mais antiga das obras conhecidas de Leonardo, uma paisagem desenhada a pena do vale do Arno, data de 1473 e foi produzida quando o pintor tinha 21 anos. Passados alguns anos, já recebia as primei- ras encomendas: um retábulo para uma capela no Palazzo della Signoria e a pintura A Adoração dos Magos para um grupo de monges agostinhos. Leonardo deixou-nos poucas memórias da sua vida, mas conseguimos vislumbrar o homem. Era quase certamente homossexual: os seus compa- nheiros de toda a vida eram do sexo masculino e foi duas vezes acusado de sodomia. Amigo dos animais, comprava aves engaioladas no mercado para depois as libertar. Canhoto e bonito, era admirado pela sua generosidade de espírito e requinte social. Seria certamente divertido tê-lo como convidado num jantar, conjectura Gary Radke, professor emérito de história da arte. “Não era um desses génios imperscrutáveis, meditabundos e resmungões.”
  • 49. 18 N AT I O N A L G E O G R A P H I C Ao longo da sua carreira de 46 anos, passada sobretudo em Florença e Milão, Leonardo sentiu-se seduzido pelo conhecimento, movido por um olhar permanentemente curioso e determinado a segui-lo. Estudou latim, coleccionou poesia e leu Euclides e Arquimedes. Enquanto os outros se entregavam ao perceptível, ele esquadrinhava minudências – ângulos geo- métricos, a dilatação da pupila – saltando de uma disciplina para a outra e procurando ligações entre elas. Desenhava esboços de flores e máqui- nas voadoras, projectava equipamentos de guerra para o duque Ludovico Sforza, seu patrono, construía ornamentos teatrais com penas de pavão e elaborou um plano para desviar o Arno entre Florença e Pisa. Leonardo documentava tudo com um espantoso nível de pormenor, no verso e no canto dos papéis, com apontamentos minúsculos escritos à mão para serem lidos com um espelho, da direita para a esquerda. Algumas des- tas páginas existem hoje como folhas avulsas. Outras foram encadernadas nos volumes actualmente conhecidos como cadernos de apontamentos ou códices. Não existe uma ordem evidente, nem mesmo em cada página individualizada, e temas semelhantes figuram frequentemente em folhas diferentes, completadas anos depois. Tudo isto torna difícil, até para os es- pecialistas, acompanhar o ritmo acelerado da sua mente, confessa Paolo Galluzzi enquanto folheia, maravilhado, reproduções de cadernos de apon- tamentos de Leonardo. Sempre que fazia uma observação, surgia-lhe na mente uma pergunta, que invariavelmente conduzia a outra, diz o director do Museu Galileu, em Florença. É difícil abarcar a ímpar capacidade de Leonardo para superar o trabalho dos seus antecessores: fê-lo questionando os seus temas e invalidando os seus próprios veredictos. No Codex Leicester, Leonardo investiga a manei- ra como a água chega ao topo das montanhas, acabando por rejeitar a sua convicção inicial de que o calor a atraía para cima. Em vez disso, percebeu que a água circula através da evaporação, das nuvens e da chuva. “Mais im- portante do que descobrir a forma como os riachos da montanha funcio- nam, era descobrir como… se poderia descobri-lo”, afirma o biógrafo Walter Isaacson. “Ele contribuiu para a invenção do método científico.” Para Leonardo, os preceitos da ciência (observação, hipótese e experi- mentação) eram fundamentais para a arte. Deslocava-se fluidamente entre os dois reinos, retirando lições de um para informar o outro, diz Francesca Fiorani, directora associada de artes e humanidades na Universidade de Virgínia. O seu maior talento era a capacidade de tornar o conhecimento visível”, acrescenta. “É aí que reside o seu poder.” É no estudo da anatomia que esse talento mais se evidencia. Dissecou cadáveres humanos, separando a musculatura subjacente em três dimen- sões, para ver com os próprios olhos de que maneira uma perna ou um bra- ço flectiam. Os contemporâneos de Leonardo, incluindo o seu rival Miguel Ângelo, estudaram músculos e ossos para melhorar a sua representação ar- tística do corpo humano. “Leonardo foi para além disso”, diz o historiador de ciência Domenico Laurenza, radicado em Roma. “A sua abordagem à anatomia era a de um verdadeiro anatomista.” Os dados científicos reunidos por Leonardo nos seus cadernos de apon- tamentos estão subjacentes a cada traço do seu pincel. Os estudos ana- tómicos desmontaram a biologia das expressões faciais. Quais os nervos que levam a “franzir as sobrancelhas”, ou a “fazer beicinho, ou um sorriso, ou uma expressão de espanto?”, interrogava-se nos seus apontamentos. A sua análise da luz e da sombra permitiu-lhe iluminar contornos com uma subtileza inigualável. LEONARDO O engenheiroFascinado pelos princípios da engenharia, Leonardo desenhou planos para pontes, edifícios e equipamentos militares. Acima de tudo, ansiava por desenhar uma máquina voadora para seres humanos e, por isso, passou mais de duas décadas a estudar o voo animal. Numa página do Codex Atlanticus, esboçou um projecto para uma asa mecânica. VENERANDA BIBLIOTECA AMBROSIANA/BRIDGEMAN IMAGES(Continua na pg. 28)
  • 50.
  • 51. Capacete de madeira Desenho de Leonardo 7m Manuscrito B, f 75r Manuscrito B, f 79r 2 ou 4 asas Codex Atlanticus, f 749r Voosda imaginaçãoLeonardoencontravainspiração nanatureza.Assuasobservações deavesemorcegoscontribuíram paraaperfeiçoarmáquinas voadoras–umasmaisbem- -sucedidasdoqueoutras.Asua demandaparaconcretizarovoo tripuladomanteve-oocupado durantequaseduasdécadas. AVA N Ç O S A É R E O S Piloto horizontal, c. 1488 Quase todas as partes do corpo desempenhavam um papel. As mãos e os pés faziam funcionar as asas, e a faixa para a cabeça ligada a um arnês controlava a cauda. Pára-quedas, c. 1485 Um pára-quedista britânico testou, com sucesso, o pára- -quedas de Leonardo no ano 2000, mas libertou-se do dispositivo antes de aterrar para evitar ser esmagado pelos seus 85kg. Parafuso aéreo, c. 1489 Leonardo sabia que, ao ser comprimido, o ar torna-se mais denso. Desenhou este dispositivo como entretenimento para uma festa. O conceito foi depois usado em helicópteros. Inclinómetro, c. 1485 Quando a bola está no meio, o piloto sabe que está paralelo ao solo. A campânula impede o vento de deslocar a bola. Piloto vertical, c. 1495 Neste desenho, ele experimen- tou posições verticais: “o homem também possui mais força nas pernas do que é exigido pelo seu peso”. Reparou que as asas membranosas dos morcegos exigiam menos energia do que as asas com penas. O desenho original não especifica quais as tarefas reservadas aos braços. Este design aproveita os músculos fortes das pernas para bater as asas através de um sistema de roldanas operado por suportes para os pés. O desenho original não especifica a forma como se deviam mover os braços. Batimento de asas As primeiras máquinas voadoras eram quase todas desenhadas com asas, que seriam controladas por um piloto. Depois, o artista descobriu que os seres humanos não conseguem bater asas com força suficiente para se susterem em voo. Estas máquinas não teriam funcionado.
  • 52. Banda Leme Madrid Manuscrito I, f 64r Manuscrito B, f 80r Móvel Móvel Rígido Codex Atlanticus, f 846v Batimento Voador horizontal, c. 1487-1490 A posição do piloto é uma imitação próxima da assumida pela ave em voo. Muitos desenhos de Leonardo concentravam-se num elemento essencial para o movimento das asas. Veículo voador, c. 1488-89 A princípio, muitos desenhos não eram concebidos à escala. Leonardo esboçou este veículo, fornecendo posteriormente as dimensões para uma versão maior. Quando uma perna está estendida, baixa um par de asas. A manivela manual levanta a outra. Sistema de aterragem Leonardo concebeu um sistema para levantar voo e aterrar para o seu veículo em forma de tigela que incluía escadas retrácteis e apoios com amortecedores. Planador, c. 1495-96 A secção central das asas, próxima do piloto, era rígida. As componentes exteriores flexíveis das asas, controladas por cabos, ajudavam a controlar a inclinação, navegação e curvar. Abas, c. 1489 Para minimizar a resistência e maximizar a impulsão, abas de “pele” permitiam que o ar fluísse através das asas no movimento ascendente, fechando-se no movimento descendente. Planador, c. 1495 Identificou correctamente a relação entre o centro de gravidade e o centro de pressão num planador, mas o seu projecto precisava de uma cauda para funcionar. Planar Suspeitando que os seres humanos não possuíam o rácio força-peso das aves, Leonardo alterou os seus estudos para planar em vez de bater asas. Estes dois projectos, testados na época contemporânea, funcionaram com algumas alterações.
  • 53. Comprimento: 25GatilhoCabrestante Parafuso Projéctil de pedra 21 1 3 Manuscrito B, f 98r Manivelas Rodas 2 2 3 Carroçaria blindada, c. 1487-1490 Nova abordagem a um conceito da Idade Média, o tanque de Leonardo tinha novos sistemas de movimento e um conjunto de canhões para permitir ataques com um alcance de 360 graus. Besta gigante, c. 1485-1490 Mais de trinta esboços ilustram a ambição de Leonardo para este arco capaz de lançar balas de canhão. Foi construído, mas não no seu tempo de vida. Retalhador de velas, c. 1484-86 Uma foice montada num poste de madeira gira 360 graus e, quando activada por remadores, consegue rasgar as velas e os mastros dos navios inimigos. O arco é apontado para a esquerda e para a direita, levantando a parte de trás e girando as rodas da frente. Os homens carregam o arco com uma bala de pedra de 45kg e activam o gatilho com uma alavanca ou golpe de martelo. Cabrestantes fazem rodar uma engrena- gem ligada a uma rosca que puxa para trás as cordas e o gatilho. Projécteis ovais, c. 1500-1505 Leonardo sabia que a trajectória de uma bala de canhão é influenciada pelo ar em seu redor. Para melhorar a pontaria, as balas eram bicudas, como as modernas. Ignissor automático, c. 1497-1500 A roda com bloqueio inflama a pólvora de diversas armas. Um gatilho faz girar uma roda através de uma mola. A roda em movimento raspa na pedra, provocando o calor necessário para atear a pólvora. INFORMAÇÃO SOBRE OS CRÉDITOS DOS DESENHOS DE LEONARDO EM NGM.COM/MAY2019. FERNANDO G. BAPTISTA, MONICA SERRANO, EVE CONANT; LAWSON PARKER FONTES: MARTIN KEMP, MATTHEW LANDRUS, UNIVERSIDADE DE OXFORD; PAOLO GALLUZZI, DOMENICO LAURENZA, MUSEU GALILEU; LEONARDO3; MUSEU NACIONAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA Oito homens giravam as manivelas para mover as rodas. O torreão ajuda a fazer pontaria. AVANÇOS MECANICOS Aarteda guerraPacifista e talvez vegetariano, Leonardo chamava à guerra “loucura animalesca”. No entanto, o génio artístico foi atraído para a concepção de armas pelos seus clientes e pelo desafio criativo de imaginar ferramentas capazes de aumentar a força humana. A maioria das suas armas eram muito ambiciosas e nunca foram construídas.
  • 54. Codex Atlanticus, f 149 Br 5 metros Codex Atlanticus, f 855r Codex Atlanticus, f 24r Sapatos para caminhar na água Carreta autopro- pulsionada Estrutura de palco para teatro Poço de perfuração vertical Serra hidráulica Grua Museu Britânico Ponte giratória, c. 1487-89 Uma ponte de madeira amovível poderia ser rodada 90 graus em torno de um poste estacionário para permitir a passagem de navios e travar forças inimigas. Marcador de ficheiros, c. 1480 Quando activada pela manivela, a máquina funciona automaticamente. Um martelo é levantado por uma roda e depois cai sobre um pedaço de metal que é empurrado em frente por um parafuso. Leque de projectos Pedras contrabalançam o peso da ponte até esta ficar assente em terra. O martelo, com cabeças afiadas e intermutáveis, deixa marcas em ziguezague. Leonardo inventou ou reimaginou uma variedade aparentemente interminável de máquinas. Leonardo especificou que a armação deveria ser composta por camadas de vigas, interligadas para melhorar a flexibilidade. Rolamento, c. 1497 Leonardo percebeu que a fricção limita a transferência de movimento. Os seus rolamentos eram um método engenhoso de reduzir a fricção entre as superfícies. Engrenagem em espiral, c. 1499 Leonardo concebeu uma engrenagem em espiral capaz de manter a força de uma mola enquanto esta se ia desenrolando. A questão fora problemática com os relógios. A representação artística tem um defeito: no desenho conceptual de Leonardo, as rodas giravam em direcções opostas, impedindo o movimento. Mestreem movimentoAs inovações de Leonardo eram frequentemente experiências conceptuais, desenvolvidas para clientes ou para sua própria satisfa- ção. O seu talento para a engenharia, porém, estava presente em inúmeros desenhos que tentavam melhorar peças básicas do quotidiano como o parafuso, a roda e a mola.
  • 55.
  • 56. O ENGENHEIRO MODERNO Estudantes de doutoramento no laboratório de David Lentink, em Stanford, estudam o impacte da velocidade do ar e da turbulência numa ave robótica, o PigeonBot, no interior de um túnel de vento especialmente concebido para o efeito. Os dados recolhidos ajudarão a compreender a mecânica do voo das aves.
  • 57. 28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C Leonardo eliminou os contornos tradicionais, optando por suavizar os contornos de figuras e objectos com uma técnica conhecida como sfumato. A óptica e a geometria resultaram num sofisticado sistema de perspectiva, exemplificada em A Última Ceia. Observações minuciosas permitiram-lhe retratar profundidade emocional nos sujeitos que pintava, que parecem sensíveis em vez de rígidos. A inventividade de Leonardo, porém, tinha um preço. Aborrecia os seus clientes com constantes atrasos e muitas obras ficaram por acabar, incluin- do A Adoração dos Magos. Os especialistas atribuíram esse facto ao seu entusiasmo por novos temas e ao perfeccionismo: o desafio de fazer algo superava a expectativa de o terminar. Para Leonardo, o que importa ver- dadeiramente é o processo, diz Carmen Bambach, curadora de desenhos e gravuras do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. “Não é, de todo, o resultado final.” Com efeito, quanto mais conhecimento adquiria através dos estudos apontados nos seus cadernos, mais difícil se tornava para Leonardo des- cobrir a meta final na sua arte. “À medida que pintava, sem parar, percebia que era possível criar gradações infinitesimais de tom e transição, entre a luz mais clara e intensa e a sombra mais profunda”, explica a especialista. Exames de raios X ao trabalho de Leonardo revelam alterações abundan- tes, conhecidas como pentimenti. O infinito transformou-se num conceito muito real, com implicações práticas: havia sempre mais para aprender. “Em muitos aspectos, é um processo intelectual interminável”, comenta. Isto pode ajudar a explicar o motivo pelo qual Leonardo nunca publi- cou os seus cadernos de apontamentos. Ele tencionava completar tratados sobre muitos temas, incluindo geologia e anatomia. Em vez disso, a orga- nização dos seus esboços e manuscritos ficou ao cuidado do seu fiel com- panheiro Melzi. Nas décadas seguintes à morte de Leonardo, dois terços a três quartos das suas páginas originais foram provavelmente roubadas ou perderam-se. A maioria das páginas sobreviventes começou a ser publica- da apenas no final do século XVIII, mais de duzentos anos após a sua morte. Por essa razão, diz Domenico Laurenza, “sabemos pouco sobre o legado de Leonardo como cientista”. As investigações,teses e descobertas deLeonardoforamconfiadas aos que se seguiram. Séculos mais tarde, ainda estamos a tentar acompanhá-lo. o legado dos cadernos de apontamentos de Leonardo é palpável hoje em dia. J. Calvin Coffey, chefe de cirurgia na Graduate Entry Medical School da Universidade de Limerick, na Irlanda, estava a desenvolver uma investi- gação há alguns anos quando fez uma descoberta espantosa: uma observação feita por Leonardo, por volta de 1508, confirmava uma teoria que ele tentava validar. Calvin Coffey estuda o mesentério, uma estrutura em forma de leque que liga os intestinos delgado e grosso à parede traseira do abdómen. Desde a publicação de Gray’sAnatomy, em 1858 (na altura intitulado Anatomy: Des- criptive and Surgical), que os alunos aprendiam que o mesentério era for- mado por várias estruturas separadas. Todavia, ao realizar um número crescente de cirurgias colo-rectais, Calvin Coffey começou a suspeitar que o mesentério era um órgão contínuo. Enquanto ele e os colegas examinavam a anatomia da estrutura para pro- var esta hipótese, o médico descobriu um desenho de Leonardo represen- tando o mesentério como uma estrutura ininterrupta. O momento consti- tuiu um instante de clareza. A princípio, olhou para ele e desviou o olhar. Depois olhou novamente. LEONARDO OinventorLeonardo encheu cadernos de apontamentos com invenções que nunca construiu, incluindo este dispositivo concebido para permitir aos mergulhadores respirar debaixo de água. Pacifista, Leonardo afirmava que não divulgaria como fabricar os seus dispositivos subaquáticos “por causa da natureza maldosa dos homens”. O artista temia que pudessem ser utilizados para destruir navios. BRITISH LIBRARY BOARD/ BRIDGEMAN IMAGES
  • 58.
  • 59.
  • 60. O INVENTOR DE HOJE Embora rudimentares, os projectos subaquáticos de Leonardo anteciparam equipamentos actualmente utilizados pelas forças armadas. Na cidade portuária de Messina, um membro das forças especiais da Marinha italiana treina num fato de mergulho pressurizado, capaz de atingir uma profundi- dade de 300 metros.
  • 61.
  • 62. “Fiquei boquiaberto com o que vi”, afirma. “Correlacionava-se exacta- mente com o que observávamos. É simplesmente uma obra-prima.” No resumo das conclusões da sua equipa, publicado em 2015, Calvin Coffey incluiu os desenhos de Leonardo e atribuiu-lhe os créditos no texto: “Sabemos agora que a interpretação de Da Vinci estava correcta.” O médico mostra um diapositivo do desenho de Leonardo nas suas apre- sentações científicas, maravilhando-se com a sua capacidade para disse- car o órgão na sua totalidade: uma proeza complicada devido à complexa estratificação da estrutura. “Ele foi sério na sua interpretação da natureza e da biologia”, diz Coffey. “Ainda hoje, há cirurgiões que não conseguem reproduzir o que ele fez.” A acuidade visual de Leonardo foi motivada pela sua fé inabalável nos desígnios da natureza, fosse a raiz de uma árvore ou um hipopótamo. O engenho humano, escreveu, “nunca criará invenções mais belas, nem mais simples, nem mais objectivas do que as da natureza, porque nas suas invenções nada falta e nada é supérfluo”. Cada artéria, cada tecido, cada ór- gão existia com um objectivo, uma revelação que mudou o rumo da carreira de Francis Charles Wells. Em 1977, Wells, cirurgião cardiovascular sénior no Hospital Real de Papworth, em Cambridge (Inglaterra), visitou acidentalmente uma expo- sição dos desenhos anatómicos de Leonardo na Academia Real de Artes, no bairro londrino de Piccadilly. O bilhete de entrada custava uma libra e a recompensa revelou-se incomensurável. “Foi arrebatador”, diz. LEONARDO OmúsicoMúsico talentoso, Leonardo fez investigações sobre acústica, cantou e improvisou melodias na sua lira da braccio (um instrumento de cordas curvo do Renascimento). Também desenhou vários instrumentos musicais, incluindo tambores, campainhas e madeiras. Nesta imagem, ele pensa em ideias para uma combinação de teclado e cordas conhecida como viola organista. Sławomir Zubrzycki, que construiu uma viola organista mais tarde, diz que Leonardo “desenhou um instrumento perfeito”. VENERANDA BIBLIOTECA AMBROSIANA/BRIDGEMAN IMAGES ACTUALIDADE Na sua casa de Cracóvia, na Polónia, Zubrzycki toca a viola organista que fabricou, inspirado por Leonardo. Um pedal activa quatro arcos circulares revestidos a crina de cavalo, que friccionam as cordas para criar um som melodioso.
  • 63.
  • 64. Leonardo recebeu encomendas para desenhar mapas civis e militares. Esta representação de uma região da Toscana demonstra a sua capacidade para comunicar informação geográfica através da arte. Séculos antes de a fotografia aérea e a programação de alta tecnologia revoluciona- rem a cartografia, Leonardo criou perspectivas aéreas de cidades e paisagens. ROYAL COLLECTION TRUST/© SUA MAJESTADE, A RAINHA ISABEL II, 2018 LEONARDO Ocartógrafo
  • 65. Após dissecar o corpo de um homem de 100 anos, Leonardo apresentou a primeira descrição da aterosclerose da história da medicina. “Este revesti- mento dos vasos funciona no homem como nas laranjas, cuja pele engrossa para que a polpa diminua à medida que envelhecem”, escreveu. A sua investigação sobre válvulas cardíacas, a especialidade de Francis Wells, foi igualmente presciente. Para perceber como funcionavam, Leo- nardo desenhou um modelo de vidro da válvula aórtica, cheio de água e se- mentes de erva, o que lhe permitiu conceptualizar os padrões da circulação sanguínea e a forma como as válvulas se abrem e fecham. Esses pormeno- res foram definitivamente confirmados na década de 1960. Acima de tudo, os desenhos de Leonardo abriram os olhos do cirurgião para a requintada lógica da estrutura e da mecânica do coração. Numa ma- nhã de Outono, Francis Wells estava debruçado sobre o peito aberto de um paciente na sala de operações de Papworth e chamou-me para perto dele. “Está a ver? É fabuloso”, disse, apontando para a válvula mitral. “Imagine a complexidade necessária para o organismo fabricar esta válvula.” A abor- dagem cirúrgica de Wells é guiada pela máxima que aprendeu com Leo- nardo: cada parte da complexa composição da válvula (os seus folículos, cordas e músculos papilares) tem o seu papel e foi concebida para suster as forças por ela suportadas. Isso moldou essencialmente a forma como Francis Wells remenda válvu- las lesionadas. “Vê esta peça pequenina no meu fórceps? É a corda partida”, afirma. “É a origem do problema.” O cirurgião poderia optar por remover a válvula inteira e substituí-la por um modelo artificial, uma abordagem preferida por muitos cirurgiões. Em vez disso, vejo-o meticulosamente substituir cada corda com suturas de gore-tex, preservando o máximo possível da estrutura. Leonardo não pode- ria prever uma abordagem cirúrgica, mas ensinou Francis Wells a observar cuidadosamente, a parar e pensar, e a compreender a habilidade inerente da válvula para fazer este trabalho, uma capacidade que o cirurgião procura O CARTÓGRAFO ACTUAL Sediada no estado de Virgínia (EUA), a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial usa tecnologia sofisticada para recolher dados sobre características físicas. Estes mapas fornecem informação em situações de crise. Aqui, vêem-se imagens de alta resolução da Antárctida.
  • 66. L E O N A R D O 37 conservar em cada intervenção cardíaca que realiza. “Essa foi a mudança de paradigma”, diz Wells, que compilou os seus conhecimentos num livro de 256 páginas: “The Heart of Leonardo” [sem tradução portuguesa]. A um continente de distância, o Codex de Leonardo sobre o Voo das Aves impregnou na totalidade o Laboratório de Investigação e Design Bio-Ins- pirados (BIRD) da Universidade de Stanford, dirigido pelo biólogo e enge- nheiro mecânico David Lentink. Quando o visito, David dá-me uma folha com questões exploradas por Leonardo que ele e os seus dez alunos de pós- -graduação ainda estão a tentar responder: de que modo o movimento das asas no ar gera propulsão? Como controlam os músculos das aves o bati- mento das asas? Como planam as aves? “Todas as suas perguntas ainda são relevantes”, diz o investigador. David Lentink e a sua equipa têm acesso a ferramentas de tecnologia avançada. Os sensores e a fotografia de alta velocidade permitem-lhes me- dir a força de sustentação gerada pelas aves no voo. Uma secção de um tú- nel de vento com quase dois metros, com condições personalizadas, simula uma atmosfera serena ou uma atmosfera de turbulência, fornecendo pistas sobre como as asas das aves mudam de forma. Um dos projectos mais importantes do laboratório é uma ave mecânica chamada PigeonBot, que tem asas com penas elaboradas por Laura Matloff e um sistema de controlo de rádio dirigido pelo bolseiro de pós-graduação Eric Chang. Laura utilizou um microscópio com raios X, para determinar as características das penas. O esqueleto e os conectores, que fixam as penas, foram fabricados numa impressora 3D. O PigeonBot está equipado com ace- lerómetro, giroscópio, barómetro, sensor de velocidade aérea, GPS, bússolas e radiotransmissores que passam informação sobre o voo a um computador. Encontrei-me com os dois para um teste de voo. Quando Eric Chang diz: “Pronto!”, Laura Matloff lança o robot ao ar. Vemo-lo voar cerca de dez me- tros num segundo até Eric o fazer aterrar. O PigeonBot não é só um enge- nho para dar nas vistas. O processo de retroengenharia de uma ave permite aos cientistas estudar a mecânica de voo passo a passo e compreender me- lhor a função de cada parte do corpo, tarefa que Leonardo não seria capaz de concluir. A engenharia contemporânea poderá, um dia, recompensar a curiosidade fervorosa de Leonardo respondendo aos mistérios que o fasci- naram. “Acho que vamos lá chegar”, diz David Lentink. os cadernos de apontamentos de Leonardo incluem pensamentos especulativos com potencial. Desenhos contidos no Codex Atlanticus e em vários cadernos de apontamentos mais pequenos levaram o pianista polaco Sławomir Zubrzycki a investigar. Ele ansiava por ouvir a música de Leonardo. Entremuitosinteresses,Leonardoimprovisavamelodiasnaliradabraccio, um instrumento de cordas do Renascimento, e estudava a complexidade da acústica e das composições musicais nos seus cadernos. Em 2009, Sławomir Zubrzycki deu por si hipnotizado pelos esboços de uma viola organista, um instrumento de teclas com cordas arqueadas. Cativado pela possibilidade de uminstrumentofundirduasfamíliasmusicais,opianistadecidiuconstruí-lo. Em nenhum dos desenhos Leonardo fornecia uma matriz pormenoriza- da. Durante quatro anos, Sławomir passou cinco horas por dia a investigar e a formular o seu design. Testou amostras de madeira, decidiu que pre- cisaria de 61 teclas e desvendou o enigma de como construir quatro arcos circulares revestidos a crina de cavalo, com capacidade para friccionar as cordas e gerar música. Para dar vida ao instrumento, baseou-se na mesma força vital que motivara Leonardo: a imaginação.
  • 67. 38 N AT I O N A L G E O G R A P H I C O resultado é espectacular. A graciosa viola organista de Zubrzycki alia a capacidade polifónica de um teclado – permitindo tocar várias melodias em simultâneo – ao leque de emoções dos instrumentos de cordas. Numa noite de Verão, Sławomir Zubrzycki senta-se para dar um concerto de música do Renascimento no Castelo de Kalmar, na costa meridional da Suécia. Embora a sua viola organista pareça um piano de cauda bebé, com- porta-se como um conjunto completo de cordas. Para Leonardo, só a pintura suplantava a música e esta estava mesmo acima da escultura: ele descrevia-a como figurazione delle cose invisibili, a modelação das coisas invisíveis. Para a centena de espectadores no recital de Sławomir Zubrzycki, este momento de exaltação ocorreu enquanto o Sol se punha sobre o mar Báltico, ao mesmo tempo que alguns rabiscos do ca- derno de apontamentos de Leonardo se transformavam em música. a ultima incursão de leonardo, no Outono de 1516, levou-o a Amboise, em França, onde o rei Francisco I, um grande admirador, lheofereceuumestipêndioealiberdadeparacriaroquequisesse.Aos64anos, Leonardo mudou-se para um château modesto, hoje conhecido como Clos Lucé, com muitos dos seus desenhos e os três quadros dos quais nunca se separava–SãoJoãoBaptista,AVirgemeoMeninocomSantaAnaeMonaLisa. Durante os seus anos em Clos Lucé, concebeu projectos hidráulicos para o reino, planos para uma nova residência real e encenou alegres festivida- des para o rei. No meio de tudo isto, saboreava os prazeres simples da vida. Antes de morrer, no dia 2 de Maio de 1519, aos 67 anos, Leonardo con- cluiu vários desenhos sobre o dilúvio, representando vagalhões cataclís- micos de água e vento. No final, Leonardo virou o seu olhar, como sempre, para a natureza. Actualmente, Clos Lucé é um monumento vivo a Leonardo, no meio de um enorme parque cheio de sálvia e outras plantas. As crianças brincam numa ponte parabólica oscilante e num tanque blindado semelhante à carapaça de uma tartaruga, inspirados nos cadernos de Leonardo. Cami- nhando no local num dia soalheiro, François Saint Bris, o director de Clos Lucé, afirma ter esperanças de que o local onde Leonardo passou os seus últimos anos inspire as próximas gerações. É um objectivo partilhado por muitos. Novas investigações estão a desco- brir material para alimentar os especialistas do futuro. Domenica Laurenza e Martin Kemp colaboraram numa nova análise do Codex Leicester e o seu estudo revela que este talvez influenciasse o nascimento da geologia con- temporânea. Ao fim de mais de duas décadas de investigação meticulosa sobre a vida e a obra de Leonardo, o Met’s Bambach vai publicar uma série de quatro volumes intitulada “Leonardo da Vinci Rediscovered” [A Redes- coberta de Leonardo Da Vinci]. Os cadernos de apontamentos de Leonardo começam agora a chegar ao grande público. Paolo Galluzzi é o responsável por uma elegante base de dados com motor de busca do Codex Atlanticus, o maior dos cadernos. Walter Isaacson imagina um dia em que todos serão totalmente traduzidos e digitalizados por um único consórcio internacional. “Então veremos Leo- nardo em toda a sua glória”, afirma. Da mesma forma que Leonardo não via um fim para a sua busca de co- nhecimento, os seus cadernos de apontamentos parecem estar preparados para a redescoberta e a posteridade. “Estou sempre a pensar que já fiz tudo o que tinha a fazer com Leonardo”, diz Martin Kemp, que escreve sobre este tópico há cinco décadas. “Mas ele regressa sempre.” j Nas famosas pedreiras de Carrara, no Noroeste de Itália — o local visitado por Miguel Ângelo, há cinco séculos, para escolher mármore para estátuas — encontra-se uma escultura de Leonardo. A figura, feita pela Torart, uma empresa italiana especializada em escultura robótica, é uma réplica de uma estátua do século XIX que vigia o pórtico da Galeria dos Ofícios. Os artesãos utilizam esquemas gerados por computador, bisturis robóticos, jactos de água a alta pressão e o seu próprio talento manual para fabricar reproduções e peças originais. ´
  • 68.
  • 69. LU GA R E S S E LVAG E N S UM NOVO DIA
  • 70. Te xto de D AV I D Q UA M M E N Fo tografias de CHARLIE HAMILTON JAME S DIZIMADA POR UMA LONGA GUERRA CIVIL , A VIDA SELVAGEM DO PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA ESTÁ A RECUPERAR. O FUTURO DOS ANIMAIS DEPENDE DA ESPERANÇA QUE FOR DADA ÀS COMUNIDADES QUE VIVEM NAS REDONDEZAS. EM MOÇAMBIQUE
  • 71. Aninhados na extremidade meridional do Grande Vale do Rifte, em África, os 4.000 quilómetros quadrados da Gorongosa incluem montanhas, planaltos florestados, desfiladeiros com escarpas, savanas cobertas de palmeiras e zonas húmidas. Os inselbergs de Bunga (antigos pedaços de rocha vulcânica deixados para trás pela erosão do solo mais macio em redor) interrompem a imensidão da floresta. PÁGINAS ANTERIORES Um elefante come um petisco nocturno no Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique. Muitos elefantes do parque foram abatidos e o seu marfim usado para comprar armas durante a guerra civil de 15 anos que terminou em 1992. Com a caça furtiva controlada, a população destes animais está a recuperar.
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  • 73.
  • 74. Os mabecos-africanos deixaram completamente de existir na Gorongosa durante a guerra. Com algumas populações de presas a crescer, o parque precisa de predadores. Uma matilha de 14 mabecos proveniente da África do Sul foi libertada em 2018 e está agora a contribuir para o equilíbrio do ecossistema.
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  • 76. Patos-assobiadores- -de-faces-brancas levantam voo acima de um esquadrão de pelicanos e cegonhas pousados no rio Sungué, na Gorongosa, que alimenta o lago Urema. Mesmo na época seca, o lago e os seus canais tributários acolhem um número abundante de aves.
  • 77. 48 N AT I O N A L G E O G R A P H I C Jacinta Sainet Miquirosse cuida do lume para cozinhar em sua casa, na serra da Gorongosa. Durante décadas, as comunidades serranas viveram uma existência precária, cortando árvores para cultivar milho, a sua cultura de sustento. Agora, Jacinta e os seus vizinhos participam num projecto do parque que introduziu o cafeeiro como cultura nas suas explorações agrícolas, contribuindo simultaneamente para a reflorestação da montanha com árvores de sombra. UMA MANHÃ QUENTE do final da estação seca, no início de Novembro, um helicóptero vermelho e preto deslocava-se velozmente para leste, sobre- voando a savana coberta de vegetação do Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique. O piloto veterano Mike Pingo, originário do Zimbabwe, controlava a manete. Louis van Wyk, especialista sul-africano em captura de animais selvagens, tinha o corpo parcialmente do lado de fora do habitáculo e segurava uma arma de cano longo com dardos carregados de anestésicos. Ao lado de Mike Pingo, sentava-se Dominique Gonçalves, uma jovem ecologista moçambicana que é responsável pela gestão dos elefantes no parque. Mais de 650 elefantes vivem actualmente na Gorongosa, um aumento robusto desde os anos da guerra civil no país (1977-1992), período em que a maioria dos elefantes do parque foi chaci- nada e a sua carne e marfim vendidos para com- prar armas e munições. Com a população de elefantes novamente em recuperação, Domini- que queria instalar um marcador de GPS numa fêmea adulta de cada grupo matriarcal. Seleccionou um animal de uma manada que corria numa clareira, onde as árvores cresciam com pouco espaço entre si. Mike Pingo condu- ziu o helicóptero para perto do solo, tanto quan- to as árvores o permitiam. Dez elefantes adultos – com crias pequenas a seu lado e acompanha- dos de perto por juvenis – fugiram do ronco dos rotores. Embora obrigado a disparar a uma distância superior à habitual, Louis van Wyk acertou com um dardo no quadril direito da fê- mea escolhida. N LUGARES SELVAGENS O Parque Nacional da Gorongosa é um parceiro de conservação da iniciativa Últimos Lugares Selvagens da National Geographic Society.
  • 78. G O R O N G O S A 49 Mike pousou e os dois especialistas saltaram do helicóptero, avançando pelo meio do capim espe- zinhado até alcançarem a fêmea sedada. Minu- tos mais tarde, chegou uma equipa de terra com equipamento mais pesado, técnicos auxiliares e um vigilante da natureza armado. Dominique Gonçalves fixou um pequeno pau na ponta da tromba do elefante, abrindo-a de modo a garan- tir uma respiração desobstruída. Deitado sobre o flanco direito, o animal começou a ressonar alto. Um técnico recolheu uma amostra de sangue de uma veia da orelha esquerda. Outro técnico aju- dou Louis a instalar a coleira de marcação logo abaixo do pescoço da fêmea. Dominique recolheu um esfregaço de saliva do animal e um esfregaço rectal, guardando-os em frascos e selando-os. Calçou uma luva de plástico no braço esquerdo e inseriu-o profun- damente no recto do animal, retirando um pu- nhado de fezes fibrosas cor de ocre que seriam utilizadas para analisar a composição do regi- me alimentar do elefante. O grande flanco do animal subia e descia suavemente, ao ritmo do murmúrio de trombone emitido pela tromba. “Louis, podes ver se está prenhe?”, perguntou a investigadora. “Falta pouco para parir”, respondeu Louis de- pois de analisar o leite aguado que escorria dos úberes distendidos da fêmea. Este artigo foi apoiado pela Wyss Campaign for Nature, que está a colaborar com a National Geographic Society e outras organizações para ajudar a proteger 30% do nosso planeta até 2030.
  • 79. 50 N AT I O N A L G E O G R A P H I C da vizinha Rodésia (actual Zimbabwe) e da Áfri- ca do Sul. Quando o exército nacional avançou para confrontá-los, travaram-se combates no terreno, ataques com foguetes à sede do parque. Registou-se uma carnificina na savana. Além do massacre de elefantes, milhares de zebras e outros animais de grande porte foram mortos para consumo da sua carne ou por mera diversão. Uma trégua travou a guerra em 1992, mas a caça furtiva continuou e mesmo as comu- nidades vizinhas instalavam armadilhas para capturar quaisquer animais comestíveis que restassem. Na viragem para o século XXI, o Par- que Nacional da Gorongosa estava arruinado. As circunstâncias eram igualmente sombrias para as aldeias em redor da Gorongosa. Cerca de cem mil pessoas viviam num território que os responsáveis pelo ordenamento classificam actualmente como zona-tampão – a maioria das famílias trabalhava na produção de milho e de outras culturas de subsistência, mal conseguin- do alimentar-se. As crianças careciam de ensino e cuidados de saúde. O crescimento da população de elefantes é apenas uma parte das boas notícias relativas à Gorongosa. A maioria dos animais de grande porte, incluindo leões, búfalos-africanos, hipo- pótamos e gnus, existe agora em número muito superior ao registado em 1994, pouco depois do fim da guerra. No reino da conservação, no qual demasiados indicadores anunciam pessimismo e desespero, o sucesso em grande escala é raro. Louis van Wyk acabou de ajustar a coleira de marcação e Dominique Gonçalves arrumou as amostras. Foi injectado um fármaco na veia da orelha para despertar o animal e a equipa recuou até uma distância segura. Passado um minuto, a fêmea levantou-se, abanando a cabe- ça ensonada, e afastou-se a passos largos, jun- tando-se à manada. A monitorização dos dados informará Dominique e os colegas sobre os pa- drões de deslocação dos elefantes, alertando-os caso a manada atravesse uma fronteira do par- que em direcção a um campo agrícola, permi- tindo assim ao agricultor tomar medidas para salvar as suas culturas. É assim que funciona o Projecto de Restauro da Gorongosa, uma parceria iniciada em 2004 entre o governo moçambicano e a Fundação Gregory C. Carr, sediada nos EUA. Para que ele- fantes, hipopótamos e leões prosperem num parque delimitado, é preciso garantir que os seres humanos que vivem fora do parque tam- bém prosperem. E STENDENDO - SE SOBRE UMA PLANÍCIE de aluvião situada na extremidade meridional do Grande Vale do Rifte, em África, abrangendo savanas, florestas, zonas húmidas e um grande corpo de água chamado lago Urema, a Gorongosa foi em tempos uma reserva de caça: a administração colonial portuguesa criou-a em 1921 para a prática de desportos de lazer, removendo do território as pessoas que ali partilhavam a paisagem com a vida selvagem. Em 1960, a data da classificação como parque nacional, a Gorongosa continha cerca de 2.200 elefantes, duzentos leões e 14 mil búfalos-africanos, bem como hipopótamos, impalas, zebras, gnus e outros exemplares icóni- cos da fauna africana. No entanto, o seu isolamento revelou-se fatal. Na devastadora guerra civil de 15 anos que se se- guiu à independência em 1975, a Gorongosa ser- viu de refúgio à Resistência Nacional Moçam- bicana (ou RENAMO), as forças rebeldes com ideologia de direita que receberam apoio militar
  • 80. G O R O N G O S A 51 À ESQUERDA Os Clubes de Raparigas da Gorongosa, como este da aldeia de Mussinhá, reúnem-se diariamente, antes ou depois das aulas, em aldeias vizinhas do parque. Juntam-se mais de duas mil raparigas. As actividades do clube centram-se na alfabetização, na saúde reprodutiva e na diversão, contribuindo para manter as raparigas na escola. As suas canções promovem o ensino, os direitos das crianças e formas de evitar o VIH/Sida. EM BAIXO A força de vigilantes da natureza do parque inclui onze mulheres. Patrulhas como esta recebem instruções por SMS todas as manhãs e fazem as suas rondas, procurando armadilhas de laço e dissuadindo a actividade dos caçadores furtivos.
  • 81. No final da estação seca, um charco remanescente no canal do rio Mussicadzi atrai bandos de aves esfomeadas, incluindo garças e duas espécies de cegonhas, juntamente com um casal de inhacosos sedentos. A riqueza avícola de Gorongosa aumenta na estação húmida quando as aves migradoras chegam para se alimentarem.