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                                               DOMINGO, 11 DE FEVEREIRO DE 2007
A18 INTERNACIONAL                              O ESTADO DE S.PAULO




AFEGANISTÃO



Clima de guerra paira sobre Cabul
Após a queda do Taleban, capital afegã continua devastada e sob ocupação de forças militares estrangeiras
                                                                                                                                                                                                  FOTOS: CLAUDIO MAFRA/AE

Claudio Mafra
ESPECIAL PARA O ESTADO
CABUL

O Hotel Intercontinental, em
Cabul, no Afeganistão, tem na
porta de entrada uma placa pa-
recida com as de trânsito. Eles
desenharam um fuzil russo
AK-47 dentro de uma bola ver-
melha e cruzaram uma faixa
branca por cima. Está escrito
“No Weapons”, ou seja, proibi-
do entrar com armas. Faz mui-
to sentido, já que o próprio ir-
mão do presidente Hamid Kar-
zai disse que cada família afegã
tempelomenosumfuzilKalash-
nikov e algumas pistolas: “Os
afegãos sempre têm armas em
casa, é parte da nossa cultura.”
Existem pelo menos 10 milhões
de pistolas, revólveres, metra-
lhadores e fuzis em circulação.
Para uma população por volta
de 25 milhões de habitantes, dá
a média de uma arma para cada
2 ou 3 habitantes.
   Após passar por duas barrei-
ras policiais, o táxi estaciona a
20metrosdedistânciaeumpor-
teiro faz sinal para permitir a
aproximação. Parar tão longe é
precaução contra os carros-
bomba.Em2001houveumaten-            PARAÍSO DESTRUÍDO – Paisagem de Cabul, a capital do Afeganistão, cercada de montanhas cobertas de neve: entreos moradores, o ódio ao Taleban, aos russos e aos americanos
tadopertodohotel,mas aexplo-
sãocausoudanosapenasnores-          campo, ao longo das estradas.                                                                                                                      perguntando se os taleban são
taurante e nas janelas da frente.      OcapitãodaForçaAérearus-                                                                                                                        bons de briga. O consenso foi de
Quase todos os inúmeros orga-       sadissequenãogostadeconver-         Um país arrasado por lutas e intervenções                                                                      que são “mais ou menos” por-
nismos internacionais que ope-      sar em frente de outras pessoas                                                                                                                    que “a gente quase não chega a
ram em Cabul têm seu pessoal        no saguão do hotel, e vamos pa-     ●● ● O Afeganistão é um país ator-   sar os invasores. Ao mesmo tem-      jipe pela cidade, baleado na cabe-   vê-los, as batalhas são de longe,
hospedado permanentemente           ra seu apartamento. Ele está        mentado pelas lutas entre suas       po, os paquistaneses, com ajuda      ça e dependurado pelo pescoço        nas montanhas” . O sargento é
no Intercontinental. É o melhor     em Cabul treinando equipes de       diversas etnias. Mas sua história    da CIA, armavam os afegãos. Fo-      em praça pública. A primeira or-     mais objetivo: “Nos explosivos,
da cidade, o que não quer dizer     reparo e manutenção da imen-        nos últimos anos está mais rela-     ram necessários dez anos para        dem dada pelo rádio foi a de que     eles são bons como o diabo.” To-
muita coisa, já que depois dele     sa quantidade de armas que o        cionada com intervenções exter-      que os russos reconhecessem a        os homens não poderiam mais          dos concordam. Outro soldado
só mais dois outros lugares po-     Exército da ex-União Soviética      nas. Em abril de 1978, com o         derrota humilhante e se retiras-     raspar a barba e teriam de ir à      fala dos perigos da guerra:
dem ser chamados de decentes.       deixou na sua retirada e hoje es-   apoio dos russos, o Partido Comu-    sem. A invasão deixou 1 milhão       mesquita, ou orar cinco vezes por    “Aqui, em Cabul, até que não
Apesar da dificuldade, é possí-     tãoempoder dogoverno.Acon-          nista afegão deu um golpe de Es-     de afegãos mortos e 7 milhões de     dia. Ao povo foi imposto um fana-    tem problema, mas no leste e no
vel conseguir por US$ 110 um        tribuiçãorussaaoesforço inter-      tado. Assumiu um governo que,        refugiados. O governo títere ain-    tismo religioso que espantou o       sul, nas fronteiras do Paquis-
apartamentocomumalindavis-          nacional para a reconstrução        além das brutalidades praticadas     da durou três anos até a renúncia    mundo, ao mesmo tempo em que         tão, é barra pesada.” Um tercei-
ta para as montanhas nevadas        do país é colocar essas armas       em nome de reformas estrutu-         do presidente, em 1992. A partir     o regime acolhia terroristas , en-   ro soldado entra na conversa:
                                    em forma para uso do novíssi-       rais, ultrajou a população ao ofe-   dessa data, houve um período de      tre eles Osama bin Laden. Em         “No Iraque é pior .” Risada ge-
FRASE                               mo Exército afegão.                 recer orações públicas para as       guerra civil com a participação      2001, o Afeganistão foi invadido     ral. E como são recebidos pelo
                                       Ocapitãorussodiz,comgran-        almas de Marx e Lênin.               discreta de americanos, paquista-    pelos EUA e aliados que depuse-      povo? “Alguns gostam da gen-
‘Vocês, da imprensa,                de satisfação, que os EUA não       Em dezembro de 1979, a União         neses, iranianos e sauditas. En-     ram o governo do Taleban. Ha-        te, outros não. Os meninos gos-
foram embora pensando               controlam todo o país: “Apenas      Soviética invadiu o país para sus-   tão, em 1996, chegaram os tale-      mid Karzai foi eleito presidente.    tam.” Conversamos bastante,
que tudo tinha                      as grandes cidades, e por estes     tentar o governo títere. O que       ban e desarmaram as facções em       Hoje, existem no Afeganistão tro-    proponho trazer uma garrafa
                                    dias mesmo perderam 13 heli-        parecia facil se mostrou dificíli-   luta. O antigo presidente comunis-   pas de vários países sob o coman-    de uísque Jack Daniels que está
terminado. Foram pra                cópteros abatidos nas monta-        mo. A guerra santa foi declarada     ta, Najibullah, foi arrancado de     do da Otan, além de forças dos       no meu quarto. Eles recusam:
Bagdá e não sabem que a             nhas. Treze helicópteros!” É di-    e muçulmanos de todo o mundo         seu refúgio nas dependências da      EUA. E os taleban continuam re-      “Nem pensar, e os oficiais?”
guerra aqui continua’               fícile humilhanteparaos russos      dirigiram-se ao país para expul-     ONU, castrado, arrastado por um      sistindo nas montanhas. ● C.M.          Andando pelo saguão do ho-
                                    aceitarem o fato de que os EUA                                                                                                                     tel encontro o ator Ben Kings-
                                    expulsaram os taleban para as                                                                                                                      ley, que trabalhou em Gandhi, A
que cercam a cidade.                altas montanhas e fronteiras do        Meu guia chama-se Nasin           Massud, que foi o comandante         entre eles uma mesquita, fica-       Lista de Schindler, e outros bons
  Cabul é uma cidade caótica        país, e de alguma forma ganha-      Baig, um rapaz de 18 anos que é      da Aliança do Norte, uma coali-      ram intactos.                        filmes. Ele veio fazer um curta-
de2milhõesdehabitantes.Poei-        ram a guerra. A mesma guerra        gerente de uma lojinha no sa-        zão que lutou contra os russos e        Um dos programas dos ofi-         metragem sobre as crianças do
renta, cheia de esqueletos de       que eles perderam.                  guão do hotel. Durante oregime       os taleban. O retrato de Massud      ciais americanos é sair à noite      Afeganistão . O plano é vendê-lo
edifíciosbombardeados,entupi-          O Afeganistão é para os rus-     taleban ele foi proibido de estu-    está em todos os lugares. Tale-      dasua baseultraprotegida para        em cidades americanas e euro-
da de carros, um comércio de-       sosoqueéoVietnãparaosame-           dar, e o rádio e a televisão foram   ban disfarçados de jornalistas o     tomar cerveja e uísque no bar        péias.Odinheiroarrecadadose-
sorganizado, muita gente nas        ricanos. Ele vai em frente: “Os     banidos de sua vida. Jogou fora      mataram dias antes dos atenta-       dohotel. Dolado de fora , ao lado    rá doado para a ONG Save The
ruas,muitagentevendendopro-         EUA fizeram essa guerra por-        suas roupas e passou a usar a        dos de 11 de setembro de 2001.       de três jipes Hummer e um ca-        Children. Está impaciente para
dutos ocidentais espalhados no      que este país é muito rico em       modaobrigatória,amesmatúni-             Estamos andando por uma           minhão, estão os soldados e o        ir embora. Como todo mundo,
chão, pessoas que olham para        recursos minerais. Aqui é por       ca dos taleban. Rezava o dia in-     rua no centro da cidade e Nasin      sargento que vieram com eles.        sente um pouco de medo. Tudo
você com desconfiança.              causa do minério, lá no Iraque é    teiro.Agoraeleachadifícilreini-      conta que naquele exato lugar,       Estão parados no frio e no escu-     pronto, já pode partir, um mem-
  É bom não tirar fotos das fa-     o petróleo. Vocês, da imprensa,     ciar os estudos porque já está       durante o ataque americano a         ro, esperando seus superiores        bro da sua equipe lhe entrega
mosas mulheres com as burcas        foram embora porque pensa-          trabalhando, existem contas a        Cabul, ele viu um carro de com-      deixarem o bar. Digo um boa-         um monte de notas de US$ 20
azuis porque ninguém gosta, é       ram que tudo havia terminado.       pagar e o entusiasmo foi embo-       bate passando em alta velocida-      noite e sou muito bem recebido.      que ele vai distribuindo para os
desrespeito,eoshomensbarbu-         Foram para Bagdá e não sabem        ra. É claro que Nasin odeia os       decheiodetalebanarmados.Lo-          Apertamosasmãos,estãosatis-          empregados do hotel. Troca-
dos, altos, com suas longas túni-   que a guerra continua.” Ele mal     taleban. Também odeia os rus-        go depois houve uma tremenda         feitosporteremalguémdiferen-         mosumapertodemãoenosdes-
cas que chegam até o chão, es-      conseguedisfarçarquetorcepe-        sos e já mostrou que também          explosão e o carro sumiu. O que      te para conversar, principal-        pedimos. Boa sorte, Ben. ●
tão vigilantes. Fui aconselhado     los taleban. Se pudesse, prepa-     vaiodiarosamericanos.Seuúni-         o impressionou foi que o fogue-      mente o exótico brasileiro, que
por meu guia a esperar quando       raria as armas para estourar na     co entusiasmo verdadeiro é pe-       te, lançado de um avião, só atin-    vive no paraíso de calor, praias,    † Mais informações, no
estivermos fora da cidade, no       cara de quem usasse.                lo grande herói afegão, Ahmed        giu o carro. Os prédios em volta,    mulatas e carnaval. Vou logo         Caderno Cultura



                                                                                                                                                  va da minha intenção de entrar          E o carro quebrou. Ficamos

Na estrada para o norte, o                                                                                                                        notúnelcomaquelaperuaridícu-
                                                                                                                                                  la. A sua resposta – “Não faço a
                                                                                                                                                  menor idéia” – não ajudou nada.
                                                                                                                                                     Meumotorista,ummeninode
                                                                                                                                                                                       20 minutos parados, tontos com
                                                                                                                                                                                       tanta fumaça, esperando algum
                                                                                                                                                                                       caminhão nos arrebentar por
                                                                                                                                                                                       trás,atéqueomeninoconseguiu
                                                                                                                                                                                       o impossível e chegamos do ou-

pesadelo do Túnel Salang
                                                                                                                                                  17 anos, assustado e quieto, ficou
                                                                                                                                                  observando.Pergunteiseestava         tro lado. Depois de tanto tempo
                                                                                                                                                  seguro do que íamos fazer.           notúnel,aluzdasmontanhasne-
                                                                                                                                                  Acrescenteiquepoderíamosvol-         vadasdoemnosolhos.Opanora-
                                                                                                                                                  tar para Cabul, e que o pagaria      ma é deslumbrante, você procu-
                                                                                                                                                  damesmaforma.Elejáhaviaen-           ra respirar profundamente e re-
Pode-se imaginar afegãos, nos altos penhascos, abatendo russos como patos                                                                         tradonotúnel?Emumasocieda-
                                                                                                                                                  de de machões, a resposta não
                                                                                                                                                                                       cuperar a compostura. Depois é
                                                                                                                                                                                       preciso tomar cuidado para, na
                                                                                                                                                  poderiaseroutra:sim,eleestava        euforia, não sair caminhando fo-
                                                                                                                                                  muito seguro, já havia entrado
CABUL
                                       OSalangfoibloqueadopelose-                                                                                 no túnel junto com o pai. Então      FRASE
                                    nhor da guerra Massud durante                                                                                 fiz a pergunta definitiva: e se o
A estrada que liga Cabul à cida-    muitos anos, desesperado para                                                                                 carro quebrar lá dentro? “Não, o     ‘Ficamos 20 minutos
de de Mazar-i-Sharif é a vitrine    negar aos taleban acesso ao nor-                                                                              carro é bom, não vai quebrar.”       parados dentro
da desgraça russa. Dos dois la-     te do país. Entrar nesse túnel é                                                                              Bem, nas últimas quatro horas o      do túnel, tontos com
dos a visão é de tanques, ca-       uma experiência e tanto. Os tu-                                                                               carro já havia parado três vezes,
nhões, e carros de combate atin-    ristas são aconselhados a não                                                                                 fervendo no meio da estrada.         tanta fumaça, esperando
gidosporfoguetes.Hoje,queima-       tentar. O livro-guia diz: “Não é                                                                                 Quando chegou nossa vez vi        algum caminhão nos
dos e enferrujados, são objeto de   uma experiência para medro-                                                                                   queotúneleratudoquefalavam,          arrebentar por trás’
brinquedo para os meninos. Po-      sos.” Estou em minha segunda                                                                                  emaisalgumacoisa.Negraescu-
de-seimaginarosafegãos,nosal-       tentativa,jáquenodiaanterioro                                                                                 ridão,caminhõesgemendosob o
tos penhascos que seguem a es-      motorista detáxi, depois detudo                                                                               peso da sua carga derrapam no        ra do acostamento, onde estão
trada, abatendo os russos como      acertadoemCabul,recusou-sea                                                                                   gelo indo de um lado para o ou-      as minas. O Afeganistão, depois
patos.                              entrarnotúnel,mesmocomami-                                                                                    tro, grunhindo à frente e lançan-    do Camboja, e da “terra de nin-
  O percurso é muito bonito, e      nha oferta de pagá-lo em dobro.                                                                               do fumaça tão grossa que gruda       guém” entreas duas Coréias , é o
vai-se subindo por entre as mon-    Pensava em voltar com um Nis-                                                                                 no corpo como se fosse uma pas-      lugar mais minado do mundo.
tanhas cobertas de neves eter-      san 4x4, mas estou mesmo em                                                                                   ta. Não existe nenhum exaustor.         Para voltar esperamos horas,
nas até um trecho que está api-     uma perua pequena e velha.                                                                                    Você segue devagar naquele in-       até termos certeza de que o car-
nhadodecaminhõesecarros.To-            Circulei por entre os outros                                                                               ferno,semenxergarnada–anão           ro poderia atravessar o túnel ra-
dosestão esperandoparaentrar        veículos e verifiquei que o pior                                                                              ser as sombras dos caminhões –,      pidamente. Nos primeiros mo-
emumtúnelrealmenteinacredi-         carroeraomeu.Batinajanelade                                                                                   e vai patinando, quase batendo       mentos – pensando nos seus pul-
tável, o famoso Salang Tunel,       um Hummer dos fuzileiros ame-                                                                                 nas paredes, caindo nos buracos      mões – você se arrepende, mas
construídoa3.400metrosdealti-       ricanos.Umatenentebonitabai-                                                                                  deáguagelada,respirandovene-         no outro dia acha que fez muito
tude, até algum tempo atrás o       xouovidroelétricoeeupatetica-                                                                                 no puro, desesperado para que        bem. Afinal, atravessar o Salang
mais alto do mundo.                 mente perguntei o que ela acha-     ALTO RISCO – Fila de carros e caminhões na entrada do Túnel Salang        os 3.500 metros acabem logo.         é uma aventura. ● C.M.

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Clima de guerra paira sobre Cabul

  • 1. e DOMINGO, 11 DE FEVEREIRO DE 2007 A18 INTERNACIONAL O ESTADO DE S.PAULO AFEGANISTÃO Clima de guerra paira sobre Cabul Após a queda do Taleban, capital afegã continua devastada e sob ocupação de forças militares estrangeiras FOTOS: CLAUDIO MAFRA/AE Claudio Mafra ESPECIAL PARA O ESTADO CABUL O Hotel Intercontinental, em Cabul, no Afeganistão, tem na porta de entrada uma placa pa- recida com as de trânsito. Eles desenharam um fuzil russo AK-47 dentro de uma bola ver- melha e cruzaram uma faixa branca por cima. Está escrito “No Weapons”, ou seja, proibi- do entrar com armas. Faz mui- to sentido, já que o próprio ir- mão do presidente Hamid Kar- zai disse que cada família afegã tempelomenosumfuzilKalash- nikov e algumas pistolas: “Os afegãos sempre têm armas em casa, é parte da nossa cultura.” Existem pelo menos 10 milhões de pistolas, revólveres, metra- lhadores e fuzis em circulação. Para uma população por volta de 25 milhões de habitantes, dá a média de uma arma para cada 2 ou 3 habitantes. Após passar por duas barrei- ras policiais, o táxi estaciona a 20metrosdedistânciaeumpor- teiro faz sinal para permitir a aproximação. Parar tão longe é precaução contra os carros- bomba.Em2001houveumaten- PARAÍSO DESTRUÍDO – Paisagem de Cabul, a capital do Afeganistão, cercada de montanhas cobertas de neve: entreos moradores, o ódio ao Taleban, aos russos e aos americanos tadopertodohotel,mas aexplo- sãocausoudanosapenasnores- campo, ao longo das estradas. perguntando se os taleban são taurante e nas janelas da frente. OcapitãodaForçaAérearus- bons de briga. O consenso foi de Quase todos os inúmeros orga- sadissequenãogostadeconver- Um país arrasado por lutas e intervenções que são “mais ou menos” por- nismos internacionais que ope- sar em frente de outras pessoas que “a gente quase não chega a ram em Cabul têm seu pessoal no saguão do hotel, e vamos pa- ●● ● O Afeganistão é um país ator- sar os invasores. Ao mesmo tem- jipe pela cidade, baleado na cabe- vê-los, as batalhas são de longe, hospedado permanentemente ra seu apartamento. Ele está mentado pelas lutas entre suas po, os paquistaneses, com ajuda ça e dependurado pelo pescoço nas montanhas” . O sargento é no Intercontinental. É o melhor em Cabul treinando equipes de diversas etnias. Mas sua história da CIA, armavam os afegãos. Fo- em praça pública. A primeira or- mais objetivo: “Nos explosivos, da cidade, o que não quer dizer reparo e manutenção da imen- nos últimos anos está mais rela- ram necessários dez anos para dem dada pelo rádio foi a de que eles são bons como o diabo.” To- muita coisa, já que depois dele sa quantidade de armas que o cionada com intervenções exter- que os russos reconhecessem a os homens não poderiam mais dos concordam. Outro soldado só mais dois outros lugares po- Exército da ex-União Soviética nas. Em abril de 1978, com o derrota humilhante e se retiras- raspar a barba e teriam de ir à fala dos perigos da guerra: dem ser chamados de decentes. deixou na sua retirada e hoje es- apoio dos russos, o Partido Comu- sem. A invasão deixou 1 milhão mesquita, ou orar cinco vezes por “Aqui, em Cabul, até que não Apesar da dificuldade, é possí- tãoempoder dogoverno.Acon- nista afegão deu um golpe de Es- de afegãos mortos e 7 milhões de dia. Ao povo foi imposto um fana- tem problema, mas no leste e no vel conseguir por US$ 110 um tribuiçãorussaaoesforço inter- tado. Assumiu um governo que, refugiados. O governo títere ain- tismo religioso que espantou o sul, nas fronteiras do Paquis- apartamentocomumalindavis- nacional para a reconstrução além das brutalidades praticadas da durou três anos até a renúncia mundo, ao mesmo tempo em que tão, é barra pesada.” Um tercei- ta para as montanhas nevadas do país é colocar essas armas em nome de reformas estrutu- do presidente, em 1992. A partir o regime acolhia terroristas , en- ro soldado entra na conversa: em forma para uso do novíssi- rais, ultrajou a população ao ofe- dessa data, houve um período de tre eles Osama bin Laden. Em “No Iraque é pior .” Risada ge- FRASE mo Exército afegão. recer orações públicas para as guerra civil com a participação 2001, o Afeganistão foi invadido ral. E como são recebidos pelo Ocapitãorussodiz,comgran- almas de Marx e Lênin. discreta de americanos, paquista- pelos EUA e aliados que depuse- povo? “Alguns gostam da gen- ‘Vocês, da imprensa, de satisfação, que os EUA não Em dezembro de 1979, a União neses, iranianos e sauditas. En- ram o governo do Taleban. Ha- te, outros não. Os meninos gos- foram embora pensando controlam todo o país: “Apenas Soviética invadiu o país para sus- tão, em 1996, chegaram os tale- mid Karzai foi eleito presidente. tam.” Conversamos bastante, que tudo tinha as grandes cidades, e por estes tentar o governo títere. O que ban e desarmaram as facções em Hoje, existem no Afeganistão tro- proponho trazer uma garrafa dias mesmo perderam 13 heli- parecia facil se mostrou dificíli- luta. O antigo presidente comunis- pas de vários países sob o coman- de uísque Jack Daniels que está terminado. Foram pra cópteros abatidos nas monta- mo. A guerra santa foi declarada ta, Najibullah, foi arrancado de do da Otan, além de forças dos no meu quarto. Eles recusam: Bagdá e não sabem que a nhas. Treze helicópteros!” É di- e muçulmanos de todo o mundo seu refúgio nas dependências da EUA. E os taleban continuam re- “Nem pensar, e os oficiais?” guerra aqui continua’ fícile humilhanteparaos russos dirigiram-se ao país para expul- ONU, castrado, arrastado por um sistindo nas montanhas. ● C.M. Andando pelo saguão do ho- aceitarem o fato de que os EUA tel encontro o ator Ben Kings- expulsaram os taleban para as ley, que trabalhou em Gandhi, A que cercam a cidade. altas montanhas e fronteiras do Meu guia chama-se Nasin Massud, que foi o comandante entre eles uma mesquita, fica- Lista de Schindler, e outros bons Cabul é uma cidade caótica país, e de alguma forma ganha- Baig, um rapaz de 18 anos que é da Aliança do Norte, uma coali- ram intactos. filmes. Ele veio fazer um curta- de2milhõesdehabitantes.Poei- ram a guerra. A mesma guerra gerente de uma lojinha no sa- zão que lutou contra os russos e Um dos programas dos ofi- metragem sobre as crianças do renta, cheia de esqueletos de que eles perderam. guão do hotel. Durante oregime os taleban. O retrato de Massud ciais americanos é sair à noite Afeganistão . O plano é vendê-lo edifíciosbombardeados,entupi- O Afeganistão é para os rus- taleban ele foi proibido de estu- está em todos os lugares. Tale- dasua baseultraprotegida para em cidades americanas e euro- da de carros, um comércio de- sosoqueéoVietnãparaosame- dar, e o rádio e a televisão foram ban disfarçados de jornalistas o tomar cerveja e uísque no bar péias.Odinheiroarrecadadose- sorganizado, muita gente nas ricanos. Ele vai em frente: “Os banidos de sua vida. Jogou fora mataram dias antes dos atenta- dohotel. Dolado de fora , ao lado rá doado para a ONG Save The ruas,muitagentevendendopro- EUA fizeram essa guerra por- suas roupas e passou a usar a dos de 11 de setembro de 2001. de três jipes Hummer e um ca- Children. Está impaciente para dutos ocidentais espalhados no que este país é muito rico em modaobrigatória,amesmatúni- Estamos andando por uma minhão, estão os soldados e o ir embora. Como todo mundo, chão, pessoas que olham para recursos minerais. Aqui é por ca dos taleban. Rezava o dia in- rua no centro da cidade e Nasin sargento que vieram com eles. sente um pouco de medo. Tudo você com desconfiança. causa do minério, lá no Iraque é teiro.Agoraeleachadifícilreini- conta que naquele exato lugar, Estão parados no frio e no escu- pronto, já pode partir, um mem- É bom não tirar fotos das fa- o petróleo. Vocês, da imprensa, ciar os estudos porque já está durante o ataque americano a ro, esperando seus superiores bro da sua equipe lhe entrega mosas mulheres com as burcas foram embora porque pensa- trabalhando, existem contas a Cabul, ele viu um carro de com- deixarem o bar. Digo um boa- um monte de notas de US$ 20 azuis porque ninguém gosta, é ram que tudo havia terminado. pagar e o entusiasmo foi embo- bate passando em alta velocida- noite e sou muito bem recebido. que ele vai distribuindo para os desrespeito,eoshomensbarbu- Foram para Bagdá e não sabem ra. É claro que Nasin odeia os decheiodetalebanarmados.Lo- Apertamosasmãos,estãosatis- empregados do hotel. Troca- dos, altos, com suas longas túni- que a guerra continua.” Ele mal taleban. Também odeia os rus- go depois houve uma tremenda feitosporteremalguémdiferen- mosumapertodemãoenosdes- cas que chegam até o chão, es- conseguedisfarçarquetorcepe- sos e já mostrou que também explosão e o carro sumiu. O que te para conversar, principal- pedimos. Boa sorte, Ben. ● tão vigilantes. Fui aconselhado los taleban. Se pudesse, prepa- vaiodiarosamericanos.Seuúni- o impressionou foi que o fogue- mente o exótico brasileiro, que por meu guia a esperar quando raria as armas para estourar na co entusiasmo verdadeiro é pe- te, lançado de um avião, só atin- vive no paraíso de calor, praias, † Mais informações, no estivermos fora da cidade, no cara de quem usasse. lo grande herói afegão, Ahmed giu o carro. Os prédios em volta, mulatas e carnaval. Vou logo Caderno Cultura va da minha intenção de entrar E o carro quebrou. Ficamos Na estrada para o norte, o notúnelcomaquelaperuaridícu- la. A sua resposta – “Não faço a menor idéia” – não ajudou nada. Meumotorista,ummeninode 20 minutos parados, tontos com tanta fumaça, esperando algum caminhão nos arrebentar por trás,atéqueomeninoconseguiu o impossível e chegamos do ou- pesadelo do Túnel Salang 17 anos, assustado e quieto, ficou observando.Pergunteiseestava tro lado. Depois de tanto tempo seguro do que íamos fazer. notúnel,aluzdasmontanhasne- Acrescenteiquepoderíamosvol- vadasdoemnosolhos.Opanora- tar para Cabul, e que o pagaria ma é deslumbrante, você procu- damesmaforma.Elejáhaviaen- ra respirar profundamente e re- Pode-se imaginar afegãos, nos altos penhascos, abatendo russos como patos tradonotúnel?Emumasocieda- de de machões, a resposta não cuperar a compostura. Depois é preciso tomar cuidado para, na poderiaseroutra:sim,eleestava euforia, não sair caminhando fo- muito seguro, já havia entrado CABUL OSalangfoibloqueadopelose- no túnel junto com o pai. Então FRASE nhor da guerra Massud durante fiz a pergunta definitiva: e se o A estrada que liga Cabul à cida- muitos anos, desesperado para carro quebrar lá dentro? “Não, o ‘Ficamos 20 minutos de de Mazar-i-Sharif é a vitrine negar aos taleban acesso ao nor- carro é bom, não vai quebrar.” parados dentro da desgraça russa. Dos dois la- te do país. Entrar nesse túnel é Bem, nas últimas quatro horas o do túnel, tontos com dos a visão é de tanques, ca- uma experiência e tanto. Os tu- carro já havia parado três vezes, nhões, e carros de combate atin- ristas são aconselhados a não fervendo no meio da estrada. tanta fumaça, esperando gidosporfoguetes.Hoje,queima- tentar. O livro-guia diz: “Não é Quando chegou nossa vez vi algum caminhão nos dos e enferrujados, são objeto de uma experiência para medro- queotúneleratudoquefalavam, arrebentar por trás’ brinquedo para os meninos. Po- sos.” Estou em minha segunda emaisalgumacoisa.Negraescu- de-seimaginarosafegãos,nosal- tentativa,jáquenodiaanterioro ridão,caminhõesgemendosob o tos penhascos que seguem a es- motorista detáxi, depois detudo peso da sua carga derrapam no ra do acostamento, onde estão trada, abatendo os russos como acertadoemCabul,recusou-sea gelo indo de um lado para o ou- as minas. O Afeganistão, depois patos. entrarnotúnel,mesmocomami- tro, grunhindo à frente e lançan- do Camboja, e da “terra de nin- O percurso é muito bonito, e nha oferta de pagá-lo em dobro. do fumaça tão grossa que gruda guém” entreas duas Coréias , é o vai-se subindo por entre as mon- Pensava em voltar com um Nis- no corpo como se fosse uma pas- lugar mais minado do mundo. tanhas cobertas de neves eter- san 4x4, mas estou mesmo em ta. Não existe nenhum exaustor. Para voltar esperamos horas, nas até um trecho que está api- uma perua pequena e velha. Você segue devagar naquele in- até termos certeza de que o car- nhadodecaminhõesecarros.To- Circulei por entre os outros ferno,semenxergarnada–anão ro poderia atravessar o túnel ra- dosestão esperandoparaentrar veículos e verifiquei que o pior ser as sombras dos caminhões –, pidamente. Nos primeiros mo- emumtúnelrealmenteinacredi- carroeraomeu.Batinajanelade e vai patinando, quase batendo mentos – pensando nos seus pul- tável, o famoso Salang Tunel, um Hummer dos fuzileiros ame- nas paredes, caindo nos buracos mões – você se arrepende, mas construídoa3.400metrosdealti- ricanos.Umatenentebonitabai- deáguagelada,respirandovene- no outro dia acha que fez muito tude, até algum tempo atrás o xouovidroelétricoeeupatetica- no puro, desesperado para que bem. Afinal, atravessar o Salang mais alto do mundo. mente perguntei o que ela acha- ALTO RISCO – Fila de carros e caminhões na entrada do Túnel Salang os 3.500 metros acabem logo. é uma aventura. ● C.M.