Leia, Ouça, veja, mas sobretudo, pense. Agostinho da silva.
1. Leia, Ouça, Veja, mas sobretudo, Pense
Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse,
historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando
foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente,
quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio
juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas
de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo
nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros
nos enriquece a nós. Leia.
Milhões de homens, porém, no mundo actual estão incapacitados de escrever e de ler, muito menos porque faltam
métodos e meios do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano e vontade de quem mais
pode de que seus reais irmãos mais dependam de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras
salvações. Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma; o que nos dizem muitas vezes nos parece
de nenhuma importância, mas talvez tenha havido uma falha na atitude de escutar do que no conteúdo do que se
disse; porventura a palavra-chave estava aí, mas estávamos distraídos, ou ansiosos por nós próprios falarmos; e no
vento fugiu, a outros ouvidos ou a nenhuns. Ouça.
No tempo em que a antropologia ainda julgava que o homem descendia do macaco notou-se, para os distinguir,
que um, mesmo no estádio mais primitivo, desenhava; o outro, mesmo que antropóide superior, nem olhava o
desenho. Imagem nos veio acompanhando pela História fora, desde as pinturas ou gravuras rupestres, cujo
verdadeiro significado ainda está por encontrar, até cinema ou televisão, sobre cujo significado igualmente muitas
vezes nos podemos interrogar e que se tem de arrancar o mais depressa possível ao domínio do lucro, da
publicidade ou das propagandas ideológicas para que possam cumprir, como nas formas mais antigas, a sua missão
de iluminar, inspirar e consagrar o mundo. Imagem o cerca. Veja.
Mas o que vê e ouve ou lê nada mais lhe traz senão matéria-prima de pensamento, já livre de muita impureza de
minério bruto, porquanto antes do seu outros pensamentos o pensaram; mas, por o pensarem, alguma outra
impureza lhe terão juntado. Nunca se precipite, pois, a aderir; não se deixe levar por nenhum sentimento, excepto
o do amor de entender, de ver o mais possível claro dentro e fora de si; critique tudo o que receba e não deixe que
nada se deposite no seu espírito senão pela peneira da crítica, pelo critério da coerência, pela concordância dos
factos; acredite fundamentalmente na dúvida construtiva e daí parta para certezas que nunca deixe de ver como
provisórias, excepto uma, a de que é capaz de compreender tudo o que for compreensível; ao resto porá de lado
até que o seja, até que possa pôr nos pratos da sua balancinha de razão. A tudo pese. Pense.
Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'