A reportagem descreve a situação em Cabul, capital do Afeganistão, após anos de guerra e intervenções estrangeiras. A cidade está devastada e sob ocupação militar, com armas abundantes entre a população. Apesar dos esforços de reconstrução, grandes áreas permanecem sob controle dos talebãs nas montanhas. O povo sofre as consequências do longo conflito e teme novos combates.
1. e
DOMINGO, 11 DE FEVEREIRO DE 2007
A18 INTERNACIONAL O ESTADO DE S.PAULO
AFEGANISTÃO
Clima de guerra paira sobre Cabul
Após a queda do Taleban, capital afegã continua devastada e sob ocupação de forças militares estrangeiras
FOTOS: CLAUDIO MAFRA/AE
Claudio Mafra
ESPECIAL PARA O ESTADO
CABUL
O Hotel Intercontinental, em
Cabul, no Afeganistão, tem na
porta de entrada uma placa pa-
recida com as de trânsito. Eles
desenharam um fuzil russo
AK-47 dentro de uma bola ver-
melha e cruzaram uma faixa
branca por cima. Está escrito
“No Weapons”, ou seja, proibi-
do entrar com armas. Faz mui-
to sentido, já que o próprio ir-
mão do presidente Hamid Kar-
zai disse que cada família afegã
tempelomenosumfuzilKalash-
nikov e algumas pistolas: “Os
afegãos sempre têm armas em
casa, é parte da nossa cultura.”
Existem pelo menos 10 milhões
de pistolas, revólveres, metra-
lhadores e fuzis em circulação.
Para uma população por volta
de 25 milhões de habitantes, dá
a média de uma arma para cada
2 ou 3 habitantes.
Após passar por duas barrei-
ras policiais, o táxi estaciona a
20metrosdedistânciaeumpor-
teiro faz sinal para permitir a
aproximação. Parar tão longe é
precaução contra os carros-
bomba.Em2001houveumaten- PARAÍSO DESTRUÍDO – Paisagem de Cabul, a capital do Afeganistão, cercada de montanhas cobertas de neve: entreos moradores, o ódio ao Taleban, aos russos e aos americanos
tadopertodohotel,mas aexplo-
sãocausoudanosapenasnores- campo, ao longo das estradas. perguntando se os taleban são
taurante e nas janelas da frente. OcapitãodaForçaAérearus- bons de briga. O consenso foi de
Quase todos os inúmeros orga- sadissequenãogostadeconver- Um país arrasado por lutas e intervenções que são “mais ou menos” por-
nismos internacionais que ope- sar em frente de outras pessoas que “a gente quase não chega a
ram em Cabul têm seu pessoal no saguão do hotel, e vamos pa- ●● ● O Afeganistão é um país ator- sar os invasores. Ao mesmo tem- jipe pela cidade, baleado na cabe- vê-los, as batalhas são de longe,
hospedado permanentemente ra seu apartamento. Ele está mentado pelas lutas entre suas po, os paquistaneses, com ajuda ça e dependurado pelo pescoço nas montanhas” . O sargento é
no Intercontinental. É o melhor em Cabul treinando equipes de diversas etnias. Mas sua história da CIA, armavam os afegãos. Fo- em praça pública. A primeira or- mais objetivo: “Nos explosivos,
da cidade, o que não quer dizer reparo e manutenção da imen- nos últimos anos está mais rela- ram necessários dez anos para dem dada pelo rádio foi a de que eles são bons como o diabo.” To-
muita coisa, já que depois dele sa quantidade de armas que o cionada com intervenções exter- que os russos reconhecessem a os homens não poderiam mais dos concordam. Outro soldado
só mais dois outros lugares po- Exército da ex-União Soviética nas. Em abril de 1978, com o derrota humilhante e se retiras- raspar a barba e teriam de ir à fala dos perigos da guerra:
dem ser chamados de decentes. deixou na sua retirada e hoje es- apoio dos russos, o Partido Comu- sem. A invasão deixou 1 milhão mesquita, ou orar cinco vezes por “Aqui, em Cabul, até que não
Apesar da dificuldade, é possí- tãoempoder dogoverno.Acon- nista afegão deu um golpe de Es- de afegãos mortos e 7 milhões de dia. Ao povo foi imposto um fana- tem problema, mas no leste e no
vel conseguir por US$ 110 um tribuiçãorussaaoesforço inter- tado. Assumiu um governo que, refugiados. O governo títere ain- tismo religioso que espantou o sul, nas fronteiras do Paquis-
apartamentocomumalindavis- nacional para a reconstrução além das brutalidades praticadas da durou três anos até a renúncia mundo, ao mesmo tempo em que tão, é barra pesada.” Um tercei-
ta para as montanhas nevadas do país é colocar essas armas em nome de reformas estrutu- do presidente, em 1992. A partir o regime acolhia terroristas , en- ro soldado entra na conversa:
em forma para uso do novíssi- rais, ultrajou a população ao ofe- dessa data, houve um período de tre eles Osama bin Laden. Em “No Iraque é pior .” Risada ge-
FRASE mo Exército afegão. recer orações públicas para as guerra civil com a participação 2001, o Afeganistão foi invadido ral. E como são recebidos pelo
Ocapitãorussodiz,comgran- almas de Marx e Lênin. discreta de americanos, paquista- pelos EUA e aliados que depuse- povo? “Alguns gostam da gen-
‘Vocês, da imprensa, de satisfação, que os EUA não Em dezembro de 1979, a União neses, iranianos e sauditas. En- ram o governo do Taleban. Ha- te, outros não. Os meninos gos-
foram embora pensando controlam todo o país: “Apenas Soviética invadiu o país para sus- tão, em 1996, chegaram os tale- mid Karzai foi eleito presidente. tam.” Conversamos bastante,
que tudo tinha as grandes cidades, e por estes tentar o governo títere. O que ban e desarmaram as facções em Hoje, existem no Afeganistão tro- proponho trazer uma garrafa
dias mesmo perderam 13 heli- parecia facil se mostrou dificíli- luta. O antigo presidente comunis- pas de vários países sob o coman- de uísque Jack Daniels que está
terminado. Foram pra cópteros abatidos nas monta- mo. A guerra santa foi declarada ta, Najibullah, foi arrancado de do da Otan, além de forças dos no meu quarto. Eles recusam:
Bagdá e não sabem que a nhas. Treze helicópteros!” É di- e muçulmanos de todo o mundo seu refúgio nas dependências da EUA. E os taleban continuam re- “Nem pensar, e os oficiais?”
guerra aqui continua’ fícile humilhanteparaos russos dirigiram-se ao país para expul- ONU, castrado, arrastado por um sistindo nas montanhas. ● C.M. Andando pelo saguão do ho-
aceitarem o fato de que os EUA tel encontro o ator Ben Kings-
expulsaram os taleban para as ley, que trabalhou em Gandhi, A
que cercam a cidade. altas montanhas e fronteiras do Meu guia chama-se Nasin Massud, que foi o comandante entre eles uma mesquita, fica- Lista de Schindler, e outros bons
Cabul é uma cidade caótica país, e de alguma forma ganha- Baig, um rapaz de 18 anos que é da Aliança do Norte, uma coali- ram intactos. filmes. Ele veio fazer um curta-
de2milhõesdehabitantes.Poei- ram a guerra. A mesma guerra gerente de uma lojinha no sa- zão que lutou contra os russos e Um dos programas dos ofi- metragem sobre as crianças do
renta, cheia de esqueletos de que eles perderam. guão do hotel. Durante oregime os taleban. O retrato de Massud ciais americanos é sair à noite Afeganistão . O plano é vendê-lo
edifíciosbombardeados,entupi- O Afeganistão é para os rus- taleban ele foi proibido de estu- está em todos os lugares. Tale- dasua baseultraprotegida para em cidades americanas e euro-
da de carros, um comércio de- sosoqueéoVietnãparaosame- dar, e o rádio e a televisão foram ban disfarçados de jornalistas o tomar cerveja e uísque no bar péias.Odinheiroarrecadadose-
sorganizado, muita gente nas ricanos. Ele vai em frente: “Os banidos de sua vida. Jogou fora mataram dias antes dos atenta- dohotel. Dolado de fora , ao lado rá doado para a ONG Save The
ruas,muitagentevendendopro- EUA fizeram essa guerra por- suas roupas e passou a usar a dos de 11 de setembro de 2001. de três jipes Hummer e um ca- Children. Está impaciente para
dutos ocidentais espalhados no que este país é muito rico em modaobrigatória,amesmatúni- Estamos andando por uma minhão, estão os soldados e o ir embora. Como todo mundo,
chão, pessoas que olham para recursos minerais. Aqui é por ca dos taleban. Rezava o dia in- rua no centro da cidade e Nasin sargento que vieram com eles. sente um pouco de medo. Tudo
você com desconfiança. causa do minério, lá no Iraque é teiro.Agoraeleachadifícilreini- conta que naquele exato lugar, Estão parados no frio e no escu- pronto, já pode partir, um mem-
É bom não tirar fotos das fa- o petróleo. Vocês, da imprensa, ciar os estudos porque já está durante o ataque americano a ro, esperando seus superiores bro da sua equipe lhe entrega
mosas mulheres com as burcas foram embora porque pensa- trabalhando, existem contas a Cabul, ele viu um carro de com- deixarem o bar. Digo um boa- um monte de notas de US$ 20
azuis porque ninguém gosta, é ram que tudo havia terminado. pagar e o entusiasmo foi embo- bate passando em alta velocida- noite e sou muito bem recebido. que ele vai distribuindo para os
desrespeito,eoshomensbarbu- Foram para Bagdá e não sabem ra. É claro que Nasin odeia os decheiodetalebanarmados.Lo- Apertamosasmãos,estãosatis- empregados do hotel. Troca-
dos, altos, com suas longas túni- que a guerra continua.” Ele mal taleban. Também odeia os rus- go depois houve uma tremenda feitosporteremalguémdiferen- mosumapertodemãoenosdes-
cas que chegam até o chão, es- conseguedisfarçarquetorcepe- sos e já mostrou que também explosão e o carro sumiu. O que te para conversar, principal- pedimos. Boa sorte, Ben. ●
tão vigilantes. Fui aconselhado los taleban. Se pudesse, prepa- vaiodiarosamericanos.Seuúni- o impressionou foi que o fogue- mente o exótico brasileiro, que
por meu guia a esperar quando raria as armas para estourar na co entusiasmo verdadeiro é pe- te, lançado de um avião, só atin- vive no paraíso de calor, praias, † Mais informações, no
estivermos fora da cidade, no cara de quem usasse. lo grande herói afegão, Ahmed giu o carro. Os prédios em volta, mulatas e carnaval. Vou logo Caderno Cultura
va da minha intenção de entrar E o carro quebrou. Ficamos
Na estrada para o norte, o notúnelcomaquelaperuaridícu-
la. A sua resposta – “Não faço a
menor idéia” – não ajudou nada.
Meumotorista,ummeninode
20 minutos parados, tontos com
tanta fumaça, esperando algum
caminhão nos arrebentar por
trás,atéqueomeninoconseguiu
o impossível e chegamos do ou-
pesadelo do Túnel Salang
17 anos, assustado e quieto, ficou
observando.Pergunteiseestava tro lado. Depois de tanto tempo
seguro do que íamos fazer. notúnel,aluzdasmontanhasne-
Acrescenteiquepoderíamosvol- vadasdoemnosolhos.Opanora-
tar para Cabul, e que o pagaria ma é deslumbrante, você procu-
damesmaforma.Elejáhaviaen- ra respirar profundamente e re-
Pode-se imaginar afegãos, nos altos penhascos, abatendo russos como patos tradonotúnel?Emumasocieda-
de de machões, a resposta não
cuperar a compostura. Depois é
preciso tomar cuidado para, na
poderiaseroutra:sim,eleestava euforia, não sair caminhando fo-
muito seguro, já havia entrado
CABUL
OSalangfoibloqueadopelose- no túnel junto com o pai. Então FRASE
nhor da guerra Massud durante fiz a pergunta definitiva: e se o
A estrada que liga Cabul à cida- muitos anos, desesperado para carro quebrar lá dentro? “Não, o ‘Ficamos 20 minutos
de de Mazar-i-Sharif é a vitrine negar aos taleban acesso ao nor- carro é bom, não vai quebrar.” parados dentro
da desgraça russa. Dos dois la- te do país. Entrar nesse túnel é Bem, nas últimas quatro horas o do túnel, tontos com
dos a visão é de tanques, ca- uma experiência e tanto. Os tu- carro já havia parado três vezes,
nhões, e carros de combate atin- ristas são aconselhados a não fervendo no meio da estrada. tanta fumaça, esperando
gidosporfoguetes.Hoje,queima- tentar. O livro-guia diz: “Não é Quando chegou nossa vez vi algum caminhão nos
dos e enferrujados, são objeto de uma experiência para medro- queotúneleratudoquefalavam, arrebentar por trás’
brinquedo para os meninos. Po- sos.” Estou em minha segunda emaisalgumacoisa.Negraescu-
de-seimaginarosafegãos,nosal- tentativa,jáquenodiaanterioro ridão,caminhõesgemendosob o
tos penhascos que seguem a es- motorista detáxi, depois detudo peso da sua carga derrapam no ra do acostamento, onde estão
trada, abatendo os russos como acertadoemCabul,recusou-sea gelo indo de um lado para o ou- as minas. O Afeganistão, depois
patos. entrarnotúnel,mesmocomami- tro, grunhindo à frente e lançan- do Camboja, e da “terra de nin-
O percurso é muito bonito, e nha oferta de pagá-lo em dobro. do fumaça tão grossa que gruda guém” entreas duas Coréias , é o
vai-se subindo por entre as mon- Pensava em voltar com um Nis- no corpo como se fosse uma pas- lugar mais minado do mundo.
tanhas cobertas de neves eter- san 4x4, mas estou mesmo em ta. Não existe nenhum exaustor. Para voltar esperamos horas,
nas até um trecho que está api- uma perua pequena e velha. Você segue devagar naquele in- até termos certeza de que o car-
nhadodecaminhõesecarros.To- Circulei por entre os outros ferno,semenxergarnada–anão ro poderia atravessar o túnel ra-
dosestão esperandoparaentrar veículos e verifiquei que o pior ser as sombras dos caminhões –, pidamente. Nos primeiros mo-
emumtúnelrealmenteinacredi- carroeraomeu.Batinajanelade e vai patinando, quase batendo mentos – pensando nos seus pul-
tável, o famoso Salang Tunel, um Hummer dos fuzileiros ame- nas paredes, caindo nos buracos mões – você se arrepende, mas
construídoa3.400metrosdealti- ricanos.Umatenentebonitabai- deáguagelada,respirandovene- no outro dia acha que fez muito
tude, até algum tempo atrás o xouovidroelétricoeeupatetica- no puro, desesperado para que bem. Afinal, atravessar o Salang
mais alto do mundo. mente perguntei o que ela acha- ALTO RISCO – Fila de carros e caminhões na entrada do Túnel Salang os 3.500 metros acabem logo. é uma aventura. ● C.M.