A antropóloga colombiana María Elvira Díaz-Benítez pesquisou a indústria pornográfica brasileira durante sete anos por meio de observação participante. Seu livro revela detalhes íntimos sobre a rotina e as pessoas envolvidas na produção de filmes pornôs em São Paulo. Ao superar preconceitos, ela descobriu que atores e atrizes levam vidas normais fora dos sets e usam o sexo apenas como trabalho.
SEXUALIDADE NA ADOLESCÊNCIA - um tema pouco abordado
Os bastidores do pornô brasileiro revelados
1. 'NAS REDES DO SEXO'
Tese de antropóloga colombiana vira livro que revela os bastidores
do sexo pornô no Brasil
RIO - Tudo indica que a entrevista mais inquietante da antropóloga María Elvira Díaz-Benítez aconteceu num
set de filmagem pornô em São Paulo há dois anos. Na tentativa de entrevistar um ator nu que estaria viajando
dois dias depois para a Europa, ela se viu obrigada a conversar com ele ali mesmo porque a agenda do rapaz
estava lotada.
Radicada no Brasil há sete anos, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp, María
Elvira, de 34 anos, autora do recém-lançado "Nas redes do sexo - Os bastidores do pornô brasileiro", com
prefácio do antropólogo Gilberto Velho, teve que superar suas limitações para coletar o material necessário
para a tese de doutorado que defendeu no Museu Nacional (UFRJ). Como na entrevista com o tal ator nu,
homem de formas exuberantes e jeito sensual, ocorrida antes da filmagem, quando o pênis dele estava
completamente rígido e o Adônis necessitava se masturbar constantemente para não perder a excitação.
- Essa vivência mostrou como era importante eu me livrar de todos os meus preconceitos para uma pesquisa
envolvendo práticas sexuais. Porque uma coisa é falar sobre o assunto, outra é estar ali interagindo. Foi a
partir daí que senti o quanto o sexo mexe com questões morais guardadas em nosso íntimo.
Mas quando percebeu que tudo aquilo fazia parte da rotina de trabalho do ator, ela ficou mais tranquila.
- Eu estava trabalhando, ele também. E a partir do momento em que compreendi que o sexo era o material de
trabalho desse universo, não tive maiores desafios - explica a antropóloga, lembrando que a espetacularização
da sexualidade e a aparente abertura dos costumes não significam, contudo, que estamos diante do fim da
obscenidade.
Quando souberam do tema escolhido por María Elvira, parentes e amigos insistiram para que ela tomasse
cuidado com esses atores, atrizes, recrutadores, diretores pornôs e até potentes dublês de pênis.
- No início, esses alertas me fizeram ter reservas com as pessoas, mas durante a pesquisa percebi que elas não
são tão diferentes de nós, são gente como a gente. Fiz até boas relações. E, assim, modifiquei minha maneira
de enxergar essas pessoas.
Mesmo tentando parecer invisível, quando estava observando o trabalho nos sets de filmagem, María Elvira
passou por outras saias-justas. Por exemplo, quando duas atrizes que participariam de uma cena lésbica
caminhavam nuas pelo set e uma delas se trancou no banheiro para fazer sua higiene íntima diante do olhar
indiferente de uma equipe composta por seis homens. Como as paredes eram de vidro, os homens podiam
observar tudo, apesar de não demonstrarem nenhum tesão. Depois de algumas horas de filmagem, María Elvira
teve vontade de fazer xixi.
- Eu estava com vergonha porque as paredes do banheiro eram transparentes, mas não teve jeito. E assim,
quando vi que não tinha ninguém perto entrei no banheiro e estava quase terminando quando apareceu o
motorista da equipe. Ao me ver, tapou os olhos com as mãos e saiu rápido, pedindo mil desculpas.
Quando decidiu pesquisar sobre pornografia, María Elvira não imaginou que seria profundamente modificada
por esse universo cheio de vergonhas. Seu livro é o resultado da primeira pesquisa sobre pornografia feita no
Brasil baseada na observação participante. Mas o que é observação participante? Trata-se de um método
antropológico no qual o pesquisador convive com as pessoas envolvidas, participando do cotidiano. A maioria
dos entrevistados mora em São Paulo, onde foi feita a pesquisa de campo.
- São Paulo é a cidade brasileira que tem o maior número de produtoras e distribuidoras do gênero - explica a
antropóloga, que organizou a coleção "Prazeres dissidentes" (Garamond/Clam) e se interessa principalmente
pelas relações étnico-raciais, gênero, pornografia e práticas sexuais dissidentes, como o sadomasoquismo, a
pedofilia e a zoofilia.
Mas quem são as pessoas que transitam por este universo? De onde elas vêm? Por que fazem esse tipo de
trabalho?
- São pessoas como nós, com a diferença de que trabalham nesse mundo. E todas são bem diferentes entre si,
têm vidas privadas, visitam os pais, são casadas, têm filhos. Algumas são católicas, outras da umbanda.
Entrevistado pela autora, o recrutador Zilio classifica os indivíduos que chegam às redes de produção pornô
em quatro níveis: A, B elevado, B e C.
- No nível A estão pessoas que têm família, uma vida social razoável, uma casa, têm tudo, mas têm a fantasia
de fazer algum tipo de coisa voltada para a pornografia - diz Zilio. - Eu já tive filhos de delegados, filhos de
militar, filhos de médicos que fizeram filme. São pessoas escolarizadas até. Muitos fazem Educação Física,
Direito, Administração, Jornalismo.
A autora também passeia por assuntos controversos. Como a migração de travestis para a Europa, o lugar das
transexuais e das práticas bizarras nessas redes, o valor dos cachês. E explica que o uso da camisinha é o fator
que mais altera os valores do cachê.
2. - Um ator experiente sabe que quando os valores oferecidos são mais baixos que R$ 500 por cena, o sexo
naquele filme será feito com camisinha. Valores mais altos denotam uma ambiguidade em relação ao uso do
preservativo. Geralmente, cachês acima de R$ 800 significam que o uso da camisinha está dispensado.
No caso do cachê maior está implícita uma noção de risco.
- A maioria dos atores que ficam famosos no pornô não usa camisinha, os produtores preferem.
Nesse mercado estigmatizado, os homens circulam mais à vontade. Ao contrário da maioria das mulheres, que
insiste em dizer que faz pornô por dinheiro, como se isso tirasse o peso da promiscuidade. A antropóloga conta
que a qualidade dos orgasmos femininos é celebrada por atores e diretores e as fazem se sobressair. E lembra
do dia em que estava numa filmagem e uma atriz ejaculou de uma maneira tão abundante quanto um homem.
- O diretor ficou fascinado e quando perguntei se essa tinha sido a primeira vez que assistia a uma ejaculação
feminina, ele respondeu que é raro, mas já tinha visto algumas. Mas que as mulheres têm vergonha de
demonstrar para a câmera. Nesses casos, ele sempre diz: "O que é isso, gente, vergonha de quê? O homem é
todo o contrário, ele quer mesmo é gozar" - conta María Elvira.
E conclui:
- Vivemos em um mundo de sexo e somos obrigados a falar dele.