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SAMUEL
Luciano Duarte
Luciano Duarte
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Copyright © Luciano Duarte, 2020
Todos os direitos reservados.
Texto em conformidade com o Acordo Ortográfi-
co da Língua Portuguesa (1990) em vigor desde 1
de janeiro de 2009.
Dados de Catalogação
D812 Duarte, Luciano
Samuel / Luciano Duarte. Belo Hori-
zonte, 2020 (1ª edição). 266 p.
ISBN: 979-86-576-4485-2
1. Ficção. 2. Ficção nacional. 3. Ro-
mance. 4. Romance Nacional
Sumário
Capítulo I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Capítulo II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Capítulo III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Capítulo IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Capítulo V. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Capítulo VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Capítulo VII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Capítulo VIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Capítulo IX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Capítulo X. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Capítulo XI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Capítulo XII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
Capítulo XIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Capítulo XIV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Capítulo XV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Capítulo XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
Capítulo XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Capítulo XVIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Capítulo XIX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Capítulo XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Capítulo XXI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Capítulo XXII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Capítulo XXIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Capítulo XXIV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
Capítulo XXV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
Capítulo XXVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
Capítulo XXVII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
Capítulo XXVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Capítulo XXIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
Capítulo XXX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Capítulo XXXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Capítulo XXXII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
Capítulo XXXIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
Capítulo XXXIV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Capítulo XXXV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
Capítulo XXXVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
5Samuel
Capítulo I
Frio em Belo Horizonte. No escritório, Samuel
digitava a desejar o fim do expediente. “Hoje é sex-
ta!” — pensava, tomado pela euforia que prenuncia
o final de semana. Havia monotonia no setor, e o
relógio marcava cinco da tarde.
Súbito, o chefe irrompe na sala. Da porta, dispa-
ra:
— Faça o favor, Samuel.
Tensão. Que desejava o chefe? Às cinco da tarde
de uma sexta-feira se não deve demandar um fun-
cionário.
Samuel levantou-se e seguiu o homem, que ru-
mou para a própria sala. Como costumeiro, Val-
6 Luciano Duarte
mir esperou que o subalterno entrasse para fechar a
porta, então lhe indicou:
— Sente-se, sente-se.
Rodeou a mesa de vidro, acomodou-se na confor-
tável cadeira de costa alta e começou:
— Então, Samuel… — o chefe sorria. — Quero
lhe propor uma coisa.
Que coisa? Horas extras? Negativo: uma ascen-
são de cargo. Samuel congelou.
— Está na hora, você tem competência e merece.
A partir de segunda quero que tome para si a gerên-
cia do setor.
— A gerência?
E Samuel sentiu brotar-lhe na face o sorriso agra-
decido. A gerência, sim, a gerência! O salário, natu-
ralmente, engordaria, podendo chegar ao dobro em
meses de boas vendas. Nada mau para um jovem
com três anos de empresa…
— Eu não sei como agradecer… — Samuel falava
e tremia.
— Agradeça com resultados! Agora vá para casa
e descanse bem que na próxima segunda quero ver
sangue novo.
— Muito obrigado, Valmir! Você não irá se ar-
repender — despediu-se o novo gerente de vendas,
apertando a mão do diretor.
O sorriso estava esticado na face de Samuel, que
lhe tornou à sala extasiado, tremendo sobre os pés.
Adentrou o setor cabisbaixo, a disfarçar a boa-no-
va dos colegas. Silencioso, desligou o computador,
quando o sinal anunciou o termo do expediente. O
7Samuel
enlevo expandia. Do lado de fora da sala, a fila já
estava formada frente à máquina de ponto. A von-
tade de Samuel era correr ao carro para, em priva-
cidade, olhar ao céu e gritar. Logo deixou o galpão
da empresa discou para o amigo:
— Tá no bar do Régis, Gutão?
— Indo…
— Cinco minutos!
E, desligando o celular, Samuel teve a certeza:
aquele dia voltaria carregado para casa.
Como o bar realmente estivesse a cinco minutos
de carro, Samuel não tardou a chegar. Havia entre
os amigos a tradição: a primeira da sexta tomava-se
no bar do Régis. E assim procediam há três anos,
sempre lançando mão da desculpa de evitar o trân-
sito das seis.
Samuel entrou no bar com dedo em riste:
— Uma gelada e uma abençoada!
Reginaldo, solitário detrás do balcão, sacou dois
copos qual fossem pistolas, um em cada mão, ba-
tendo-os contra a bancada de ardósia. As garrafas
surgiram abertas em segundos.
— Tá na mão! — disse o bom comerciante, tam-
bém servindo um copo para si.
Samuel, eufórico, alçou o copo a propor um brin-
de:
— Que as nossas mulheres não faleçam viúvas!
Um sujeito passando ao lado de fora do bar er-
gueu o braço, e prosseguiu-se o estalido de copos
e a virada costumeira. Samuel, em sede voraz, deu
cabo também do copo de pinga.
8 Luciano Duarte
— Aperte a mão do doutor gerente de vendas! —
revelou ao amigo a novidade.
— Oh! Parabéns, meu caro!
E, a título de comemoração, Reginaldo puxou um
uísque da prateleira que servia de fachada. Pondo-o
sobre a bancada, Samuel objetou:
— Espera o Gutão.
Reginaldo assentiu.
— Mas então, jovem: como é que foi isso?
— Hoje, quase dando o sinal, o chefe chama-me
e atira a promoção. Não esperava…
— O trabalho compensa… Não há que dizer.
Apesar de que eu, aqui no bar…
Irrompe um grito da calçada:
— Vim buscar a minha loira!
Era Gustavo e suas largas espáduas, replicando
idêntica euforia e idêntico dedo em riste da chegada
de Samuel. Reginaldo, em destreza admirável, pu-
xou o abridor e o copo debaixo do balcão e, antes
que os apressados passos do recém-chegado puses-
sem-no junto dos amigos, a nova garrafa já estava
aberta e os copos preenchidos.
— Que as nossas mulheres não faleçam viúvas!
— entoou dessa vez Gustavo, em brinde triplo que
precedeu nova virada.
Após as batidas automáticas contra a bancada,
Reginaldo disse a Gustavo, já repondo as fontes de
alegria:
— A homoafetividade do seu lado agora é gerente
de vendas!
Gustavo crispou:
9Samuel
— Mentira!
Não era.
— Parabéns, meu caro! — e apertou a mão do
amigo promovido. — Três branquinhas pra come-
morar, Regiclênio! — e virou-se novamente a Sa-
muel: — Hoje é pra acabar! É beber até morrer!
Mas Reginaldo interrompeu-o:
— Branquinha? Tá louco? Aqui vai por conta da
casa… — disse e serviu três doses de uísque.
Sorrisos: era raro o comerciante fazer agrados.
De copos cheios, baixou-se um pouco a euforia, en-
tão Samuel pôs-se a falar:
— Cara, eu realmente tenho de agradecer… No
mesmo ano, o carro e a promoção… Em quinze
aposento.
Reginaldo objetou:
— Deus abençoa! Deus abençoa! Mas aposentar
é complicado…
E explanou-lhes a dificuldade que, aos trinta e
cinco, ainda se via enfrentando.
— Abri esse negócio com a mesma ilusão, mas,
hoje, diante dos números…
— Aposentar é uma questão de educação finan-
ceira, Régis — atalhou Samuel. — É poupar, apli-
car e esperar…
Silêncio.
Desde os dezessete, quando entrou no primeiro
emprego, a Samuel tomou-lhe a obsessão da apo-
sentadoria precoce. “Tanto para fazer da vida…
Trabalhar CLT é desperdício!” — raciocinava. E
elaborou um plano de aposentadoria que consistia,
10 Luciano Duarte
sumariamente, em poupar trinta por cento do que
ganhava para, aplicando o montante em ativos do
mercado financeiro, deixar que os juros compos-
tos trabalhassem. Vinte anos era o tempo calculado
para desobrigar-se da labuta. Agora, com a promo-
ção, a situação melhorava consideravelmente.
No bar, Gustavo teve uma ideia:
— Sabe o que seria bom pra hoje? Uma festa de
arrombar!
A sexta-feira inspirava-lhes como nenhum outro
dia.
— Lá em casa não tem jeito. Tá todo mundo lá…
— replicou Samuel.
Reginaldo, obviamente, ficaria no bar. Gustavo
tomou a iniciativa:
— Vou ver se arrumo alguma coisa pra gente.
Deixa eu ver nos meus contatos…
E pôs-se a enviar mensagens.
Correram alguns minutos. Os amigos bebiam e
conversavam, animados; o assunto rendia. Entre-
mentes, os copos iam esvaziando e enchendo, quan-
do Gustavo pareceu ter ajeitado uma festa para dali
a duas horas.
— Fecha pra gente, Regimilson. Hoje tem segun-
do tempo!
— Já, Gutão?
Mas era noite. Os amigos haviam conversado por
três boas horas. Agora, era sair ou abandonar os
planos da sequência. Gustavo e Samuel, trajados
em uniforme, ainda careciam de um banho e roupa
nova.
11Samuel
— Então tá… — assentiu Reginaldo, cabisbaixo,
prevendo para si outra noite monótona.
Pagando as contas, a agitação. Os amigos tinham
de correr para não ficarem de mãos vazias. Com-
praram a latinha do trajeto e acertaram quarenta
minutos para o novo encontro. Apertaram-se mu-
tuamente as mãos e cada qual tomou seu rumo. Era
voar para casa, tomar um banho de gato e sair.
Samuel entrou com agilidade em seu carro, deu
um gole de cerveja e acionou a partida. Antes que
os faróis luzissem, o veículo já arrancava. “Hoje
o pau quebra!” — sorria, a medir as expectativas
lançadas por Gustavo. Segundo o amigo, a “fes-
ta” seriam oito donzelas e quatro rapazes, ou seja,
proporção de duas para um. Era um cenário ex-
tremamente agradável para Samuel que, a dizer a
verdade, estava há boas semanas sem contato com
mulher.
Enquanto Samuel dirigia, devaneava. Parecia as
luzes noturnas provocarem um estado de leve alu-
cinação. Som alto, os pensamentos voando, e os
suaves delírios viam-se amplificados pelo álcool. A
sensação era agradável. Eis o que lhe passava pela
cabeça: via-se, simplesmente, aposentado e feliz; a
promoção avivara-lhe o brio: nenhum dos amigos
gozaria de semelhante renda mensal. O tempo, de
repente, pusera-se-lhe a favor. E como lhe instiga-
vam as possibilidades! Era só esperar… E então,
suponhamos, aos quarenta — quem sabe trinta e
cinco? — poderia dedicar-se a gozar da vida. Com
tempo e dinheiro, duas viagens internacionais por
12 Luciano Duarte
ano. Daria ao filho — e teria um filho — uma edu-
cação primorosa, uma atenção de pai exemplar; em
suma: estaria disponível, sempre disponível. E pode-
ria aprimorar-se em variadas atividades muito mais
interessantes do que gerenciar um departamento de
vendas, do que lidar diariamente com clientes…
Súbito, Samuel fura um semáforo. Em meio se-
gundo o susto, e uma van arrebenta-lhe a lateral
direita do carro.
13Samuel
Capítulo II
O impacto atirou Samuel para fora do carro. A
van, girando e derrapando, estourou-lhe o eixo
dianteiro no canteiro central. Um homem que tra-
fegava a poucos metros do acidente, vendo o cho-
que violento, parou de imediato e correu a prestar
socorro. Samuel, estirado no chão, não esboçou
reação. O motorista agachou-se, a buscar sinais de
vida. Foi quando, mirando de longe, avistou a si-
tuação trágica na van.
Já desciam, correndo, outros dois motoristas. Sa-
muel parecia pulsar. Fremente, o homem cuidou
que o acidentado não se movesse. Na van, chegou
14 Luciano Duarte
o primeiro socorrista: encontrou o condutor, des-
maiado e sangrando muito, com metade do corpo
sobre o capô. Houve desespero generalizado. Desa-
cordados, os acidentados pareciam mortos.
Já havia mais pessoas no local: todos, apreensi-
vos, não sabiam que fazer. Logo estaciona uma via-
tura, fechando o cruzamento. Descem dois policiais
e, correndo, dirigem-se cada qual a um acidentado.
Com as mãos, sinalizam para que as testemunhas
se afastem. Em cinco minutos, chega também a am-
bulância.
Samuel pareceu recuperar parcialmente a cons-
ciência. Atordoado, abriu vagarosamente os olhos.
Passou a gemer contínua e surdamente. Via um vul-
to embaçado diante de si, e as primeiras palavras
que reconheceu foram as instruções do socorrista
para que se não movesse.
— Qual o seu nome?
Samuel balbuciou-lhe a resposta. Sentia dor, mui-
ta dor, e continuava gemendo, contraindo-se, fa-
zendo força para não se mover. A dor trazia-lhe a
consciência. O socorrista perguntou-lhe a idade e a
profissão: ouviu réplica sofrida. Samuel gemia:
— Por favor, por favor…
O homem tentava acalmá-lo.
Em poucos minutos, ambos os acidentados eram
conduzidos ao hospital mais próximo.
Imobilizado, já dentro da ambulância, Samuel
passou a articular melhor os pensamentos. Viu-se
num pesadelo: aquela azáfama, as feições apreensi-
vas, a dor e a posição vulnerável em que se encon-
15Samuel
trava diante de desconhecidos assustavam-no. Onde
lhe estaria o celular? E o carro? Tentava reconstruir
mentalmente a sucessão dos fatos, mas havia um
vácuo na memória: lembrava-se somente a partir do
momento em que fora colocado numa maca.
Imobilizado pelo colar cervical, mirava de soslaio
em redor, encontrando inúmeros olhares tensos.
Os socorristas eram ágeis e falavam alto, agitados,
contaminando o ambiente da urgência. O ombro
direito pulsava e doía muito. “Como?” — pensava,
não encontrando resposta.
De um salto, os socorristas abriram a traseira
da ambulância e com a maca rasgaram o aglome-
rado de pessoas que se encontrava na entrada do
hospital. A sensação de Samuel era horrível: via-se
absolutamente impotente, exposto, sentindo uma
dor latejante e incapaz da menor reação. Não lhe
sabia sequer o próprio estado... Teria quebrado o
pescoço? Como estaria a cervical? Sangrava mui-
to? Sentia, por vezes, um fisgar violento abaixo do
peito. Seria a mortífera hemorragia interna? Que
agonia! Que horror! Mirava o teto, o saquinho de
soro a balançar. As luzes do hospital agrediam-lhe
os olhos. A maca, veloz, percorria os corredores em
zigue-zague.
Súbito, adentra uma sala, perfurando uma corti-
na de PVC. “Será que avisaram o meu pai?”. Aflito,
em desespero, escorreram-lhe lágrimas dos olhos.
“Irão me operar!” — soluçava. A enfermeira, ao
lado, percebeu-lhe a angústia e segurou-lhe a mão.
A maca estacou frente a um homem grisalho de
16 Luciano Duarte
meia-idade. Em três palavras, o socorrista explicou-
-lhe a situação de Samuel. O médico, gravemente,
direcionou-se ao acidentado:
— Meu nome é Oscar, sou cirurgião-geral e estou
aqui pra te ajudar. Quero que me diga o que você
está sentindo.
Samuel, chorando, articulou:
— Meu ombro tá doendo muito, doutor…
E soltar as palavras pareceu-lhe aumentar a afli-
ção:
— Por favor, doutor… — Samuel gaguejava e
tremia, ainda com o pescoço imobilizado. — Você
pode, por favor, ligar para o meu pai?
O médico tentou acalmá-lo:
— A gente já avisou sua família. Pode ficar tran-
quilo. Agora, eu preciso que você se acalme e me
diga o que está sentindo. Você consegue mover o
dedo do pé?
Esforçando-se, engolindo o choro, Samuel assen-
tiu levemente com a cabeça. O doutor ordenou a
enfermeira:
— Raio-X.
E voltou-se ao acidentado:
— A gente precisa fazer um exame pra saber o
grau da sua lesão. Tá bom? Fica calmo. A sua famí-
lia já tá vindo pra cá.
A enfermeira conduziu a maca ao raio-X. Samuel
percorria os corredores assustando e via-se aflito,
extremamente constrangido.
Chegando à escura sala de raio-X, a enfermei-
ra indicou a Samuel que o moveriam ao leito fixo
17Samuel
onde o exame seria realizado. Cuidadosamente, a
maca foi posicionada ao lado do novo leito e, so-
mando apoios, seis mãos executariam a operação.
Samuel sentiu arder o antebraço e gemeu: o ajudan-
te desculpou-se pelo involuntário esbarro. Todos
posicionados, contaram até três e, num só impulso,
transferiram o jovem ao novo leito. A elevação, ti-
rando-lhe o apoio do ombro, agravou-lhe a dor. A
nova posição era desconfortável.
— O exame é rápido, — disse a enfermeira, apro-
ximando-se, — mas eu preciso que você abra um
pouco o braço direito.
Tocou-lhe. O ombro destro era o dolorido.
— Vou mover bem devagarzi…
— Ah! — um centímetro bastou para que viesse
a fisgada.
— Desculpa, desculpa…
— Tá doendo demais!
Evitando a insistência no braço, a enfermeira pe-
diu-lhe tentasse mover levemente o corpo. Samuel
forçou-lhe ao lado o quadril.
— Isso, isso. Mais um pouquinho.
Foi. Então, posicionando a máquina de raio-X a
poucos centímetros do ombro direito de Samuel, a
enfermeira instruiu-lhe a não se mover e retirou-se
da sala.
Enquanto isso, no silêncio e no escuro, Samuel
observava o que conseguia. Imaginou na articula-
ção mecânica do aparelho um braço. “Se isso sol-
tar, perco meu ombro…”. Percebeu a maca ao lado
— agora a via! — tingida de sangue, uma bancada
18 Luciano Duarte
debaixo de um painel de vidro… tudo de um terrível
branco. A parede, descascada, passava impressão
de desleixo, e uma tela escura ao lado da máquina
completava o ambiente. Pouco ruído, o ombro a
doer. “Bati o carro!”.
De repente, um barulho estranho. Era a máquina.
Começou a radiografia, e Samuel guardava-se o di-
reito de não se mover. Decorrem três, talvez quatro
minutos de ruídos e inércia, então entrou novamen-
te a enfermeira.
— Agora a gente precisa fotografar a cervical…
Queria a mulher dizer que Samuel teria de sentar-
-se no leito. Na moça sobejou precaução:
— Não está nada dormente, nem formigando
não, né?
Samuel deu aval necessário e, auxiliado, ergueu-
-lhe o tronco. Já sentado sobre o leito, teve-lhe a
postura ajustada, ouvindo a repetida recomenda-
ção de permanecer imóvel. “Outros vinte minutos
parado…”. O ombro parecia mais pesado e mais
dorido em nova posição.
As radiografias posteriores foram morosas, prin-
cipalmente em razão da necessidade de fotografias
em muitos ângulos. A enfermeira entrou diversas
vezes na sala, a ajustar a posição de Samuel, dizen-
do-lhe que se estava movendo e censurando-o. A
moça parecia impaciente, e Samuel não pensava
senão na incompetência da coitada. “Já foram cin-
quenta fotos, não é possível!”. E lembrou-se nova-
mente da desdita geratriz: “Bati a porcaria do meu
carro! Mas que inferno! Por que eu fiz essa boba-
19Samuel
gem, meu Deus do céu?”. E antes que se lhe tomasse
mais uma vez a agonia, a enfermeira irrompeu na
sala e embargou-lhe os pensamentos:
— Acabou. Agora é o seguinte: eu preciso te levar
pra enfermaria. Você prefere deitado?
— Tanto faz.
A mulher pediu-lhe que deitasse na maca e Sa-
muel, obedecendo, pela primeira vez enxergou o
estado dos antebraços. Horrível, horrível… Nunca
se havia machucado em semelhante gravidade: as
feridas estavam na carne, brancas. Então percebeu
o quanto lhe havia de ser dramático o estado do
ombro, posto este incomodasse muito mais.
Em dois minutos, estavam ambos na enfermaria.
Outra vez, foi Samuel solicitado a sentar-se em leito
separado.
— Vai doer um pouquinho. Você quer uma coisa
pra morder? — indagou a cuidadosa enfermeira.
Que pergunta… Iriam lhe arrancar o braço? Não,
não… apenas higienizar as feridas. O risco de in-
fecção era grande, portanto, a ação era necessária
e urgente.
E assim a mulher, por cerca de vinte minutos, fez
com que Samuel esquecesse a dor do ombro, visto
o ser humano sentir somente uma dor de cada vez.
Vinte minutos de gemidos e suplícios: o antissépti-
co, água com sabão ou o que fosse parecia fogo em
contato com as feridas, parecia fritar o que lhe so-
brara de carne no antebraço. Quando a solução ter-
minou-lhe o labor, Samuel já se via resignado com a
dor eterna. Deixou, inclusive, de gemer.
20 Luciano Duarte
De braços enfaixados, exausto, Samuel foi con-
duzido a um quarto onde, deitando-se, logo se viu
apagar.
21Samuel
Capítulo III
Acordou diante do pai. João Arnaldo, alto e es-
guio, solene e formal, tinha voz cavernosa, muito
afeita às sentenças que lhe saíam como por auto-
matismo e que pareciam querer expressar as últi-
mas verdades do universo. Sentado num sofá diante
do leito, cofiava-lhe o denso bigode quando o filho
despertou encontrando-lhe os olhos negros perdi-
dos e imóveis.
Samuel, percebendo o pai, fingiu que ainda dor-
mia, quando lhe tomou a vergonha do ocorrido.
Certamente, o pai lhe passaria um sabão. “Bati a
22 Luciano Duarte
porcaria do meu carro!” E pensou na desculpa que
teria de dar no trabalho: “Lasquei-me. Perdi o car-
ro e o emprego”. Então lembrou-se da recente pro-
moção.
— Justo quando finalmente algo de bom acon-
tece… — lamentou ao pai, desistindo de simular o
sono.
O pai assustou-se, ajeitando-se no sofá:
— Você tem de agradecer muito, mas muito…
— Agradecer? No dia em que recebo a primeira
grande notícia em anos, destruo a minha vida ba-
tendo o carro.
O pai sorriu com ironia e disse baixinho, como
em segredo, inclinando-lhe o tronco:
— O que aconteceu hoje, você deve a Deus pelo
resto da sua vida. Você podia muito bem estar mor-
to, preso, tá me entendendo? E olha como são as
coisas… tudo não vai passar de um ligamento rom-
pido, o seguro te dará outro carro… Isso, sabe-se lá
o motivo, foi a vontade de Deus. É Deus que está,
diretamente, te passando uma lição, e é bom que
você aprenda, pois não é todo mundo que tem a
mesma…
O médico entrou com as radiografias em mãos.
João Arnaldo, calando-se, apoiou-lhe as costas no-
vamente no sofá.
— Boas notícias — iniciou o médico, que estacou
ao lado de Samuel.
Mostrou, uma por uma, as radiografias, apon-
tando-lhes as conclusões:
— Aqui, tudo certo, estão vendo? Não há lesão
23Samuel
de nenhuma espécie na cervical. Já aqui, reparem,
— e puxou a radiografia do tórax, — não há a con-
firmação da suspeita de fratura na costela, embora
não queira dizer que não haja, visto o exame não ser
capaz de detectar a totalidade das lesões. De qual-
quer maneira, é uma boa notícia, pois não há indí-
cio de complicações como sangramento ou escape
de ar, nem necessidade de intervenção cirúrgica.
O doutor tomou fôlego, puxou outra radiografia
e continuou:
— Quanto ao ombro destro, não houve luxação,
mas provavelmente houve rotura tendinosa, e pre-
cisaremos de realizar uma ressonância para avaliar
o grau da lesão.
— Precisarei operar, doutor?
— Creio que não, Samuel. Em verdade, seus exa-
mes tranquilizaram-nos a todos. Quando te trou-
xeram, em maca e desesperado, esperávamos que a
situação fosse grave. Estamos acostumados… São
muitos os acidentes como o seu que comprometem
além de tendão e costela. Aliás… — o médico pen-
sou e pareceu desistir do pensamento. — O fato é
que o acidente não lhe comprometeu gravemente, e
hoje mesmo você dormirá em sua casa.
Dizendo isso, o médico voltou-se a João Arnaldo,
dando a entender que já haviam palestrado.
— Tá certo, meu senhor?
— Muito obrigado, doutor Oscar! Muito obri-
gado!
E o médico rematou:
— Agora me deem licença, que eu preciso provi-
24 Luciano Duarte
denciar a ressonância e pedir urgência no processo.
A enfermeira trará as instruções — disse e deixou
a sala.
Em cerca de vinte minutos, pai e filho obtiveram
a confirmação da disponibilidade do exame e des-
ceram ao respectivo setor do hospital, onde foram
instruídos a aguardar em pequena sala de espera.
Samuel temia o silêncio do pai, que ostensiva-
mente lhe negava o contato visual, vagueando silen-
te, porém não camuflando o nervosismo. O filho,
atento, deduziu o pai ocultar-lhe informação. Que
seria? O desconforto estava escancarado, a feição
de João Arnaldo denunciava-lhe o conflito interior.
Receoso, Samuel nada disse, e sentaram ambos em
silêncio.
A sala de espera abria-se logo após uma rampa
entre um corredor no subsolo do hospital: o cor-
redor seguia seu rumo, convergindo para as salas
de exame; antes, porém, numa pequena recepção
fronteira a umas vinte cadeiras, uma enfermeira
anunciava os pacientes convocados pelos médicos.
No espaço que se abria à esquerda do corredor,
cadeiras; diante delas, uma televisão. Um hospital
raramente exibe feições divertidas, mas nessa pe-
quena sala contavam-se dez sorrisos bovinos entre-
tidos com o reality show exibido na televisão.
Samuel detestava reality shows; foi sentar-se e
ver-lhe a irritação brotar. Uma voz logo atrás co-
mentava:
— Tá vendo? Eu disse que ela não aguentava!
E outra rebatia:
25Samuel
— Não quer dizer nada. O programa é manipu-
lado. Isso que a gente tá vendo é só uma parte do
que aconteceu!
— Quer valer? Quer bater uma aposta? Eu te ga-
ranto que, nessa semana, ela pede pra sair!
“Pronto! Agora é ter de ouvir dois idiotas!”.
— Apostado! Ela vai ganhar, certeza!
O ânimo aumentou:
— Então é isso que a gente vai ver. Quanto cê
quer perder? Por mim trinta reais, agora!
— Trinta não, trinta é muito.
— Olha lá! De novo ela chorando! Não falei?
Olha lá! Tá escrito! Eu não quero nem saber, agora
cê vai ter que pagar: provocou, agora eu quero ver
se tem coragem!
“Mas que inferno!” — pensava Samuel, já irri-
tado, enquanto a discussão continuava. “Por que
as pessoas têm de ser tão insuportáveis?” Súbito,
sente uma saliva umedecer-lhe a nuca. Era demais.
Virou-se:
— Escuta aqui — percebeu discutirem um casal;
a mulher era um espetáculo. — Desculpa… vocês
podem falar um pouquinho mais baixo? Eu tô com
muita de dor de cabeça…
Silêncio. Desapareceram as expressões bovinas e
os olhares voltaram-se contra Samuel.
Ajeitando-se de volta na cadeira, Samuel perce-
beu o pai, sem dizer palavra, censurar-lhe violen-
tamente. Estava claro: guardava-lhe uma conversa.
Samuel calou-se pelo restante da noite no hospi-
tal. Em pouco mais de uma hora, a recepcionista
26 Luciano Duarte
anunciava-lhe o nome. Apresentou-se e foi instruí-
do a seguir sozinho pelo corredor.
O exame de ressonância magnética, cem vezes
pior que o de raio-X, não desviou de Samuel o tor-
mento gerado pelo olhar ferino que recebeu do pai
na sala de espera. Já nem pensava na dor que sentia.
Enfiou-se na cápsula medonha e aguardou silencio-
so pelo fim do moroso processo.
Completaram-se os protocolos, e Samuel foi in-
formado de que o resultado sairia no dia imediato.
Assim, foi liberado.
Cerca de uma e meia da manhã, pois, saíam pai e
filho do hospital. Entraram no carro. João Arnaldo
aguardou cruzasse a primeira esquina, então se pôs
a falar:
— Olha, Samu. É o seguinte. O que eu vou te falar
termina nesse carro e morre para sempre — dizia,
e o olhar se lhe direcionava ao trânsito. — Preste
bem atenção e calcule o tamanho da sua sorte e da
sua dívida. Meça bem a dimensão do que aconteceu
hoje na sua vida. Eu estava, em casa, assistindo à
televisão, quando me toca o telefone: era seu núme-
ro que chamava. Atendendo, tomo um susto, pois
falava um sargento da polícia. Ele intimou-me ao
hospital sem maiores explicações. Aliás, seu celular
e sua carteira estão aí, no porta-luvas. Pode abrir e
pegar. Recebi das mãos do sargento.
Samuel já se havia esquecido do inseparável apa-
relho multifuncional. O pai continuou:
— Então, cheguei ao hospital desesperado. O
sargento esperava-me sentado. Viu-me entrar e per-
27Samuel
guntar por você. Já a moça da recepção sabia do
acidente, todo o hospital sabia. Fui informado que
você passava bem e, de repente, o militar toca-me o
ombro, apresenta-se, e convida-me para uma con-
versa em particular. Eu queria, antes de tudo, ver
você. Desconfiei que seu estado não fosse exata-
mente o que me informaram, mas respeitei a farda e
segui para o estacionamento do hospital. O homem
levou-me para onde estacionara a viatura. Abrin-
do o banco do passageiro, sacou uma prancheta.
Então olhou em redor, a garantir que estávamos a
sós, e me disse que você havia furado um semáfo-
ro vermelho, sem usar o cinto de segurança, e que
uma van, trafegando em outro sentido, colidiu com
o seu carro. O sargento era o mesmo que lhe pres-
tou socorro, disse ter conferido o relatado por tes-
temunhas e através de câmeras de monitoramento.
A van, ele disse, trafegava normalmente, e você foi
o infrator único no acidente. Executando a perícia,
ele disse ter encontrado uma lata de cerveja aberta
dentro de seu carro. Você estava, mais uma vez, be-
bendo e dirigindo.
Samuel teve o impulso de mentir. Mas se calou,
posto o pai não perguntasse, somente estivesse rela-
tando as palavras do policial. Prosseguia João Ar-
naldo, elevando o tom:
— Quantas vezes te falei sobre a sua irrespon-
sabilidade? Aí está: seu carro, provavelmente, terá
perda total. Mas o seguro te dará outro, veja só
que maravilha! Agora você deve estar se perguntan-
do: por que dormirei em casa, ao invés de dormir
28 Luciano Duarte
na cadeia, já que o policial achou cerveja no meu
carro? É bem isso, não é mesmo? Você, bebendo e
dirigindo, deveria estar na cadeia após esse aciden-
te! Mas acontece, e julgue por si mesmo!, aconte-
ce que a van que bateu no seu carro era uma van
roubada cujo motorista é um criminoso procurado
há anos pela polícia. O sargento mostrou-me a fi-
cha criminal do homem e disse sem meias-palavras:
“Esse acidente poderia, muito bem, destruir a vida
do seu filho para sempre!”. Mas ele disse ter olhado
pra você e visto em sua face o próprio filho. Então
ele emendou: “Sabe o que, senhor João Arnaldo?
Eu acredito em Deus! E acredito que um acidente
como esse faz os sobreviventes renascerem. O seu
filho poderia ter morrido, mas não morreu. Poderia
ter matado um inocente, mas não matou. Pelo con-
trário, a imprudência do seu filho ajudou nós, da
polícia, a capturar um dos piores monstros de Belo
Horizonte. Então eu me pergunto como é que pode
um homicida, um estuprador dessa raça, com mais
de trinta crimes na bagagem, que há anos faz a po-
lícia gastar rios de dinheiro na sua captura, ser pego
justamente num acidente de trânsito? A resposta é
óbvia: foi Deus! Deus colocou o carro do seu filho,
naquele instante, entravando a rota do monstro. E
se Deus não quis o seu filho morto, se Ele colocou
justo a mim, que perdi um filho jovem, vendo mor-
rer-lhe todas as esperanças, vendo esmagado todo
um futuro, para socorrer o seu filho, então, senhor
João Arnaldo, isso para mim tem um sentido maior!
Eu não prenderei o seu filho. Não deixarei que acu-
29Samuel
sem o seu filho de tentativa de homicídio doloso. A
lata de cerveja está no lixo e eu espero que o senhor,
e principalmente o Samuel, lembrem-se desse dia
para o resto de suas vidas: o dia que a misericórdia
de Deus quis afastar de vocês a desgraça”.
Assim finalizou o pai.
31Samuel
Capítulo IV
Samuel entrou em casa aéreo, profundamente co-
movido. A mãe tentou fazer inferno do acidente,
importunou o filho quanto pôde; mas este, calado,
não lhe respondia, sequer lhe prestava atenção.
Na cozinha Samuel encheu a si um copo de água
que bebeu logo após pousar na língua os analgési-
cos recomendados pelo médico. Tinha fome, mas
a mãe lhe esganiçava no ouvido. Deliberou então
rumar ao quarto, onde se trancou.
Finalmente, silêncio. Na clausura, de luzes apa-
gadas, sentou-se apoiando as costas na cabeceira da
cama. Suspirou: que dia! que infortúnio e sorte ao
mesmo tempo! quão próximo estivera da desgraça!
32 Luciano Duarte
A dor no ombro pareceu-lhe insignificante. Atirou
o celular sobre o criado-mudo: já sabia que Gutão
se pusera a par do ocorrido e solicitava novas. Mas
quem seria Gutão? Que satisfação lhe devia? Talvez
Gutão quisesse comentar as notícias com terceiros:
decerto já era o acidente assunto de outras rodas…
Tanto fazia! Tudo se tornara tão pequeno, tão me-
díocre que essas banalidades não despertavam em
Samuel senão piedade. Agora ele bem via: Deus agi-
ra, diretamente, em sua vida, e a seu favor. Que-
rer lição maior? Só de pensar no risco que correra
causava-lhe arrepios: estava, em casa, no próprio
quarto, quando poderia estar na cadeia, ou talvez
morto, paralítico, quem saberia dizer? O alívio era
imenso, mas lhe não freava o tremor. E os sinais
se conectavam com nitidez descomunal: primeiro, a
promoção intempestiva, a alegria, a abertura de no-
vas possibilidades; depois, o acidente, o ver quase
cair tudo por terra, o escancaramento de sua vulne-
rabilidade. Então, a misericórdia, a graça divina, o
ensejo único caindo dos céus. Seria um estúpido não
percebesse a claríssima mensagem latejando-lhe no
ombro direito, ardendo no braço enfaixado. Coin-
cidência? Sorte? Isso é que seria, em verdade, acre-
ditar no absurdo! E percorrendo-lhe com os olhos
o quarto, reparou as roupas que passara na véspera
dobradas em cima de sua escrivaninha, o computa-
dor com um lembrete colado na tela, os carrinhos
de brinquedo dos tempos de criança, dispostos
numa prateleira logo acima da televisão, ladeando
meia dúzia de livros que lera em adolescente… em
33Samuel
tudo aquilo sentiu um aconchego, um conforto que
lhe fez lacrimejar. “Morto, eu poderia estar mor-
to!”. Então lhe vieram em mente as cenas de um
passado afetuoso, que lhe lembraram os ternos dias
de sua infância junto aos primos Julinho e Vinícius
na casa dos avós, jogando futebol na rua, machu-
cando-se; — tivera sempre essa inclinação para as
feridas… — lembrou-se do dia em que, ralando-se
inteiro após cair de bicicleta, julgou-se o “menino
mais infeliz do mundo”; riu-se ao recordar o ar-
dor dos pequenos machucados… E orçou quanto
conquistara: nunca foi aquele em que se deposita-
vam esperanças; na escola, desde pequeno, não foi
senão aluno mediano, sofreu para avançar no en-
sino médio. Entre os colegas, nunca se lhe deram
destaque, nunca angariou condição de popular; em
verdade, sempre se viu meio aos tímidos, aos discre-
tos, e conquanto não fosse frequentemente alvo de
piadas maliciosas dos garotos populares da escola,
também lhe não nutriam respeito, não lhe direcio-
navam atenção. Com as garotas nunca teve muito
tato; não lhes agradava, era evidente: seu perfil não
despertava atração. E, por isso, viu-se ao longo dos
anos convivendo com um recato, um bloqueio, uma
ansiedade toda vez que se punha a conversar com
qualquer menina de sua idade. Se fosse bonita, en-
tão… esquece! Nem comunicar-se com clareza con-
seguia, quase sempre passava por ridículo… Mas
lhe veja agora a situação: vinte e cinco anos e a ge-
rência de vendas de uma empresa de médio porte!
Haveria gente de melhor fortuna, decerto, mas o
34 Luciano Duarte
que alcançara não era de se desprezar…
Assim, Samuel ajuizou a quase queda poder ser-
vir-lhe a um impulso maior, mais seguro e defini-
tivo. O flerte com a perda total fê-lo valorizar o
que tinha, iluminou-lhe as prioridades e instou-lhe
a proceder naquela noite com um julgamento to-
tal de sua conduta. O primeiro vilão era o álcool:
que lhe trouxe alguma vez a bebida? Socialização?
Amigos? Mas que tipo de amigo lhe condicionaria
o afeto a rodas regadas à cerveja? Em adicional:
quanto lhe custavam todas aquelas noites de farra!
Se tinha como meta a independência, pois quanto
a anteciparia se deixasse de beber! Além do mais:
necessitava das noitadas? O prazer já não era o de
outros tempos: tudo ocorria muito mais por uma
questão de hábitos… E o tempo perdido? A bebida,
gananciosa, além da noite tomava-lhe o dia imedia-
to. O raciocínio lhe não deixava brechas: era o ál-
cool, em todos os quesitos, prejudicial, e quase lhe
tomara tudo. Não, não mais beberia! Expulsaria de
sua vida esse câncer! Faria o que o médico orde-
nasse, trataria do ombro, da costela, do que fosse;
pagaria a apólice do seguro; enviaria, já no próxi-
mo dia, uma mensagem ao chefe informando-lhe do
ocorrido, prevenindo-lhe de uma possível ausência;
afastaria de si tudo quanto o puxava para baixo.
Então cuidaria aproveitar a oportunidade que lhe
fora jogada do céu: seria o melhor gerente de ven-
das da história da empresa; geraria valor. Poupan-
do, compraria a tranquilidade e a aposentadoria
precoce. Era jovem, tinha potencial e motivação
35Samuel
para conquistar o que quisesse. E acima de tudo:
sabia Deus estar do seu lado! Sabia-se amparado,
incentivado diretamente pela providência para dar
cabo a seus planos, para seguir, desta vez, pelo úni-
co e feliz caminho, sem desvios e sem cambalear.
Que satisfação era ver a mente iluminando-se num
clarão repentino! Como tudo se havia tornado sim-
ples! Bem lhe dizia o avô Deus escrever certo por
linhas tortas…
Envolto num turbilhão de sensações, dolorido e
emocionado, agradecido e feliz, Samuel pegou no
sono devaneando-lhe o futuro. A partir deste dia
haveria uma mudança drástica em sua conduta.
Realmente, deixou de beber: o costume arraiga-
do através de anos sumiu-lhe da rotina. No início,
houve as presumíveis dificuldades; Samuel venceu-
-as com obstinação. O acidente cristalizou-lhe a
personalidade, deu-lhe força, afastando-lhe das dis-
trações juvenis. Em pouco tempo, percebeu que a
vida lhe havia melhorado: sobrava mais dinheiro e
mais tempo, sentia-se melhor. No ombro rompeu-
-lhe um tendão. Não haveria, por ora, necessidade
cirúrgica; mas quarenta sessões de fisioterapia fo-
ram prescritas pelo doutor. Na primeira semana o
inchaço sumira, levando junto de si a dor. Os mo-
vimentos rapidamente tornaram à amplitude ha-
bitual. Samuel não faltou à labuta um dia sequer:
trabalhou, ocultando da empresa o atestado médi-
co, o que muito lhe agradou o chefe. Então, se até
aqueles dias a vida lhe havia sido boa, foi quando
realmente começou a melhorar…
37Samuel
Capítulo V
Correram três meses do acidente. No trabalho,
Samuel aportou uma proatividade que chacoalhou
todo o setor de vendas da empresa. Motivado, coor-
denou estratégia habilíssima que logo se converteu
em indicadores. Os relatórios semanais passaram
a trazer satisfação generalizada, e o jovem gerente
tornou-se alvo frequente de elogios do chefe.
Num domingo de julho o sol raiou trazendo anos
a Samuel. Às oito horas de uma manhã cerúlea, ele
levantou-se, escovou os dentes e recebeu, na cozi-
nha, as felicitações do pai, que já trabalhava nos
arranjos do almoço que estava programado para a
comemoração em família.
38 Luciano Duarte
Foram convidados os avós paternos e o tio, com
consorte e dois filhos: eram os familiares que resi-
diam na capital. A família materna distava a quase
quinhentos quilômetros em direção ao Triângulo
Mineiro.
Samuel, findo o café da manhã, pôs-lhe as mãos
em auxílio do pai, que limpava um pescado. O pai
pediu-lhe tratasse do preparo de alguns vegetais e
raízes para a salada. Em pouco recebia o abraço da
mãe, que havia saído ao supermercado a finalizar a
compra dos ingredientes para a festa.
A seis mãos trabalhavam, e não era mais que dez
e meia da manhã quando os preparativos findaram-
-se. Na geladeira sobremesas, saladas, temperos e
acompanhamentos; o peixe a descansar em marina-
da; e os três familiares apressaram-se a tomar um
banho e aprontar-se, pois os convivas chegariam ao
meio-dia.
Viviam em casa de dois andares com modesta
área externa nos fundos, que dispunha de uma hor-
ta, uma churrasqueira e espaço para três ou quatro
mesas. Do segundo andar, onde lhe ficava o quarto,
Samuel ouviu tocar o interfone. Súbito, é chamado
pela voz da mãe:
— Samu! Faz o favor…
Então, já preparado para a recepção, desceu as
escadas, onde Maria Elvira lhe esperava forçando
disfarçar a alegria.
— Seu avô tá té chamando lá fora! — disse ela,
com olhar denunciando a surpresa.
Atento aos óbvios sinais, Samuel caminhou em
39Samuel
direção à porta imaginando o que lhe poderia espe-
rar. Os avós sempre cuidaram presentear-lhe duas
vezes ao ano: no aniversário e no natal. Geralmente
recebia alguma soma em dinheiro, posto os avós
soubessem que ninguém melhor a lhe comprar algo
do agrado que não a si mesmo. Acertavam. E o di-
nheiro festivo sempre foi a Samuel motivo de muita
alegria, principalmente porque, antes de começar a
trabalhar, praticamente não dispunha de orçamen-
to.
Abrindo o porta que dava para a rua, a surpresa:
os avós, à esquerda, distante dois metros dos tios
e primos, à direita. Sorrisos radiantes. Samuel não
atinou. Não levou dois segundos para que todos
apontassem os braços para a mesma direção: entre
eles, havia um carro cuja lataria remetia a um espe-
lho. Era este carro um presente para Samuel.
A euforia que lhe brotou no peito arrancou-lhe
lágrimas e contagiou-lhe o semblante. Abraçou e
beijou calorosamente cada um dos parentes, que
lhe explicaram a origem do presente: decidiram-se,
logo após o infortúnio do acidente, juntar forças
para comprar-lhe um novo carro, visto o seguro ti-
vesse se desdobrado para consertar o veículo antigo,
negando-se a assumir a perda total. Assim, sabendo
um conserto jamais restaurar os componentes ao
estado de origem, os familiares compadeceram, e o
presente contava também com a participação dos
pais.
Que tarde seria essa! Havia emoção sincera com
o contentamento de Samuel. Ligando e guardando
40 Luciano Duarte
o novo carro na garagem, o presenteado quedou
longos minutos a admirá-lo: era um popular usado,
não há de negar, mas estava num estado impecá-
vel de conservação. Pouco mais de um ano de uso,
dono único, modelo dois anos mais recente que o
seu. Em cobre, valia quase o dobro do antigo, e a
satisfação não poderia ser maior.
Nesse clima, foram todos para a área externa da
casa. A churrasqueira ansiava pelo estalo inicial.
João Arnaldo agitou a celebração, preenchendo de
cerveja os copos que aguardavam sobre uma mesa
de plástico. Brindaram ao aniversariante e refres-
caram-se da bebida geladíssima. Em pouco a chur-
rasqueira bafejava e o ambiente era estimulado por
um aparelho de som. Bebiam todos, exceto Maria
Elvira.
Samuel, logo após o brinde e gole eufórico, perce-
beu que lhe quebrava a promessa. Sentiu-se tomado
pelo desânimo: “Prometi-me não beber…”. Então
se iniciou o debate mental. Disfarçando, foi à co-
zinha, na parte interna da casa, para ponderar-lhe
as atitudes. Passou da cozinha para a sala, quando
se sentou no sofá. Alisando-lhe o queixo, repassou
mentalmente as expressões radiantes dos parentes,
toda a alegria que se lhes emanava desde a cena na
rua. O ambiente era feliz, contagiante, talvez como
nunca fora. Pensou no tamanho da desfeita que se-
ria recusar o copo, no balde de água fria que jogaria
sobre os parentes que lhe presentearam e queriam
vê-lo, especialmente nesta data, relaxado e alegre.
“Tenho de beber. Não posso me recusar a beber.”
41Samuel
Suspirando, levantou-se e voltou à área externa.
Em trinta minutos os goles acompanhava-os
churrasco. Neste tempo, o pescado deixou a sal-
moura rumo ao forno. A excitação já havia cedido
espaço a conversas serenas e alegres. Formaram-se
duas rodas: a primeira, entre as senhoras e Julinho,
o primo caçula, que contava dezoito anos. Estavam
em mesa separada, a fugir da fumaça que contami-
nava o ambiente. Do outro lado estavam o restante
dos homens, estando João Manoel, o vetusto da fa-
mília, sentado junto a Samuel e Vinícius em redor
de uma mesa, enquanto João Arnaldo e o irmão
mais velho, Raimundo, cuidavam do churrasco.
Este temperava asas de frango em pia ao lado da
churrasqueira; aquele virava carnes.
João Manoel contava aos netos uma história en-
graçadíssima: o dia em que ensinou Raimundo a
pescar. O primogênito, inexperiente, julgara ter
fisgado um jacaré quando o anzol fincara-se num
tronco afundado em terra, visto a desatenção do
garoto em jogar a linha próximo à margem. “É
muito forte, pai! Não puxa!” — o avô gesticula-
va relembrando o desespero do filho, levando os
garotos à gargalhada. João Arnaldo, percebendo o
assunto, ameaçou comentar com o irmão, mas de-
sistiu da empreitada. Acontece que o pescador da
história fora ele mesmo, e o pai cometia confusão.
Melhor nada dizer… Deixe que o querido velho ria
até estourar de alegria!
Quando o almoço foi posto em mesa, já havia
tempo que o pescado atiçava os olfatos. Todos em
42 Luciano Duarte
roda, os manjares ao centro, e cada um servindo o
próprio prato, com exceção dos idosos, que foram
servidos antes de todos por Maria Elvira.
Garfadas, sorrisos e elogios: assim se resumiu este
almoço que se estendeu por toda a tarde. A come-
moração terminou ao escurecer, quando as conver-
sas abrandaram e o álcool trouxe-lhes sono. Samuel
foi novamente abraçado com afeto por cada um dos
familiares, que tomaram o rumo das próprias casas.
Após rápida faxina na área externa, Samuel su-
biu ao seu quarto, sentindo dilatado o efeito da
cerveja. Ébrio, não estava. Estava? Talvez leve,
estimulado… Chegando ao quarto pôs-se à jane-
la, a pensar no seu dia. A vista não era agradável:
fronteiro à casa de Samuel, um lote vago, em muro
chapiscado e coberto de pichações. Postes de onde
pendiam emaranhados de fios. A cerca em espiral
sobre o muro da própria casa também contribuía
para a poluição visual. À esquerda do lote, porém,
um oiti, que destoava do cinza predominante. Seja
como for, tanto fazia… Que dia fora aquele! Talvez
tivesse sido o melhor de toda a sua vida. Nem uma
única ironia na comemoração, nem uma única de-
savença. O presente, os sorrisos… o álcool lhe não
fora inimigo, pelo contrário, havia estimulado a so-
cialização. Como era bom ver o avô a contar casos!
As sutilezas do velho eram deliciosas: um humor
diferente, sem maldade, talvez até infantil, que não
constrangia nem desagradava…
“Tenho família…” — e, olhando ao céu, Samuel
agradeceu.
43Samuel
Capítulo VI
No dia seguinte, Samuel brindou com o novo
possante a sua vaga no estacionamento da empre-
sa. Como habitual, estacionou a quinze minutos do
início do expediente, o suficiente para que todo o
setor lhe analisasse a novíssima aquisição. Já havia
assunto para a segunda-feira…
Era costume de Samuel, nas primeiras horas da
segunda, avaliar o desempenho da semana anterior.
Solicitava um relatório de cada um dos três vende-
dores de sua equipe, que havia de ser entregue nas
sextas. Assim, punha-se a analisá-los logo que a se-
mana começava, a ver como o planejamento corria
e se cabia alguma ação adicional.
44 Luciano Duarte
Havia uma planilha elaborada por Samuel que
servia de guia ao trabalho de venda e pós-venda do
setor. O gerente fazia o levantamento da carteira
de clientes, seccionava-os em categorias, adicionava
os de recente prospecção e traçava uma estratégia
para que os vendedores prosseguissem com o con-
tato comercial. Cada vendedor tinha uma carteira
individual de clientes, sobre os quais recebiam co-
missões pelas vendas, de forma que um vendedor
jamais poderia abordar o cliente do outro. Desta
forma, cada vendedor motivava-se a captar novos
clientes para a própria carteira, sabendo que, uma
vez captados, passariam a comissioná-lo em quais-
quer vendas que a empresa lhes realizasse. Samuel,
extremamente organizado, estruturara uma guia de
programação onde cada vendedor tomaria conhe-
cimento, após o almoço da segunda-feira, de quais
contatos comerciais deveria fazer na semana, em di-
visão por datas, temas e clientes, ficando a critério
do vendedor o horário e estratégia de abordagem,
que poderia ser feita via e-mail ou ligações diretas.
Feito o contato, os vendedores deveriam alimen-
tar a planilha com o resultado e suas observações.
Havia campos onde o próprio vendedor avaliava a
eficácia da estratégia, a possibilidade de efetivação
de novas vendas e outras minúcias que interessa-
vam ao planejamento do setor. Samuel munia-se de
todas essas informações e definia as diretrizes da
semana. Não era de sua política atravessar o ven-
dedor e entrar em contato direto com os clientes,
ainda que dispusesse de bom relacionamento com
45Samuel
eles: sabia que tal atitude geraria ressentimento em
sua equipe e raramente encontrava razão de fazê-lo.
Nesta especial segunda-feira, pois, Samuel entrou
em sua sala, separada das demais do setor, e co-
locou-se a analisar os resultados da última sema-
na. Havia um vendedor que lhe estava atiçando os
nervos. Ocorria o seguinte: há cerca de dois meses,
Samuel, em iniciativa própria, abordou um poten-
cial cliente por telefone. Tratava-se de uma indús-
tria enorme do ramo alimentício que certamente era
mercado para sua empresa, produtora de pulveriza-
dores eletrônicos para variados fluidos e aplicações.
Samuel fora informado pelo chefe do histórico de
contato com essa empresa: a vários vendedores já
havia sido delegada a tarefa no passado, sem ja-
mais efetivarem uma única venda. Samuel tomou o
desafio para si e, ao telefone, foi transferido para o
comprador. Que surpresa! O comprador portou-se
com enorme receptividade: disse consumir em larga
escala várias classes de pulverizadores, comprados
em sua maioria de empresa tal que oferecia ótimos
preços. Disse, também, enfrentar dificuldade em
encontrar opções no mercado, vendo-se um pouco
refém de seu fornecedor majoritário, e concedeu to-
tal abertura para que Samuel lhe apresentasse o seu
produto, convidando-o para uma visita.
“Não é possível!” — foi o que deu na cabeça do
gerente. E, na mesma semana, lá estava Samuel en-
cantado no pátio industrial do potencial cliente,
imaginando a dimensão do impulso que aquela vi-
sita poderia trazer-lhe aos gráficos de vendas. Tor-
46 Luciano Duarte
nando à empresa, Samuel teve a certeza que possuía
condições de introduzir seus componentes nos pro-
cessos da companhia visitada, e convenceu-se que a
visita convertera um novo cliente. Assim, por uma
questão de burocracia interna, o gerente deveria de-
legar um vendedor responsável pela nova empresa:
deu o presente a Jorge, colaborador mais experiente
da equipe, que beirava os cinquenta e cujo encéfalo
encapava-o respeitável calvície. Acontece que Jorge
orçava pelos dez anos de casa e pusera-se despeita-
díssimo vendo o jovem Samuel roubar-lhe a promo-
ção. Passou a ser elemento problemático que colo-
cou o novo gerente em péssimos lençóis. De Samuel
fora exigido um tato descomunal para lidar com a
frustração de um funcionário antigo, querido, com-
petente, que lhe passara a invejar. O próprio Val-
mir tinha excelente relacionamento com Jorge; elo-
giava-o com frequência. Mas se Jorge, pela frente,
permitia-se umas poucas palavras de insubordina-
ção ao novo chefe, pelas costas o que fazia era uma
verdadeira maquinação contra Samuel. Parcialmen-
te em ciência, o gerente tentava, de toda maneira,
estreitar relações, agradá-lo, pois o desempenho de
Jorge era fundamental num setor composto por três
vendedores. Assim, Samuel presenteara-o com um
cliente que poderia, quem sabe?, quase lhe dobrar
a comissão.
Jorge, no entanto, alimentava há sete semanas a
planilha relatando o insucesso dos contatos. Samuel
não entendia: “Como nenhum retorno, nenhuma
expectativa de venda, nenhuma previsão de orça-
47Samuel
mentos? Estive pessoalmente na empresa e vi-lhes a
demanda. O comprador dera-me total abertura…”.
E passou a ponderar que Jorge talvez mentia, talvez
não fizera contato algum com o potencial cliente,
talvez, acomodado, passara a apoiar-se-lhe nos dez
anos de casa e desleixar dos objetivos do setor. O
sangue ferveu-lhe: “Jorge está fazendo força con-
tra a empresa, puxando-nos para trás”. O “contra
a empresa” evidenciava o profissionalismo de Sa-
muel. “Não posso permitir um funcionário a agir
desta forma…” E, agitado pelas pulsações, teve um
impulso de coragem: “Eu sou o gerente!”.
Levantou-se e levou o semblante carregado à sala
contígua, onde o setor trabalhava em mesas dispos-
tas em plano aberto. Chegou num momento em que
todos riam. Foi pôr-se ao limiar da sala para que
ouvisse a voz de Lúcia:
— Carrão, hein, chefe? Para…
— Jorge, é o seguinte — Samuel atalhou-a: — eu
visitei pessoalmente a Tamóios, eu conversei pes-
soalmente com o comprador da Tamóios, eu vi pes-
soalmente pulverizadores na linha de produção da
Tamóios e ouvi da boca do comprador da Tamóios
que era interesse da Tamóios testar e desenvolver
novos fornecedores para a nossa linha. Eu quero sa-
ber o que está acontecendo para que nós não tenha-
mos enviado nem um único pulverizador de gra-
ça, para teste, em sete semanas do cliente sob sua
responsabilidade. Qual é o problema? Tá faltando
algum recurso? Você tá esperando alguma coisa?
Porque eu, e nós, queremos e precisamos vender.
48 Luciano Duarte
O setor arrepiou vendo, pela primeira vez em três
meses, o jovem chefe exaltado. Sim, era o chefe que
falava. Jorge, porém, após segundos congelado, de-
volveu-lhe em insolência:
— Eu acho que não entendi muito bem, Samuel…
O chefe respondeu-lhe em novo ímpeto:
— Eu quero entender por que, em sete semanas, a
gente não tem um único pulverizador na Tamóios.
Silêncio geral. As vendedoras, coitadas, já se ha-
viam ajeitado na cadeira e pregado os olhos na tela
do computador. Dez anos de casa ampararam a
réplica de Jorge que, em olhar desdenhoso, assim
respondeu o chefe:
— Por que você não pega o telefone e disca para a
Tamóios? Talvez eles te expliquem o porquê…
Era demais. O limite do respeito havia sido ultra-
passado. O gerente teve o impulso de berrar contra
o subordinado, mas, antes que da boca aberta es-
tourasse o grito, conteve-se. O dedo instintivamen-
te erguido voltou-se à posição inicial e, em olhar va-
rado pela cólera, Samuel deu meia-volta à sua sala.
49Samuel
Capítulo VII
Encerrado em sua sala, Samuel deixou o dia cor-
rer. A experiência já lhe havia mostrado os benefí-
cios de pôr a raiva a descansar. Distraiu-se de afa-
zeres burocráticos do setor.
Quando soou o sinal anunciando o termo do
expediente, pôde cruzar com Jorge próximo à má-
quina de ponto; não se olharam, mas não houve
agressão.
O novo carro de Samuel, saindo da empresa, ti-
nha destino obrigatório. O mesmo ombro que obri-
gara o gerente de vendas a cumprir quarenta ses-
sões de fisioterapia agora lhe exigia três meses de
50 Luciano Duarte
fortalecimento muscular. E não é que Samuel pegou
gosto do negócio?! Havia pouco mais de mês que
frequentava uma academia próxima à sua casa, e
não faltara sequer um único dia!
Lá pelos dezesseis, sempre magro desde a infân-
cia, Samuel iniciou-se na musculação a ver se lhe
alargava o físico franzino. Muito antes que a em-
preitada pudesse apresentar resultados vistosos, isto
é, exatamente dois meses depois, o jovem desmatri-
culava-se do ginásio visto ter conseguido o primeiro
emprego. Dali em diante seria de casa ao trabalho,
do trabalho ao curso técnico, e deste para casa.
Então os anos correram: o braço e o tronco sem-
pre abaixo da média, a cintura paulatinamente
angariando respeito e a rotina consumindo-lhe os
dias. Vinte e quatro anos e formava-se em gestão de
qualquer coisa: a barriga já lhe escondendo a fivela
do cinto e o físico exaltando-lhe os olhos negros
e vivos herdados do pai. Por essa época passara
a cortar mais baixo a lateral do cabelo, deixando
por cima um modesto topete, que lhe completava
o visual, bem à moda vigente. Em traje que lhe ca-
muflasse o vigor, poder-se-ia cravar-lhe o epíteto
moderno, talvez até jovem moderno…
Deste histórico, eis que novamente Samuel põe-
-se diante de uma academia. Mas agora o contexto
havia mudado. De início, a própria rotina permitia-
-lhe umas horas de lazer à noite, posto não tivesse
que estudar. O novo ginásio, em adicional, era sig-
nificativamente superior ao antigo: se antes Samuel
tinha de ir a pé ao treino, sujeitando-se a intempé-
51Samuel
ries ou assaltantes no trajeto, agora se via dispondo
de um aconchegante estacionamento interno. Além
disso, o próprio exercício físico passou a agradar
o jovem que, após a rotina estressante na empresa,
encontrou um meio para descarregar-lhe as irrita-
ções. O banho pós-treino passou a trazer-lhe um
agradável deleite, e mesmo as noites de sono passa-
ram a ser melhores.
Assim, Samuel deixou a empresa nesta especial
segunda-feira e rumou à academia. Cumpriu a roti-
na: guardou-lhe o carro no estacionamento, apeou
sustendo uma bolsa esportiva e dirigiu-se ao ves-
tiário onde se havia de trocar. Eis que ocorre algo
incomum.
O vestiário ficava aos fundos do ginásio: o ma-
triculado tinha de atravessar a recepção, onde lhe
deixava a digital, e então seguia em diagonal pelo
salão aberto, passando por entre os aparelhos, che-
gando ao extremo oposto da recepção.
Samuel, logo em liberando a catraca com o pole-
gar direito, sentiu uma ligeira inquietude. Fechou-
-lhe o semblante; mirava o chão e caminhava. Dez
passos e alça a vista. Súbito, o instinto força-lhe os
olhos à direita. Tremeu sobre os pés: o olhar levou-
-lhe a uma pintura que caminhava graciosamente
sobre uma esteira; a pintura olhava-lhe e sorria,
como que tapando os lábios e conversando com
uma amiga que se exercitava em esteira vizinha.
O susto fez Samuel desviar a vista logo se per-
cebeu alvo do olhar. Agitou-se. Baixou a cabeça,
cambaleado por emoção fortíssima que brotou ar-
52 Luciano Duarte
rancando-lhe um suspiro. A mente começava a…
— Ou! — censurou-lhe um sujeito.
— Desculpa, desculpa… — Samuel havia trom-
bado no cidadão.
Veio-lhe um tremor ainda mais forte. Samuel des-
viou-se do rapaz e zarpou ao vestiário.
Entrou como uma flecha e buscou um banco. Sen-
tou-se e suspirou. “Como isso? Que vexame!” — os
dedos já lhe entremeavam o topete e os olhos se
viam esbugalhados. Articulou novamente: “Menti-
ra! É pegadinha!”. Como é que aquele anjo estaria
olhando e sorrindo para ele? Não havia margem
para engano. Ou havia? Seria ele o alvo dos olha-
res, a razão do sorriso? Talvez seria outro em sua
direção… Sobre o caráter do sorriso a experiência
lhe afastava de qualquer suposição: não era riso de,
mas riso para, sem a menor sombra de dúvida! Era
saber quem seria o abençoado… “Inacreditável!
Isso não aconteceu!”
Samuel finalmente levantou-se, com pensamentos
ainda extasiados. Pôs-se a trocar de roupa quando
o lado esquerdo do cérebro passou a trabalhar: “É
bom que eu não seja tão estúpido como outrora.
Estou aqui a conjeturar um genuíno absurdo, quan-
do a maior possibilidade é que uma princesa como
aquela jamais sorria para alguém como eu. É usar
da razão a quebrar um pouquinho menos a cara,
como provavelmente irá acontecer…”. E assim con-
seguiu abrandar-lhe as expectativas, acalmar-lhe o
impulso que lhe impelia a abrir os braços e gritar.
Mas esquecia o jovem de um detalhe importantís-
53Samuel
simo: não mais percorria a academia um franzino
sedentário, e sim o gerente de vendas trajado em
social.
Já em vestes de treino, Samuel olhou-se no es-
pelho: viu-se ajeitado, talvez como nunca estive-
ra. Deu um leve toque no topete à direita e saiu de
fronte erguida.
Foi pôr o pé no piso emborrachado que se abria
diante do vestiário e olhar de esguelha à área onde
se enfileiravam as esteiras. Não foi possível verifi-
car se ainda caminhava a princesa. Então, andando
em linha reta ao local onde alongaria, distraiu-lhe a
tensão olhando em direção oposta. Observou qual-
quer coisa enquanto a mente perguntava: “E se ela
me olhar novamente?”. Aí estava uma bela ques-
tão. Abordá-la? Quanta ousadia! Samuel já se via
gaguejando e passando vexame diante da princesa.
Chegou ao conjunto de barras fixas onde se alon-
garia. Dali teria ângulo para mirar as esteiras. Vi-
rou-se, esticou os dois braços apoiando-se numa
barra e alçou a vista. Mais uma vez os olhos se lhe
cruzaram com os da garota.
“É verdade! É para mim!” — o choque arran-
cou-lhe um sorriso e forçou-lhe o olhar para baixo.
“Agora é certeza, Deus!” — e pensava, desacredi-
tando da própria sorte. Tratava-se de uma jovem
magnífica, que ele havia admirado em outra ocasião
enquanto treinava: pouco mais baixa que ele; cabe-
los sedosos, lisos, longos e castanhos; físico atléti-
co; pele rosada; lindos olhos amendoados e lábios
que sugeriam o beijo. Um espetáculo! E quando se
54 Luciano Duarte
punha a caminhar, então, é que a graça passava a
hipnotizar: o compasso leve, jeitoso, o cadenciado
movimento de quadril… um encanto! E ali estava
ela, de cabelo atado em rabo de cavalo, caminhan-
do e sorrindo-lhe indiscutivelmente…
“Que fazer?” — foi a questão que passou a ator-
mentá-lo durante o treino. Transitou entre dois
aparelhos, cumpriu as séries recomendadas pelo fi-
sioterapeuta, vez ou outra olhando com discrição
às esteiras. Abordar diretamente a garota seria lou-
cura, quanto mais ao lado de uma amiga… Inter-
romper-lhes-ia o diálogo, o constrangimento seria
imediato. E depois, que dizer? “Meu nome é Sa-
muel”? Ridículo, ridículo… Controlar a ansiedade,
então, seria impossível. Faria papel de palhaço.
Eis que, de repente, finalizando um exercício,
Samuel é levemente tocado no ombro. Vira-se: a
princesa! O susto lhe não permite reação. A garota
pergunta sorrindo:
— Como é seu nome?
— Samuel.
E estendendo a mão, ela remata:
— Prazer, Daniela.
As mãos se tocam. Samuel sente o contato da
pele fina, fria e delicada. Daniela, olhando-lhe nos
olhos, vira-se e deixa o ginásio, em passo leve, sor-
rindo e acompanhada da amiga.
55Samuel
Capítulo VIII
Daniela, Daniela… a noite correu e o nome per-
manecia ecoando na cabeça de Samuel. A menina
perguntara-lhe o nome. Sorrira e dissera: “Prazer”.
Nem em sonho, nem em filme Samuel esperaria que
uma Daniela lhe perguntasse o nome, sorrisse-lhe.
Vinte e seis anos e jamais fora abordado daquela
maneira. E logo assim, de repente, por uma prince-
sa, uma Daniela? Inacreditável!
Samuel completou o restante do treino aéreo, ex-
tasiado. Sorria de si para si como um louco. Cin-
co minutos após a partida da menina deu-lhe um
arrependimento: “Como lhe não pedi o número?
Por quê?”. E viu como o sorriso da garota não só
56 Luciano Duarte
lhe dava abertura, como instava, implorava pelo
pedido. Julgou vexatórios os poucos segundos que
Daniela se lhe pusera de frente, aguardando a ini-
ciativa. E que fizera Samuel? Nada, absolutamente
nada. Congelara, travado, surpreso e incapaz de
reação. “Como fui burro!…”
E, nesse misto de enlevo e decepção, nosso ge-
rente de vendas chegou em casa. Daniela! Recons-
truiu-lhe os lábios enquanto se banhava: finos, si-
nuosos na parte superior com laterais pontiagudas,
levemente arqueadas; por baixo, o traçado curvan-
do-se delicadamente, deixando o lábio inferior em
discreta evidência. Para Samuel, que detestava os
procedimentos cirúrgicos em voga que preenchiam
o lábio superior das garotas a torná-lo como que in-
flado, via em Daniela a perfeição estética: o ligeiro
contraste, o aspecto natural dos traços… E aquilo
se lhe abrira em largo sorriso, aquilo lhe convidava
ao contato!
Maria Elvira, vendo o filho a sorrir enquanto le-
vava a roupa suja para a máquina, tudo entendeu.
Sorriu também a mãe enquanto passava o tempo no
sofá de frente à televisão. A dúvida era quem seria
o motivo do sorriso. O filho apresentara-lhe uma
única mulher em toda a vida, e havia quatro ou cin-
co anos que não via a menina. Samuel, reservado e
introvertido, confessara o término uma única vez,
quando perguntado, cerca de dois meses após o
rompimento. Depois, nem menção à namorada al-
guma, nem sorriso estampando no rosto a paixão.
A mãe não errava, sabia e confirmou ao ver Samuel
57Samuel
voltando-lhe ao quarto: o filho, pela segunda vez na
vida, apaixonara-se.
Difícil foi esperar o entardecer da terça-feira que
raiou… Samuel, desde que se pôs de pé, pensou
somente em Daniela. Acordou com determinação
anormal: agiria, faria algo, só não sabia o quê…
Chegando ao trabalho assustou-se das anotações
da véspera. Quanta irritação! Planejara a demissão
de Jorge, pusera-se a levantar o histórico de ponto
do experiente vendedor. Não havia necessidade, ao
menos por ora… Precipitara-se e correra um grande
risco: compraria uma briga enorme e desnecessária,
geraria conflito quando ainda precisava provar-se
enquanto gerente.
Decidiu-se pelo inverso: chamou Jorge à sua sala
e lhe propôs um incentivo; desculpou-se e confes-
sou-se alvo de muita pressão. Disse depender de
Jorge, confiar no trabalho de Jorge e não esperar de
Jorge senão os melhores resultados do setor.
O subalterno, que se havia arrependido da inso-
lência logo após a saída do chefe, viu-se em alívio:
empurrasse os dias com a barriga e lhe teria o salá-
rio garantido com a certeza de pronto tomar para si
a gerência. Aceitou as desculpas do chefe, agrade-
ceu pela confiança e despejou meia dúzia de pala-
vras de motivação.
Samuel, finda a conversa, sentiu descarregar de si
peso imenso. “É mesmo tudo uma questão de saber
conversar… Gerenciar é transigir!” — refletia, sa-
tisfeito da palestra. O inimigo transformara-se em
aliado.
58 Luciano Duarte
Relaxado do desabafo, prazeroso da descarga de
tensões, não demorou para que lhe viesse novamen-
te à cabeça: “Daniela, Daniela…” — quando lhe
deu bruscamente: “Sabe o quê? Hoje lhe cumpri-
mento com beijo no rosto e peço-lhe o telefone!”.
Ajeitou-se na cadeira: a suposição trouxe-lhe um
calafrio. Mas era isso! Ou não? Que Daniela espe-
raria de um homem? Da garota, já nada se havia de
esperar… Que queria Samuel, que ela lhe beijasse
a boca a demonstrar interesse? Não, de jeito ne-
nhum… Agora o bastão havia sido passado e ele,
inclusive para se desculpar da covardia da véspera,
pediria o número da magnífica Daniela. Atitude!
Pois se lembrou de Gutão. Agora que não bebia,
erguera-se um muro entre os dois amigos obstan-
do-lhes a relação. Mantiveram ativas as conversas
até pouco mais de um mês após o acidente. Gusta-
vo, que inicialmente respeitara a decisão de Samuel,
que lhe ouvira as justificativas, a história do policial
e tudo o mais, não tardou para começar a instigar o
amigo. Vendo-lhe as tentativas baldarem, logo teve
de encontrar novo companheiro de farra, e a rela-
ção com Samuel naturalmente esmoreceu.
Entretanto Samuel, a despeito da distância, tinha
Gutão como o melhor amigo. Se não mais bebia,
se lhes não conciliavam as rotinas, tanto fazia… A
amizade perdurava.
Sacou o celular e contou, por mensagens, a histó-
ria a Gutão. O amigo naturalmente não acreditou,
pediu fotos, provas. Como não houvesse, acabou
por atirar o caso em descrédito. Samuel ouviu do
59Samuel
amigo que se fosse com ele… Ah! mas como seria
diferente! Jamais perderia uma oportunidade como
aquela, por isso a história parecia fantasiosa, mal
contada… “Mas se for mesmo verdade, se você não
estiver mesmo mentindo, então vá e peça o telefone
dessa tal Daniela! Senão, creio seja hora de anun-
ciar a mudança de time…” — recomendou textual-
mente o amigo.
“Pedirei o número dela. Simples. É vê-la e pedir.”
Assim caiu a tarde, soou o sinal e Samuel levan-
tou-se da cadeira resoluto. Trancando o escritório,
dizia: “É hoje!”.
Foi pôr-se no carro e começar as conjeturas:
“Como já estou calejado desta maldita Lei de Mur-
phy, muita calma…”. E logo trafegava entre os car-
ros. “Provavelmente algo inesperado irá acontecer,
como sempre, e eu não conseguirei pedir o número
da princesa…” O tráfego, de praxe, era lento. Oh,
horário das seis! Oh, ponto-morto e primeira! Pa-
rado entre filas e semáforos, continuava Samuel a
refletir: “É bem isso! Inflo o meu balão para que
estoure! Mas não interessa, a minha parte está deci-
dida: se vejo ela, peço o número, sem desculpa nem
demora”.
Quarenta minutos e Samuel adentrava o estacio-
namento da academia. Foi virar a chave e sentir a
tensão crescer. “Coragem! Sou homem!” Apeou,
acionou as travas elétricas do carro e pôs-se a ca-
minhar.
De onde estacionara distava leve descida à re-
cepção do ginásio. Em marcha, sentiu um vento
60 Luciano Duarte
gelado bater-lhe contra o peito. Tremeu e não sa-
bia se era frio ou nervosismo. Diante da porta de
vidro, o último suspiro. Então passa para dentro.
Música e rumor de correias. Samuel cumprimenta
a simpática recepcionista e deixa-lhe a impressão
digital frente à roleta. Concentra-se para não pa-
recer nervoso. Passa pela recepção, caminhando de
vista baixa. Quando ladeia o primeiro aparelho e
sente-se definitivamente dentro da academia, ergue
a fronte. Perpassa discretamente todo o ambiente
com os olhos: nada. Então, ainda concentrado para
não tremer, continua a caminhada. Que irritante
esse nervosismo! E põe-se a fazer movimentos de
maior amplitude com os olhos, já com o auxílio do
pescoço. “Nada, nada… Não veio”.
Consoante a cena da véspera, Samuel adentra o
vestiário e busca pelo banco amigo. Dessa vez, o
suspiro é de decepção. “Eu já sabia. O que acontece
é sempre igual. Só mudam os contextos…”
Assim Samuel trocou-se, não se olhou no espelho
e deixou o vestiário cabisbaixo. Havia, porém, uma
pequena esperança. Poderia não ter olhado direi-
to…
Chegou às barras habituais. O fisioterapeuta reco-
mendara-lhe muito zelo no alongamento do ombro:
deveria tensioná-lo em três direções, vinte segundos
para cada; depois, o aquecimento, a garantir que
os músculos preparem-se aos esforços posteriores; e
quanto aos exercícios, é preocupar-se primeiro com
a amplitude de execução, depois com a carga.
Súbito, Daniela irrompe do vestiário feminino.
61Samuel
Antes que Samuel pudesse formar raciocínio os
olhares já se lhes haviam cruzado. O arrepio su-
biu-lhe violentamente. “É agora! Ou vou agora, ou
não irei. Se esperar cinco segundos, desisto”. Soltou
a barra que segurava pelas costas e rompeu o blo-
queio em passos corajosos. “É agora!” O arroubo
que sentia era inédito. De olhar fixo, caminhou em
linha reta à Daniela, que já se via de costas diri-
gindo-se a algum aparelho. “Vou pedir o telefone
dela” — pensava e arrepiava-se da tensão prove-
niente da aproximação. A dez passos de distância,
Daniela vira-se bruscamente e dá de cara com Sa-
muel. O susto dura um segundo e transmuta-se em
sorriso.
— Daniela… Tudo bem? — Samuel expulsa de
si o nervosismo que estalava, abafa-lhe o calafrio
feroz e cumprimenta Daniela com um beijo na bo-
checha.
A menina assente. Sorri. Samuel emenda:
— Vem cá. Confere aqui se seu número tá certo.
Samuel ergue-lhe o celular e digita cinco núme-
ros aleatórios. Daniela capta a malícia e abre largo
sorriso.
— Não, Samuel. Meu número não é esse — e, pe-
gando-lhe da mão o aparelho, digita e conclui: — é
esse aqui!
E Samuel vê brilhar na tela do próprio celular o
número de Daniela.
63Samuel
Capítulo IX
A pergunta tornou-se forçosa: quem seria Danie-
la? Onde estaria Daniela desde o primeiro capítulo
desta história?
Façamos uma pausa e voltemos um pouco no
tempo.
A trajetória da belíssima Daniela é digna de nota.
O pai a tivera aos vinte e dois por descuido, não
suportara a pressão e fugira, deixando a namorada
em desamparo. Nunca mais Bárbara, mãe da crian-
ça, tivera notícias do rapaz. Parira três dias após
completar dezoito primaveras.
Poder-se-ia prever triste futuro para a pequena
que nascia, posto a mãe se encontrasse em aban-
64 Luciano Duarte
dono total pelo pai da criança, necessitando do tra-
balho e ainda de estudar. Não foi o que ocorrera.
De início, o obrigatório: a mãe deixara os estudos.
O trabalho dera-lhe, em seguida, a licença remu-
nerada, o que fora excelente notícia. E depois, o
verdadeiro alívio: os pais de Bárbara mobilizaram-
-se, encantaram-se com a pequenina e não só se
dispuseram, como solicitaram pudessem cuidar da
criação da menina. Fora uma surpresa que levara
Bárbara às lágrimas, posto que jamais pediria um
favor deste aos pais, primeiro, por estimar a car-
ga de trabalho que acarreta uma criação; segundo,
pelo péssimo relacionamento que mantinha com o
pai. Já não conversava com ele há anos, e subita-
mente os lindos e esverdeados olhos da criança res-
tauraram por completo a relação.
Assim, encarregaram-se os avós da criação de Da-
niela. Bárbara fazia questão de tirar do bolso cada
centavo gasto com a filha, mas sabemos como são
essas coisas… Os avós arcavam com boa parte dos
custos da menina, em segredo, até que a própria
Bárbara tomou ciência e deixou correr.
Aos nove anos, Daniela viu-lhe falecer a queri-
da avó. Sofreu… como sofreu!… e pior para a mãe
tendo de explicar a uma menina de nove anos que
jamais lhe tornaria a ver a avó.
Onze anos e novo fato marcante: Bárbara recebe
proposta irrecusável de emprego, para deixar Di-
vinópolis e transferir-se para a capital. O avô, de re-
pente, tornou-se o homem mais infeliz do universo:
não aceitava ver escorrer-lhe das mãos a netinha…
65Samuel
Que lhe sobraria da vida, que lhe tirara há pouco a
companheira de três décadas e meia? Mas sabemos,
novamente, como são vãs as lágrimas nesse mun-
do… Foi feita a vontade da mãe, a necessidade da
mãe. E Daniela guardou para sempre a fotografia
do avô de olhos rútilos, apoiado no pequeno gra-
dil que circundava a casa onde fora criada, chacoa-
lhando com tristeza a mão debilmente erguida.
Durou seis meses a tristeza do velho. Então Da-
niela, já aos doze anos, voltava a Divinópolis para
romper definitivamente com os laços de sua infân-
cia. Nem criança era mais…
À Bárbara, veio herança respeitável. Contava
trinta anos a mãe que agregou casa e carro ao
ótimo fluxo de caixa mensal. Por si só seria capaz
de, em alguns anos, deixar o aluguel na capital,
mas o falecimento do pai acelerou o processo e a
mãe pôde, inclusive, matricular Daniela em uma
escola melhor. A rotina era um açoite; Bárbara
quase não via a filha. Paciência… havia, decerto,
pior.
Todos esses fatos tiveram reflexos óbvios e fortís-
simos no caráter da pequena Daniela. Se, por toda a
infância, fora a menina alvo dos mais zelosos cuida-
dos, de todo o carinho dos avós, subitamente, viu-
-lhe a vida desabar, provando-nos que há pessoas
de que o fado parece não ter piedade.
Aos doze anos, portanto, Daniela tinha sobre as
costas uma carga de sofrimento atroz. Poderíamos
dizer parecido da mãe, mas a mãe tinha Daniela, e
Daniela não tinha os avós…
66 Luciano Duarte
Assim, a garota tornou-se assaz sorumbática e
silenciosa em idade que o natural é falar, correr e
abrir-se ao mundo. Não foi de desleixar dos estu-
dos, mas a reclusão sempre a prejudicou; quer dizer:
muito se aprende da relação com outros alunos, o
contato é um estimulante, gera interesse, e foi Da-
niela distante, de difícil relação, tímida e reservada,
cuja ligação com o mundo jamais se estendeu para
além da sala de aula. Isso até os dezessete.
Nesta idade encontrava-se Daniela no ano em que
se formaria no ensino médio. A escola era a mes-
ma desde o falecimento do avô. Fizera, assim, duas
amigas, que ao longo dos anos trataram de mitigar
paulatinamente a tristeza da pequena Daniela, cuja
própria imagem passou a se dissipar. Pouco a pou-
co, os interesses em comum cristalizaram a amiza-
de, entretiveram, motivaram e fortificaram-se. As
amigas chamavam-se Laura e Thalita. Ambas de
caráter parecido, entretanto, era esta comunicati-
va, enquanto a outra guardava-se em timidez seme-
lhante à de Daniela.
O trio fechou-se quando se juntaram as três em
mesma classe no primeiro ano do ensino médio. Foi
quando começaram as experiências amorosas das
garotas. Daniela apaixonou-se — dizia “gostava” —
por um jovem Leonardo. Não se falavam, não se co-
nheciam, nada. Mas os olhares confessavam, e o sen-
timento era recíproco. Thalita e Laura, entrementes,
começaram a trocar beijinhos, coisa que Daniela não
podia nem sonhar, visto não houvesse perdido parte
considerável do extremo acanhamento da infância.
67Samuel
Dois anos ficou Daniela a ouvir das amigas a ma-
ravilha do beijo, das carícias do afeto. Thalita já na-
morava o terceiro… Assim, a imaginação começou
a florescer na mente da menina que arrepiava só de
ouvir falar em beijo. O arrepio tornou-se instigante.
E neste ano corriam os preparativos para a forma-
tura, agitando as expectativas de todos os forman-
dos. Mesmo Bárbara cuidava, em casa, de aplicar
injeções de ânimo na filha. Já em janeiro viam-se
todos ansiosos, motivados com a independência de
poder organizar uma festa. E o clima não poderia
deixar de contagiar, também, nossa Daniela.
Ocorreu, pois, algo mais forte. Por junho deste
mesmo ano, deram os formandos uma festa a dis-
cutir detalhes da formatura. Daniela, já animada
dos planos, deixou-se conhecer, de uma só vez, o
álcool e o beijo. Quem era o garoto? O próprio
Leonardo de dois anos de flerte. Súbito, a vida lhe
havia sorrido! Belos dias subsequentes ao beijo…
Daniela, enfim, aos dezessete anos, engatava o pri-
meiro namoro e tornava-se uma mulher — sim,
mulher! — completamente diferente do que fora na
infância: fisicamente, demais, o vigor e a felicida-
de decorrente do amor transformaram-na; Daniela
tornou-se absolutamente radiante. Os olhos ainda
verdes como em criança, de contorno delicadamen-
te amendoado, davam-lhe uma distinção raríssima;
o sorriso quando se lhe abria era um charme! E,
aos dezessete, pôs-se em compromisso.
A sucessão foi a de costume: viveu a menina to-
dos os encantos da paixão, sentiu correr nas veias o
68 Luciano Duarte
fogo do primeiro amor. Formou-se. Seguiram jun-
tos, Daniela e Leonardo, para uma mesma univer-
sidade. Tornou-se o contato diário, o afeto diário,
a relação só dando trégua quando ambos dormiam
e não trocavam mensagens. Assim por quatro anos,
quando, súbito, troveja o término.
Estamos aqui há exatamente um mês de onde dei-
xamos a história no capítulo anterior. A vida de
Daniela, em suma, desabou com uma violência iné-
dita para a menina que perdeu em três anos os dois
avós. Quatro anos de namoro faz pensar em casa-
mento, em vida conjugal… E Leonardo cruelmente
a traíra e a descartara.
De início, a garota pensou em suicídio. Não era o
orgulho ferido, mas a desfeita, a decepção avassa-
ladora que lhe exterminara todos os planos. Tudo
caíra de uma vez. Sem chão, novamente atirada ao
limbo, vendo o amado com outra a sorrir, sentindo-
-se desprezada no mais alto grau, Daniela trancou-
-se em casa e desligou o celular por duas semanas.
Só chorava, não comia, pôs-se agressiva contra as
tímidas investidas da mãe, não foi um dia sequer à
faculdade. A postura como que renunciava a tudo,
digna de alguém a quem nada sobrara.
Então, já completamente enfraquecida, pálida
e inerte, Daniela viu bater-lhe na porta do quarto
Thalita e Laura que, juntas, foram saber do para-
deiro da amiga. Com muita insistência conseguiram
que a menina abrisse; arrepiaram-se vendo-lhe o
triste aspecto: cabelos desgrenhados, face cadavé-
rica, visível magreza e tibiez. Dois minutos de con-
69Samuel
versa e as amigas foram tomadas por uma revolta,
um ódio mortal contra Leonardo. Canalha! Cruel
e infame! E decidiram, as duas, pernoitar por algu-
mas noites na casa de Daniela. Bárbara muito lhes
agradeceu; aliás, foi iniciativa da mãe o contato
com elas.
Sabe-se lá que feitiço lançaram: a partir da che-
gada das garotas, três dias perdurou a depressão.
No quarto estava Daniela, bebendo e dançando, em
festa com as amigas. Como explicar? Sobre isso não
conjeturamos… Mas, por fora, a tristeza de Danie-
la desapareceu.
E assim começou nossa história. Na terceira se-
mana após o término, portanto, matricula-se Da-
niela numa academia. O ato era parte de um plano
maior: decidira-se a mulher valorizar-se, usar da
própria independência. O objetivo era, naturalmen-
te, a felicidade, e para isso queria ver-se no auge
da forma, no auge da beleza, tornando-se, como
a mãe, uma versão cada vez melhor. Dependia de
quem? Então aderiu à vida fitness, decidiu esforçar-
-se para formar como destaque na faculdade, e deli-
berou procurar imediatamente um estágio, empresa
que não havia pleiteado desde o início do curso.
Foi numa segunda-feira que, deixando a faculda-
de, passa em casa, troca de roupa e dirige-se à aca-
demia acompanhada de Thalita. Chegando lá, meio
dedo de burocracia e já estavam as duas treinando.
Enquanto o simpático instrutor passava-lhe alguns
conselhos para a execução dos exercícios, Danie-
la vê cruzar o salão do ginásio jovem mui estiloso,
70 Luciano Duarte
trajado em social e que, conquanto jovem, parecia
dispor da maturidade que lhe faltava ao ex-namo-
rado canalha.
Durante a semana, Daniela viu-lhe todos os dias,
um após o outro, fazendo notas com a amiga de
treino. Interessava-se pelo recato do rapaz. Até en-
tão o tipo de jovem que conhecera era o jovem ex-
pansivo, espalhafatoso, que tem gosto por fazer-se
impressionar; jovem do copo de cerveja para o alto,
das noites de farra e das bravatas disparadas sob
efeito do álcool. Samuel não parecia ser nada disso,
pelo contrário, parecia interessante apesar do reca-
to; inteligente, talvez, e estiloso. Thalita não perdia
ocasião de instigar a amiga, elencando as prováveis
qualidades do rapaz, de forma que na sexta-feira
já os tratava como o casal prometido, ainda que
Samuel lhe não tivesse direcionado um único olhar.
A história subsequente é conhecida. O ignoto é
que, naquela segunda-feira fatídica, Daniela tam-
bém tremia sobre os pés. O sorriso era puro dis-
farce e a iniciativa foi tomada sob impulso das
chicotadas de Thalita. O que fez a amiga não foi
incentivo, foi coação: exigiu a atitude de Daniela,
uma mulher independente, que deveria fazer o que
lhe desse vontade, correr atrás e agir pelos próprios
desejos. E Daniela fez o que pôde… Disfarçando
o nervosismo, cumprimentou Samuel. Vendo que
o rapaz não reagia e não tendo nada a mais para
falar, deixou-o exatamente com o mesmo sorriso
com que o abordara.
— Agora é só esperar… — disse Thalita, diverti-
71Samuel
da de ver a amiga a dizer: “Acho que ele não gostou
de mim”.
No dia seguinte, por mensagem Daniela:
— Ele não gostou de mim.
E a amiga:
— Espera…
Pela noite, na academia, foi ajeitar-se no espelho
do vestiário como e, antes que iniciasse o primeiro
exercício, ouve dos lábios do confiante Samuel:
— Daniela… Tudo bem?
Nem teve tempo para o susto. Congelada, apenas
assentiu com a cabeça e sorriu. Samuel, já próximo,
tasca-lhe um beijo na bochecha. Daniela arrepia-se
com o calor do contato. Vem a emenda:
— Vem cá. Confere aqui se seu número tá certo.
Samuel põe-lhe à vista o próprio celular. Núme-
ro? Antes que pensasse, via-o digitando proposital-
mente de forma aleatória. Percebe-lhe nos olhos a
malícia. “Ele está pedindo o seu número, sua bes-
ta!” — e, arqueando os lábios, começa:
— Não, Samuel. Meu número não é esse — to-
ma-lhe da mão o aparelho e, digitando, dá o rema-
te: — é esse aqui!
E Daniela sente aflorar no peito a sensação esti-
mulante de passar o próprio número ao charmoso
desconhecido.
73Samuel
Capítulo X
Sigamos a sombra da bela jovem.
Oito em ponto foi quando voltou a menina do
ambiente de treino, com sorriso esticado na face. A
mãe preparava o jantar.
Daniela entrou, foi à cozinha, tomou um copo de
água e rumou para o quarto, tudo isso numa leveza,
numa serenidade de quem habita simultaneamente
dois universos. Bárbara olhou-a com estranhamen-
to: normalmente a filha deixava escapar algum co-
mentário sobre o jantar…
Entrando no quarto, Daniela automaticamente
lhe direcionou os olhos para a pequena escrivaninha
fronteira à sua cama. Por cima da tampa de vidro,
74 Luciano Duarte
um notebook, alguns livros e dois porta-retratos:
um de si mesma, em criança, e outro acompanhada
da mãe. Mas não foi em nada disso que Daniela
cravou o olhar: foi para o espaço vazio que ladeava
o porta-retratos em que se via sorridente, com uma
janelinha em lugar do incisivo central.
Nova roupagem tirou da gaveta, então partiu ao
banho, demorando-se longos minutos debaixo do
chuveiro, até que Bárbara tivesse de lembrá-la o
custo da energia elétrica e alertasse-a contra o des-
perdício.
Daniela e Bárbara nutriam o hábito de jantarem
sempre juntas, em ocasião que geralmente lhes con-
sistia o contato diário. Quando a filha deixou o
banheiro, a mãe já conjeturava o que poderia ter
causado aquela quebra na rotina, o ponto fora da
curva de uma longa sequência de dias iguais.
Daniela, que tornou aos devaneios logo que disse
à mãe que já sairia do banho, aterrizou novamente
vendo o olhar fixo e interrogativo que lhe foi dire-
cionado assim que atravessou o limiar da da cozi-
nha. Sorrindo da cena, a filha perguntou:
— Que foi?
E a mãe, desconfiada do sorriso anormal:
— Que foi, é?! Eu que pergunto…
— Comigo? Nada, ué…
Bárbara sorriu da confissão. Sorriu, baixando a
vista e com sincera alegria.
Assim, a mãe logo entabulou novo assunto. Da-
niela lhe havia externado os planos do estágio há
poucos dias, dizendo das pesquisas que começara
75Samuel
a empreender e dos currículos que enviara. Bárba-
ra, satisfeita e impressionada, dissera-lhe que tal-
vez poderia ajudá-la. Dissera conhecer profissionais
de estética, área em que a filha se graduava, e que
faria contatos. Nesta noite, enquanto jantavam,
continuaram a conversa, com Bárbara dizendo que
nutria esperanças de que arranjaria para a filha o
estágio. Agradável jantar.
Comeram ambas, trataram de assear e organizar
a cozinha, como habitual, e seguiu cada uma a seu
canto: Bárbara, à televisão da sala; Daniela, ao pró-
prio quarto.
Havia uma tensão que brotara na mente de Da-
niela assim que deixara a academia e só crescia,
fazendo com que ela não desgrudasse do celular.
Volta e meia, os olhos na tela do aparelho, a ver se
havia atualização. Nove da noite e nada…
Daniela, então, entrou no quarto e ligou a tele-
visão, a disfarçar onde lhe estava a cabeça. “Será
que ele vai me chamar agora?” Sacou o celular,
enviando mensagem, de uma só vez, às duas me-
lhores amigas: à Thalita, a perguntar que achava
da demora; à Laura, a contar-lhe a história e per-
guntar que achava da demora. Laura, porém, já
se via informadíssima, sabia de todos os mínimos
detalhes, informados em tempo real por Thalita. E
via-se, em mesma medida, animada das novas: pa-
recia haver um pacto entre as amigas para motivar
a jovem Daniela a unir-se com o rapaz. Queriam,
acima de tudo, vê-la esquecer de vez o anterior ca-
nalha, quem sabe vê-lo arrepender-se amargamente
76 Luciano Duarte
do erro que cometera…
E Daniela teve de passar o restante da noite es-
cutando que era uma boba, uma apressada, que
nada se devia preocupar. Era esperar, somente isso.
A mensagem viria, e queriam as duas amigas se-
rem informadas de cada detalhe da nova conversa.
A curiosidade de Laura, em especial, era enorme,
posto não tivesse visto pessoalmente o rapaz. Ha-
via recebido algumas fotos tiradas na academia
por Thalita, mas só. Parecia-lhe, tanto a ela como
à fotógrafa, que o sujeito era bom partido, ótimo
partido. O relógio anunciou o novo dia, e nada de
mensagem. Daniela acabou por cochilar, esquecen-
do de desligar a televisão.
Soa o despertador: seis e meia da manhã e a cla-
ridade invade o quarto pela janela. Daniela, como
costume, desliga o sino insuportável e permite-se al-
guns minutos de soneca. Quinze para as sete e põe-
-se de pé. Confere o celular: nada. “Ele não enviou
mensagem pela madrugada…” Escova os dentes,
conversa qualquer coisa com a mãe na cozinha, e
logo está, na rua, caminhando em direção ao metrô
da cidade.
As aulas desta quarta-feira teriam início às oito.
O metrô, a nove minutos a pé de onde morava, le-
vava-a a cerca de dois quilômetros de sua faculda-
de, e Daniela optava por completar o trajeto de ôni-
bus. Portanto, um metrô e um ônibus: e como era
odiosa essa rotina!… O metrô de Belo Horizonte,
para início de conversa, não era sequer um metrô,
e absolutamente não comportava a demanda da
77Samuel
cidade. De segunda a sexta, era tomá-lo entupido
de gente, em desconforto, com medo constante de
ser assaltada ou qualquer coisa que o valha, visto
que casos semelhantes aconteciam não diariamente,
mas a cada vinte minutos. Era descuidar-se por um
átimo e pronto, um cidadão tomava-lhe o celular e
desaparecia em meio à multidão. Do metrô para o
ônibus, pior. A saída da estação era o trecho mais
perigoso do trajeto por inúmeros motivos, entre
eles, a aglomeração enorme de pessoas como que
se empurrando, esmagando-se e afunilando-se para
passar entre as estreitas escadas rolantes e corredo-
res do terminal, que vivia repleto de sujeitos mal-
-intencionados. Vencendo as catracas de saída da
estação, era tomar o ônibus, que consistia na parte
mais estressante do percurso até a faculdade.
Logo deixando o corredor do terminal que dava
para a rua, havia uma fileira de vendedores ambu-
lantes que, sempre fazendo barulho, angariavam
para a frente de seus produtos alguma aglomera-
ção. Como espertos que fossem, faziam questão
de se posicionar o mais próximo possível da saída
do metrô, a garantir que todos que o deixassem fi-
zessem contato visual com seus comércios. Como
ali nunca havia fiscalização, acontecia o seguinte:
próximo ao corredor de entrada e saída do termi-
nal, tumulto generalizado, praticamente impossível
de ser atravessado sem que se esbarrasse, roçasse,
esfregasse em outra pessoa. A dez metros estava o
ponto de ônibus, e ainda não chegamos à pior parte
do trajeto.
78 Luciano Duarte
Os ônibus de Belo Horizonte eram basicamente
divididos em duas seções separadas por uma role-
ta. A primeira seção era onde os passageiros deve-
riam pagar em dinheiro ao motorista-cobrador que
trafegava, fazia contas e repassava as moedas do
troco, ou realizar o pagamento através de um car-
tão magnético carregado previamente. Pagando, a
catraca liberava, e então o passageiro podia passar
para a segunda seção, onde estavam os assentos, o
corredor e as portas de saída do veículo.
Na primeira seção do ônibus, todos os dias e sem-
pre, havia uma aglomeração de quatro classes de
pessoas: idosos, que tinham direito à corrida livre;
pedintes, que somente deixavam a seção quando
alguém lhes pagava a passagem; vadios, que aguar-
davam que lhes chegasse o destino desejado para
saltar para fora do veículo pela porta dianteira; e
os passageiros que propriamente entravam visan-
do simplesmente pagar a própria passagem e passar
pela roleta.
Com alguma dificuldade era possível chegar à se-
gunda seção. Então acontecia o seguinte: jamais era
possível para Daniela cumprir o restante do traje-
to sentada, ou ao menos com algum espaço, não
entrando em contato físico com outra pessoa. O
motorista, que dirigia, fazia contas e passava tro-
cos, muitas vezes trafegava entre arranques e frea-
das, como brincasse a testar se os passageiros eram
bons de equilíbrio. Além disso, é razoável dizer que,
dentro de um ônibus, pensa-se que a paz é o traje-
to em metrô, visto o trânsito pelas vias urbanas,
79Samuel
repleto de curvas, semáforos, lentidão e buzinadas
ser um caos. Agora o agravante: num ônibus, não
bastasse o quase esmagamento dos que não foram
agraciados por Deus com um assento, uma única
gota de chuva era suficiente para fazer com que os
passageiros fechassem imediatamente todas as jane-
las, como que se protegendo da entrada de um gás
tóxico, capaz de exterminar em poucos segundos o
aglomerado de bons cidadãos. O resultado: em dias
chuvosos, o ambiente interno do ônibus, além de
tudo, era de um abafamento insuportável.
Assim, nesta quarta-feira, logo que deixou o ter-
minal de metrô Daniela tomou o primeiro ônibus
que apontou à vista. Não chovia. Passando pela ro-
leta, apoiou-se numa barra vertical próxima a uma
janela e, enquanto observava qualquer algazarra
que se formava na rua, sentiu o celular vibrar.
Era Samuel. E, junto ao arranque do veículo, Da-
niela sentiu-lhe o peito palpitar.
81Samuel
Capítulo XI
Que sensação gostosa! Quando Daniela viu bri-
lhar o bom-dia e o nome de Samuel na tela do ce-
lular, esticou-lhe mansamente os lábios na face.
Era um misto de alívio, realização, curiosidade e
sabe-se mais o quê. Três linhas bem escritas, sim-
páticas e elegantes para alegrar-lhe o início de dia.
“Respondo agora, ou espero?” Leu novamente a
mensagem: vinha o bom-dia, a apresentação e uma
graça: “(…) é o Samuel, que pediu descaradamente
o seu número ontem na academia…”. Novo sorri-
so. “Respondo depois.”
Desceu do ônibus a oito minutos do início do pri-
meiro horário. Em tempo. Foi sentar na cadeira da
82 Luciano Duarte
sala de aula e contar a nova às duas amigas: “Ele
me mandou mensagem”. E as amigas, textualmen-
te, aguçaram-lhe as expectativas, felicitaram-na.
A professora entrou, passou a expor a matéria
enquanto Daniela mantinha-lhe os dedos ativos. Os
dedos e a mente. Com as amigas, conjeturava a res-
peito das qualidades de Samuel: quantos anos teria?
Estudava ou formado? Por que chegava sempre em
social para treinar? Mistérios… Mas o rapaz apa-
rentava boa estirpe.
Vinte minutos de aula e Daniela decidiu-se: “Vou
responder!”. Retribuiu o bom-dia e o bom humor
de Samuel. Disse-lhe: “Só um pouquinho descara-
do…”. Assim entabularam animada conversa. De
cinco em cinco minutos, nova mensagem. E Daniela
tinha de prestar contas às amigas. Cada nova in-
formação de Samuel, novos comentários. Veio o
assunto das ocupações: “Sou gerente de uma…”.
Agradou a todas. Então as três passaram a ver fu-
turo, perspectivas. Samuel mostrava-se inteligente,
educado, escrevia com esmero, evitando abrevia-
ções e erros ortográficos.
Daniela, perguntada, contou-lhe toda a história
da primeira vez em que o vira, de que o havia acha-
do interessante, mas não tivera coragem de abordá-
-lo… disse, inclusive, achou Samuel ter estranhado
a aproximação fortuita que fizera na segunda, que
ficara constrangida do silêncio, considerando-o al-
gum tipo de desagrado. O rapaz desculpou-se en-
faticamente, disse surpreendido da ocasião, que ja-
mais esperaria uma abordagem como aquela, mas
83Samuel
agradeceu por ter havido ocasião de retratar-se em
descaro. Daniela riu novamente: “Divertido esse
Samuel…”.
Correram quatro horas de bate-papo. Findou-se
o último horário do turno da manhã, então Daniela
percebeu que não abrira sequer um caderno. Dei-
xando a sala, pôs-se em caminho do restaurante
onde costumava almoçar. Os olhos ardiam, via-se
tensa: fruto do frenético contato visual com a tela
brilhante. Sentia-se esgotada conquanto estimulada
de maneira inédita por Samuel. Que é que ele ti-
nha? Beleza não seria para tanto… O que instigava
era a conversa, o jeito, talvez… Um misto de edu-
cação, inteligência, bom humor, talvez ela mesmo
parecesse inferior aos olhos do rapaz. O que estava
escrito é que se tratava de alguém diferente. Veja-
mos pela conversa: quatro horas de pouquíssima
entrevista de emprego. De resto, pôde perceber que
emparelhavam alguns gostos, que Samuel possuía
diversas áreas de interesse e conhecimento; expe-
riências, também, Samuel parecia tê-las variadas e
interessantes… Que dizer? Em geral, não era esse o
tipo de palestra que estava acostumada em primeira
abordagem. Desta vez tudo ocorria como se fossem
íntimos, talvez fosse isso, íntimos, à vontade des-
de as primeiras palavras, sem bloqueios desneces-
sários, sem assuntos protocolares, e o interesse, o
desejo era mútuo, claramente mútuo. Que sensação
gostosa provinha disso tudo! Quedou satisfeita da
aplicação do próprio tempo pela manhã.
Assim, findo o almoço teria de retornar à sala de
84 Luciano Duarte
aula para o turno da tarde, onde faria duas ava-
liações. Logo que deixou o restaurante veio-lhe à
mente: “Não estudei…”. Pois contatou colegas de
classe. Havia, ainda, cerca de quarenta minutos an-
tes do início das provas.
Reunida a três, de livros abertos na biblioteca
da universidade, Daniela concentrou-se na revisão
das matérias, esquecendo-se de responder a última
mensagem de Samuel. A primeira avaliação metia
medo; certamente lhe não dominava o conteúdo.
Pôs-lhe o celular dentro da mochila e fez o que pôde
para aproveitar aqueles minutos.
Uma e quinze da tarde e entrou na sala, sentou-se
e aguardou a entrega das avaliações. Tensão? Nem
tanto, já estivera pior… O celular continuava na
mochila, silenciado, a não desviar-lhe o foco.
Provas entregues, foi pôr o olho no papel e cons-
tatar: não saberia resolver a questão única e aberta
que o professor lhe propunha. Tristeza!
Uma hora e meia, portanto, de tortura a pôr em
palavras um processo estético de mínima aplicação.
A questão solicitava-lhe abordagem completa, des-
de a execução do procedimento até suas aplicações,
riscos, parâmetros de avaliação e manutenção dos
resultados, com ilustrações elucidativas. Péssimo,
péssimo… encheu as linhas de evasivas quando
deveria muni-las de nomenclaturas técnicas. Por
fim, livrou-se da tortura entregando a avaliação ao
grave professor; em desalento, porém, frustrada do
desempenho e certa dos problemas que lhe aguar-
dariam naquela matéria.
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Promoção e festa

  • 1.
  • 3. Luciano Duarte lucianoduarte.com Copyright © Luciano Duarte, 2020 Todos os direitos reservados. Texto em conformidade com o Acordo Ortográfi- co da Língua Portuguesa (1990) em vigor desde 1 de janeiro de 2009. Dados de Catalogação D812 Duarte, Luciano Samuel / Luciano Duarte. Belo Hori- zonte, 2020 (1ª edição). 266 p. ISBN: 979-86-576-4485-2 1. Ficção. 2. Ficção nacional. 3. Ro- mance. 4. Romance Nacional
  • 4. Sumário Capítulo I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 Capítulo II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Capítulo III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Capítulo IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Capítulo V. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Capítulo VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Capítulo VII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Capítulo VIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Capítulo IX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Capítulo X. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Capítulo XI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 Capítulo XII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 Capítulo XIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 Capítulo XIV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 Capítulo XV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111 Capítulo XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Capítulo XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 Capítulo XVIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 Capítulo XIX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Capítulo XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Capítulo XXI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Capítulo XXII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 Capítulo XXIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Capítulo XXIV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 Capítulo XXV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Capítulo XXVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 Capítulo XXVII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 Capítulo XXVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 Capítulo XXIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 Capítulo XXX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 Capítulo XXXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 Capítulo XXXII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 Capítulo XXXIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 Capítulo XXXIV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249 Capítulo XXXV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255 Capítulo XXXVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
  • 5.
  • 6. 5Samuel Capítulo I Frio em Belo Horizonte. No escritório, Samuel digitava a desejar o fim do expediente. “Hoje é sex- ta!” — pensava, tomado pela euforia que prenuncia o final de semana. Havia monotonia no setor, e o relógio marcava cinco da tarde. Súbito, o chefe irrompe na sala. Da porta, dispa- ra: — Faça o favor, Samuel. Tensão. Que desejava o chefe? Às cinco da tarde de uma sexta-feira se não deve demandar um fun- cionário. Samuel levantou-se e seguiu o homem, que ru- mou para a própria sala. Como costumeiro, Val-
  • 7. 6 Luciano Duarte mir esperou que o subalterno entrasse para fechar a porta, então lhe indicou: — Sente-se, sente-se. Rodeou a mesa de vidro, acomodou-se na confor- tável cadeira de costa alta e começou: — Então, Samuel… — o chefe sorria. — Quero lhe propor uma coisa. Que coisa? Horas extras? Negativo: uma ascen- são de cargo. Samuel congelou. — Está na hora, você tem competência e merece. A partir de segunda quero que tome para si a gerên- cia do setor. — A gerência? E Samuel sentiu brotar-lhe na face o sorriso agra- decido. A gerência, sim, a gerência! O salário, natu- ralmente, engordaria, podendo chegar ao dobro em meses de boas vendas. Nada mau para um jovem com três anos de empresa… — Eu não sei como agradecer… — Samuel falava e tremia. — Agradeça com resultados! Agora vá para casa e descanse bem que na próxima segunda quero ver sangue novo. — Muito obrigado, Valmir! Você não irá se ar- repender — despediu-se o novo gerente de vendas, apertando a mão do diretor. O sorriso estava esticado na face de Samuel, que lhe tornou à sala extasiado, tremendo sobre os pés. Adentrou o setor cabisbaixo, a disfarçar a boa-no- va dos colegas. Silencioso, desligou o computador, quando o sinal anunciou o termo do expediente. O
  • 8. 7Samuel enlevo expandia. Do lado de fora da sala, a fila já estava formada frente à máquina de ponto. A von- tade de Samuel era correr ao carro para, em priva- cidade, olhar ao céu e gritar. Logo deixou o galpão da empresa discou para o amigo: — Tá no bar do Régis, Gutão? — Indo… — Cinco minutos! E, desligando o celular, Samuel teve a certeza: aquele dia voltaria carregado para casa. Como o bar realmente estivesse a cinco minutos de carro, Samuel não tardou a chegar. Havia entre os amigos a tradição: a primeira da sexta tomava-se no bar do Régis. E assim procediam há três anos, sempre lançando mão da desculpa de evitar o trân- sito das seis. Samuel entrou no bar com dedo em riste: — Uma gelada e uma abençoada! Reginaldo, solitário detrás do balcão, sacou dois copos qual fossem pistolas, um em cada mão, ba- tendo-os contra a bancada de ardósia. As garrafas surgiram abertas em segundos. — Tá na mão! — disse o bom comerciante, tam- bém servindo um copo para si. Samuel, eufórico, alçou o copo a propor um brin- de: — Que as nossas mulheres não faleçam viúvas! Um sujeito passando ao lado de fora do bar er- gueu o braço, e prosseguiu-se o estalido de copos e a virada costumeira. Samuel, em sede voraz, deu cabo também do copo de pinga.
  • 9. 8 Luciano Duarte — Aperte a mão do doutor gerente de vendas! — revelou ao amigo a novidade. — Oh! Parabéns, meu caro! E, a título de comemoração, Reginaldo puxou um uísque da prateleira que servia de fachada. Pondo-o sobre a bancada, Samuel objetou: — Espera o Gutão. Reginaldo assentiu. — Mas então, jovem: como é que foi isso? — Hoje, quase dando o sinal, o chefe chama-me e atira a promoção. Não esperava… — O trabalho compensa… Não há que dizer. Apesar de que eu, aqui no bar… Irrompe um grito da calçada: — Vim buscar a minha loira! Era Gustavo e suas largas espáduas, replicando idêntica euforia e idêntico dedo em riste da chegada de Samuel. Reginaldo, em destreza admirável, pu- xou o abridor e o copo debaixo do balcão e, antes que os apressados passos do recém-chegado puses- sem-no junto dos amigos, a nova garrafa já estava aberta e os copos preenchidos. — Que as nossas mulheres não faleçam viúvas! — entoou dessa vez Gustavo, em brinde triplo que precedeu nova virada. Após as batidas automáticas contra a bancada, Reginaldo disse a Gustavo, já repondo as fontes de alegria: — A homoafetividade do seu lado agora é gerente de vendas! Gustavo crispou:
  • 10. 9Samuel — Mentira! Não era. — Parabéns, meu caro! — e apertou a mão do amigo promovido. — Três branquinhas pra come- morar, Regiclênio! — e virou-se novamente a Sa- muel: — Hoje é pra acabar! É beber até morrer! Mas Reginaldo interrompeu-o: — Branquinha? Tá louco? Aqui vai por conta da casa… — disse e serviu três doses de uísque. Sorrisos: era raro o comerciante fazer agrados. De copos cheios, baixou-se um pouco a euforia, en- tão Samuel pôs-se a falar: — Cara, eu realmente tenho de agradecer… No mesmo ano, o carro e a promoção… Em quinze aposento. Reginaldo objetou: — Deus abençoa! Deus abençoa! Mas aposentar é complicado… E explanou-lhes a dificuldade que, aos trinta e cinco, ainda se via enfrentando. — Abri esse negócio com a mesma ilusão, mas, hoje, diante dos números… — Aposentar é uma questão de educação finan- ceira, Régis — atalhou Samuel. — É poupar, apli- car e esperar… Silêncio. Desde os dezessete, quando entrou no primeiro emprego, a Samuel tomou-lhe a obsessão da apo- sentadoria precoce. “Tanto para fazer da vida… Trabalhar CLT é desperdício!” — raciocinava. E elaborou um plano de aposentadoria que consistia,
  • 11. 10 Luciano Duarte sumariamente, em poupar trinta por cento do que ganhava para, aplicando o montante em ativos do mercado financeiro, deixar que os juros compos- tos trabalhassem. Vinte anos era o tempo calculado para desobrigar-se da labuta. Agora, com a promo- ção, a situação melhorava consideravelmente. No bar, Gustavo teve uma ideia: — Sabe o que seria bom pra hoje? Uma festa de arrombar! A sexta-feira inspirava-lhes como nenhum outro dia. — Lá em casa não tem jeito. Tá todo mundo lá… — replicou Samuel. Reginaldo, obviamente, ficaria no bar. Gustavo tomou a iniciativa: — Vou ver se arrumo alguma coisa pra gente. Deixa eu ver nos meus contatos… E pôs-se a enviar mensagens. Correram alguns minutos. Os amigos bebiam e conversavam, animados; o assunto rendia. Entre- mentes, os copos iam esvaziando e enchendo, quan- do Gustavo pareceu ter ajeitado uma festa para dali a duas horas. — Fecha pra gente, Regimilson. Hoje tem segun- do tempo! — Já, Gutão? Mas era noite. Os amigos haviam conversado por três boas horas. Agora, era sair ou abandonar os planos da sequência. Gustavo e Samuel, trajados em uniforme, ainda careciam de um banho e roupa nova.
  • 12. 11Samuel — Então tá… — assentiu Reginaldo, cabisbaixo, prevendo para si outra noite monótona. Pagando as contas, a agitação. Os amigos tinham de correr para não ficarem de mãos vazias. Com- praram a latinha do trajeto e acertaram quarenta minutos para o novo encontro. Apertaram-se mu- tuamente as mãos e cada qual tomou seu rumo. Era voar para casa, tomar um banho de gato e sair. Samuel entrou com agilidade em seu carro, deu um gole de cerveja e acionou a partida. Antes que os faróis luzissem, o veículo já arrancava. “Hoje o pau quebra!” — sorria, a medir as expectativas lançadas por Gustavo. Segundo o amigo, a “fes- ta” seriam oito donzelas e quatro rapazes, ou seja, proporção de duas para um. Era um cenário ex- tremamente agradável para Samuel que, a dizer a verdade, estava há boas semanas sem contato com mulher. Enquanto Samuel dirigia, devaneava. Parecia as luzes noturnas provocarem um estado de leve alu- cinação. Som alto, os pensamentos voando, e os suaves delírios viam-se amplificados pelo álcool. A sensação era agradável. Eis o que lhe passava pela cabeça: via-se, simplesmente, aposentado e feliz; a promoção avivara-lhe o brio: nenhum dos amigos gozaria de semelhante renda mensal. O tempo, de repente, pusera-se-lhe a favor. E como lhe instiga- vam as possibilidades! Era só esperar… E então, suponhamos, aos quarenta — quem sabe trinta e cinco? — poderia dedicar-se a gozar da vida. Com tempo e dinheiro, duas viagens internacionais por
  • 13. 12 Luciano Duarte ano. Daria ao filho — e teria um filho — uma edu- cação primorosa, uma atenção de pai exemplar; em suma: estaria disponível, sempre disponível. E pode- ria aprimorar-se em variadas atividades muito mais interessantes do que gerenciar um departamento de vendas, do que lidar diariamente com clientes… Súbito, Samuel fura um semáforo. Em meio se- gundo o susto, e uma van arrebenta-lhe a lateral direita do carro.
  • 14. 13Samuel Capítulo II O impacto atirou Samuel para fora do carro. A van, girando e derrapando, estourou-lhe o eixo dianteiro no canteiro central. Um homem que tra- fegava a poucos metros do acidente, vendo o cho- que violento, parou de imediato e correu a prestar socorro. Samuel, estirado no chão, não esboçou reação. O motorista agachou-se, a buscar sinais de vida. Foi quando, mirando de longe, avistou a si- tuação trágica na van. Já desciam, correndo, outros dois motoristas. Sa- muel parecia pulsar. Fremente, o homem cuidou que o acidentado não se movesse. Na van, chegou
  • 15. 14 Luciano Duarte o primeiro socorrista: encontrou o condutor, des- maiado e sangrando muito, com metade do corpo sobre o capô. Houve desespero generalizado. Desa- cordados, os acidentados pareciam mortos. Já havia mais pessoas no local: todos, apreensi- vos, não sabiam que fazer. Logo estaciona uma via- tura, fechando o cruzamento. Descem dois policiais e, correndo, dirigem-se cada qual a um acidentado. Com as mãos, sinalizam para que as testemunhas se afastem. Em cinco minutos, chega também a am- bulância. Samuel pareceu recuperar parcialmente a cons- ciência. Atordoado, abriu vagarosamente os olhos. Passou a gemer contínua e surdamente. Via um vul- to embaçado diante de si, e as primeiras palavras que reconheceu foram as instruções do socorrista para que se não movesse. — Qual o seu nome? Samuel balbuciou-lhe a resposta. Sentia dor, mui- ta dor, e continuava gemendo, contraindo-se, fa- zendo força para não se mover. A dor trazia-lhe a consciência. O socorrista perguntou-lhe a idade e a profissão: ouviu réplica sofrida. Samuel gemia: — Por favor, por favor… O homem tentava acalmá-lo. Em poucos minutos, ambos os acidentados eram conduzidos ao hospital mais próximo. Imobilizado, já dentro da ambulância, Samuel passou a articular melhor os pensamentos. Viu-se num pesadelo: aquela azáfama, as feições apreensi- vas, a dor e a posição vulnerável em que se encon-
  • 16. 15Samuel trava diante de desconhecidos assustavam-no. Onde lhe estaria o celular? E o carro? Tentava reconstruir mentalmente a sucessão dos fatos, mas havia um vácuo na memória: lembrava-se somente a partir do momento em que fora colocado numa maca. Imobilizado pelo colar cervical, mirava de soslaio em redor, encontrando inúmeros olhares tensos. Os socorristas eram ágeis e falavam alto, agitados, contaminando o ambiente da urgência. O ombro direito pulsava e doía muito. “Como?” — pensava, não encontrando resposta. De um salto, os socorristas abriram a traseira da ambulância e com a maca rasgaram o aglome- rado de pessoas que se encontrava na entrada do hospital. A sensação de Samuel era horrível: via-se absolutamente impotente, exposto, sentindo uma dor latejante e incapaz da menor reação. Não lhe sabia sequer o próprio estado... Teria quebrado o pescoço? Como estaria a cervical? Sangrava mui- to? Sentia, por vezes, um fisgar violento abaixo do peito. Seria a mortífera hemorragia interna? Que agonia! Que horror! Mirava o teto, o saquinho de soro a balançar. As luzes do hospital agrediam-lhe os olhos. A maca, veloz, percorria os corredores em zigue-zague. Súbito, adentra uma sala, perfurando uma corti- na de PVC. “Será que avisaram o meu pai?”. Aflito, em desespero, escorreram-lhe lágrimas dos olhos. “Irão me operar!” — soluçava. A enfermeira, ao lado, percebeu-lhe a angústia e segurou-lhe a mão. A maca estacou frente a um homem grisalho de
  • 17. 16 Luciano Duarte meia-idade. Em três palavras, o socorrista explicou- -lhe a situação de Samuel. O médico, gravemente, direcionou-se ao acidentado: — Meu nome é Oscar, sou cirurgião-geral e estou aqui pra te ajudar. Quero que me diga o que você está sentindo. Samuel, chorando, articulou: — Meu ombro tá doendo muito, doutor… E soltar as palavras pareceu-lhe aumentar a afli- ção: — Por favor, doutor… — Samuel gaguejava e tremia, ainda com o pescoço imobilizado. — Você pode, por favor, ligar para o meu pai? O médico tentou acalmá-lo: — A gente já avisou sua família. Pode ficar tran- quilo. Agora, eu preciso que você se acalme e me diga o que está sentindo. Você consegue mover o dedo do pé? Esforçando-se, engolindo o choro, Samuel assen- tiu levemente com a cabeça. O doutor ordenou a enfermeira: — Raio-X. E voltou-se ao acidentado: — A gente precisa fazer um exame pra saber o grau da sua lesão. Tá bom? Fica calmo. A sua famí- lia já tá vindo pra cá. A enfermeira conduziu a maca ao raio-X. Samuel percorria os corredores assustando e via-se aflito, extremamente constrangido. Chegando à escura sala de raio-X, a enfermei- ra indicou a Samuel que o moveriam ao leito fixo
  • 18. 17Samuel onde o exame seria realizado. Cuidadosamente, a maca foi posicionada ao lado do novo leito e, so- mando apoios, seis mãos executariam a operação. Samuel sentiu arder o antebraço e gemeu: o ajudan- te desculpou-se pelo involuntário esbarro. Todos posicionados, contaram até três e, num só impulso, transferiram o jovem ao novo leito. A elevação, ti- rando-lhe o apoio do ombro, agravou-lhe a dor. A nova posição era desconfortável. — O exame é rápido, — disse a enfermeira, apro- ximando-se, — mas eu preciso que você abra um pouco o braço direito. Tocou-lhe. O ombro destro era o dolorido. — Vou mover bem devagarzi… — Ah! — um centímetro bastou para que viesse a fisgada. — Desculpa, desculpa… — Tá doendo demais! Evitando a insistência no braço, a enfermeira pe- diu-lhe tentasse mover levemente o corpo. Samuel forçou-lhe ao lado o quadril. — Isso, isso. Mais um pouquinho. Foi. Então, posicionando a máquina de raio-X a poucos centímetros do ombro direito de Samuel, a enfermeira instruiu-lhe a não se mover e retirou-se da sala. Enquanto isso, no silêncio e no escuro, Samuel observava o que conseguia. Imaginou na articula- ção mecânica do aparelho um braço. “Se isso sol- tar, perco meu ombro…”. Percebeu a maca ao lado — agora a via! — tingida de sangue, uma bancada
  • 19. 18 Luciano Duarte debaixo de um painel de vidro… tudo de um terrível branco. A parede, descascada, passava impressão de desleixo, e uma tela escura ao lado da máquina completava o ambiente. Pouco ruído, o ombro a doer. “Bati o carro!”. De repente, um barulho estranho. Era a máquina. Começou a radiografia, e Samuel guardava-se o di- reito de não se mover. Decorrem três, talvez quatro minutos de ruídos e inércia, então entrou novamen- te a enfermeira. — Agora a gente precisa fotografar a cervical… Queria a mulher dizer que Samuel teria de sentar- -se no leito. Na moça sobejou precaução: — Não está nada dormente, nem formigando não, né? Samuel deu aval necessário e, auxiliado, ergueu- -lhe o tronco. Já sentado sobre o leito, teve-lhe a postura ajustada, ouvindo a repetida recomenda- ção de permanecer imóvel. “Outros vinte minutos parado…”. O ombro parecia mais pesado e mais dorido em nova posição. As radiografias posteriores foram morosas, prin- cipalmente em razão da necessidade de fotografias em muitos ângulos. A enfermeira entrou diversas vezes na sala, a ajustar a posição de Samuel, dizen- do-lhe que se estava movendo e censurando-o. A moça parecia impaciente, e Samuel não pensava senão na incompetência da coitada. “Já foram cin- quenta fotos, não é possível!”. E lembrou-se nova- mente da desdita geratriz: “Bati a porcaria do meu carro! Mas que inferno! Por que eu fiz essa boba-
  • 20. 19Samuel gem, meu Deus do céu?”. E antes que se lhe tomasse mais uma vez a agonia, a enfermeira irrompeu na sala e embargou-lhe os pensamentos: — Acabou. Agora é o seguinte: eu preciso te levar pra enfermaria. Você prefere deitado? — Tanto faz. A mulher pediu-lhe que deitasse na maca e Sa- muel, obedecendo, pela primeira vez enxergou o estado dos antebraços. Horrível, horrível… Nunca se havia machucado em semelhante gravidade: as feridas estavam na carne, brancas. Então percebeu o quanto lhe havia de ser dramático o estado do ombro, posto este incomodasse muito mais. Em dois minutos, estavam ambos na enfermaria. Outra vez, foi Samuel solicitado a sentar-se em leito separado. — Vai doer um pouquinho. Você quer uma coisa pra morder? — indagou a cuidadosa enfermeira. Que pergunta… Iriam lhe arrancar o braço? Não, não… apenas higienizar as feridas. O risco de in- fecção era grande, portanto, a ação era necessária e urgente. E assim a mulher, por cerca de vinte minutos, fez com que Samuel esquecesse a dor do ombro, visto o ser humano sentir somente uma dor de cada vez. Vinte minutos de gemidos e suplícios: o antissépti- co, água com sabão ou o que fosse parecia fogo em contato com as feridas, parecia fritar o que lhe so- brara de carne no antebraço. Quando a solução ter- minou-lhe o labor, Samuel já se via resignado com a dor eterna. Deixou, inclusive, de gemer.
  • 21. 20 Luciano Duarte De braços enfaixados, exausto, Samuel foi con- duzido a um quarto onde, deitando-se, logo se viu apagar.
  • 22. 21Samuel Capítulo III Acordou diante do pai. João Arnaldo, alto e es- guio, solene e formal, tinha voz cavernosa, muito afeita às sentenças que lhe saíam como por auto- matismo e que pareciam querer expressar as últi- mas verdades do universo. Sentado num sofá diante do leito, cofiava-lhe o denso bigode quando o filho despertou encontrando-lhe os olhos negros perdi- dos e imóveis. Samuel, percebendo o pai, fingiu que ainda dor- mia, quando lhe tomou a vergonha do ocorrido. Certamente, o pai lhe passaria um sabão. “Bati a
  • 23. 22 Luciano Duarte porcaria do meu carro!” E pensou na desculpa que teria de dar no trabalho: “Lasquei-me. Perdi o car- ro e o emprego”. Então lembrou-se da recente pro- moção. — Justo quando finalmente algo de bom acon- tece… — lamentou ao pai, desistindo de simular o sono. O pai assustou-se, ajeitando-se no sofá: — Você tem de agradecer muito, mas muito… — Agradecer? No dia em que recebo a primeira grande notícia em anos, destruo a minha vida ba- tendo o carro. O pai sorriu com ironia e disse baixinho, como em segredo, inclinando-lhe o tronco: — O que aconteceu hoje, você deve a Deus pelo resto da sua vida. Você podia muito bem estar mor- to, preso, tá me entendendo? E olha como são as coisas… tudo não vai passar de um ligamento rom- pido, o seguro te dará outro carro… Isso, sabe-se lá o motivo, foi a vontade de Deus. É Deus que está, diretamente, te passando uma lição, e é bom que você aprenda, pois não é todo mundo que tem a mesma… O médico entrou com as radiografias em mãos. João Arnaldo, calando-se, apoiou-lhe as costas no- vamente no sofá. — Boas notícias — iniciou o médico, que estacou ao lado de Samuel. Mostrou, uma por uma, as radiografias, apon- tando-lhes as conclusões: — Aqui, tudo certo, estão vendo? Não há lesão
  • 24. 23Samuel de nenhuma espécie na cervical. Já aqui, reparem, — e puxou a radiografia do tórax, — não há a con- firmação da suspeita de fratura na costela, embora não queira dizer que não haja, visto o exame não ser capaz de detectar a totalidade das lesões. De qual- quer maneira, é uma boa notícia, pois não há indí- cio de complicações como sangramento ou escape de ar, nem necessidade de intervenção cirúrgica. O doutor tomou fôlego, puxou outra radiografia e continuou: — Quanto ao ombro destro, não houve luxação, mas provavelmente houve rotura tendinosa, e pre- cisaremos de realizar uma ressonância para avaliar o grau da lesão. — Precisarei operar, doutor? — Creio que não, Samuel. Em verdade, seus exa- mes tranquilizaram-nos a todos. Quando te trou- xeram, em maca e desesperado, esperávamos que a situação fosse grave. Estamos acostumados… São muitos os acidentes como o seu que comprometem além de tendão e costela. Aliás… — o médico pen- sou e pareceu desistir do pensamento. — O fato é que o acidente não lhe comprometeu gravemente, e hoje mesmo você dormirá em sua casa. Dizendo isso, o médico voltou-se a João Arnaldo, dando a entender que já haviam palestrado. — Tá certo, meu senhor? — Muito obrigado, doutor Oscar! Muito obri- gado! E o médico rematou: — Agora me deem licença, que eu preciso provi-
  • 25. 24 Luciano Duarte denciar a ressonância e pedir urgência no processo. A enfermeira trará as instruções — disse e deixou a sala. Em cerca de vinte minutos, pai e filho obtiveram a confirmação da disponibilidade do exame e des- ceram ao respectivo setor do hospital, onde foram instruídos a aguardar em pequena sala de espera. Samuel temia o silêncio do pai, que ostensiva- mente lhe negava o contato visual, vagueando silen- te, porém não camuflando o nervosismo. O filho, atento, deduziu o pai ocultar-lhe informação. Que seria? O desconforto estava escancarado, a feição de João Arnaldo denunciava-lhe o conflito interior. Receoso, Samuel nada disse, e sentaram ambos em silêncio. A sala de espera abria-se logo após uma rampa entre um corredor no subsolo do hospital: o cor- redor seguia seu rumo, convergindo para as salas de exame; antes, porém, numa pequena recepção fronteira a umas vinte cadeiras, uma enfermeira anunciava os pacientes convocados pelos médicos. No espaço que se abria à esquerda do corredor, cadeiras; diante delas, uma televisão. Um hospital raramente exibe feições divertidas, mas nessa pe- quena sala contavam-se dez sorrisos bovinos entre- tidos com o reality show exibido na televisão. Samuel detestava reality shows; foi sentar-se e ver-lhe a irritação brotar. Uma voz logo atrás co- mentava: — Tá vendo? Eu disse que ela não aguentava! E outra rebatia:
  • 26. 25Samuel — Não quer dizer nada. O programa é manipu- lado. Isso que a gente tá vendo é só uma parte do que aconteceu! — Quer valer? Quer bater uma aposta? Eu te ga- ranto que, nessa semana, ela pede pra sair! “Pronto! Agora é ter de ouvir dois idiotas!”. — Apostado! Ela vai ganhar, certeza! O ânimo aumentou: — Então é isso que a gente vai ver. Quanto cê quer perder? Por mim trinta reais, agora! — Trinta não, trinta é muito. — Olha lá! De novo ela chorando! Não falei? Olha lá! Tá escrito! Eu não quero nem saber, agora cê vai ter que pagar: provocou, agora eu quero ver se tem coragem! “Mas que inferno!” — pensava Samuel, já irri- tado, enquanto a discussão continuava. “Por que as pessoas têm de ser tão insuportáveis?” Súbito, sente uma saliva umedecer-lhe a nuca. Era demais. Virou-se: — Escuta aqui — percebeu discutirem um casal; a mulher era um espetáculo. — Desculpa… vocês podem falar um pouquinho mais baixo? Eu tô com muita de dor de cabeça… Silêncio. Desapareceram as expressões bovinas e os olhares voltaram-se contra Samuel. Ajeitando-se de volta na cadeira, Samuel perce- beu o pai, sem dizer palavra, censurar-lhe violen- tamente. Estava claro: guardava-lhe uma conversa. Samuel calou-se pelo restante da noite no hospi- tal. Em pouco mais de uma hora, a recepcionista
  • 27. 26 Luciano Duarte anunciava-lhe o nome. Apresentou-se e foi instruí- do a seguir sozinho pelo corredor. O exame de ressonância magnética, cem vezes pior que o de raio-X, não desviou de Samuel o tor- mento gerado pelo olhar ferino que recebeu do pai na sala de espera. Já nem pensava na dor que sentia. Enfiou-se na cápsula medonha e aguardou silencio- so pelo fim do moroso processo. Completaram-se os protocolos, e Samuel foi in- formado de que o resultado sairia no dia imediato. Assim, foi liberado. Cerca de uma e meia da manhã, pois, saíam pai e filho do hospital. Entraram no carro. João Arnaldo aguardou cruzasse a primeira esquina, então se pôs a falar: — Olha, Samu. É o seguinte. O que eu vou te falar termina nesse carro e morre para sempre — dizia, e o olhar se lhe direcionava ao trânsito. — Preste bem atenção e calcule o tamanho da sua sorte e da sua dívida. Meça bem a dimensão do que aconteceu hoje na sua vida. Eu estava, em casa, assistindo à televisão, quando me toca o telefone: era seu núme- ro que chamava. Atendendo, tomo um susto, pois falava um sargento da polícia. Ele intimou-me ao hospital sem maiores explicações. Aliás, seu celular e sua carteira estão aí, no porta-luvas. Pode abrir e pegar. Recebi das mãos do sargento. Samuel já se havia esquecido do inseparável apa- relho multifuncional. O pai continuou: — Então, cheguei ao hospital desesperado. O sargento esperava-me sentado. Viu-me entrar e per-
  • 28. 27Samuel guntar por você. Já a moça da recepção sabia do acidente, todo o hospital sabia. Fui informado que você passava bem e, de repente, o militar toca-me o ombro, apresenta-se, e convida-me para uma con- versa em particular. Eu queria, antes de tudo, ver você. Desconfiei que seu estado não fosse exata- mente o que me informaram, mas respeitei a farda e segui para o estacionamento do hospital. O homem levou-me para onde estacionara a viatura. Abrin- do o banco do passageiro, sacou uma prancheta. Então olhou em redor, a garantir que estávamos a sós, e me disse que você havia furado um semáfo- ro vermelho, sem usar o cinto de segurança, e que uma van, trafegando em outro sentido, colidiu com o seu carro. O sargento era o mesmo que lhe pres- tou socorro, disse ter conferido o relatado por tes- temunhas e através de câmeras de monitoramento. A van, ele disse, trafegava normalmente, e você foi o infrator único no acidente. Executando a perícia, ele disse ter encontrado uma lata de cerveja aberta dentro de seu carro. Você estava, mais uma vez, be- bendo e dirigindo. Samuel teve o impulso de mentir. Mas se calou, posto o pai não perguntasse, somente estivesse rela- tando as palavras do policial. Prosseguia João Ar- naldo, elevando o tom: — Quantas vezes te falei sobre a sua irrespon- sabilidade? Aí está: seu carro, provavelmente, terá perda total. Mas o seguro te dará outro, veja só que maravilha! Agora você deve estar se perguntan- do: por que dormirei em casa, ao invés de dormir
  • 29. 28 Luciano Duarte na cadeia, já que o policial achou cerveja no meu carro? É bem isso, não é mesmo? Você, bebendo e dirigindo, deveria estar na cadeia após esse aciden- te! Mas acontece, e julgue por si mesmo!, aconte- ce que a van que bateu no seu carro era uma van roubada cujo motorista é um criminoso procurado há anos pela polícia. O sargento mostrou-me a fi- cha criminal do homem e disse sem meias-palavras: “Esse acidente poderia, muito bem, destruir a vida do seu filho para sempre!”. Mas ele disse ter olhado pra você e visto em sua face o próprio filho. Então ele emendou: “Sabe o que, senhor João Arnaldo? Eu acredito em Deus! E acredito que um acidente como esse faz os sobreviventes renascerem. O seu filho poderia ter morrido, mas não morreu. Poderia ter matado um inocente, mas não matou. Pelo con- trário, a imprudência do seu filho ajudou nós, da polícia, a capturar um dos piores monstros de Belo Horizonte. Então eu me pergunto como é que pode um homicida, um estuprador dessa raça, com mais de trinta crimes na bagagem, que há anos faz a po- lícia gastar rios de dinheiro na sua captura, ser pego justamente num acidente de trânsito? A resposta é óbvia: foi Deus! Deus colocou o carro do seu filho, naquele instante, entravando a rota do monstro. E se Deus não quis o seu filho morto, se Ele colocou justo a mim, que perdi um filho jovem, vendo mor- rer-lhe todas as esperanças, vendo esmagado todo um futuro, para socorrer o seu filho, então, senhor João Arnaldo, isso para mim tem um sentido maior! Eu não prenderei o seu filho. Não deixarei que acu-
  • 30. 29Samuel sem o seu filho de tentativa de homicídio doloso. A lata de cerveja está no lixo e eu espero que o senhor, e principalmente o Samuel, lembrem-se desse dia para o resto de suas vidas: o dia que a misericórdia de Deus quis afastar de vocês a desgraça”. Assim finalizou o pai.
  • 31.
  • 32. 31Samuel Capítulo IV Samuel entrou em casa aéreo, profundamente co- movido. A mãe tentou fazer inferno do acidente, importunou o filho quanto pôde; mas este, calado, não lhe respondia, sequer lhe prestava atenção. Na cozinha Samuel encheu a si um copo de água que bebeu logo após pousar na língua os analgési- cos recomendados pelo médico. Tinha fome, mas a mãe lhe esganiçava no ouvido. Deliberou então rumar ao quarto, onde se trancou. Finalmente, silêncio. Na clausura, de luzes apa- gadas, sentou-se apoiando as costas na cabeceira da cama. Suspirou: que dia! que infortúnio e sorte ao mesmo tempo! quão próximo estivera da desgraça!
  • 33. 32 Luciano Duarte A dor no ombro pareceu-lhe insignificante. Atirou o celular sobre o criado-mudo: já sabia que Gutão se pusera a par do ocorrido e solicitava novas. Mas quem seria Gutão? Que satisfação lhe devia? Talvez Gutão quisesse comentar as notícias com terceiros: decerto já era o acidente assunto de outras rodas… Tanto fazia! Tudo se tornara tão pequeno, tão me- díocre que essas banalidades não despertavam em Samuel senão piedade. Agora ele bem via: Deus agi- ra, diretamente, em sua vida, e a seu favor. Que- rer lição maior? Só de pensar no risco que correra causava-lhe arrepios: estava, em casa, no próprio quarto, quando poderia estar na cadeia, ou talvez morto, paralítico, quem saberia dizer? O alívio era imenso, mas lhe não freava o tremor. E os sinais se conectavam com nitidez descomunal: primeiro, a promoção intempestiva, a alegria, a abertura de no- vas possibilidades; depois, o acidente, o ver quase cair tudo por terra, o escancaramento de sua vulne- rabilidade. Então, a misericórdia, a graça divina, o ensejo único caindo dos céus. Seria um estúpido não percebesse a claríssima mensagem latejando-lhe no ombro direito, ardendo no braço enfaixado. Coin- cidência? Sorte? Isso é que seria, em verdade, acre- ditar no absurdo! E percorrendo-lhe com os olhos o quarto, reparou as roupas que passara na véspera dobradas em cima de sua escrivaninha, o computa- dor com um lembrete colado na tela, os carrinhos de brinquedo dos tempos de criança, dispostos numa prateleira logo acima da televisão, ladeando meia dúzia de livros que lera em adolescente… em
  • 34. 33Samuel tudo aquilo sentiu um aconchego, um conforto que lhe fez lacrimejar. “Morto, eu poderia estar mor- to!”. Então lhe vieram em mente as cenas de um passado afetuoso, que lhe lembraram os ternos dias de sua infância junto aos primos Julinho e Vinícius na casa dos avós, jogando futebol na rua, machu- cando-se; — tivera sempre essa inclinação para as feridas… — lembrou-se do dia em que, ralando-se inteiro após cair de bicicleta, julgou-se o “menino mais infeliz do mundo”; riu-se ao recordar o ar- dor dos pequenos machucados… E orçou quanto conquistara: nunca foi aquele em que se deposita- vam esperanças; na escola, desde pequeno, não foi senão aluno mediano, sofreu para avançar no en- sino médio. Entre os colegas, nunca se lhe deram destaque, nunca angariou condição de popular; em verdade, sempre se viu meio aos tímidos, aos discre- tos, e conquanto não fosse frequentemente alvo de piadas maliciosas dos garotos populares da escola, também lhe não nutriam respeito, não lhe direcio- navam atenção. Com as garotas nunca teve muito tato; não lhes agradava, era evidente: seu perfil não despertava atração. E, por isso, viu-se ao longo dos anos convivendo com um recato, um bloqueio, uma ansiedade toda vez que se punha a conversar com qualquer menina de sua idade. Se fosse bonita, en- tão… esquece! Nem comunicar-se com clareza con- seguia, quase sempre passava por ridículo… Mas lhe veja agora a situação: vinte e cinco anos e a ge- rência de vendas de uma empresa de médio porte! Haveria gente de melhor fortuna, decerto, mas o
  • 35. 34 Luciano Duarte que alcançara não era de se desprezar… Assim, Samuel ajuizou a quase queda poder ser- vir-lhe a um impulso maior, mais seguro e defini- tivo. O flerte com a perda total fê-lo valorizar o que tinha, iluminou-lhe as prioridades e instou-lhe a proceder naquela noite com um julgamento to- tal de sua conduta. O primeiro vilão era o álcool: que lhe trouxe alguma vez a bebida? Socialização? Amigos? Mas que tipo de amigo lhe condicionaria o afeto a rodas regadas à cerveja? Em adicional: quanto lhe custavam todas aquelas noites de farra! Se tinha como meta a independência, pois quanto a anteciparia se deixasse de beber! Além do mais: necessitava das noitadas? O prazer já não era o de outros tempos: tudo ocorria muito mais por uma questão de hábitos… E o tempo perdido? A bebida, gananciosa, além da noite tomava-lhe o dia imedia- to. O raciocínio lhe não deixava brechas: era o ál- cool, em todos os quesitos, prejudicial, e quase lhe tomara tudo. Não, não mais beberia! Expulsaria de sua vida esse câncer! Faria o que o médico orde- nasse, trataria do ombro, da costela, do que fosse; pagaria a apólice do seguro; enviaria, já no próxi- mo dia, uma mensagem ao chefe informando-lhe do ocorrido, prevenindo-lhe de uma possível ausência; afastaria de si tudo quanto o puxava para baixo. Então cuidaria aproveitar a oportunidade que lhe fora jogada do céu: seria o melhor gerente de ven- das da história da empresa; geraria valor. Poupan- do, compraria a tranquilidade e a aposentadoria precoce. Era jovem, tinha potencial e motivação
  • 36. 35Samuel para conquistar o que quisesse. E acima de tudo: sabia Deus estar do seu lado! Sabia-se amparado, incentivado diretamente pela providência para dar cabo a seus planos, para seguir, desta vez, pelo úni- co e feliz caminho, sem desvios e sem cambalear. Que satisfação era ver a mente iluminando-se num clarão repentino! Como tudo se havia tornado sim- ples! Bem lhe dizia o avô Deus escrever certo por linhas tortas… Envolto num turbilhão de sensações, dolorido e emocionado, agradecido e feliz, Samuel pegou no sono devaneando-lhe o futuro. A partir deste dia haveria uma mudança drástica em sua conduta. Realmente, deixou de beber: o costume arraiga- do através de anos sumiu-lhe da rotina. No início, houve as presumíveis dificuldades; Samuel venceu- -as com obstinação. O acidente cristalizou-lhe a personalidade, deu-lhe força, afastando-lhe das dis- trações juvenis. Em pouco tempo, percebeu que a vida lhe havia melhorado: sobrava mais dinheiro e mais tempo, sentia-se melhor. No ombro rompeu- -lhe um tendão. Não haveria, por ora, necessidade cirúrgica; mas quarenta sessões de fisioterapia fo- ram prescritas pelo doutor. Na primeira semana o inchaço sumira, levando junto de si a dor. Os mo- vimentos rapidamente tornaram à amplitude ha- bitual. Samuel não faltou à labuta um dia sequer: trabalhou, ocultando da empresa o atestado médi- co, o que muito lhe agradou o chefe. Então, se até aqueles dias a vida lhe havia sido boa, foi quando realmente começou a melhorar…
  • 37.
  • 38. 37Samuel Capítulo V Correram três meses do acidente. No trabalho, Samuel aportou uma proatividade que chacoalhou todo o setor de vendas da empresa. Motivado, coor- denou estratégia habilíssima que logo se converteu em indicadores. Os relatórios semanais passaram a trazer satisfação generalizada, e o jovem gerente tornou-se alvo frequente de elogios do chefe. Num domingo de julho o sol raiou trazendo anos a Samuel. Às oito horas de uma manhã cerúlea, ele levantou-se, escovou os dentes e recebeu, na cozi- nha, as felicitações do pai, que já trabalhava nos arranjos do almoço que estava programado para a comemoração em família.
  • 39. 38 Luciano Duarte Foram convidados os avós paternos e o tio, com consorte e dois filhos: eram os familiares que resi- diam na capital. A família materna distava a quase quinhentos quilômetros em direção ao Triângulo Mineiro. Samuel, findo o café da manhã, pôs-lhe as mãos em auxílio do pai, que limpava um pescado. O pai pediu-lhe tratasse do preparo de alguns vegetais e raízes para a salada. Em pouco recebia o abraço da mãe, que havia saído ao supermercado a finalizar a compra dos ingredientes para a festa. A seis mãos trabalhavam, e não era mais que dez e meia da manhã quando os preparativos findaram- -se. Na geladeira sobremesas, saladas, temperos e acompanhamentos; o peixe a descansar em marina- da; e os três familiares apressaram-se a tomar um banho e aprontar-se, pois os convivas chegariam ao meio-dia. Viviam em casa de dois andares com modesta área externa nos fundos, que dispunha de uma hor- ta, uma churrasqueira e espaço para três ou quatro mesas. Do segundo andar, onde lhe ficava o quarto, Samuel ouviu tocar o interfone. Súbito, é chamado pela voz da mãe: — Samu! Faz o favor… Então, já preparado para a recepção, desceu as escadas, onde Maria Elvira lhe esperava forçando disfarçar a alegria. — Seu avô tá té chamando lá fora! — disse ela, com olhar denunciando a surpresa. Atento aos óbvios sinais, Samuel caminhou em
  • 40. 39Samuel direção à porta imaginando o que lhe poderia espe- rar. Os avós sempre cuidaram presentear-lhe duas vezes ao ano: no aniversário e no natal. Geralmente recebia alguma soma em dinheiro, posto os avós soubessem que ninguém melhor a lhe comprar algo do agrado que não a si mesmo. Acertavam. E o di- nheiro festivo sempre foi a Samuel motivo de muita alegria, principalmente porque, antes de começar a trabalhar, praticamente não dispunha de orçamen- to. Abrindo o porta que dava para a rua, a surpresa: os avós, à esquerda, distante dois metros dos tios e primos, à direita. Sorrisos radiantes. Samuel não atinou. Não levou dois segundos para que todos apontassem os braços para a mesma direção: entre eles, havia um carro cuja lataria remetia a um espe- lho. Era este carro um presente para Samuel. A euforia que lhe brotou no peito arrancou-lhe lágrimas e contagiou-lhe o semblante. Abraçou e beijou calorosamente cada um dos parentes, que lhe explicaram a origem do presente: decidiram-se, logo após o infortúnio do acidente, juntar forças para comprar-lhe um novo carro, visto o seguro ti- vesse se desdobrado para consertar o veículo antigo, negando-se a assumir a perda total. Assim, sabendo um conserto jamais restaurar os componentes ao estado de origem, os familiares compadeceram, e o presente contava também com a participação dos pais. Que tarde seria essa! Havia emoção sincera com o contentamento de Samuel. Ligando e guardando
  • 41. 40 Luciano Duarte o novo carro na garagem, o presenteado quedou longos minutos a admirá-lo: era um popular usado, não há de negar, mas estava num estado impecá- vel de conservação. Pouco mais de um ano de uso, dono único, modelo dois anos mais recente que o seu. Em cobre, valia quase o dobro do antigo, e a satisfação não poderia ser maior. Nesse clima, foram todos para a área externa da casa. A churrasqueira ansiava pelo estalo inicial. João Arnaldo agitou a celebração, preenchendo de cerveja os copos que aguardavam sobre uma mesa de plástico. Brindaram ao aniversariante e refres- caram-se da bebida geladíssima. Em pouco a chur- rasqueira bafejava e o ambiente era estimulado por um aparelho de som. Bebiam todos, exceto Maria Elvira. Samuel, logo após o brinde e gole eufórico, perce- beu que lhe quebrava a promessa. Sentiu-se tomado pelo desânimo: “Prometi-me não beber…”. Então se iniciou o debate mental. Disfarçando, foi à co- zinha, na parte interna da casa, para ponderar-lhe as atitudes. Passou da cozinha para a sala, quando se sentou no sofá. Alisando-lhe o queixo, repassou mentalmente as expressões radiantes dos parentes, toda a alegria que se lhes emanava desde a cena na rua. O ambiente era feliz, contagiante, talvez como nunca fora. Pensou no tamanho da desfeita que se- ria recusar o copo, no balde de água fria que jogaria sobre os parentes que lhe presentearam e queriam vê-lo, especialmente nesta data, relaxado e alegre. “Tenho de beber. Não posso me recusar a beber.”
  • 42. 41Samuel Suspirando, levantou-se e voltou à área externa. Em trinta minutos os goles acompanhava-os churrasco. Neste tempo, o pescado deixou a sal- moura rumo ao forno. A excitação já havia cedido espaço a conversas serenas e alegres. Formaram-se duas rodas: a primeira, entre as senhoras e Julinho, o primo caçula, que contava dezoito anos. Estavam em mesa separada, a fugir da fumaça que contami- nava o ambiente. Do outro lado estavam o restante dos homens, estando João Manoel, o vetusto da fa- mília, sentado junto a Samuel e Vinícius em redor de uma mesa, enquanto João Arnaldo e o irmão mais velho, Raimundo, cuidavam do churrasco. Este temperava asas de frango em pia ao lado da churrasqueira; aquele virava carnes. João Manoel contava aos netos uma história en- graçadíssima: o dia em que ensinou Raimundo a pescar. O primogênito, inexperiente, julgara ter fisgado um jacaré quando o anzol fincara-se num tronco afundado em terra, visto a desatenção do garoto em jogar a linha próximo à margem. “É muito forte, pai! Não puxa!” — o avô gesticula- va relembrando o desespero do filho, levando os garotos à gargalhada. João Arnaldo, percebendo o assunto, ameaçou comentar com o irmão, mas de- sistiu da empreitada. Acontece que o pescador da história fora ele mesmo, e o pai cometia confusão. Melhor nada dizer… Deixe que o querido velho ria até estourar de alegria! Quando o almoço foi posto em mesa, já havia tempo que o pescado atiçava os olfatos. Todos em
  • 43. 42 Luciano Duarte roda, os manjares ao centro, e cada um servindo o próprio prato, com exceção dos idosos, que foram servidos antes de todos por Maria Elvira. Garfadas, sorrisos e elogios: assim se resumiu este almoço que se estendeu por toda a tarde. A come- moração terminou ao escurecer, quando as conver- sas abrandaram e o álcool trouxe-lhes sono. Samuel foi novamente abraçado com afeto por cada um dos familiares, que tomaram o rumo das próprias casas. Após rápida faxina na área externa, Samuel su- biu ao seu quarto, sentindo dilatado o efeito da cerveja. Ébrio, não estava. Estava? Talvez leve, estimulado… Chegando ao quarto pôs-se à jane- la, a pensar no seu dia. A vista não era agradável: fronteiro à casa de Samuel, um lote vago, em muro chapiscado e coberto de pichações. Postes de onde pendiam emaranhados de fios. A cerca em espiral sobre o muro da própria casa também contribuía para a poluição visual. À esquerda do lote, porém, um oiti, que destoava do cinza predominante. Seja como for, tanto fazia… Que dia fora aquele! Talvez tivesse sido o melhor de toda a sua vida. Nem uma única ironia na comemoração, nem uma única de- savença. O presente, os sorrisos… o álcool lhe não fora inimigo, pelo contrário, havia estimulado a so- cialização. Como era bom ver o avô a contar casos! As sutilezas do velho eram deliciosas: um humor diferente, sem maldade, talvez até infantil, que não constrangia nem desagradava… “Tenho família…” — e, olhando ao céu, Samuel agradeceu.
  • 44. 43Samuel Capítulo VI No dia seguinte, Samuel brindou com o novo possante a sua vaga no estacionamento da empre- sa. Como habitual, estacionou a quinze minutos do início do expediente, o suficiente para que todo o setor lhe analisasse a novíssima aquisição. Já havia assunto para a segunda-feira… Era costume de Samuel, nas primeiras horas da segunda, avaliar o desempenho da semana anterior. Solicitava um relatório de cada um dos três vende- dores de sua equipe, que havia de ser entregue nas sextas. Assim, punha-se a analisá-los logo que a se- mana começava, a ver como o planejamento corria e se cabia alguma ação adicional.
  • 45. 44 Luciano Duarte Havia uma planilha elaborada por Samuel que servia de guia ao trabalho de venda e pós-venda do setor. O gerente fazia o levantamento da carteira de clientes, seccionava-os em categorias, adicionava os de recente prospecção e traçava uma estratégia para que os vendedores prosseguissem com o con- tato comercial. Cada vendedor tinha uma carteira individual de clientes, sobre os quais recebiam co- missões pelas vendas, de forma que um vendedor jamais poderia abordar o cliente do outro. Desta forma, cada vendedor motivava-se a captar novos clientes para a própria carteira, sabendo que, uma vez captados, passariam a comissioná-lo em quais- quer vendas que a empresa lhes realizasse. Samuel, extremamente organizado, estruturara uma guia de programação onde cada vendedor tomaria conhe- cimento, após o almoço da segunda-feira, de quais contatos comerciais deveria fazer na semana, em di- visão por datas, temas e clientes, ficando a critério do vendedor o horário e estratégia de abordagem, que poderia ser feita via e-mail ou ligações diretas. Feito o contato, os vendedores deveriam alimen- tar a planilha com o resultado e suas observações. Havia campos onde o próprio vendedor avaliava a eficácia da estratégia, a possibilidade de efetivação de novas vendas e outras minúcias que interessa- vam ao planejamento do setor. Samuel munia-se de todas essas informações e definia as diretrizes da semana. Não era de sua política atravessar o ven- dedor e entrar em contato direto com os clientes, ainda que dispusesse de bom relacionamento com
  • 46. 45Samuel eles: sabia que tal atitude geraria ressentimento em sua equipe e raramente encontrava razão de fazê-lo. Nesta especial segunda-feira, pois, Samuel entrou em sua sala, separada das demais do setor, e co- locou-se a analisar os resultados da última sema- na. Havia um vendedor que lhe estava atiçando os nervos. Ocorria o seguinte: há cerca de dois meses, Samuel, em iniciativa própria, abordou um poten- cial cliente por telefone. Tratava-se de uma indús- tria enorme do ramo alimentício que certamente era mercado para sua empresa, produtora de pulveriza- dores eletrônicos para variados fluidos e aplicações. Samuel fora informado pelo chefe do histórico de contato com essa empresa: a vários vendedores já havia sido delegada a tarefa no passado, sem ja- mais efetivarem uma única venda. Samuel tomou o desafio para si e, ao telefone, foi transferido para o comprador. Que surpresa! O comprador portou-se com enorme receptividade: disse consumir em larga escala várias classes de pulverizadores, comprados em sua maioria de empresa tal que oferecia ótimos preços. Disse, também, enfrentar dificuldade em encontrar opções no mercado, vendo-se um pouco refém de seu fornecedor majoritário, e concedeu to- tal abertura para que Samuel lhe apresentasse o seu produto, convidando-o para uma visita. “Não é possível!” — foi o que deu na cabeça do gerente. E, na mesma semana, lá estava Samuel en- cantado no pátio industrial do potencial cliente, imaginando a dimensão do impulso que aquela vi- sita poderia trazer-lhe aos gráficos de vendas. Tor-
  • 47. 46 Luciano Duarte nando à empresa, Samuel teve a certeza que possuía condições de introduzir seus componentes nos pro- cessos da companhia visitada, e convenceu-se que a visita convertera um novo cliente. Assim, por uma questão de burocracia interna, o gerente deveria de- legar um vendedor responsável pela nova empresa: deu o presente a Jorge, colaborador mais experiente da equipe, que beirava os cinquenta e cujo encéfalo encapava-o respeitável calvície. Acontece que Jorge orçava pelos dez anos de casa e pusera-se despeita- díssimo vendo o jovem Samuel roubar-lhe a promo- ção. Passou a ser elemento problemático que colo- cou o novo gerente em péssimos lençóis. De Samuel fora exigido um tato descomunal para lidar com a frustração de um funcionário antigo, querido, com- petente, que lhe passara a invejar. O próprio Val- mir tinha excelente relacionamento com Jorge; elo- giava-o com frequência. Mas se Jorge, pela frente, permitia-se umas poucas palavras de insubordina- ção ao novo chefe, pelas costas o que fazia era uma verdadeira maquinação contra Samuel. Parcialmen- te em ciência, o gerente tentava, de toda maneira, estreitar relações, agradá-lo, pois o desempenho de Jorge era fundamental num setor composto por três vendedores. Assim, Samuel presenteara-o com um cliente que poderia, quem sabe?, quase lhe dobrar a comissão. Jorge, no entanto, alimentava há sete semanas a planilha relatando o insucesso dos contatos. Samuel não entendia: “Como nenhum retorno, nenhuma expectativa de venda, nenhuma previsão de orça-
  • 48. 47Samuel mentos? Estive pessoalmente na empresa e vi-lhes a demanda. O comprador dera-me total abertura…”. E passou a ponderar que Jorge talvez mentia, talvez não fizera contato algum com o potencial cliente, talvez, acomodado, passara a apoiar-se-lhe nos dez anos de casa e desleixar dos objetivos do setor. O sangue ferveu-lhe: “Jorge está fazendo força con- tra a empresa, puxando-nos para trás”. O “contra a empresa” evidenciava o profissionalismo de Sa- muel. “Não posso permitir um funcionário a agir desta forma…” E, agitado pelas pulsações, teve um impulso de coragem: “Eu sou o gerente!”. Levantou-se e levou o semblante carregado à sala contígua, onde o setor trabalhava em mesas dispos- tas em plano aberto. Chegou num momento em que todos riam. Foi pôr-se ao limiar da sala para que ouvisse a voz de Lúcia: — Carrão, hein, chefe? Para… — Jorge, é o seguinte — Samuel atalhou-a: — eu visitei pessoalmente a Tamóios, eu conversei pes- soalmente com o comprador da Tamóios, eu vi pes- soalmente pulverizadores na linha de produção da Tamóios e ouvi da boca do comprador da Tamóios que era interesse da Tamóios testar e desenvolver novos fornecedores para a nossa linha. Eu quero sa- ber o que está acontecendo para que nós não tenha- mos enviado nem um único pulverizador de gra- ça, para teste, em sete semanas do cliente sob sua responsabilidade. Qual é o problema? Tá faltando algum recurso? Você tá esperando alguma coisa? Porque eu, e nós, queremos e precisamos vender.
  • 49. 48 Luciano Duarte O setor arrepiou vendo, pela primeira vez em três meses, o jovem chefe exaltado. Sim, era o chefe que falava. Jorge, porém, após segundos congelado, de- volveu-lhe em insolência: — Eu acho que não entendi muito bem, Samuel… O chefe respondeu-lhe em novo ímpeto: — Eu quero entender por que, em sete semanas, a gente não tem um único pulverizador na Tamóios. Silêncio geral. As vendedoras, coitadas, já se ha- viam ajeitado na cadeira e pregado os olhos na tela do computador. Dez anos de casa ampararam a réplica de Jorge que, em olhar desdenhoso, assim respondeu o chefe: — Por que você não pega o telefone e disca para a Tamóios? Talvez eles te expliquem o porquê… Era demais. O limite do respeito havia sido ultra- passado. O gerente teve o impulso de berrar contra o subordinado, mas, antes que da boca aberta es- tourasse o grito, conteve-se. O dedo instintivamen- te erguido voltou-se à posição inicial e, em olhar va- rado pela cólera, Samuel deu meia-volta à sua sala.
  • 50. 49Samuel Capítulo VII Encerrado em sua sala, Samuel deixou o dia cor- rer. A experiência já lhe havia mostrado os benefí- cios de pôr a raiva a descansar. Distraiu-se de afa- zeres burocráticos do setor. Quando soou o sinal anunciando o termo do expediente, pôde cruzar com Jorge próximo à má- quina de ponto; não se olharam, mas não houve agressão. O novo carro de Samuel, saindo da empresa, ti- nha destino obrigatório. O mesmo ombro que obri- gara o gerente de vendas a cumprir quarenta ses- sões de fisioterapia agora lhe exigia três meses de
  • 51. 50 Luciano Duarte fortalecimento muscular. E não é que Samuel pegou gosto do negócio?! Havia pouco mais de mês que frequentava uma academia próxima à sua casa, e não faltara sequer um único dia! Lá pelos dezesseis, sempre magro desde a infân- cia, Samuel iniciou-se na musculação a ver se lhe alargava o físico franzino. Muito antes que a em- preitada pudesse apresentar resultados vistosos, isto é, exatamente dois meses depois, o jovem desmatri- culava-se do ginásio visto ter conseguido o primeiro emprego. Dali em diante seria de casa ao trabalho, do trabalho ao curso técnico, e deste para casa. Então os anos correram: o braço e o tronco sem- pre abaixo da média, a cintura paulatinamente angariando respeito e a rotina consumindo-lhe os dias. Vinte e quatro anos e formava-se em gestão de qualquer coisa: a barriga já lhe escondendo a fivela do cinto e o físico exaltando-lhe os olhos negros e vivos herdados do pai. Por essa época passara a cortar mais baixo a lateral do cabelo, deixando por cima um modesto topete, que lhe completava o visual, bem à moda vigente. Em traje que lhe ca- muflasse o vigor, poder-se-ia cravar-lhe o epíteto moderno, talvez até jovem moderno… Deste histórico, eis que novamente Samuel põe- -se diante de uma academia. Mas agora o contexto havia mudado. De início, a própria rotina permitia- -lhe umas horas de lazer à noite, posto não tivesse que estudar. O novo ginásio, em adicional, era sig- nificativamente superior ao antigo: se antes Samuel tinha de ir a pé ao treino, sujeitando-se a intempé-
  • 52. 51Samuel ries ou assaltantes no trajeto, agora se via dispondo de um aconchegante estacionamento interno. Além disso, o próprio exercício físico passou a agradar o jovem que, após a rotina estressante na empresa, encontrou um meio para descarregar-lhe as irrita- ções. O banho pós-treino passou a trazer-lhe um agradável deleite, e mesmo as noites de sono passa- ram a ser melhores. Assim, Samuel deixou a empresa nesta especial segunda-feira e rumou à academia. Cumpriu a roti- na: guardou-lhe o carro no estacionamento, apeou sustendo uma bolsa esportiva e dirigiu-se ao ves- tiário onde se havia de trocar. Eis que ocorre algo incomum. O vestiário ficava aos fundos do ginásio: o ma- triculado tinha de atravessar a recepção, onde lhe deixava a digital, e então seguia em diagonal pelo salão aberto, passando por entre os aparelhos, che- gando ao extremo oposto da recepção. Samuel, logo em liberando a catraca com o pole- gar direito, sentiu uma ligeira inquietude. Fechou- -lhe o semblante; mirava o chão e caminhava. Dez passos e alça a vista. Súbito, o instinto força-lhe os olhos à direita. Tremeu sobre os pés: o olhar levou- -lhe a uma pintura que caminhava graciosamente sobre uma esteira; a pintura olhava-lhe e sorria, como que tapando os lábios e conversando com uma amiga que se exercitava em esteira vizinha. O susto fez Samuel desviar a vista logo se per- cebeu alvo do olhar. Agitou-se. Baixou a cabeça, cambaleado por emoção fortíssima que brotou ar-
  • 53. 52 Luciano Duarte rancando-lhe um suspiro. A mente começava a… — Ou! — censurou-lhe um sujeito. — Desculpa, desculpa… — Samuel havia trom- bado no cidadão. Veio-lhe um tremor ainda mais forte. Samuel des- viou-se do rapaz e zarpou ao vestiário. Entrou como uma flecha e buscou um banco. Sen- tou-se e suspirou. “Como isso? Que vexame!” — os dedos já lhe entremeavam o topete e os olhos se viam esbugalhados. Articulou novamente: “Menti- ra! É pegadinha!”. Como é que aquele anjo estaria olhando e sorrindo para ele? Não havia margem para engano. Ou havia? Seria ele o alvo dos olha- res, a razão do sorriso? Talvez seria outro em sua direção… Sobre o caráter do sorriso a experiência lhe afastava de qualquer suposição: não era riso de, mas riso para, sem a menor sombra de dúvida! Era saber quem seria o abençoado… “Inacreditável! Isso não aconteceu!” Samuel finalmente levantou-se, com pensamentos ainda extasiados. Pôs-se a trocar de roupa quando o lado esquerdo do cérebro passou a trabalhar: “É bom que eu não seja tão estúpido como outrora. Estou aqui a conjeturar um genuíno absurdo, quan- do a maior possibilidade é que uma princesa como aquela jamais sorria para alguém como eu. É usar da razão a quebrar um pouquinho menos a cara, como provavelmente irá acontecer…”. E assim con- seguiu abrandar-lhe as expectativas, acalmar-lhe o impulso que lhe impelia a abrir os braços e gritar. Mas esquecia o jovem de um detalhe importantís-
  • 54. 53Samuel simo: não mais percorria a academia um franzino sedentário, e sim o gerente de vendas trajado em social. Já em vestes de treino, Samuel olhou-se no es- pelho: viu-se ajeitado, talvez como nunca estive- ra. Deu um leve toque no topete à direita e saiu de fronte erguida. Foi pôr o pé no piso emborrachado que se abria diante do vestiário e olhar de esguelha à área onde se enfileiravam as esteiras. Não foi possível verifi- car se ainda caminhava a princesa. Então, andando em linha reta ao local onde alongaria, distraiu-lhe a tensão olhando em direção oposta. Observou qual- quer coisa enquanto a mente perguntava: “E se ela me olhar novamente?”. Aí estava uma bela ques- tão. Abordá-la? Quanta ousadia! Samuel já se via gaguejando e passando vexame diante da princesa. Chegou ao conjunto de barras fixas onde se alon- garia. Dali teria ângulo para mirar as esteiras. Vi- rou-se, esticou os dois braços apoiando-se numa barra e alçou a vista. Mais uma vez os olhos se lhe cruzaram com os da garota. “É verdade! É para mim!” — o choque arran- cou-lhe um sorriso e forçou-lhe o olhar para baixo. “Agora é certeza, Deus!” — e pensava, desacredi- tando da própria sorte. Tratava-se de uma jovem magnífica, que ele havia admirado em outra ocasião enquanto treinava: pouco mais baixa que ele; cabe- los sedosos, lisos, longos e castanhos; físico atléti- co; pele rosada; lindos olhos amendoados e lábios que sugeriam o beijo. Um espetáculo! E quando se
  • 55. 54 Luciano Duarte punha a caminhar, então, é que a graça passava a hipnotizar: o compasso leve, jeitoso, o cadenciado movimento de quadril… um encanto! E ali estava ela, de cabelo atado em rabo de cavalo, caminhan- do e sorrindo-lhe indiscutivelmente… “Que fazer?” — foi a questão que passou a ator- mentá-lo durante o treino. Transitou entre dois aparelhos, cumpriu as séries recomendadas pelo fi- sioterapeuta, vez ou outra olhando com discrição às esteiras. Abordar diretamente a garota seria lou- cura, quanto mais ao lado de uma amiga… Inter- romper-lhes-ia o diálogo, o constrangimento seria imediato. E depois, que dizer? “Meu nome é Sa- muel”? Ridículo, ridículo… Controlar a ansiedade, então, seria impossível. Faria papel de palhaço. Eis que, de repente, finalizando um exercício, Samuel é levemente tocado no ombro. Vira-se: a princesa! O susto lhe não permite reação. A garota pergunta sorrindo: — Como é seu nome? — Samuel. E estendendo a mão, ela remata: — Prazer, Daniela. As mãos se tocam. Samuel sente o contato da pele fina, fria e delicada. Daniela, olhando-lhe nos olhos, vira-se e deixa o ginásio, em passo leve, sor- rindo e acompanhada da amiga.
  • 56. 55Samuel Capítulo VIII Daniela, Daniela… a noite correu e o nome per- manecia ecoando na cabeça de Samuel. A menina perguntara-lhe o nome. Sorrira e dissera: “Prazer”. Nem em sonho, nem em filme Samuel esperaria que uma Daniela lhe perguntasse o nome, sorrisse-lhe. Vinte e seis anos e jamais fora abordado daquela maneira. E logo assim, de repente, por uma prince- sa, uma Daniela? Inacreditável! Samuel completou o restante do treino aéreo, ex- tasiado. Sorria de si para si como um louco. Cin- co minutos após a partida da menina deu-lhe um arrependimento: “Como lhe não pedi o número? Por quê?”. E viu como o sorriso da garota não só
  • 57. 56 Luciano Duarte lhe dava abertura, como instava, implorava pelo pedido. Julgou vexatórios os poucos segundos que Daniela se lhe pusera de frente, aguardando a ini- ciativa. E que fizera Samuel? Nada, absolutamente nada. Congelara, travado, surpreso e incapaz de reação. “Como fui burro!…” E, nesse misto de enlevo e decepção, nosso ge- rente de vendas chegou em casa. Daniela! Recons- truiu-lhe os lábios enquanto se banhava: finos, si- nuosos na parte superior com laterais pontiagudas, levemente arqueadas; por baixo, o traçado curvan- do-se delicadamente, deixando o lábio inferior em discreta evidência. Para Samuel, que detestava os procedimentos cirúrgicos em voga que preenchiam o lábio superior das garotas a torná-lo como que in- flado, via em Daniela a perfeição estética: o ligeiro contraste, o aspecto natural dos traços… E aquilo se lhe abrira em largo sorriso, aquilo lhe convidava ao contato! Maria Elvira, vendo o filho a sorrir enquanto le- vava a roupa suja para a máquina, tudo entendeu. Sorriu também a mãe enquanto passava o tempo no sofá de frente à televisão. A dúvida era quem seria o motivo do sorriso. O filho apresentara-lhe uma única mulher em toda a vida, e havia quatro ou cin- co anos que não via a menina. Samuel, reservado e introvertido, confessara o término uma única vez, quando perguntado, cerca de dois meses após o rompimento. Depois, nem menção à namorada al- guma, nem sorriso estampando no rosto a paixão. A mãe não errava, sabia e confirmou ao ver Samuel
  • 58. 57Samuel voltando-lhe ao quarto: o filho, pela segunda vez na vida, apaixonara-se. Difícil foi esperar o entardecer da terça-feira que raiou… Samuel, desde que se pôs de pé, pensou somente em Daniela. Acordou com determinação anormal: agiria, faria algo, só não sabia o quê… Chegando ao trabalho assustou-se das anotações da véspera. Quanta irritação! Planejara a demissão de Jorge, pusera-se a levantar o histórico de ponto do experiente vendedor. Não havia necessidade, ao menos por ora… Precipitara-se e correra um grande risco: compraria uma briga enorme e desnecessária, geraria conflito quando ainda precisava provar-se enquanto gerente. Decidiu-se pelo inverso: chamou Jorge à sua sala e lhe propôs um incentivo; desculpou-se e confes- sou-se alvo de muita pressão. Disse depender de Jorge, confiar no trabalho de Jorge e não esperar de Jorge senão os melhores resultados do setor. O subalterno, que se havia arrependido da inso- lência logo após a saída do chefe, viu-se em alívio: empurrasse os dias com a barriga e lhe teria o salá- rio garantido com a certeza de pronto tomar para si a gerência. Aceitou as desculpas do chefe, agrade- ceu pela confiança e despejou meia dúzia de pala- vras de motivação. Samuel, finda a conversa, sentiu descarregar de si peso imenso. “É mesmo tudo uma questão de saber conversar… Gerenciar é transigir!” — refletia, sa- tisfeito da palestra. O inimigo transformara-se em aliado.
  • 59. 58 Luciano Duarte Relaxado do desabafo, prazeroso da descarga de tensões, não demorou para que lhe viesse novamen- te à cabeça: “Daniela, Daniela…” — quando lhe deu bruscamente: “Sabe o quê? Hoje lhe cumpri- mento com beijo no rosto e peço-lhe o telefone!”. Ajeitou-se na cadeira: a suposição trouxe-lhe um calafrio. Mas era isso! Ou não? Que Daniela espe- raria de um homem? Da garota, já nada se havia de esperar… Que queria Samuel, que ela lhe beijasse a boca a demonstrar interesse? Não, de jeito ne- nhum… Agora o bastão havia sido passado e ele, inclusive para se desculpar da covardia da véspera, pediria o número da magnífica Daniela. Atitude! Pois se lembrou de Gutão. Agora que não bebia, erguera-se um muro entre os dois amigos obstan- do-lhes a relação. Mantiveram ativas as conversas até pouco mais de um mês após o acidente. Gusta- vo, que inicialmente respeitara a decisão de Samuel, que lhe ouvira as justificativas, a história do policial e tudo o mais, não tardou para começar a instigar o amigo. Vendo-lhe as tentativas baldarem, logo teve de encontrar novo companheiro de farra, e a rela- ção com Samuel naturalmente esmoreceu. Entretanto Samuel, a despeito da distância, tinha Gutão como o melhor amigo. Se não mais bebia, se lhes não conciliavam as rotinas, tanto fazia… A amizade perdurava. Sacou o celular e contou, por mensagens, a histó- ria a Gutão. O amigo naturalmente não acreditou, pediu fotos, provas. Como não houvesse, acabou por atirar o caso em descrédito. Samuel ouviu do
  • 60. 59Samuel amigo que se fosse com ele… Ah! mas como seria diferente! Jamais perderia uma oportunidade como aquela, por isso a história parecia fantasiosa, mal contada… “Mas se for mesmo verdade, se você não estiver mesmo mentindo, então vá e peça o telefone dessa tal Daniela! Senão, creio seja hora de anun- ciar a mudança de time…” — recomendou textual- mente o amigo. “Pedirei o número dela. Simples. É vê-la e pedir.” Assim caiu a tarde, soou o sinal e Samuel levan- tou-se da cadeira resoluto. Trancando o escritório, dizia: “É hoje!”. Foi pôr-se no carro e começar as conjeturas: “Como já estou calejado desta maldita Lei de Mur- phy, muita calma…”. E logo trafegava entre os car- ros. “Provavelmente algo inesperado irá acontecer, como sempre, e eu não conseguirei pedir o número da princesa…” O tráfego, de praxe, era lento. Oh, horário das seis! Oh, ponto-morto e primeira! Pa- rado entre filas e semáforos, continuava Samuel a refletir: “É bem isso! Inflo o meu balão para que estoure! Mas não interessa, a minha parte está deci- dida: se vejo ela, peço o número, sem desculpa nem demora”. Quarenta minutos e Samuel adentrava o estacio- namento da academia. Foi virar a chave e sentir a tensão crescer. “Coragem! Sou homem!” Apeou, acionou as travas elétricas do carro e pôs-se a ca- minhar. De onde estacionara distava leve descida à re- cepção do ginásio. Em marcha, sentiu um vento
  • 61. 60 Luciano Duarte gelado bater-lhe contra o peito. Tremeu e não sa- bia se era frio ou nervosismo. Diante da porta de vidro, o último suspiro. Então passa para dentro. Música e rumor de correias. Samuel cumprimenta a simpática recepcionista e deixa-lhe a impressão digital frente à roleta. Concentra-se para não pa- recer nervoso. Passa pela recepção, caminhando de vista baixa. Quando ladeia o primeiro aparelho e sente-se definitivamente dentro da academia, ergue a fronte. Perpassa discretamente todo o ambiente com os olhos: nada. Então, ainda concentrado para não tremer, continua a caminhada. Que irritante esse nervosismo! E põe-se a fazer movimentos de maior amplitude com os olhos, já com o auxílio do pescoço. “Nada, nada… Não veio”. Consoante a cena da véspera, Samuel adentra o vestiário e busca pelo banco amigo. Dessa vez, o suspiro é de decepção. “Eu já sabia. O que acontece é sempre igual. Só mudam os contextos…” Assim Samuel trocou-se, não se olhou no espelho e deixou o vestiário cabisbaixo. Havia, porém, uma pequena esperança. Poderia não ter olhado direi- to… Chegou às barras habituais. O fisioterapeuta reco- mendara-lhe muito zelo no alongamento do ombro: deveria tensioná-lo em três direções, vinte segundos para cada; depois, o aquecimento, a garantir que os músculos preparem-se aos esforços posteriores; e quanto aos exercícios, é preocupar-se primeiro com a amplitude de execução, depois com a carga. Súbito, Daniela irrompe do vestiário feminino.
  • 62. 61Samuel Antes que Samuel pudesse formar raciocínio os olhares já se lhes haviam cruzado. O arrepio su- biu-lhe violentamente. “É agora! Ou vou agora, ou não irei. Se esperar cinco segundos, desisto”. Soltou a barra que segurava pelas costas e rompeu o blo- queio em passos corajosos. “É agora!” O arroubo que sentia era inédito. De olhar fixo, caminhou em linha reta à Daniela, que já se via de costas diri- gindo-se a algum aparelho. “Vou pedir o telefone dela” — pensava e arrepiava-se da tensão prove- niente da aproximação. A dez passos de distância, Daniela vira-se bruscamente e dá de cara com Sa- muel. O susto dura um segundo e transmuta-se em sorriso. — Daniela… Tudo bem? — Samuel expulsa de si o nervosismo que estalava, abafa-lhe o calafrio feroz e cumprimenta Daniela com um beijo na bo- checha. A menina assente. Sorri. Samuel emenda: — Vem cá. Confere aqui se seu número tá certo. Samuel ergue-lhe o celular e digita cinco núme- ros aleatórios. Daniela capta a malícia e abre largo sorriso. — Não, Samuel. Meu número não é esse — e, pe- gando-lhe da mão o aparelho, digita e conclui: — é esse aqui! E Samuel vê brilhar na tela do próprio celular o número de Daniela.
  • 63.
  • 64. 63Samuel Capítulo IX A pergunta tornou-se forçosa: quem seria Danie- la? Onde estaria Daniela desde o primeiro capítulo desta história? Façamos uma pausa e voltemos um pouco no tempo. A trajetória da belíssima Daniela é digna de nota. O pai a tivera aos vinte e dois por descuido, não suportara a pressão e fugira, deixando a namorada em desamparo. Nunca mais Bárbara, mãe da crian- ça, tivera notícias do rapaz. Parira três dias após completar dezoito primaveras. Poder-se-ia prever triste futuro para a pequena que nascia, posto a mãe se encontrasse em aban-
  • 65. 64 Luciano Duarte dono total pelo pai da criança, necessitando do tra- balho e ainda de estudar. Não foi o que ocorrera. De início, o obrigatório: a mãe deixara os estudos. O trabalho dera-lhe, em seguida, a licença remu- nerada, o que fora excelente notícia. E depois, o verdadeiro alívio: os pais de Bárbara mobilizaram- -se, encantaram-se com a pequenina e não só se dispuseram, como solicitaram pudessem cuidar da criação da menina. Fora uma surpresa que levara Bárbara às lágrimas, posto que jamais pediria um favor deste aos pais, primeiro, por estimar a car- ga de trabalho que acarreta uma criação; segundo, pelo péssimo relacionamento que mantinha com o pai. Já não conversava com ele há anos, e subita- mente os lindos e esverdeados olhos da criança res- tauraram por completo a relação. Assim, encarregaram-se os avós da criação de Da- niela. Bárbara fazia questão de tirar do bolso cada centavo gasto com a filha, mas sabemos como são essas coisas… Os avós arcavam com boa parte dos custos da menina, em segredo, até que a própria Bárbara tomou ciência e deixou correr. Aos nove anos, Daniela viu-lhe falecer a queri- da avó. Sofreu… como sofreu!… e pior para a mãe tendo de explicar a uma menina de nove anos que jamais lhe tornaria a ver a avó. Onze anos e novo fato marcante: Bárbara recebe proposta irrecusável de emprego, para deixar Di- vinópolis e transferir-se para a capital. O avô, de re- pente, tornou-se o homem mais infeliz do universo: não aceitava ver escorrer-lhe das mãos a netinha…
  • 66. 65Samuel Que lhe sobraria da vida, que lhe tirara há pouco a companheira de três décadas e meia? Mas sabemos, novamente, como são vãs as lágrimas nesse mun- do… Foi feita a vontade da mãe, a necessidade da mãe. E Daniela guardou para sempre a fotografia do avô de olhos rútilos, apoiado no pequeno gra- dil que circundava a casa onde fora criada, chacoa- lhando com tristeza a mão debilmente erguida. Durou seis meses a tristeza do velho. Então Da- niela, já aos doze anos, voltava a Divinópolis para romper definitivamente com os laços de sua infân- cia. Nem criança era mais… À Bárbara, veio herança respeitável. Contava trinta anos a mãe que agregou casa e carro ao ótimo fluxo de caixa mensal. Por si só seria capaz de, em alguns anos, deixar o aluguel na capital, mas o falecimento do pai acelerou o processo e a mãe pôde, inclusive, matricular Daniela em uma escola melhor. A rotina era um açoite; Bárbara quase não via a filha. Paciência… havia, decerto, pior. Todos esses fatos tiveram reflexos óbvios e fortís- simos no caráter da pequena Daniela. Se, por toda a infância, fora a menina alvo dos mais zelosos cuida- dos, de todo o carinho dos avós, subitamente, viu- -lhe a vida desabar, provando-nos que há pessoas de que o fado parece não ter piedade. Aos doze anos, portanto, Daniela tinha sobre as costas uma carga de sofrimento atroz. Poderíamos dizer parecido da mãe, mas a mãe tinha Daniela, e Daniela não tinha os avós…
  • 67. 66 Luciano Duarte Assim, a garota tornou-se assaz sorumbática e silenciosa em idade que o natural é falar, correr e abrir-se ao mundo. Não foi de desleixar dos estu- dos, mas a reclusão sempre a prejudicou; quer dizer: muito se aprende da relação com outros alunos, o contato é um estimulante, gera interesse, e foi Da- niela distante, de difícil relação, tímida e reservada, cuja ligação com o mundo jamais se estendeu para além da sala de aula. Isso até os dezessete. Nesta idade encontrava-se Daniela no ano em que se formaria no ensino médio. A escola era a mes- ma desde o falecimento do avô. Fizera, assim, duas amigas, que ao longo dos anos trataram de mitigar paulatinamente a tristeza da pequena Daniela, cuja própria imagem passou a se dissipar. Pouco a pou- co, os interesses em comum cristalizaram a amiza- de, entretiveram, motivaram e fortificaram-se. As amigas chamavam-se Laura e Thalita. Ambas de caráter parecido, entretanto, era esta comunicati- va, enquanto a outra guardava-se em timidez seme- lhante à de Daniela. O trio fechou-se quando se juntaram as três em mesma classe no primeiro ano do ensino médio. Foi quando começaram as experiências amorosas das garotas. Daniela apaixonou-se — dizia “gostava” — por um jovem Leonardo. Não se falavam, não se co- nheciam, nada. Mas os olhares confessavam, e o sen- timento era recíproco. Thalita e Laura, entrementes, começaram a trocar beijinhos, coisa que Daniela não podia nem sonhar, visto não houvesse perdido parte considerável do extremo acanhamento da infância.
  • 68. 67Samuel Dois anos ficou Daniela a ouvir das amigas a ma- ravilha do beijo, das carícias do afeto. Thalita já na- morava o terceiro… Assim, a imaginação começou a florescer na mente da menina que arrepiava só de ouvir falar em beijo. O arrepio tornou-se instigante. E neste ano corriam os preparativos para a forma- tura, agitando as expectativas de todos os forman- dos. Mesmo Bárbara cuidava, em casa, de aplicar injeções de ânimo na filha. Já em janeiro viam-se todos ansiosos, motivados com a independência de poder organizar uma festa. E o clima não poderia deixar de contagiar, também, nossa Daniela. Ocorreu, pois, algo mais forte. Por junho deste mesmo ano, deram os formandos uma festa a dis- cutir detalhes da formatura. Daniela, já animada dos planos, deixou-se conhecer, de uma só vez, o álcool e o beijo. Quem era o garoto? O próprio Leonardo de dois anos de flerte. Súbito, a vida lhe havia sorrido! Belos dias subsequentes ao beijo… Daniela, enfim, aos dezessete anos, engatava o pri- meiro namoro e tornava-se uma mulher — sim, mulher! — completamente diferente do que fora na infância: fisicamente, demais, o vigor e a felicida- de decorrente do amor transformaram-na; Daniela tornou-se absolutamente radiante. Os olhos ainda verdes como em criança, de contorno delicadamen- te amendoado, davam-lhe uma distinção raríssima; o sorriso quando se lhe abria era um charme! E, aos dezessete, pôs-se em compromisso. A sucessão foi a de costume: viveu a menina to- dos os encantos da paixão, sentiu correr nas veias o
  • 69. 68 Luciano Duarte fogo do primeiro amor. Formou-se. Seguiram jun- tos, Daniela e Leonardo, para uma mesma univer- sidade. Tornou-se o contato diário, o afeto diário, a relação só dando trégua quando ambos dormiam e não trocavam mensagens. Assim por quatro anos, quando, súbito, troveja o término. Estamos aqui há exatamente um mês de onde dei- xamos a história no capítulo anterior. A vida de Daniela, em suma, desabou com uma violência iné- dita para a menina que perdeu em três anos os dois avós. Quatro anos de namoro faz pensar em casa- mento, em vida conjugal… E Leonardo cruelmente a traíra e a descartara. De início, a garota pensou em suicídio. Não era o orgulho ferido, mas a desfeita, a decepção avassa- ladora que lhe exterminara todos os planos. Tudo caíra de uma vez. Sem chão, novamente atirada ao limbo, vendo o amado com outra a sorrir, sentindo- -se desprezada no mais alto grau, Daniela trancou- -se em casa e desligou o celular por duas semanas. Só chorava, não comia, pôs-se agressiva contra as tímidas investidas da mãe, não foi um dia sequer à faculdade. A postura como que renunciava a tudo, digna de alguém a quem nada sobrara. Então, já completamente enfraquecida, pálida e inerte, Daniela viu bater-lhe na porta do quarto Thalita e Laura que, juntas, foram saber do para- deiro da amiga. Com muita insistência conseguiram que a menina abrisse; arrepiaram-se vendo-lhe o triste aspecto: cabelos desgrenhados, face cadavé- rica, visível magreza e tibiez. Dois minutos de con-
  • 70. 69Samuel versa e as amigas foram tomadas por uma revolta, um ódio mortal contra Leonardo. Canalha! Cruel e infame! E decidiram, as duas, pernoitar por algu- mas noites na casa de Daniela. Bárbara muito lhes agradeceu; aliás, foi iniciativa da mãe o contato com elas. Sabe-se lá que feitiço lançaram: a partir da che- gada das garotas, três dias perdurou a depressão. No quarto estava Daniela, bebendo e dançando, em festa com as amigas. Como explicar? Sobre isso não conjeturamos… Mas, por fora, a tristeza de Danie- la desapareceu. E assim começou nossa história. Na terceira se- mana após o término, portanto, matricula-se Da- niela numa academia. O ato era parte de um plano maior: decidira-se a mulher valorizar-se, usar da própria independência. O objetivo era, naturalmen- te, a felicidade, e para isso queria ver-se no auge da forma, no auge da beleza, tornando-se, como a mãe, uma versão cada vez melhor. Dependia de quem? Então aderiu à vida fitness, decidiu esforçar- -se para formar como destaque na faculdade, e deli- berou procurar imediatamente um estágio, empresa que não havia pleiteado desde o início do curso. Foi numa segunda-feira que, deixando a faculda- de, passa em casa, troca de roupa e dirige-se à aca- demia acompanhada de Thalita. Chegando lá, meio dedo de burocracia e já estavam as duas treinando. Enquanto o simpático instrutor passava-lhe alguns conselhos para a execução dos exercícios, Danie- la vê cruzar o salão do ginásio jovem mui estiloso,
  • 71. 70 Luciano Duarte trajado em social e que, conquanto jovem, parecia dispor da maturidade que lhe faltava ao ex-namo- rado canalha. Durante a semana, Daniela viu-lhe todos os dias, um após o outro, fazendo notas com a amiga de treino. Interessava-se pelo recato do rapaz. Até en- tão o tipo de jovem que conhecera era o jovem ex- pansivo, espalhafatoso, que tem gosto por fazer-se impressionar; jovem do copo de cerveja para o alto, das noites de farra e das bravatas disparadas sob efeito do álcool. Samuel não parecia ser nada disso, pelo contrário, parecia interessante apesar do reca- to; inteligente, talvez, e estiloso. Thalita não perdia ocasião de instigar a amiga, elencando as prováveis qualidades do rapaz, de forma que na sexta-feira já os tratava como o casal prometido, ainda que Samuel lhe não tivesse direcionado um único olhar. A história subsequente é conhecida. O ignoto é que, naquela segunda-feira fatídica, Daniela tam- bém tremia sobre os pés. O sorriso era puro dis- farce e a iniciativa foi tomada sob impulso das chicotadas de Thalita. O que fez a amiga não foi incentivo, foi coação: exigiu a atitude de Daniela, uma mulher independente, que deveria fazer o que lhe desse vontade, correr atrás e agir pelos próprios desejos. E Daniela fez o que pôde… Disfarçando o nervosismo, cumprimentou Samuel. Vendo que o rapaz não reagia e não tendo nada a mais para falar, deixou-o exatamente com o mesmo sorriso com que o abordara. — Agora é só esperar… — disse Thalita, diverti-
  • 72. 71Samuel da de ver a amiga a dizer: “Acho que ele não gostou de mim”. No dia seguinte, por mensagem Daniela: — Ele não gostou de mim. E a amiga: — Espera… Pela noite, na academia, foi ajeitar-se no espelho do vestiário como e, antes que iniciasse o primeiro exercício, ouve dos lábios do confiante Samuel: — Daniela… Tudo bem? Nem teve tempo para o susto. Congelada, apenas assentiu com a cabeça e sorriu. Samuel, já próximo, tasca-lhe um beijo na bochecha. Daniela arrepia-se com o calor do contato. Vem a emenda: — Vem cá. Confere aqui se seu número tá certo. Samuel põe-lhe à vista o próprio celular. Núme- ro? Antes que pensasse, via-o digitando proposital- mente de forma aleatória. Percebe-lhe nos olhos a malícia. “Ele está pedindo o seu número, sua bes- ta!” — e, arqueando os lábios, começa: — Não, Samuel. Meu número não é esse — to- ma-lhe da mão o aparelho e, digitando, dá o rema- te: — é esse aqui! E Daniela sente aflorar no peito a sensação esti- mulante de passar o próprio número ao charmoso desconhecido.
  • 73.
  • 74. 73Samuel Capítulo X Sigamos a sombra da bela jovem. Oito em ponto foi quando voltou a menina do ambiente de treino, com sorriso esticado na face. A mãe preparava o jantar. Daniela entrou, foi à cozinha, tomou um copo de água e rumou para o quarto, tudo isso numa leveza, numa serenidade de quem habita simultaneamente dois universos. Bárbara olhou-a com estranhamen- to: normalmente a filha deixava escapar algum co- mentário sobre o jantar… Entrando no quarto, Daniela automaticamente lhe direcionou os olhos para a pequena escrivaninha fronteira à sua cama. Por cima da tampa de vidro,
  • 75. 74 Luciano Duarte um notebook, alguns livros e dois porta-retratos: um de si mesma, em criança, e outro acompanhada da mãe. Mas não foi em nada disso que Daniela cravou o olhar: foi para o espaço vazio que ladeava o porta-retratos em que se via sorridente, com uma janelinha em lugar do incisivo central. Nova roupagem tirou da gaveta, então partiu ao banho, demorando-se longos minutos debaixo do chuveiro, até que Bárbara tivesse de lembrá-la o custo da energia elétrica e alertasse-a contra o des- perdício. Daniela e Bárbara nutriam o hábito de jantarem sempre juntas, em ocasião que geralmente lhes con- sistia o contato diário. Quando a filha deixou o banheiro, a mãe já conjeturava o que poderia ter causado aquela quebra na rotina, o ponto fora da curva de uma longa sequência de dias iguais. Daniela, que tornou aos devaneios logo que disse à mãe que já sairia do banho, aterrizou novamente vendo o olhar fixo e interrogativo que lhe foi dire- cionado assim que atravessou o limiar da da cozi- nha. Sorrindo da cena, a filha perguntou: — Que foi? E a mãe, desconfiada do sorriso anormal: — Que foi, é?! Eu que pergunto… — Comigo? Nada, ué… Bárbara sorriu da confissão. Sorriu, baixando a vista e com sincera alegria. Assim, a mãe logo entabulou novo assunto. Da- niela lhe havia externado os planos do estágio há poucos dias, dizendo das pesquisas que começara
  • 76. 75Samuel a empreender e dos currículos que enviara. Bárba- ra, satisfeita e impressionada, dissera-lhe que tal- vez poderia ajudá-la. Dissera conhecer profissionais de estética, área em que a filha se graduava, e que faria contatos. Nesta noite, enquanto jantavam, continuaram a conversa, com Bárbara dizendo que nutria esperanças de que arranjaria para a filha o estágio. Agradável jantar. Comeram ambas, trataram de assear e organizar a cozinha, como habitual, e seguiu cada uma a seu canto: Bárbara, à televisão da sala; Daniela, ao pró- prio quarto. Havia uma tensão que brotara na mente de Da- niela assim que deixara a academia e só crescia, fazendo com que ela não desgrudasse do celular. Volta e meia, os olhos na tela do aparelho, a ver se havia atualização. Nove da noite e nada… Daniela, então, entrou no quarto e ligou a tele- visão, a disfarçar onde lhe estava a cabeça. “Será que ele vai me chamar agora?” Sacou o celular, enviando mensagem, de uma só vez, às duas me- lhores amigas: à Thalita, a perguntar que achava da demora; à Laura, a contar-lhe a história e per- guntar que achava da demora. Laura, porém, já se via informadíssima, sabia de todos os mínimos detalhes, informados em tempo real por Thalita. E via-se, em mesma medida, animada das novas: pa- recia haver um pacto entre as amigas para motivar a jovem Daniela a unir-se com o rapaz. Queriam, acima de tudo, vê-la esquecer de vez o anterior ca- nalha, quem sabe vê-lo arrepender-se amargamente
  • 77. 76 Luciano Duarte do erro que cometera… E Daniela teve de passar o restante da noite es- cutando que era uma boba, uma apressada, que nada se devia preocupar. Era esperar, somente isso. A mensagem viria, e queriam as duas amigas se- rem informadas de cada detalhe da nova conversa. A curiosidade de Laura, em especial, era enorme, posto não tivesse visto pessoalmente o rapaz. Ha- via recebido algumas fotos tiradas na academia por Thalita, mas só. Parecia-lhe, tanto a ela como à fotógrafa, que o sujeito era bom partido, ótimo partido. O relógio anunciou o novo dia, e nada de mensagem. Daniela acabou por cochilar, esquecen- do de desligar a televisão. Soa o despertador: seis e meia da manhã e a cla- ridade invade o quarto pela janela. Daniela, como costume, desliga o sino insuportável e permite-se al- guns minutos de soneca. Quinze para as sete e põe- -se de pé. Confere o celular: nada. “Ele não enviou mensagem pela madrugada…” Escova os dentes, conversa qualquer coisa com a mãe na cozinha, e logo está, na rua, caminhando em direção ao metrô da cidade. As aulas desta quarta-feira teriam início às oito. O metrô, a nove minutos a pé de onde morava, le- vava-a a cerca de dois quilômetros de sua faculda- de, e Daniela optava por completar o trajeto de ôni- bus. Portanto, um metrô e um ônibus: e como era odiosa essa rotina!… O metrô de Belo Horizonte, para início de conversa, não era sequer um metrô, e absolutamente não comportava a demanda da
  • 78. 77Samuel cidade. De segunda a sexta, era tomá-lo entupido de gente, em desconforto, com medo constante de ser assaltada ou qualquer coisa que o valha, visto que casos semelhantes aconteciam não diariamente, mas a cada vinte minutos. Era descuidar-se por um átimo e pronto, um cidadão tomava-lhe o celular e desaparecia em meio à multidão. Do metrô para o ônibus, pior. A saída da estação era o trecho mais perigoso do trajeto por inúmeros motivos, entre eles, a aglomeração enorme de pessoas como que se empurrando, esmagando-se e afunilando-se para passar entre as estreitas escadas rolantes e corredo- res do terminal, que vivia repleto de sujeitos mal- -intencionados. Vencendo as catracas de saída da estação, era tomar o ônibus, que consistia na parte mais estressante do percurso até a faculdade. Logo deixando o corredor do terminal que dava para a rua, havia uma fileira de vendedores ambu- lantes que, sempre fazendo barulho, angariavam para a frente de seus produtos alguma aglomera- ção. Como espertos que fossem, faziam questão de se posicionar o mais próximo possível da saída do metrô, a garantir que todos que o deixassem fi- zessem contato visual com seus comércios. Como ali nunca havia fiscalização, acontecia o seguinte: próximo ao corredor de entrada e saída do termi- nal, tumulto generalizado, praticamente impossível de ser atravessado sem que se esbarrasse, roçasse, esfregasse em outra pessoa. A dez metros estava o ponto de ônibus, e ainda não chegamos à pior parte do trajeto.
  • 79. 78 Luciano Duarte Os ônibus de Belo Horizonte eram basicamente divididos em duas seções separadas por uma role- ta. A primeira seção era onde os passageiros deve- riam pagar em dinheiro ao motorista-cobrador que trafegava, fazia contas e repassava as moedas do troco, ou realizar o pagamento através de um car- tão magnético carregado previamente. Pagando, a catraca liberava, e então o passageiro podia passar para a segunda seção, onde estavam os assentos, o corredor e as portas de saída do veículo. Na primeira seção do ônibus, todos os dias e sem- pre, havia uma aglomeração de quatro classes de pessoas: idosos, que tinham direito à corrida livre; pedintes, que somente deixavam a seção quando alguém lhes pagava a passagem; vadios, que aguar- davam que lhes chegasse o destino desejado para saltar para fora do veículo pela porta dianteira; e os passageiros que propriamente entravam visan- do simplesmente pagar a própria passagem e passar pela roleta. Com alguma dificuldade era possível chegar à se- gunda seção. Então acontecia o seguinte: jamais era possível para Daniela cumprir o restante do traje- to sentada, ou ao menos com algum espaço, não entrando em contato físico com outra pessoa. O motorista, que dirigia, fazia contas e passava tro- cos, muitas vezes trafegava entre arranques e frea- das, como brincasse a testar se os passageiros eram bons de equilíbrio. Além disso, é razoável dizer que, dentro de um ônibus, pensa-se que a paz é o traje- to em metrô, visto o trânsito pelas vias urbanas,
  • 80. 79Samuel repleto de curvas, semáforos, lentidão e buzinadas ser um caos. Agora o agravante: num ônibus, não bastasse o quase esmagamento dos que não foram agraciados por Deus com um assento, uma única gota de chuva era suficiente para fazer com que os passageiros fechassem imediatamente todas as jane- las, como que se protegendo da entrada de um gás tóxico, capaz de exterminar em poucos segundos o aglomerado de bons cidadãos. O resultado: em dias chuvosos, o ambiente interno do ônibus, além de tudo, era de um abafamento insuportável. Assim, nesta quarta-feira, logo que deixou o ter- minal de metrô Daniela tomou o primeiro ônibus que apontou à vista. Não chovia. Passando pela ro- leta, apoiou-se numa barra vertical próxima a uma janela e, enquanto observava qualquer algazarra que se formava na rua, sentiu o celular vibrar. Era Samuel. E, junto ao arranque do veículo, Da- niela sentiu-lhe o peito palpitar.
  • 81.
  • 82. 81Samuel Capítulo XI Que sensação gostosa! Quando Daniela viu bri- lhar o bom-dia e o nome de Samuel na tela do ce- lular, esticou-lhe mansamente os lábios na face. Era um misto de alívio, realização, curiosidade e sabe-se mais o quê. Três linhas bem escritas, sim- páticas e elegantes para alegrar-lhe o início de dia. “Respondo agora, ou espero?” Leu novamente a mensagem: vinha o bom-dia, a apresentação e uma graça: “(…) é o Samuel, que pediu descaradamente o seu número ontem na academia…”. Novo sorri- so. “Respondo depois.” Desceu do ônibus a oito minutos do início do pri- meiro horário. Em tempo. Foi sentar na cadeira da
  • 83. 82 Luciano Duarte sala de aula e contar a nova às duas amigas: “Ele me mandou mensagem”. E as amigas, textualmen- te, aguçaram-lhe as expectativas, felicitaram-na. A professora entrou, passou a expor a matéria enquanto Daniela mantinha-lhe os dedos ativos. Os dedos e a mente. Com as amigas, conjeturava a res- peito das qualidades de Samuel: quantos anos teria? Estudava ou formado? Por que chegava sempre em social para treinar? Mistérios… Mas o rapaz apa- rentava boa estirpe. Vinte minutos de aula e Daniela decidiu-se: “Vou responder!”. Retribuiu o bom-dia e o bom humor de Samuel. Disse-lhe: “Só um pouquinho descara- do…”. Assim entabularam animada conversa. De cinco em cinco minutos, nova mensagem. E Daniela tinha de prestar contas às amigas. Cada nova in- formação de Samuel, novos comentários. Veio o assunto das ocupações: “Sou gerente de uma…”. Agradou a todas. Então as três passaram a ver fu- turo, perspectivas. Samuel mostrava-se inteligente, educado, escrevia com esmero, evitando abrevia- ções e erros ortográficos. Daniela, perguntada, contou-lhe toda a história da primeira vez em que o vira, de que o havia acha- do interessante, mas não tivera coragem de abordá- -lo… disse, inclusive, achou Samuel ter estranhado a aproximação fortuita que fizera na segunda, que ficara constrangida do silêncio, considerando-o al- gum tipo de desagrado. O rapaz desculpou-se en- faticamente, disse surpreendido da ocasião, que ja- mais esperaria uma abordagem como aquela, mas
  • 84. 83Samuel agradeceu por ter havido ocasião de retratar-se em descaro. Daniela riu novamente: “Divertido esse Samuel…”. Correram quatro horas de bate-papo. Findou-se o último horário do turno da manhã, então Daniela percebeu que não abrira sequer um caderno. Dei- xando a sala, pôs-se em caminho do restaurante onde costumava almoçar. Os olhos ardiam, via-se tensa: fruto do frenético contato visual com a tela brilhante. Sentia-se esgotada conquanto estimulada de maneira inédita por Samuel. Que é que ele ti- nha? Beleza não seria para tanto… O que instigava era a conversa, o jeito, talvez… Um misto de edu- cação, inteligência, bom humor, talvez ela mesmo parecesse inferior aos olhos do rapaz. O que estava escrito é que se tratava de alguém diferente. Veja- mos pela conversa: quatro horas de pouquíssima entrevista de emprego. De resto, pôde perceber que emparelhavam alguns gostos, que Samuel possuía diversas áreas de interesse e conhecimento; expe- riências, também, Samuel parecia tê-las variadas e interessantes… Que dizer? Em geral, não era esse o tipo de palestra que estava acostumada em primeira abordagem. Desta vez tudo ocorria como se fossem íntimos, talvez fosse isso, íntimos, à vontade des- de as primeiras palavras, sem bloqueios desneces- sários, sem assuntos protocolares, e o interesse, o desejo era mútuo, claramente mútuo. Que sensação gostosa provinha disso tudo! Quedou satisfeita da aplicação do próprio tempo pela manhã. Assim, findo o almoço teria de retornar à sala de
  • 85. 84 Luciano Duarte aula para o turno da tarde, onde faria duas ava- liações. Logo que deixou o restaurante veio-lhe à mente: “Não estudei…”. Pois contatou colegas de classe. Havia, ainda, cerca de quarenta minutos an- tes do início das provas. Reunida a três, de livros abertos na biblioteca da universidade, Daniela concentrou-se na revisão das matérias, esquecendo-se de responder a última mensagem de Samuel. A primeira avaliação metia medo; certamente lhe não dominava o conteúdo. Pôs-lhe o celular dentro da mochila e fez o que pôde para aproveitar aqueles minutos. Uma e quinze da tarde e entrou na sala, sentou-se e aguardou a entrega das avaliações. Tensão? Nem tanto, já estivera pior… O celular continuava na mochila, silenciado, a não desviar-lhe o foco. Provas entregues, foi pôr o olho no papel e cons- tatar: não saberia resolver a questão única e aberta que o professor lhe propunha. Tristeza! Uma hora e meia, portanto, de tortura a pôr em palavras um processo estético de mínima aplicação. A questão solicitava-lhe abordagem completa, des- de a execução do procedimento até suas aplicações, riscos, parâmetros de avaliação e manutenção dos resultados, com ilustrações elucidativas. Péssimo, péssimo… encheu as linhas de evasivas quando deveria muni-las de nomenclaturas técnicas. Por fim, livrou-se da tortura entregando a avaliação ao grave professor; em desalento, porém, frustrada do desempenho e certa dos problemas que lhe aguar- dariam naquela matéria.