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Revistas femininas da década de 1920 foRam usadas na difusão
                                   de um novo papel da mateRnidade | Gonçalo Junior




                                                                                      Maternidade - eliseu visconti, 1906




90   n
         setembro De 2009   n
                                PESQUISA FAPESP 163
>
Mídia




A criAção dA
          mãe modernA


                      E           squeça o instinto materno, as dicas de mães, tias e avós. Na década
                                  de 1920, ser mãe de classe média exigia principalmente estar atenta
e bem-informada sobre as orientações de como cuidar do filho estampadas nas páginas das revistas
femininas, a partir da defesa e difusão de um discurso maternalista.

Por meio de matérias e artigos e de pu-
blicidade dirigidos a mulheres, profis-
                                            cia da ciência e da razão sobre a emoção
                                            – e nesse plano ganhando sua legitimi-
                                                                                         1920: Vida Doméstica (1920-1963) e
                                                                                         Revista Feminina (1914-1936). Os ar-
sionais médicos reconheciam a presença      dade –, os médicos ofereciam um amplo        tigos assinados por médicos, explica,
de um instinto maternal inerente à na-      e diversificado estoque de ensinamen-        habitualmente recebiam títulos que
tureza feminina, mas o consideravam         tos técnicos para guiar a conduta das        reforçavam essa identidade, como
insuficiente para a criação saudável dos    mulheres na criação de seus filhos, em       “Palestra médica”, “Conselho médico”,
filhos. Os chamados médicos higienistas     substituição aos ‘antigos’ dogmas reli-      “Puericultura”, “Medicina doméstica”
se tornaram, assim, crescentemente pre-     giosos ou palpites de curiosas, vizinhas     ou “Medicina do lar”, e versavam sobre
sentes, ancorados nos pressupostos da       ou avós, considerados perniciosos e ‘ar-     todo o amplo universo infantil: da rou-
higiene – e sua concepção de saúde co-      caicos’. Usar e fazer ciência: este seria    pa ao sono, da dentição à alimentação.
mo responsabilidade individual e alvo       o novo papel social da mãe moderna”,         “Práticas corriqueiras como o banho
de processo educativo próprio. Esses        explica a médica Maria Martha de Luna        ou as brincadeiras infantis adquiriam
profissionais eram informados pelos         Freire, formada pela Universidade do         a dimensão de rituais higiênicos, ocu-
conhecimentos da eugenia e embebidos        Estado do Rio de Janeiro (Uerj), dou-        pando muitas páginas das revistas com
na atmosfera nacionalista que enxergava     tora em história das ciências e da saúde     explicações pormenorizadas dos proce-
a viabilidade brasileira através de suas    pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e          dimentos”, diz. Nesse contexto, novos
crianças. Apresentavam-se, portanto,        professora do Instituto de Saúde da          “objetos de saúde” eram apresentados e
como autoridades na promoção e na           Comunidade da Universidade Federal           seu uso estimulado como prerrogativa
manutenção da saúde das crianças.           Fluminense (UFF).                            da mãe moderna, como o termômetro
    Para isso dedicaram-se, tanto em            Maria Martha é autora da tese Mu-        doméstico e a balança.
consultórios e hospitais quanto nas pá-     lheres, mães e médicos: discurso mater-          O psiquismo da criança, desse mo-
ginas de revistas e de livros, a uma cam-   nalista em revistas femininas (Rio de        do, “passou a merecer cuidados espe-
panha sistemática em prol do exercício      Janeiro e São Paulo, década de 1920),        ciais, por exemplo, com sugestões de
de uma maternidade de base científica,      que acaba de sair em livro com o títu-       estratégias para controlar o medo e a
orientada pelos princípios médicos da       lo Mulheres, mães e médicos – Discurso       teimosia e o estímulo a leituras ‘sadias’”.
puericultura (especialidade da pedia-       maternalista no Brasil (264 páginas,         Já os costumes associados à herança
tria voltada para o acompanhamento          R$ 35), pela Editora FGV. Em seu es-         colonial, como o de embalar as crian-
do crescimento e desenvolvimento das        tudo, ela se debruçou sobre duas pu-         ças, eram fortemente condenados com
crianças). “Ao se apoiarem na suprema-      blicações importantes da década de           base nos preceitos científicos. Segundo

                                                                                        PESQUISA FAPESP 163   n
                                                                                                                  setembro De 2009   n
                                                                                                                                         91
reproDuções Do livro caricaturistas brasileiros, peDro corrêa Do lago




                                                                                                                                                                            No momento histórico em que a
                                                                                                                                                                        construção da nacionalidade adqui-
                                                                                                                                                                        ria papel central e a função maternal
                                                                                                                                                                        consolidava-se como preocupação
                                                                                                                                                                        de ordem pública, prossegue Maria
                                                                                                                                                                        Martha, a valorização da maternidade
                                                                                                                                                                        − ganhando novo significado como a
                                                                                                                                                                        valorização da própria nação brasileira
                                                                                                                                                                        − adquiriu maior força argumentativa
                                                                                                                                                                        e forneceu renovada justificativa tanto
                                                                                                                                                                        para o discurso médico quanto para o
                                                                                                                                                                        feminista. “Ao tornar as mulheres − na
                                                                                                                                                                        qualidade de mães − responsáveis pela
                                                                                                                                                                        formação dos futuros cidadãos brasilei-
                                                                                                                                                                        ros, tal concepção de maternidade lhe
                                                                                                                                                                        agregaria o status de função social, ele-
                                                                                                                                                                        vando também o prestígio dos médicos
                                                                                                                                                                        dedicados à higiene infantil. Assim, se
                                                                                                                                                                        esses profissionais enxergaram na va-
                                                                                                                                                                        lorização da maternidade um caminho
                                                                                                                                                                        para obterem reconhecimento e legiti-
                                                                                                                                                                        mação profissional, para as mulheres tal
                                                                                                                                                                        perspectiva representava uma maneira
                                                                                                                                                                        de extrapolar o espaço doméstico e me-
                                                                                                                                                                        lhorar sua posição social.”

                                                                                                                                                                        Articulistas - A qualificação das re-
                                                                                                                                                                        vistas femininas como espaço social
                                                                                                                                                                        de construção da aliança negociada
                                                                                                                                                                        entre mulheres e médicos se mostrou
                                                                                                                                                                        acertada na opinião da pesquisadora.
                                                                                                                                                                        “Concluí que a partir da dimensão
                                                                                                                                                                        compartilhada de modernidade as
                                                                        a pesquisadora, a alimentação infan-                  são de agente e receptora das práticas    revistas conformaram o ambiente de
                                                                        til foi o campo mais explorado pelas                  de puericultura.” Nesse meio tempo, ela   circulação cultural adequado para a
                                                                        matérias das revistas consultadas, prin-              acumulou reflexões e questionamentos      difusão do ideário da maternidade
                                                                        cipalmente no que se referia à defesa                 quanto às origens, aspectos ideológicos   científica.” O crescente quantitativo de
                                                                        da amamentação – lado a lado com a                    e limites da puericultura como cam-       matérias que versavam sobre a manei-
                                                                        prescrição de substitutos ao leite ma-                po de prática médica. A pesquisa para     ra científica de cuidar das crianças e a
                                                                        terno. “Ao transformar a alimentação                  o doutorado a levou a concluir que a      fidelidade das assinantes confirmavam
                                                                        em nutrição, e a cozinha em laborató-                 maternidade científica constituiu uma     o interesse das leitoras no assunto. “As
                                                                        rio, essas matérias alçavam as mulheres               das dimensões do discurso materna-        manifestações na seção de correspon-
                                                                        ao status de ‘nutricionistas da família’,             lista, ao articular tanto os princípios   dência da Revista Feminina enalteciam
                                                                        valorizando, de um lado, a função ma-                 científicos da puericultura − como        a qualidade do periódico, noticiavam
                                                                        ternal, e, de outro, facilitando o acesso à           principal ferramenta de ação médica       eventos feministas ou acontecimentos
                                                                        profissionalização feminina no campo                  − quanto os argumentos produzidos         sociais e solicitavam orientação sobre
                                                                        da nutrição.”                                         pelos movimentos feministas. “O dis-      questões de ordem variada − de moda
                                                                             Mãe de quatro filhos, Maria Martha               curso da maternidade científica, apesar   a receitas culinárias.” Já a coluna do
                                                                        conta que vivenciou as dores e alegrias               de enunciado pelos médicos, não se re-    Dr. Wittrock, em Vida Doméstica, re-
                                                                        de gestar, parir e cuidar de crianças. Co-            duziu, portanto, à autoridade destes,     cebia perguntas mais específicas sobre
                                                                        mo médica, dedicou muitos anos de sua                 mas emergiu da confluência de seus        os cuidados com as crianças, o que a
                                                                        atividade profissional à puericultura.                interesses comuns com as mulheres −       transformava em verdadeiro “consul-
                                                                        “Transitei, portanto, na dupla dimen-                 coprotagonistas da ação.”                 tório médico”.

                                                                        92   n
                                                                                 setembro De 2009   n
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mulheRes paRticipaRam ativamente da constRução
                         e difusão da mateRnidade científica

     Da mesma maneira, a progressiva         nina como representativas desse gênero        e a compatibilidade de tal atribuição
substituição dos anúncios publicitários      de periódico, o qual prevê um conjunto        com outros papéis femininos, muitas
relativos ao campo dos insumos agrí-         de atributos, no que se refere à forma e      dessas mulheres, em particular aquelas
colas e da zootecnia por reclames do         ao conteúdo, habitualmente associados         vinculadas aos movimentos feministas,
campo da alimentação infantil − par-         ao universo feminino – basicamente a          aproveitaram a concepção de materni-
ticularmente mais explícito em Vida          moda e a literatura.” Ela observa que o       dade – como dimensão exclusiva do gê-
Doméstica − representou outro sinal da       longo período de circulação – 43 anos, a      nero – para aumentar seu poder e faci-
penetração do discurso médico mater-         primeira; e 22 anos, a segunda – atestava     litar a reivindicação de outros direitos.”
nalista. “A análise do perfil dos articu-    a sua boa recepção e autorizava que fos-      Endossaram, portanto, a ideologia da
listas forneceu outro indicativo da ade-     sem tomadas por exemplares do gênero.         maternidade científica, enxergando na
quação das revistas femininas. Entre os      Foram examinados todos os exemplares          aliança com os médicos − e adesão aos
colaboradores de Vida Doméstica e Re-        das revistas produzidos na década de          princípios científicos da puericultura −
vista Feminina, encontrei representantes     1920, num total de 243 números.               meios para transformar a maternidade
da elite intelectual e médica da época,                                                    no papel social feminino.
como Aprygio Gonzaga, Osorio Lopes,          Urbano - Através dos artigos publi-               Para essas mulheres, conclui Ma-
Antonio Wittrock, J. P. Fontenelle e Oc-     cados nas revistas, foi possível para         ria Martha, o exercício da maternida-
tavio Gonzaga.” Muitos desses autores        a médica-pesquisadora perceber que            de científica, ao representar acesso ao
ocupavam cargos de direção ou funções        as mulheres das camadas alta e média          espaço socialmente reconhecido da
prestigiadas em instituições públicas, co-   dos principais centros urbanos parti-         ciência − até então de domínio quase
mo o doutor Fontenelle − inspetor sani-      ciparam ativamente da construção e            exclusivamente masculino −, constituiu
tário do Departamento de Saúde Pública       difusão da ideologia da maternidade           caminho potencial de inserção dessas
e vice-presidente da Sociedade Brasileira    científica. “Ao reafirmarem a vincula-        no espaço público − via filantropia ou
de Higiene −, o que confirmava ainda a       ção da função maternal à sua natureza         trabalho profissional.                  n
capilaridade do movimento sanitarista
brasileiro, como estratégia essencial do
projeto reformista.
     Da mesma forma, Maria Martha
localizou entre os articulistas várias
escritoras renomadas, como Ana de
Castro Osorio, Chrysanthème, Con-
dessa de Pardo Bazan e Maria de Eça
− militantes de movimentos feministas
e colaboradoras de periódicos em vá-
rios países −, o que reforçou o pressu-
posto da associação entre os ideários
higienista, maternalista e feminista.
“A presença simultânea de assinaturas
tão distintas demonstra que o discurso
maternalista expresso nas revistas femi-
ninas não se originava exclusivamente
da comunidade médica, mas espelhava
a convergência de interesses por parte
de médicos e mulheres na construção
do novo papel feminino de mãe.
     Os dois primeiros anos da pesqui-
sa de Maria Martha foram dedicados
à reflexão teórica. A análise das fontes
durou cerca de um ano, seguida de mais
um ano para a redação final da tese.
“Inicialmente localizei todas as revistas
femininas que circularam na década de
1920, e, após uma análise preliminar, se-
lecionei Vida Doméstica e Revista Femi-

                                                                                         PESQUISA FAPESP 163   n
                                                                                                                   setembro De 2009   n
                                                                                                                                          93

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Fon-fon! (Rio de Janeiro 1907-58)

  • 1. Revistas femininas da década de 1920 foRam usadas na difusão de um novo papel da mateRnidade | Gonçalo Junior Maternidade - eliseu visconti, 1906 90 n setembro De 2009 n PESQUISA FAPESP 163
  • 2. > Mídia A criAção dA mãe modernA E squeça o instinto materno, as dicas de mães, tias e avós. Na década de 1920, ser mãe de classe média exigia principalmente estar atenta e bem-informada sobre as orientações de como cuidar do filho estampadas nas páginas das revistas femininas, a partir da defesa e difusão de um discurso maternalista. Por meio de matérias e artigos e de pu- blicidade dirigidos a mulheres, profis- cia da ciência e da razão sobre a emoção – e nesse plano ganhando sua legitimi- 1920: Vida Doméstica (1920-1963) e Revista Feminina (1914-1936). Os ar- sionais médicos reconheciam a presença dade –, os médicos ofereciam um amplo tigos assinados por médicos, explica, de um instinto maternal inerente à na- e diversificado estoque de ensinamen- habitualmente recebiam títulos que tureza feminina, mas o consideravam tos técnicos para guiar a conduta das reforçavam essa identidade, como insuficiente para a criação saudável dos mulheres na criação de seus filhos, em “Palestra médica”, “Conselho médico”, filhos. Os chamados médicos higienistas substituição aos ‘antigos’ dogmas reli- “Puericultura”, “Medicina doméstica” se tornaram, assim, crescentemente pre- giosos ou palpites de curiosas, vizinhas ou “Medicina do lar”, e versavam sobre sentes, ancorados nos pressupostos da ou avós, considerados perniciosos e ‘ar- todo o amplo universo infantil: da rou- higiene – e sua concepção de saúde co- caicos’. Usar e fazer ciência: este seria pa ao sono, da dentição à alimentação. mo responsabilidade individual e alvo o novo papel social da mãe moderna”, “Práticas corriqueiras como o banho de processo educativo próprio. Esses explica a médica Maria Martha de Luna ou as brincadeiras infantis adquiriam profissionais eram informados pelos Freire, formada pela Universidade do a dimensão de rituais higiênicos, ocu- conhecimentos da eugenia e embebidos Estado do Rio de Janeiro (Uerj), dou- pando muitas páginas das revistas com na atmosfera nacionalista que enxergava tora em história das ciências e da saúde explicações pormenorizadas dos proce- a viabilidade brasileira através de suas pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e dimentos”, diz. Nesse contexto, novos crianças. Apresentavam-se, portanto, professora do Instituto de Saúde da “objetos de saúde” eram apresentados e como autoridades na promoção e na Comunidade da Universidade Federal seu uso estimulado como prerrogativa manutenção da saúde das crianças. Fluminense (UFF). da mãe moderna, como o termômetro Para isso dedicaram-se, tanto em Maria Martha é autora da tese Mu- doméstico e a balança. consultórios e hospitais quanto nas pá- lheres, mães e médicos: discurso mater- O psiquismo da criança, desse mo- ginas de revistas e de livros, a uma cam- nalista em revistas femininas (Rio de do, “passou a merecer cuidados espe- panha sistemática em prol do exercício Janeiro e São Paulo, década de 1920), ciais, por exemplo, com sugestões de de uma maternidade de base científica, que acaba de sair em livro com o títu- estratégias para controlar o medo e a orientada pelos princípios médicos da lo Mulheres, mães e médicos – Discurso teimosia e o estímulo a leituras ‘sadias’”. puericultura (especialidade da pedia- maternalista no Brasil (264 páginas, Já os costumes associados à herança tria voltada para o acompanhamento R$ 35), pela Editora FGV. Em seu es- colonial, como o de embalar as crian- do crescimento e desenvolvimento das tudo, ela se debruçou sobre duas pu- ças, eram fortemente condenados com crianças). “Ao se apoiarem na suprema- blicações importantes da década de base nos preceitos científicos. Segundo PESQUISA FAPESP 163 n setembro De 2009 n 91
  • 3. reproDuções Do livro caricaturistas brasileiros, peDro corrêa Do lago No momento histórico em que a construção da nacionalidade adqui- ria papel central e a função maternal consolidava-se como preocupação de ordem pública, prossegue Maria Martha, a valorização da maternidade − ganhando novo significado como a valorização da própria nação brasileira − adquiriu maior força argumentativa e forneceu renovada justificativa tanto para o discurso médico quanto para o feminista. “Ao tornar as mulheres − na qualidade de mães − responsáveis pela formação dos futuros cidadãos brasilei- ros, tal concepção de maternidade lhe agregaria o status de função social, ele- vando também o prestígio dos médicos dedicados à higiene infantil. Assim, se esses profissionais enxergaram na va- lorização da maternidade um caminho para obterem reconhecimento e legiti- mação profissional, para as mulheres tal perspectiva representava uma maneira de extrapolar o espaço doméstico e me- lhorar sua posição social.” Articulistas - A qualificação das re- vistas femininas como espaço social de construção da aliança negociada entre mulheres e médicos se mostrou acertada na opinião da pesquisadora. “Concluí que a partir da dimensão compartilhada de modernidade as a pesquisadora, a alimentação infan- são de agente e receptora das práticas revistas conformaram o ambiente de til foi o campo mais explorado pelas de puericultura.” Nesse meio tempo, ela circulação cultural adequado para a matérias das revistas consultadas, prin- acumulou reflexões e questionamentos difusão do ideário da maternidade cipalmente no que se referia à defesa quanto às origens, aspectos ideológicos científica.” O crescente quantitativo de da amamentação – lado a lado com a e limites da puericultura como cam- matérias que versavam sobre a manei- prescrição de substitutos ao leite ma- po de prática médica. A pesquisa para ra científica de cuidar das crianças e a terno. “Ao transformar a alimentação o doutorado a levou a concluir que a fidelidade das assinantes confirmavam em nutrição, e a cozinha em laborató- maternidade científica constituiu uma o interesse das leitoras no assunto. “As rio, essas matérias alçavam as mulheres das dimensões do discurso materna- manifestações na seção de correspon- ao status de ‘nutricionistas da família’, lista, ao articular tanto os princípios dência da Revista Feminina enalteciam valorizando, de um lado, a função ma- científicos da puericultura − como a qualidade do periódico, noticiavam ternal, e, de outro, facilitando o acesso à principal ferramenta de ação médica eventos feministas ou acontecimentos profissionalização feminina no campo − quanto os argumentos produzidos sociais e solicitavam orientação sobre da nutrição.” pelos movimentos feministas. “O dis- questões de ordem variada − de moda Mãe de quatro filhos, Maria Martha curso da maternidade científica, apesar a receitas culinárias.” Já a coluna do conta que vivenciou as dores e alegrias de enunciado pelos médicos, não se re- Dr. Wittrock, em Vida Doméstica, re- de gestar, parir e cuidar de crianças. Co- duziu, portanto, à autoridade destes, cebia perguntas mais específicas sobre mo médica, dedicou muitos anos de sua mas emergiu da confluência de seus os cuidados com as crianças, o que a atividade profissional à puericultura. interesses comuns com as mulheres − transformava em verdadeiro “consul- “Transitei, portanto, na dupla dimen- coprotagonistas da ação.” tório médico”. 92 n setembro De 2009 n PESQUISA FAPESP 163
  • 4. mulheRes paRticipaRam ativamente da constRução e difusão da mateRnidade científica Da mesma maneira, a progressiva nina como representativas desse gênero e a compatibilidade de tal atribuição substituição dos anúncios publicitários de periódico, o qual prevê um conjunto com outros papéis femininos, muitas relativos ao campo dos insumos agrí- de atributos, no que se refere à forma e dessas mulheres, em particular aquelas colas e da zootecnia por reclames do ao conteúdo, habitualmente associados vinculadas aos movimentos feministas, campo da alimentação infantil − par- ao universo feminino – basicamente a aproveitaram a concepção de materni- ticularmente mais explícito em Vida moda e a literatura.” Ela observa que o dade – como dimensão exclusiva do gê- Doméstica − representou outro sinal da longo período de circulação – 43 anos, a nero – para aumentar seu poder e faci- penetração do discurso médico mater- primeira; e 22 anos, a segunda – atestava litar a reivindicação de outros direitos.” nalista. “A análise do perfil dos articu- a sua boa recepção e autorizava que fos- Endossaram, portanto, a ideologia da listas forneceu outro indicativo da ade- sem tomadas por exemplares do gênero. maternidade científica, enxergando na quação das revistas femininas. Entre os Foram examinados todos os exemplares aliança com os médicos − e adesão aos colaboradores de Vida Doméstica e Re- das revistas produzidos na década de princípios científicos da puericultura − vista Feminina, encontrei representantes 1920, num total de 243 números. meios para transformar a maternidade da elite intelectual e médica da época, no papel social feminino. como Aprygio Gonzaga, Osorio Lopes, Urbano - Através dos artigos publi- Para essas mulheres, conclui Ma- Antonio Wittrock, J. P. Fontenelle e Oc- cados nas revistas, foi possível para ria Martha, o exercício da maternida- tavio Gonzaga.” Muitos desses autores a médica-pesquisadora perceber que de científica, ao representar acesso ao ocupavam cargos de direção ou funções as mulheres das camadas alta e média espaço socialmente reconhecido da prestigiadas em instituições públicas, co- dos principais centros urbanos parti- ciência − até então de domínio quase mo o doutor Fontenelle − inspetor sani- ciparam ativamente da construção e exclusivamente masculino −, constituiu tário do Departamento de Saúde Pública difusão da ideologia da maternidade caminho potencial de inserção dessas e vice-presidente da Sociedade Brasileira científica. “Ao reafirmarem a vincula- no espaço público − via filantropia ou de Higiene −, o que confirmava ainda a ção da função maternal à sua natureza trabalho profissional. n capilaridade do movimento sanitarista brasileiro, como estratégia essencial do projeto reformista. Da mesma forma, Maria Martha localizou entre os articulistas várias escritoras renomadas, como Ana de Castro Osorio, Chrysanthème, Con- dessa de Pardo Bazan e Maria de Eça − militantes de movimentos feministas e colaboradoras de periódicos em vá- rios países −, o que reforçou o pressu- posto da associação entre os ideários higienista, maternalista e feminista. “A presença simultânea de assinaturas tão distintas demonstra que o discurso maternalista expresso nas revistas femi- ninas não se originava exclusivamente da comunidade médica, mas espelhava a convergência de interesses por parte de médicos e mulheres na construção do novo papel feminino de mãe. Os dois primeiros anos da pesqui- sa de Maria Martha foram dedicados à reflexão teórica. A análise das fontes durou cerca de um ano, seguida de mais um ano para a redação final da tese. “Inicialmente localizei todas as revistas femininas que circularam na década de 1920, e, após uma análise preliminar, se- lecionei Vida Doméstica e Revista Femi- PESQUISA FAPESP 163 n setembro De 2009 n 93