1. Revistas femininas da década de 1920 foRam usadas na difusão
de um novo papel da mateRnidade | Gonçalo Junior
Maternidade - eliseu visconti, 1906
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2. >
Mídia
A criAção dA
mãe modernA
E squeça o instinto materno, as dicas de mães, tias e avós. Na década
de 1920, ser mãe de classe média exigia principalmente estar atenta
e bem-informada sobre as orientações de como cuidar do filho estampadas nas páginas das revistas
femininas, a partir da defesa e difusão de um discurso maternalista.
Por meio de matérias e artigos e de pu-
blicidade dirigidos a mulheres, profis-
cia da ciência e da razão sobre a emoção
– e nesse plano ganhando sua legitimi-
1920: Vida Doméstica (1920-1963) e
Revista Feminina (1914-1936). Os ar-
sionais médicos reconheciam a presença dade –, os médicos ofereciam um amplo tigos assinados por médicos, explica,
de um instinto maternal inerente à na- e diversificado estoque de ensinamen- habitualmente recebiam títulos que
tureza feminina, mas o consideravam tos técnicos para guiar a conduta das reforçavam essa identidade, como
insuficiente para a criação saudável dos mulheres na criação de seus filhos, em “Palestra médica”, “Conselho médico”,
filhos. Os chamados médicos higienistas substituição aos ‘antigos’ dogmas reli- “Puericultura”, “Medicina doméstica”
se tornaram, assim, crescentemente pre- giosos ou palpites de curiosas, vizinhas ou “Medicina do lar”, e versavam sobre
sentes, ancorados nos pressupostos da ou avós, considerados perniciosos e ‘ar- todo o amplo universo infantil: da rou-
higiene – e sua concepção de saúde co- caicos’. Usar e fazer ciência: este seria pa ao sono, da dentição à alimentação.
mo responsabilidade individual e alvo o novo papel social da mãe moderna”, “Práticas corriqueiras como o banho
de processo educativo próprio. Esses explica a médica Maria Martha de Luna ou as brincadeiras infantis adquiriam
profissionais eram informados pelos Freire, formada pela Universidade do a dimensão de rituais higiênicos, ocu-
conhecimentos da eugenia e embebidos Estado do Rio de Janeiro (Uerj), dou- pando muitas páginas das revistas com
na atmosfera nacionalista que enxergava tora em história das ciências e da saúde explicações pormenorizadas dos proce-
a viabilidade brasileira através de suas pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e dimentos”, diz. Nesse contexto, novos
crianças. Apresentavam-se, portanto, professora do Instituto de Saúde da “objetos de saúde” eram apresentados e
como autoridades na promoção e na Comunidade da Universidade Federal seu uso estimulado como prerrogativa
manutenção da saúde das crianças. Fluminense (UFF). da mãe moderna, como o termômetro
Para isso dedicaram-se, tanto em Maria Martha é autora da tese Mu- doméstico e a balança.
consultórios e hospitais quanto nas pá- lheres, mães e médicos: discurso mater- O psiquismo da criança, desse mo-
ginas de revistas e de livros, a uma cam- nalista em revistas femininas (Rio de do, “passou a merecer cuidados espe-
panha sistemática em prol do exercício Janeiro e São Paulo, década de 1920), ciais, por exemplo, com sugestões de
de uma maternidade de base científica, que acaba de sair em livro com o títu- estratégias para controlar o medo e a
orientada pelos princípios médicos da lo Mulheres, mães e médicos – Discurso teimosia e o estímulo a leituras ‘sadias’”.
puericultura (especialidade da pedia- maternalista no Brasil (264 páginas, Já os costumes associados à herança
tria voltada para o acompanhamento R$ 35), pela Editora FGV. Em seu es- colonial, como o de embalar as crian-
do crescimento e desenvolvimento das tudo, ela se debruçou sobre duas pu- ças, eram fortemente condenados com
crianças). “Ao se apoiarem na suprema- blicações importantes da década de base nos preceitos científicos. Segundo
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3. reproDuções Do livro caricaturistas brasileiros, peDro corrêa Do lago
No momento histórico em que a
construção da nacionalidade adqui-
ria papel central e a função maternal
consolidava-se como preocupação
de ordem pública, prossegue Maria
Martha, a valorização da maternidade
− ganhando novo significado como a
valorização da própria nação brasileira
− adquiriu maior força argumentativa
e forneceu renovada justificativa tanto
para o discurso médico quanto para o
feminista. “Ao tornar as mulheres − na
qualidade de mães − responsáveis pela
formação dos futuros cidadãos brasilei-
ros, tal concepção de maternidade lhe
agregaria o status de função social, ele-
vando também o prestígio dos médicos
dedicados à higiene infantil. Assim, se
esses profissionais enxergaram na va-
lorização da maternidade um caminho
para obterem reconhecimento e legiti-
mação profissional, para as mulheres tal
perspectiva representava uma maneira
de extrapolar o espaço doméstico e me-
lhorar sua posição social.”
Articulistas - A qualificação das re-
vistas femininas como espaço social
de construção da aliança negociada
entre mulheres e médicos se mostrou
acertada na opinião da pesquisadora.
“Concluí que a partir da dimensão
compartilhada de modernidade as
a pesquisadora, a alimentação infan- são de agente e receptora das práticas revistas conformaram o ambiente de
til foi o campo mais explorado pelas de puericultura.” Nesse meio tempo, ela circulação cultural adequado para a
matérias das revistas consultadas, prin- acumulou reflexões e questionamentos difusão do ideário da maternidade
cipalmente no que se referia à defesa quanto às origens, aspectos ideológicos científica.” O crescente quantitativo de
da amamentação – lado a lado com a e limites da puericultura como cam- matérias que versavam sobre a manei-
prescrição de substitutos ao leite ma- po de prática médica. A pesquisa para ra científica de cuidar das crianças e a
terno. “Ao transformar a alimentação o doutorado a levou a concluir que a fidelidade das assinantes confirmavam
em nutrição, e a cozinha em laborató- maternidade científica constituiu uma o interesse das leitoras no assunto. “As
rio, essas matérias alçavam as mulheres das dimensões do discurso materna- manifestações na seção de correspon-
ao status de ‘nutricionistas da família’, lista, ao articular tanto os princípios dência da Revista Feminina enalteciam
valorizando, de um lado, a função ma- científicos da puericultura − como a qualidade do periódico, noticiavam
ternal, e, de outro, facilitando o acesso à principal ferramenta de ação médica eventos feministas ou acontecimentos
profissionalização feminina no campo − quanto os argumentos produzidos sociais e solicitavam orientação sobre
da nutrição.” pelos movimentos feministas. “O dis- questões de ordem variada − de moda
Mãe de quatro filhos, Maria Martha curso da maternidade científica, apesar a receitas culinárias.” Já a coluna do
conta que vivenciou as dores e alegrias de enunciado pelos médicos, não se re- Dr. Wittrock, em Vida Doméstica, re-
de gestar, parir e cuidar de crianças. Co- duziu, portanto, à autoridade destes, cebia perguntas mais específicas sobre
mo médica, dedicou muitos anos de sua mas emergiu da confluência de seus os cuidados com as crianças, o que a
atividade profissional à puericultura. interesses comuns com as mulheres − transformava em verdadeiro “consul-
“Transitei, portanto, na dupla dimen- coprotagonistas da ação.” tório médico”.
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4. mulheRes paRticipaRam ativamente da constRução
e difusão da mateRnidade científica
Da mesma maneira, a progressiva nina como representativas desse gênero e a compatibilidade de tal atribuição
substituição dos anúncios publicitários de periódico, o qual prevê um conjunto com outros papéis femininos, muitas
relativos ao campo dos insumos agrí- de atributos, no que se refere à forma e dessas mulheres, em particular aquelas
colas e da zootecnia por reclames do ao conteúdo, habitualmente associados vinculadas aos movimentos feministas,
campo da alimentação infantil − par- ao universo feminino – basicamente a aproveitaram a concepção de materni-
ticularmente mais explícito em Vida moda e a literatura.” Ela observa que o dade – como dimensão exclusiva do gê-
Doméstica − representou outro sinal da longo período de circulação – 43 anos, a nero – para aumentar seu poder e faci-
penetração do discurso médico mater- primeira; e 22 anos, a segunda – atestava litar a reivindicação de outros direitos.”
nalista. “A análise do perfil dos articu- a sua boa recepção e autorizava que fos- Endossaram, portanto, a ideologia da
listas forneceu outro indicativo da ade- sem tomadas por exemplares do gênero. maternidade científica, enxergando na
quação das revistas femininas. Entre os Foram examinados todos os exemplares aliança com os médicos − e adesão aos
colaboradores de Vida Doméstica e Re- das revistas produzidos na década de princípios científicos da puericultura −
vista Feminina, encontrei representantes 1920, num total de 243 números. meios para transformar a maternidade
da elite intelectual e médica da época, no papel social feminino.
como Aprygio Gonzaga, Osorio Lopes, Urbano - Através dos artigos publi- Para essas mulheres, conclui Ma-
Antonio Wittrock, J. P. Fontenelle e Oc- cados nas revistas, foi possível para ria Martha, o exercício da maternida-
tavio Gonzaga.” Muitos desses autores a médica-pesquisadora perceber que de científica, ao representar acesso ao
ocupavam cargos de direção ou funções as mulheres das camadas alta e média espaço socialmente reconhecido da
prestigiadas em instituições públicas, co- dos principais centros urbanos parti- ciência − até então de domínio quase
mo o doutor Fontenelle − inspetor sani- ciparam ativamente da construção e exclusivamente masculino −, constituiu
tário do Departamento de Saúde Pública difusão da ideologia da maternidade caminho potencial de inserção dessas
e vice-presidente da Sociedade Brasileira científica. “Ao reafirmarem a vincula- no espaço público − via filantropia ou
de Higiene −, o que confirmava ainda a ção da função maternal à sua natureza trabalho profissional. n
capilaridade do movimento sanitarista
brasileiro, como estratégia essencial do
projeto reformista.
Da mesma forma, Maria Martha
localizou entre os articulistas várias
escritoras renomadas, como Ana de
Castro Osorio, Chrysanthème, Con-
dessa de Pardo Bazan e Maria de Eça
− militantes de movimentos feministas
e colaboradoras de periódicos em vá-
rios países −, o que reforçou o pressu-
posto da associação entre os ideários
higienista, maternalista e feminista.
“A presença simultânea de assinaturas
tão distintas demonstra que o discurso
maternalista expresso nas revistas femi-
ninas não se originava exclusivamente
da comunidade médica, mas espelhava
a convergência de interesses por parte
de médicos e mulheres na construção
do novo papel feminino de mãe.
Os dois primeiros anos da pesqui-
sa de Maria Martha foram dedicados
à reflexão teórica. A análise das fontes
durou cerca de um ano, seguida de mais
um ano para a redação final da tese.
“Inicialmente localizei todas as revistas
femininas que circularam na década de
1920, e, após uma análise preliminar, se-
lecionei Vida Doméstica e Revista Femi-
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