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CLIO-PSYCHÉ:
Histórias da Psicologia no Brasil
Ana Maria Jacó-Vilela
Fabio Jabur
Heliana de Barros Conde Rodrigues
Organizadores
2
Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais -
www.bvce.org
Copyright © 2008, Ana Maria Jacó-Vilela, Fabio Jabour, Heliana de Barros Conde Rodrigues
Copyright © 2008 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais
Ano da última edição: 1999. Rio de Janeiro: UERJ, NAPE
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para
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3
Sumário
Introdução: um encontro intempestivo
Ana Maria Jacó-Vilela, Fábio Jabur e Heliana de Barros Conde Rodrigues
05
Parte I – Depoimento
Minha caminhada na Psicologia
Antonio Gomes Penna
07
Parte II - História e Psicologia
A oficina da História: Método e ficção
Heliana de Barros Conde Rodrigues
20
Clio e Psyché - À procura de novos futuros
Virgínia Fontes
25
Método e ficção nas Ciências Humanas: por um universalismo romântico
Luiz Fernando Dias Duarte
30
Parte III - Formação, ação e profissão
Uma leitura antropológica do mundo "psi"
Jane A. Russo
37
Práticas psi no Brasil do "milagre": algumas de suas produções
Cecília Maria Bouças Coimbra
43
Formação em Psicologia: gênese e primeiros desenvolvimentos
Deise Mancebo
54
Mundos paralelos, até quando? Os psicólogos e o campo da saúde mental pública
no Brasil nas duas últimas décadas
Eduardo Vasconcelos
72
Uma trajetória profissional
Miriam Langebach
91
A beleza de ser um eterno aprendiz: uma palavra sobre a formação do psicólogo
Maria Cristina Fernandes Lima
96
Fragmentos da História da Psicologia no Brasil - algumas anotações sobre teoria
e Prática
Tania R.Catharino
101
Da História da Psicologia para uma História na Psicologia
Lia M. Perez B. Baraúna
105
Um olhar sobre o ano de 1997: registros do informativo "Argumento" do CRP-05 108
4
Ira Maria Maciel
Infância pobre no Brasil: a importância dos discursos psychologicos nas
instituições para menores
Leila de Andrade Oliveira
115
Psicologia e tendências pedagógicas no Brasil - perfis de atuação do psicólogo
Eloiza da Silva Gomes de Oliveira
125
O psicólogo na Escola: História e formação
Alessandra de Castilho Ramos, Marisa Lopes da Rocha, Terezinha de Jesus Pimenta,
Vanessa Cristina Breia
129
Breve contribuição à História da Psicologia aplicada ao trabalho, no Rio de
Janeiro
Antônio Gomes Penna
135
Parte IV - Jogos de verdade e saberes psi
História da psicologia no Brasil - origens nacionais
Sonia Alberti
140
Psicologia: um saber sem memória?
Ana Maria Jacó-Vilela
146
De "criança infeliz" a "menor irregular" - vicissitudes na arte de governar a
infância
Esther Maria de M. Arantes
152
"Mens in corpore": o positivismo e o discurso psicológico do século XIX no Brasil
Ricardo Keide, Ana Maria Jacó-Vilela
155
Educação para a liberdade: um projeto de Helena Antipoff
Karina Pereira Pinto, Ana Maria Jacó-Vilela
167
Ulisses Pernambuco: o enamorado da liberdade
Walter Melo
172
Uma revolução e um revolucionário? A Psicologia na época de Mira y Lopez
Hildeberto Vieira Martins
179
Parte V – Psicologia, História e Educação
Psicologia e Educação: resgate e produção de Histórias
Marisa Lopes da Rocha
184
Ciência e Política na Primeira República: Origens da Psicologia Escolar
Maria Helena Souza Patto
187
5
INTRODUÇÃO
UM ENCONTRO INTEMPESTIVO
Ana Maria Jacó-Vilela
Fábio Jabur
Heliana de Barros Conde Rodrigues
Planejado com a antecedência e a calma com que, por vezes, julgamos poder dominar a vida,
realizou-se, nos dias 27 e 28 de maio de 1998 (em meio, portanto, a uma greve que alterou todas as
rotinas da Universidade), o I Encontro Clio-Psyché - Histórias da Psicologia no Brasil. Tratando-se
exatamente do desafio que Clio, a musa da história, representa quando interpela Psyché -
personificação grega da alma humana -, o momento aparentemente inadequado acabou por se
constituir em um desafio às temporalidades instituídas: não obstante as dificuldades quanto à
divulgação do evento, cerca de sessenta pessoas inscreveram-se para assistir às mesas redondas e
palestras; doze comunicações foram apresentadas nos espaços reservados à exposição de trabalhos
de pesquisa. Com tudo isso, instaurou-se um instigante tempo crítico para todos os presentes. Seja
na história de vida do Prof. Antonio Gomes Penna, que nos falou sobre sua trajetória enquanto
docente de Psicologia desde os primórdios de nossa disciplina no Rio de Janeiro; seja nas três mesas
redondas versando, respectivamente, sobre os procedimentos historiográficos (entre o método e a
ficção), a formação de psicólogos (entre a continuidade e a ruptura) e as transformações dos jogos
de verdade que, a cada momento, constituem os saberes psi (das quais participaram professores de
história, antropologia, psicologia e serviço social, tanto da própria UERJ quanto de outros
estabelecimentos universitários); seja nas sessões de comunicações, nas quais bolsistas de Iniciação
Científica, mestrandos e doutorandos de diferentes áreas e programas trouxeram à cena o desafio da
historicização radical das práticas psicológicas; seja, finalmente, na palestra de encerramento, em
que a Profa. Maria Helena Souza Patto, docente da USP, nos contemplou com suas agudas
observações sobre a Psicologia no período da Primeira República brasileira, os dois dias do evento
se constituíram em um dispositivo de publicização daqueles trabalhos que têm procurado
reconstruir a(s) história(s) das teorias e práticas psi entre nós, favorecendo, deste modo, a
constituição de modos menos intimistas e naturalizados de pensar e fazer Psicologia.
A presente publicação decorre, exatamente, da necessidade de ampliar os efeitos deste
encontro intempestivo. O leitor encontrará nas páginas que se seguem, revisados e transformados
em artigos, todos os trabalhos então apresentados e debatidos, distribuídos em cinco seções: (1)
depoimento; (2) história e psicologia; (3) formação, ação e profissão; (4) jogos de verdade e saberes
psi; (5) psicologia, história e educação. Esta organização reproduz, aproximadamente, a do próprio
evento, eliminando, no entanto, a distinção que aquele mantinha entre “exposições”, “mesas
redondas” e “comunicações”. Pois mais uma das surpresas do encontro entre Clio e Psyché foram a
qualidade e o rigor generalizados de todas as apresentações, o que nos leva, inclusive, a repensar
nossas formas tradicionais de organizar reuniões acadêmicas, que estabelecem a priori hierarquias
entre os momentos e os participantes.
Neste sentido, julgamos que este livro faz mais justiça à produção efetiva dos autores, dando
corpo exatamente àquele desejável desarranjo institucional que Clio provoca quanto a muitos de
nossos pressupostos e garantias. O que de mais importante tem a história provocado no povo “psi”,
afinal, senão uma contingenciação absoluta daquilo que até então costumávamos tomar como
essencial ou necessário? Ou, em outras palavras, senão o arrancar-nos dos limites do tempo
6
presente - no qual somos elementos -, lançando-nos na aventura do atual, do além do nosso tempo -
quando somos feitos atores -, e tudo isto, exatamente, através do cuidadoso trabalho com a
temporalidade?
Dentre nós, Heliana e Ana têm vindo trabalhando em suas próprias perspectivas há algum
tempo. Diferentes, sem dúvida. Mas aproximadas por experiências de trabalho conjunto - em que se
busca uma distribuição mais microscópica do poder - e por uma rejeição, muitas vezes “epitelial”, à
naturalização com que a Psicologia costuma sujeitar seu objeto.
Na Psicologia, todavia, este caminho costuma ser solitário. A realização do Encontro
possibilitou o “encontro” de um novo parceiro, Fabio, transformando o “nós”, de dual, em tríptico.
E nos permitiu também exorcizar temores e sustentar a constituição de um núcleo, denominado
simplesmente Clio-Psyché. Ou seja, supomos que o encontro dessas duas figuras mitológicas - que
permeiam nosso pensamento ocidental - nos permite a compreensão mais viva do tempo atual, não
restrito ao presente.
Nesse tempo, sempre social, Mnemosine obriga que se recorde da construção coletiva do
Encontro: Hildeberto Vieira Martins, Leila de Andrade Oliveira, Karina Pereira Pinto, Ricardo
Abidala Keide, Vanessa Soares de Oliveira Castro, Gabriela Salomão Alves Pinho, Bruno Vitali -
bolsistas e ex-bolsistas - constituíram conosco uma equipe em que trabalho e prazer se mesclaram
com sucesso.
7
Parte I – Depoimento
MINHA CAMINHADA NA PSICOLOGIA
Antônio Gomes Penna1
Gostaria que os que venham a ler este texto não o recebam como tendo por meta revelar o que
foi minha vida profissional. Na verdade, isso pouco importa. Importa sim que, na condição de
testemunha ocular e através de meu próprio itinerário, lhes possa apresentar uma visão panorâmica
do que foram os últimos cinqüenta anos de psicologia em nosso país e como, particularmente, eu os
vivi.
Começaria por confessar que o mundo da cultura abriu-se para mim quando andava pelos
meus dezessete anos. Estava, a essa altura, começando um curso de Economia e foi nesse curso que
conheci o professor que teve papel decisivo em minha vida. Era professor de Economia Política,
mas, na verdade, era muito mais do que isso. De fato, era um dos professores de maior cultura que
conheci. Seu nome: David Peres. Suas aulas, extremamente brilhantes e tematicamente variadas,
geraram em mim o desejo de lhe seguir os passos. Seis anos depois iniciei-me no magistério
lecionando História da Economia. A essa altura já possuía o curso de Economia, na época, em fase
inicial entre nós. Lecionei-a durante cinco anos e, ainda hoje, recordo-me do programa que redigi
para esse curso, assim como da bibliografia por mim utilizada. Do programa, constava uma análise
da economia primitiva. Para cobri-la, recorri ao clássico texto de Thurnswald, grande etnólogo,
intitulado “Economia Primitiva”. Li-a e estudei-a numa tradução francesa. Também tirei muito
proveito de um bom trabalho publicado por um etnólogo argentino, chamado Imbelloni. Seu livro
intitulava-se “Epítome de Culturologia” e nele Imbelloni expunha as grandes teses sustentadas pela
Escola Histórico-cultural representada por Graebner e Schmidt.
O terceiro texto de que me aproveitei foi a tese de concurso apresentada na Faculdade
Nacional de Direito, por Alceu de Amoroso Lima, sob o título “Economia pré-política”. Como
quarto texto, recorri ao clássico “A origem da família, do Estado e da propriedade privada” de F.
Engels.
O segundo grande tema desse curso consistia numa apresentação da economia grega e da
economia romana e estava praticamente centrado nas grandes tentativas de Agis e Cleômenes, na
Grécia, e de Tibério e Caio Graco, em Roma, objetivando a realização de uma reforma agrária.
Problema velho, como a História nos demonstra. Recordo-me da ênfase que concedia ao fato de
que, na época de Tibério, a Itália pertencia a sete famílias romanas. Para esse tópico servi-me muito
da “História do Socialismo e das lutas sociais”, de Max Beer.
O terceiro tema estava centrado no estudo da economia medieval. O estudo do sistema feudal,
da condição dos servos de gleba e das corporações de ofício, constituía o núcleo desse tópico.
Lembro-me do texto de Henri See; da “Introdução à Economia Moderna”, de Alceu de Amoroso
Lima; e da brilhante tese apresentada por Leônidas de Rezende para a disputa da cátedra de
Economia Política da antiga Faculdade Nacional de Direito da extinta Universidade do Brasil.
Especialmente o livro de Leônidas de Rezende, centrado em teses marxistas e as comparando com
as concepções positivistas e com as doutrinas expressivas do Cristianismo primitivo, revelou-se
básico para todo o curso que planejei e, por igual, a já mencionada “História do Socialismo e das
Lutas Sociais”, de Max Beer. Vale que se ressalte o fato de que no texto de Leônidas de Rezende
registrava-se belo exame das condições que determinaram o surgimento da “economia capitalista”,
1
Professor Emérito do Instituto de Psicologia da UFRJ.
8
hoje preferencialmente designada “economia de mercado”. Na verdade, mostrava-se que esse
sistema não foi concebido por nenhum teórico; antes, surgiu do desenvolvimento das atividades
produtivas fora dos muros das cidades e, conseqüentemente, fora do controle das corporações de
ofício.
Precisamente, o quarto tema cobria toda a economia moderna e contemporânea, apontando
para as três grandes fases do sistema capitalista: a do capitalismo comercial, a do industrial e a do
financeiro, este, de resto, identificado com a política imperialista.
Por volta de 1942 iniciei minha atividade como professor do Instituto La-Fayette, colégio
onde realizei meus estudos primários e secundários. Nele lecionei História, Psicologia e Filosofia
por vários anos. Em 1944 passei a integrar, na condição de assistente, o Departamento de Filosofia
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, fundada por La-Fayette Côrtes, em 1939, no Instituto
La-Fayette, lecionando a disciplina Psicologia Geral. Permaneci nessa função até 1946, quando dela
me afastei. Assinale-se que, em 1944, concluí meu curso de Direito na Faculdade Nacional de
Direito da antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciando, já
em 1945, o curso de Filosofia na saudosa Faculdade Nacional de Filosofia, da mesma Universidade.
Ao concluir o curso, em 1948, fui insistentemente convidado para assistente da cadeira de História
da Filosofia pelo eminente Prof. Vieira Pinto e, igualmente, pelo eminente Prof. Nilton Campos.
Obviamente optei pela Psicologia, que era a Cadeira ocupada por este último professor. Assumi
essa função em 1948, mas minha nomeação só ocorreu em maio de 1949. Isso significou que
trabalhei durante todo o ano de 1948 sem receber qualquer remuneração.
Por certo, foi na Faculdade Nacional de Filosofia que encontrei meus mais importantes
professores. Destaco, dentre eles, o Professor Maurilio Teixeira Leite Penido, de resto, ex-professor
de psicologia da religião na Universidade de Friburgo, na Suíça, e considerado como um dos
maiores teólogos contemporâneos; o professor René Poirier, que lecionou Lógica e Filosofia da
Ciência e que, na Universidade de Paris, sucedeu a A . Lalande, de quem foi aluno; o professor
Nilton Campos, ilustre psiquiatra e que foi o maior dos discípulos preparados por Waclaw Radecki
e, finalmente, o professor Vieira Pinto, grande professor de História da Filosofia. Obviamente, os
que mais me influenciaram foram o Professor Penido, ao meu ver a maior cabeça filosófica que o
Brasil já teve, e o Professor Nilton Campos, face ao imenso apoio que me proporcionou. Com ele,
efetivamente, trabalhei como assistente, de 1948 até 1963, quando veio a falecer. Em 1951, também
com ele colaborei no Instituto de Psicologia, cuja direção ele assumira em 1948, em decorrência da
conquista da cátedra de Psicologia Geral. Esta cátedra fora ocupada antes pelo ilustre professor
André Ombredane, que fora contratado para assumi-la e que retornou à França onde esperava
ocupar uma Cátedra no Sorbonne, fato que, efetivamente, não aconteceu. De sua obra mais
importante, intitulada “L’Aphasie et l’élaboration de la pensée explicite” utilizei-me com imenso
proveito em meus cursos sobre “psicolingüística”. Na realidade, era a patologia da linguagem seu
tema predileto e sobre o qual revelava imensa competência. No Instituto de Psicologia permaneci de
1951 a 1958, quando pedi demissão face a minha nomeação, em decorrência de concurso a que me
submetera, para professor de Psicologia Educacional no Instituto de Educação, que fora fundado
por Anísio Teixeira e organizado e dirigido por Lourenço Filho.
Também em 1950 retornei à já então Universidade do Rio de Janeiro, hoje Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, para assumir, interinamente, a cátedra de Psicologia Educacional, da qual
era catedrático efetivo o professor Lourenço Filho. Na mesma ocasião assumi, também, a cátedra
interina de Psicologia Geral que integrava o Curso de Filosofia, nela permanecendo até 1970,
quando ocorreu minha aposentadoria, face a episódio que relatarei mais adiante. Somava, a essa
altura, 28 anos e meio de atividades docentes, faltando-me, para a aposentadoria por tempo de
serviço, apenas ano e meio. A aposentadoria que requeri, denominada de especial, era concedida
9
àqueles que já tivessem vinte e cinco anos de trabalho. Eu tinha mais três anos e meio e já estava, a
essa altura, com cinqüenta e três anos de idade.
Importa assinalar que, em meus muitos anos de Universidade do Rio de Janeiro, realizei duas
docências livres. A primeira, na qual me inscrevera em 1955, só a realizei em final de 1957, na
cadeira de Psicologia Geral. A segunda, na disciplina Psicologia Educacional, eu a realizei em
1960. Penso que, até hoje, sou o único docente-livre dessa Universidade a ter alcançado dois títulos
dessa natureza. Recordo, ainda, com muita alegria, que fui, nos onze primeiros anos de minhas
atividades, portanto de 1950 a 1961, onze vezes paraninfo das turmas que concluíram o curso de
Filosofia.
Recordo, ainda, que, durante minha passagem por esta Universidade, reuni, em minha casa,
um grupo de excelentes alunos, ministrando-lhes aulas de filosofia. Dava-as pelo puro prazer de
vivermos juntos a alegria da reflexão centrada nos grandes problemas metafísicos e
epistemológicos. Dentre os que participaram desses encontros, cito José Guilherme Merquior, Luis
Alfredo Garcia Roza, Clauze Ronald de Abreu, Maniusia Mota de Oliveira, Helcio Mendonça e
outros, quase todos, posteriormente, professores desta Universidade e da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Vale, ainda, registrar minha passagem pelo Colégio Andrews. Nele fui professor de 1949 até
1957 e a ele retornei, por curto período, quando da implantação das chamadas classes
experimentais. Nesse período, lecionei psicologia, filosofia, sociologia e economia. Cheguei a ser
convidado, em 1957, para assumir a direção do Colégio, convite que, por muitas razões ligadas a
meus projetos de vida, declinei. De qualquer forma, registro que minha passagem por esse Colégio
me foi muito grata. Sempre fui extremamente apoiado pelo seu ilustre Diretor, o professor Carlos
Flexa Ribeiro, de resto brilhante professor de História da Arte na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo e, posteriormente, Secretário de Educação na administração do Governador Carlos
Lacerda. Registro que, a seu pedido, cheguei a dar dois cursos para o próprio corpo docente do
Colégio, um deles, inclusive, com a honrosa presença de Anísio Teixeira, sem qualquer dúvida o
maior educador que nosso país teve.
No Instituto de Educação permaneci de 1958 a 1963. Em 1964, todavia, fui transferido para a
recém-fundada Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), hoje integrando esta Universidade.
Nela lecionei, como um de seus professores fundadores, a disciplina Teoria da Percepção. Dirigido
pelo ilustre e saudoso arquiteto M. Roberto, recordo-me dos professores que comigo iniciaram as
atividades dessa Escola. Cito o professor Bergmüller, o professor Euryalo Cannabrava e o professor
Flávio de Aquino. No que se refere a Cannabrava, não custa lembrar ter sido um dos mineiros do
grupo a que pertencia Carlos Drumond de Andrade e um dos que freqüentaram os cursos de
Waclaw Radecki, na Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro. Foi, também, um dos primeiros
a integrarem a equipe organizada por Mira y López, no ISOP/FGV. Embora a especialidade de
Cannabrava fosse a filosofia da matemática e não obstante ter sido, por concurso brilhante,
professor de Filosofia do Colégio Pedro II, também lecionou Psicologia Educacional no Instituto de
Educação. Vale, ainda, o registro de que, durante poucos anos, integrou a equipe dos programas de
pós-graduação do ISOP/FGV. No que se refere a minhas atividades no ensino do Estado, registro
que também lecionei, até minha aposentadoria, a disciplina Teoria da Percepção na Escola de Artes
Visuais, já há alguns anos instalada no Parque Lage.
Quando, em 1951, fui nomeado para o Instituto de Psicologia, sugeri ao Professor Nilton
Campos a criação e edição de uma Revista, a que dei o nome de “Boletim do Instituto de
Psicologia”. A idéia foi, de imediato, aceita, e sua publicação, iniciada ainda em 1951, estendeu-se
até 1974 quando, por falta de apoio da Reitoria, deixou de ser editada. A coleção que deveria ter
vinte e três volumes, na verdade só conta com vinte e dois. O primeiro volume, produzido em
mimeógrafo e composto de doze números, foi, logo em seguida, editado pela Oficina Gráfica da
10
Universidade e, por erro técnico, designado de “Anuário do Instituto de Psicologia”. Vale, ainda, o
registro de que, pouco antes, o Instituto iniciara a publicação da série “Monografias Psicológicas”, e
a mim coube publicar a de número 6, dedicada ao Behaviorismo. Intitulada “Notas sobre o
Behaviorismo”, resumia o curso que ministrara em 1949, no segundo ano do curso de Filosofia,
como parte do estudo das “teorias e sistemas psicológicos contemporâneos”. A boa acolhida do
texto justificou convite da ilustre psiquiatra, Dra. Iracy Doyle, para que eu ministrasse curso sobre o
mesmo tema na Sociedade de Psicanálise que fundara e dirigia, em perspectiva inspirada em Karen
Horney e Clara Thompson, e onde dois brilhantes psiquiatras e psicanalistas com ela cooperavam.
Possivelmente foram eles, os Doutores Horus Vital Brasil e Carlos Paes de Barros que, tendo
assistido meu curso, sugeriram o convite para que eu o repetisse nessa Sociedade, de resto hoje
conhecida como “Instituto Iracy Doyle”.
Também em 1953 ocorreu o convite da Escola de Comando e Estado Maior da Aeronáutica
(ECEMAR), sediada, então, na Ilha do Governador, para que o professor Nilton Campos
ministrasse um curso de Psicologia Aplicada às Forças Armadas. Esse curso seria dado em 15
conferências. O convite foi aceito. Não obstante, poucos dias antes de seu início, o professor Nilton
Campos pediu-me que o substituísse. Coube-me, então, realizar estas conferências, as quais
justificaram, por sua boa acolhida, que o convite se renovasse até 1968. Por todo esse tempo, meu
“Manual de Psicologia Aplicada às Forças Armadas” foi leitura obrigatória para todos os oficiais
superiores da Aeronáutica, até 1970. Assinalo que, depois de 1968, os convites cessaram. As razões,
eu as apresentarei mais adiante. De qualquer modo, vale que se registre que minha participação na
ECEMAR representou, no fundo, uma retomada de contato dos militares com a psicologia, na
medida em que, com ela, as Forças Armadas tiveram o primeiro contato através de Waclaw Radecki
que, sem dúvida, foi a fonte geradora do Instituto de Psicologia da UFRJ.
Ressalte-se que minha contribuição na área do ensino militar registrou-se, ainda, na Escola de
Aeronáutica, então sediada no Campo dos Afonsos. De fato, diante do sucesso do curso de
conferências que ministrei na ECEMAR, um dos oficiais mais entusiasmados com a importância da
Psicologia na formação de aviadores, ao assumir o comando dessa Escola, incluiu-a no seu
currículo e logo me convidou para que eu a implantasse, responsabilizando-me pelo seu ensino.
Aceitei o convite e permaneci, creio, dois anos na Escola. Indiquei, em seguida, um ex-aluno meu
para assumi-la.
Não me restringi apenas ao ensino na área da aeronáutica. De fato, em fins da década de
cinqüenta ou começos da de sessenta, fui convidado para ministrar cursos de psicologia da
aprendizagem, da percepção, da linguagem, etc. para os oficiais do Exército que se preparavam para
o exercício da função de ensino. Suponho que minha indicação tenha partido do então Major Hélcio
de Mendonça, meu brilhante ex-aluno e fidelíssimo amigo, que estava ligado a esse curso.
Inicialmente instalado na antiga sede do Ministério da Guerra, na Praça da República, foi,
posteriormente, transferido para o Forte Duque de Caxias, no Leme. Lá, dei continuidade à minha
participação no curso, já então ministrado no Centro de Estudos de Pessoal e aberto a oficiais de
outras armas. Nesse Centro, minha participação foi extremamente intensa, sendo-me, inclusive,
solicitado que fosse a São Paulo adquirir caixas de condicionamento operante para instalá-las em
Laboratório de Pesquisas que estava sendo objeto de instalação. De repente, “rumores acerca das
minhas atividades subversivas” determinaram meu afastamento. Registro, entretanto, que lá deixei
grandes amigos, um deles, inclusive, brilhante oficial que comandou o Centro na fase em que
surgiram os tais “rumores” a meu respeito.
Em 1963, meu grande amigo e mestre, Professor Nilton Campos, adoeceu, atingido por
problemas sérios. Logo veio a falecer. Com sua morte, o Instituto de Psicologia passou a ser
dirigido interinamente pelo meu querido e fraterno amigo, Professor Eliezer Schneider. A mim
coube assumir interinamente a cátedra de Psicologia Geral do Departamento de Filosofia da
11
Faculdade Nacional de Filosofia. Juntos, então, iniciamos uma cruzada visando a criação, na
Faculdade Nacional de Filosofia, do Curso de Psicologia. Foi uma dura cruzada. Contra a criação
do curso estavam os psiquiatras. No final, acabamos vencendo. Claro que com severas obrigações.
Assim, por exemplo, alegando-se falta de espaço no edifício onde funcionava a Faculdade Nacional
de Filosofia, foi exigido que o professor Eliezer Schneider nos garantisse a única sala de aula
disponível na sede do Instituto, por sinal ocupando seis salas do edifício de escritórios comerciais,
conhecido como “Nilomex”, situado na esquina da rua México com Nilo Peçanha. Quanto a mim,
teria que organizar o curso com professores da própria F.N.F. e com os psicólogos do Instituto. Em
1964, foi, então, criado o curso e o Departamento de Psicologia que deveria ministrá-lo, sendo eu,
na condição de catedrático interino, designado para dirigi-lo. Na direção do curso permaneci até fins
de 1967, quando se deu a extinção da Faculdade Nacional de Filosofia. Passou, então, o curso a ser
dirigido pelo Instituto de Psicologia, na verdade, até então, apenas um “órgão suplementar”
destinado a oferecer cooperação às cátedras de Psicologia Geral e de Psicologia Educacional da
F.N.F.. Uma terceira cátedra, ainda, teria condições de exigir suporte do Instituto. Refiro-me à
cátedra de Psicologia aplicada ao desporto, integrante do currículo da Escola de Educação Física e
Desporto, da Universidade. Vale assinalar que, como órgão suplementar, não dispunha o Instituto
de um Regimento que o habilitasse a exercer as funções de uma Faculdade, ou seja, de uma Escola.
Coube a mim, numa passagem transitória pela direção do Instituto, implantar a Congregação,
organizar os Departamentos e, com a cooperação de minha mulher, Professora Marion Merlone dos
Santos Penna, organizar a Divisão de Psicologia Aplicada. Também foi por minha iniciativa que o
Instituto teve o seu regimento modificado e foram realizados dois convênios: com o Detran e com o
Colégio Santo Inácio.
Vale ressaltar que com a implantação do Departamento de Psicologia e o funcionamento
devidamente autorizado do curso de Psicologia, realizou-se o primeiro vestibular. Planejamos o
curso para 40 alunos, face a termos, apenas, uma única sala disponível. Por decreto assinado pelo
então Presidente João Goulart, as vagas foram duplicadas e tivemos que, em princípio, receber 80
alunos. No final, lançando mão de recursos judiciários, mais 40 alunos entraram no curso. Com 120
alunos e apenas uma sala com 40 cadeiras, tomei a iniciativa de implantar dois turnos; um pela
manhã e outro à tarde. Ainda assim, inicialmente, tínhamos que colocar os excedentes num corredor
ligado à sala. Assim correu o primeiro ano. Logo, entretanto, o curso foi transferido para a Praia
Vermelha, onde ocupamos prédio que, inclusive, dispunha de belo auditório para mais de 120
espectadores. Mantivemos, de qualquer modo, os dois turnos funcionando. Já na administração que
resultou de um processo de intervenção no Instituto, os dois turnos foram extintos, implantando-se
o regime de tempo integral, com aulas que se distribuíam das 7:00 da manhã até às 18:00 da tarde.
Sem dúvida, com sérios problemas para os estudantes.
Problema inesperado apresentou-se, já no final de 1967. Organizava-se o currículo do 5o
ano
e tínhamos a oferecer a disciplina Teoria e Técnicas Psicoterápicas. Inesperadamente vi-me diante
de sério impasse. O representante dos docentes-livres no Conselho Universitário, de resto médico-
psiquiatra e grande psicanalista, expressando ponto de vista do Professor catedrático de Psiquiatria,
então Diretor do Instituto de Psiquiatria, nos recusava o direito de oferecer a citada disciplina.
Alegava que a atividade psicoterapêutica era de exclusiva competência médica e não se podia
admitir seu ensino em uma unidade não vinculada à Faculdade de Medicina. Mostrei a
impossibilidade de se aceitar esse argumento, na medida em que o oferecimento dessa disciplina
nos cursos de psicologia decorria de exigência legal. Diante desse argumento, determinou o Reitor
que o secretário do Conselho providenciasse o texto e, diante da evidência, concedeu autorização
para que a disciplina fosse ministrada no Instituto de Psicologia.
Em 1970, fui convidado pela direção do ISOP/FGV para participar de uma Comissão a ser
presidida pelo Professor Lourenço Filho, objetivando a implantação, nessa unidade da FGV, de um
programa de pós-graduação em Psicologia Aplicada, com quatro áreas de concentração.
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Infelizmente o eminente Mestre faleceu e as reuniões que se seguiram, por decisão unânime,
deixaram de ter alguém ocupando a função vaga. Concluídos os estudos de organização e de seleção
dos professores, fui, em janeiro de 1971, nomeado pelo ilustre Presidente da FGV, Chefe do Centro
de Pós-graduação e Coordenador dos programas devidamente implantados. Nesta função permaneci
durante 22 anos, somente sendo dispensado em novembro de 1992, quando do encerramento das
atividades do Centro de Pós-graduação.
Precisamente em 1971 e poucas semanas após minha nomeação para o ISOP/FGV, fui
procurado pelo Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Gama Filho
para ocupar o cargo de Vice-Diretor, estando, de resto, já no exercício da Chefia do Departamento
de Psicologia. Nesse cargo e, ainda posteriormente, na Direção do Departamento de Psicologia,
permaneci até 1980, quando deles me afastei. Em 1987, fui aposentado compulsoriamente pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, na medida em que completara 70 anos. Ao me
aposentarem compulsoriamente, tinha 38 anos de atividade, nos quais se somavam as três licenças-
prêmio que jamais gozei e que, precisamente por isso, contavam em dobro, alcançando três anos. O
total, portanto, chegou a 41 anos de efetivo exercício do magistério na Universidade, não
computado o ano de 1948, quando ministrei cursos nos dois períodos letivos sem receber qualquer
remuneração. Após minha aposentadoria, recebi o título de Professor Emérito, fato que me ensejou
retornar ao Instituto de Psicologia, colaborando por mais cinco anos nos programas de Pós-
Graduação em Psicologia Cognitiva e em Psicologia Social e da Personalidade. Ao todo, dediquei à
Universidade Federal do Rio de Janeiro 47 anos de sala de aula, sem contar com o ano de 1948.
Com ele, 48 anos. Obviamente, nunca fui um “vagabundo”.
Ao longo dessa minha intensa atividade, produzi, até agora, 15 livros, uma monografia, um
Manual de Psicologia Aplicada às Forças Armadas, 53 verbetes publicados no Enciclopédia
Mirador Internacional e cerca de 100 artigos publicados em revistas especializadas. Há um ano
espero seja editado meu 16o
livro, que tem um título muito sugestivo: “Introdução à Filosofia da
Religião”. Estou informado de que, afinal, sairá dentro de muito pouco tempo. Adianto ainda que
trabalho, no momento, no meu 17o
livro, que deverá ser uma “Introdução à Filosofia”, na qual cada
capítulo está dedicado a um de meus mestres na saudosa Faculdade Nacional de Filosofia. Agrada-
me muito deixar bem claro que jamais pleiteei ou recebi qualquer ajuda financeira, qualquer bolsa,
de qualquer das instituições destinadas ao fomento de atividades científicas. Sempre, apenas, contei
com meus salários, minha aplicação ao trabalho e muita disciplina. Nada mais.
Importa assinalar que toda essa trajetória foi muito marcada por desagradável turbulência.
Nunca contei com “céu de brigadeiro” ou “mar de almirante”. Na verdade, minha caminhada nunca
foi tranqüila. Tive muitos obstáculos pela frente, os quais, todavia, não impediram que eu
prosseguisse na busca de meus objetivos. Penso que essa turbulência começa nos fins dos anos
quarenta e se revela presente em dois momentos: o primeiro, quando aceitei integrar chapa para
disputa da direção do Sindicato de Professores; a segunda, quando assinei documento protestando
contra o fechamento do Partido Comunista. Vale que se esclareça que nunca participei de nenhum
partido político. Ocorre que, no caso da chapa que disputaria as eleições para a direção do
Sindicato, havia pelo menos um de meus colegas, por sinal dos mais íntegros que conheci, que
jamais escondeu sua ligação com o Partido. Pois a chapa foi considerada tipicamente comunista e
todos os seus membros registrados no DOPS. Em 1968, participei da marcha dos Cem Mil. Estava à
frente dos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, juntamente com Maria Yedda
Linhares e José Américo Peçanha. Ao meu lado, também minha mulher, Marion Merlone dos
Santos. Logo em seguida houve a célebre reunião no Colégio André Maurois, sob a presidência da
Professora Henriette Amado. Compareci à reunião e logo fui convidado para participar da mesa. Na
medida em que eu era um professor catedrático, imagino que pensaram que minha presença poderia
dar mais peso à reunião. Ao seu término, produziu-se um documento de protesto contra as
violências cometidas contra estudantes. Fui um dos que assinaram o documento. Integrei, ainda, o
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grupo de professores que levou o citado documento ao Palácio da Cultura, entregando-o às
autoridades do Ministério da Educação. Do grupo participavam o professor Leite Lopes, a
professora Maria Yedda Linhares e o professor José Américo Peçanha. Obviamente, todos fomos
fotografados por imensa equipe de “jornalistas”, na verdade agentes do DOPS e de órgãos de
segurança.
Por essa altura fui convidado a inscrever-me num concurso para preenchimento de vaga de
professor titular da Universidade Federal Fluminense. O convite partiu de meu amigo, Prof. Hans
Ludwing Lippmann. Também o Professor Eliezer Schneider deveria inscrever-se no concurso para
Adjunto. Fomos, entretanto, surpreendidos com a exigência de apresentação de “atestado de
ideologia”. Solicitâmo-lo. Só nos concederam, todavia, após o encerramento do prazo das
inscrições. Nessa altura eu já era professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Poderia, contudo, acumular as duas funções. Curiosamente meu atestado de ideologia indicava,
simplesmente, “nada consta”.
Em função do afastamento do Professor Carlos Sanchez de Queirós, na ocasião Diretor do
Instituto de Psicologia, face a convite para participar da Escola Superior de Guerra, assumi
interinamente a direção do Instituto. Foi, seguramente, um período muito duro. Durante minha
gestão enfrentei vários problemas e sofri várias punições. A primeira, em decorrência do que foi
considerado uma greve por motivos políticos contra um professor, colega meu. Lembro-me bem
que o convoquei para uma reunião da qual participaram o professor Eliezer Schneider e o professor
Octávio Soares Leite. Logo solicitei que ele nos mostrasse o programa da disciplina para a qual fora
indicado. Surpreendentemente revelou-me que nunca o redigira. Indaguei-lhe acerca dos autores
clássicos que dispunham de textos sobre o assunto. Respondeu-nos, ainda, que não conhecia
nenhum, adiantando que ministrava suas aulas com base em sua experiência profissional. Diante da
resposta, pedi-lhe, muito amistosamente, que me concedesse algum tempo de modo a que eu
conseguisse dar uma solução política ao problema. Não aceitou a proposta, todavia, insistindo que
eu deveria punir as duas turmas “em greve”, pois, do contrário, eu é que seria punido. Afinal,
insistia em que a greve era puramente política. De fato, nunca o foi. O que os alunos solicitavam era
um curso de nível mais elevado. Exigência absolutamente normal, pois essa é a obrigação de
qualquer Universidade. Confesso que tentei por todos os meios quebrar o movimento. Apelei para
alguns alunos com os quais mantinha maior aproximação e sabia que possuíam prestígio junto aos
colegas que se recusavam a assistir às aulas. Minha idéia era a de evitar que o movimento fosse
precisamente interpretado como expressivo em intenção política. Infelizmente não consegui êxito.
Logo, entretanto, foi o professor Octávio Soares Leite nomeado Vice-Diretor do Instituto, fato que
permitiu que eu me afastasse da busca da solução que desejava. De resto, em período de férias,
aproveitei-as para acompanhar, juntamente com minha mulher, meu filho, Lincoln de Abreu Penna
- posteriormente professor titular do Departamento de História do IFCS/UFRJ e hoje, já aposentado
-, à Europa, onde deveria gozar de bolsa fornecida pelo Governo da França e realizar curso de pós-
graduação na Universidade de Toulouse. Ele tinha estado quarenta e dois dias preso para
interrogatório, na Ilha das Flores. Tendo sido Presidente do Diretório Central de Estudantes desta
Universidade, exigiam dele nomes de colegas taxados de subversivos. Agindo com a integridade
que sempre lhe foi peculiar, recusou-se a qualquer cooperação com o CENIMAR. Lembro-me de
que, quando liberado, ouvi, com muito orgulho, do Capitão de Mar e Guerra que presidia o
inquérito, que ele tinha sido um dos presos mais dignos que passaram pelo órgão de segurança da
Marinha.
Por ocasião de meu retorno, estranhei a presença de dois alunos meus, do Instituto de
Psicologia, à minha espera no aeroporto. Eram, precisamente, João Alberto Barreto e José Hesketh.
Lá estavam, segundo me esclareceram, para comunicar-me que eu fora punido por falta de exação
no cumprimento de minhas obrigações. A falta de exação era definida como resultante do fato de
não ter aplicado a punição aos “grevistas”. Por essa altura, soube que alguém, devidamente
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interrogado pelo agente de segurança que atuava na Reitoria, apontou vários alunos que foram
sumariamente expulsos da Universidade. Tanto eu como minha mulher, a Professora Marion
Merlone dos Santos Penna, também tínhamos sido ouvidos. Para nosso bem, contudo, os
depoimentos de todos os interrogados eram rigorosamente tomados por datilógrafo e, ao fim, todos
recebiam cópias de seu depoimento. Guardo o documento que me foi entregue, assim como o de
minha mulher.
Vale assinalar que, em função da punição que sofri, fui também chamado ao DOPS para
prestar declarações. Recordo-me de que fui atendido por um Delegado que logo me perguntou por
que não punira os grevistas. Respondi-lhe que não o fizera por dois motivos: o primeiro decorria da
ausência de qualquer objetivo político por parte dos alunos; de fato, o que desejavam eram boas
aulas. O segundo pelo fato de que qualquer punição que fosse por mim injustamente aplicada aos
alunos desencadearia greve em toda a Universidade, e o nome de meu colega, por sinal muito bem
sucedido em suas atividades profissionais, certamente seria posto em destaque com acusações
graves em todos os Jornais. Afinal, meu procedimento fora o mais correto e bem clara a intenção de
protegê-lo. Ao ouvir minha resposta, lembro-me bem que o Delegado sorriu e me confidenciou:
essa experiência eu mesmo já vivi aqui no DOPS!
Cabe ainda lembrar que no caso da disciplina que gerou o movimento definido como de greve
política e no caso do professor que a lecionara, a solução definitiva acabou sendo por mim mesmo
dada, quando da primeira Congregação realizada após esses turbulentos episódios e já presidida
pelo Diretor nomeado de fora dos quadros docentes do Instituto. Nela, passei às mãos de meu
colega um programa que eu mesmo redigira, juntamente com a bibliografia adequada para que ele
apresentasse durante a sessão, ao mesmo tempo em que sugeri que a citada disciplina, a ser dada em
um ano, tivesse sua duração reduzida para um só período e fosse considerada concluída. Ao término
dessa Congregação, o professor Eliezer Schneider, que também fora punido por outro motivo,
solicitou que a Congregação se pronunciasse e nos desse um voto de solidariedade. Infelizmente a
proposta caiu no vazio. A ela seguiu-se um silêncio tumular.
Uma segunda punição ocorreu mais adiante. Esta, às escondidas, me foi anunciada através de
ofício sigiloso recebido pelo novo Diretor, que designou o administrador do Instituto e meu velho
amigo a passá-lo às minhas mãos. Nesse ofício, diante de uma acusação anônima de que eu faltava
muito às aulas, recebia a informação de que, como medida punitiva, passava do regime de 24 horas
para o de 12 horas, obviamente com perdas salariais. Registre-se, mais uma vez, que a essa altura eu
era o único titular concursado do Instituto de Psicologia. Sem qualquer dúvida, era também o
professor com maior carga horária na época, inclusive lecionando Teoria da Percepção na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, no Fundão. O asqueroso ofício informava que minha
mulher, a professora Marion Merlone dos Santos Penna, também sofria o mesmo corte em seu
regime de trabalho.
Uma terceira punição ocorreu em 1970. Indicado para coordenar o vestibular do Instituto,
pensei em aperfeiçoar mais a seleção dos candidatos através de mudanças a se introduzirem na
prova de português. Convidei, então, para organizá-la, a Professora Dirce Riedel. Ela própria não
pôde aceitar o convite, mas prontificou-se a compor uma banca de três professores altamente
competentes para redação da prova. Pois foi essa banca que, inteligentemente, escolheu como tema
da parte referente à redação, a angustiada pergunta do Papa em sua alocução do fim da década de
sessenta: “Para onde caminha a humanidade?”. E tal como o fizeram a Imprensa e as televisões,
uma seqüência de nomes e acontecimentos significativos eram apresentados para efeito de reflexão.
Claro que nessa seqüência apareciam os nomes de Luther King, Fidel Castro, Che Guevara, poder
negro, libertação das colônias africanas, etc. A prova foi muito boa e obviamente difícil, pois, em
geral, os candidatos eram adestrados nos cursinhos para redigirem textos sobre temas banais que, na
verdade, nada solicitavam em termos da reflexão. Pois, não deu outra. Fui acusado de permitir a
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realização de uma prova na qual apareciam 50% de palavras subversivas. A punição foi sugerida
por professores da própria Universidade, meus colegas, portanto.
Um quarto episódio ocorreu quando, estando eu na direção interina do Instituto, fui alertado
pelo ilustre Reitor que fechasse rapidamente os portões do Instituto, dado que ele fora avisado de
que um grande grupo de alunos encaminhava-se para a nossa Unidade, objetivando realizar reunião
política em nosso auditório. Dirigi-me, então, até os portões e logo percebi que estava diante do
grupo, já, a essa altura, a aproximadamente dez metros da entrada. Logo mudei a conduta
recomendada pelo ilustre Reitor. Ao invés de fechá-los, abri inteiramente os portões e os convidei
para o auditório. Chamei, entretanto, uns três integrantes do grupo e com eles mantive uma
conversa franca. Solicitei que realizassem a reunião desejada em absoluta ordem e, de minha parte,
eu lhes garantia segurança. Tudo acertado, iniciaram a reunião às 9:30 aproximadamente e só a
concluíram por volta das 16:30. Como prometeram, a reunião transcorreu na mais perfeita ordem.
Registro que nesse dia permaneci só, ao lado do administrador da Unidade. Não tive a companhia
de qualquer colega. Sei bem que os tempos eram duros. Mas não deu outra. Foi instalada Comissão
de Inquérito. O Presidente era um professor bastante conhecido. Fui chamado para prestar
informação. O que o presidente do inquérito desejava é que eu fornecesse nomes. Respondi que,
efetivamente, não conhecia ninguém, pois o grupo era constituído de alunos de outras unidades.
Adiantava, entretanto, que a reunião fora pacífica e apenas foram discutidos problemas ligados à
estrutura da Universidade. Impaciente, ele me cortava a palavra, insistindo em que isso não
interessava. O que interessava eram nomes. Claro que a obsessão pela aplicação de punições era
terrível. De todo esse período, lembro-me de uma frase pronunciada por Djacir de Menezes, quando
exerceu a Reitoria da Universidade. Pressionado para me aplicar pena que poderia ser a mais
severa, deu um soco na mesa e repetiu a célebre frase de Lutero: “Irei até aqui e daqui não
passarei!”
A grande ameaça ocorreu em 1973. Às vésperas do dia dos pais, recebi telefonema do
Ministério da Educação, através do Palácio da Cultura, comunicando-me que deveria responder a
processo instalado em Brasília, por determinação do Ministro Jarbas Passarinho, objetivando apenas
supostas atividades subversivas e recomendando minha aposentadoria. O investigante nomeado, de
resto, professor desta Universidade e de outras aqui no Rio, desculpou-se por me passar a notícia às
vésperas de dia tão significativo e marcou minha ida ao Palácio da Cultura, para efeito de tomar
conhecimento das acusações registradas contra mim, para quinze dias após. No prazo marcado,
acompanhado de minha mulher, dirigi-me ao Palácio e logo fui recebido pelo meu investigante.
Ressalte-se que a recepção foi em extremo cordial. Ofereceu-me, inclusive, um copo d`água para
que eu me descontraísse, dado que ele leria as acusações que contra mim provinham dos vários
órgãos de segurança. Podia, inclusive, anotá-las, pois que a mim caberia contestá-las. Soube, então,
que o processo fora instaurado em Brasília, por determinação do Ministro Jarbas Passarinho, não
obstante já ter sido eu absolvido por duas Comissões de Inquérito, ambas, de resto, presididas pelo
ilustre embaixador Meira Penna, em Brasília, sem que eu tivesse sido notificado. Nas duas
Comissões contei sempre com o voto de Minerva dado pelo embaixador, que firmara sua posição
diante das informações que recolhera, no Rio, de professores de várias Universidades. Vale o
registro de que o sobrenome Penna, do Embaixador, em nada tinha a ver com o sobrenome que
recebi de meu pai.
As acusações de que tomei conhecimento e que registrei, para refutá-las, eram tolas. Uma
delas ressaltava o estranho prestígio de que eu dispunha junto aos meus colegas do Instituto de
Psicologia. Por certo, desconheciam que a grande maioria era constituída de ex-alunos meus. Outra,
referia-se ao fato de que eu era visto sempre conversando com alunos. Outra, a de que eu era pai de
um comunista que, por sua vez, era filho de um comunista. As acusações mais incríveis apontavam-
me como um marxista que fazia suas pregações através de dois sistemas que, na verdade, eram
apenas disfarces da doutrina marxista. Tais sistemas seriam o gestaltismo e a fenomenologia de
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Husserl! Possivelmente, a que pesava mais era a de que eu falava mal dos militares. Esqueceram-se
de que fui, por dezessete anos seguidos, professor-conferencista da ECEMAR, e de que gozava de
largo prestígio entre os oficiais que faziam o curso de Estado Maior. Também no CEP, fiz
excelentes amigos entre os oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica. O último dos Comandantes
da citada instituição até hoje é meu amigo, inclusive concedendo-me a honra de sua presença na
homenagem que me foi prestada pelo Instituto de Psicologia quando completei oitenta anos de vida.
O que pesava efetivamente contra mim era o ter assinado o documento redigido após a reunião
realizada no Colégio André Maurois, no qual se apontavam as autoridades como responsáveis pelas
violências cometidas contra estudantes. De qualquer modo tive que apresentar atestados de amigos
que afirmassem serem falsas as acusações registradas. Recebi muitos atestados e de todos guardo
cópias que não me permitem esquecer os que não me faltaram nas duras horas que vivi. Faço,
inclusive, questão de reproduzir, neste texto, um desses atestados, pelo que ele dignifica o seu
signatário.
Declaração
Tendo tomado conhecimento das acusações que pesam sobre o Professor Antonio Gomes
Penna, catedrático de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quanto às
suas atividades no Instituto de Psicologia desta Universidade, tenho a declarar que:
Durante os anos de 1961 a 1964, fui seu aluno no curso de filosofia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara e posteriormente no
curso de psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
no período de 1964 a 1966, quando então fui convidado a colaborar, na qualidade de
professor-auxiliar, na cadeira de Psicologia Geral e Experimental, colaboração esta que se
mantém até a presente data. São portanto treze anos de convívio quase diário, primeiro
como aluno e depois como colega de trabalho, o que me coloca numa posição
privilegiada para atestar sobre sua conduta.
Durante estes treze anos, jamais ouvi, dentro ou fora das salas de aula, palavra alguma do
Professor Penna que justificasse a mais leve suspeita quanto a uma atividade político-
partidária de sua parte, e muito menos de caráter marxista. Seus cursos foram orientados
por um claro e inequívoco desejo de transmitir aos seus alunos uma formação filosófica e
psicológica dentro de uma linha fenomenológico-gestaltista, o que pode ser comprovado
por uma leitura de seus livros ou pelos programas e bibliografias de seus cursos.
O que pude verificar durante estes anos, foi a incansável atividade de um homem que
mais do que qualquer outro contribuiu para o estabelecimento de uma pesquisa científica
no campo da Psicologia em nosso país.
Como educador, como professor e pesquisador, assim como homem, o prof. Antonio
Gomes Penna dignifica a Universidade brasileira e somente a inveja e o espírito
patologicamente mesquinho de alguém, podem ter sido as fontes das referidas suspeitas.
O exemplo que ele nos deu foi de honestidade, integridade moral e responsabilidade
profissional.
Se a conduta profissional do Prof. Penna é razão para alguma suspeita, muito me honraria
que esta pairasse também sobre a minha pessoa, pois sempre que possível, não hesito em
tomá-la como exemplo.
Assinado - Luiz Alfredo Garcia Roza Prof. Adjunto da PUC e Prof. Auxiliar da UFRJ.
Em 27 de agosto de 1973.
Não posso deixar de consignar também a atitude rigorosamente correta de meu investigante.
Desconhecendo o significado da Fenomenologia, em especial, decidiu tomar aulas particulares com
o Prof. Vieira Pinto, com o objetivo de avaliar a possibilidade de, efetivamente, identificá-la com o
marxismo. Registro, ainda, que depois de todas as suas investigações e no encerramento do
inquérito, despediu-se de mim solicitando que, se possível, eu lhe desse alguma orientação para que
produzisse sua tese de docência-livre e afirmando que ficaria muito honrado se eu lhe concedesse
minha amizade. Obviamente, não lhe cito o nome. Sei que isso lhe desagradaria. Penso, ao
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contrário, que seu nome até deveria ser sublinhado pela correção com que se conduziu na
elaboração do inquérito.
Para finalizar este aspecto altamente turbulento de minhas atividades acadêmicas e que, por
igual, não esteve ausente nas de muitos de meus colegas, registro, ainda, três episódios bem
significativos. O primeiro ocorreu em 1968, nesta Universidade, quando, aberto o concurso para
preenchimento de vaga de titular na cadeira de Psicologia Geral, logo me inscrevi. Fui candidato
único e, no caso, nomearam o Prof. Hans Ludwig Lippmann para proceder a uma espécie de exame
de qualificação do texto que apresentei como tese. O ilustre professor logo apresentou parecer com
os maiores elogios ao trabalho que examinara. Foi, então, nomeada a Banca Examinadora e
marcado o início das provas para sete dias após a comunicação que recebi. Logo em seguida,
todavia, recebi a informação de que o concurso tinha sido suspenso. Incrivelmente nunca me
informaram a origem da ordem de suspendê-lo e as razões que a determinaram. Era Reitor nessa
época o ilustre professor Dr. João Lyra Filho, irmão do igualmente ilustre General Tavares Lyra.
Diante desse ato de total desconsideração, logo solicitei minha aposentadoria especial quando
contava com a idade de 53 anos e 28 anos e meio de exercício de docência.
O segundo ocorreu quando fui nomeado pelo Presidente da Fundação Getúlio Vargas para
Coordenador dos programas de Pós-Graduação em Psicologia e Chefe do centro de Pós-Graduação
do ISOP. Logo soube que o ilustre Presidente, Dr. Luís Simões Lopes, recebeu ofício sigiloso do
representante do Ministério da Educação, de resto, um general, de que convinha fosse o ato da
minha nomeação desfeito face a minha condição de subversivo. Diante do espanto do Dr. Simões
Lopes, o Dr. João Carlos Vital reivindicou a solução do impasse. Dirigiu-se ao Palácio de Cultura e
teve entrevista com o general. A acusação era de que eu falava mal dos militares e era
constantemente visto conversando com estudantes. Segundo me relatou o Dr. João Carlos Vital, sua
resposta foi a de que, no que se refere ao fato de eu ser visto conversando com os estudantes, o
espantoso era não terem percebido que essa era minha obrigação. Ao ilustre general cabia,
obviamente, também, conversar com militares. De qualquer modo, assumiu a responsabilidade, sem
me conhecer, por minha nomeação. Efetivamente honro a sua memória ao registrar seu gesto,
infelizmente muito raro na época.
O terceiro episódio ocorreu na Universidade Gama Filho. Coincidentemente com a minha
nomeação para o ISOP/FGV, fui também nomeado para cargo de direção nessa Universidade. Em
decorrência disso, soube que o Ministro Gama Filho recebeu documento idêntico ao remetido à
FGV e, tal como na FGV, fui mantido nas funções que me tinham sido oferecidas, por certo
também mediante termo de responsabilidade.
Todos esses episódios comprovam que não foi tranqüila minha longa caminhada profissional.
Em seu transcurso, todavia, recebi também muitas provas de respeito pelo que realizei. O título de
Prof. Emérito do IP/UFRJ foi dos que mais me agradaram.
Não poderia encerrar este texto sem apontar para algumas das mais importantes figuras da
psicologia, em relação às quais sempre me sinto em débito.
Começaria por Radecki. Nunca o conheci, mas, como no famoso filme, sempre o amei. Na
verdade, quando em 1925 assumiu a Chefia do Laboratório que fundou e organizou na Colônia de
Psicopatas do Engenho de Dentro, eu tinha apenas 8 anos de idade. Todavia, fui discípulo de dois
de seus alunos: Jayme Grabois e Nilton Campos. Ambos, efetivamente, entraram na psicologia por
suas mãos e viveram alguns anos sob sua influência. Nunca, todavia, me falaram sobre o mestre, no
sentido de ressaltarem suas idéias e de esclarecerem a natureza do sistema psicológico que
produzira e do qual ambos se consideravam impregnados: Nilton, no texto que publicou sobre a
“Psicologia da vida Afetiva” e Grabois, no projeto de pesquisa que elaborou, junto com o prof.
Euryalo Cannabrava, e que saiu publicado nos Anais, creio que de 1936. Na realidade, nenhum dos
dois jamais me explicou o significado do famoso “discriminacionismo afetivo”. Tampouco, nenhum
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dos dois me mostrou o exemplar que, obviamente, ambos possuíam, do “Tratado de Psicologia” que
o grande mestre polonês publicou no Brasil. Grabois, certamente, me falou muito sobre os aspectos
anedóticos da vida de seu professor. Jamais sobre suas contribuições no domínio da psicologia
experimental. No caso de Nilton, seu silêncio cheguei a entender. Por ocasião da publicação de seu
texto sobre a psicologia da vida afetiva, tendo-o dedicado a Köhler, que passava pelo Rio, deixou
muito magoado o mestre que o encaminhara na Psicologia. Houve, então, inevitável rompimento. A
reconciliação ocorreu bem mais tarde, quando ambos se encontraram em Congresso Internacional
de Psicologia. Nessa ocasião, Nilton tomou a iniciativa de procurá-lo, chamando-o carinhosamente
de “meu mestre”. Por ocasião da morte de Radecki, ocorrida em Montevidéu em 1953, Nilton
redigiu curto mas muito elogioso necrológio. Da imagem que me foi traçada por Grabois, Radecki
teria sido um homem muito sarcástico. Parece que tinha desprezo pelos que se dedicavam à
psicologia aplicada. Nesse desprezo incluía o ilustre psicólogo suíço Léon Walther, que teve uma
participação muito significativa no que se refere à implantação do que, na época, se definia como
psicotécnica. Eis um nome que deve ser anotado pelos que se empenham no resgate da memória da
psicologia. Recordo que, conforme o belo texto redigido por Pierre Bovet sobre a História do
Instituto J. J. Rousseau, Léon Walther foi o primeiro psicólogo especializado em psicologia do
trabalho diplomado pelo Instituto e, posteriormente, Chefe de Departamento voltado para o ensino
da Psicologia Aplicada. Seu clássico texto “La Technopsychologia du travail industrial”, publicado
na Suíça em 1926, foi muito bem traduzido e publicado pela Melhoramentos de São Paulo, graças a
Lourenço Filho.
Vale, entretanto, o registro de que o próprio Radecki sofreu severas discriminações durante
sua permanência em nosso país. Na própria Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, por
exemplo, nunca contou com a simpatia de Plínio Olinto. Este, psiquiatra e, posteriormente,
professor de psicologia no Instituto de Educação, embora ensaiasse também algumas pesquisas
experimentais na Colônia, tendo, inclusive, a colaboração da posteriormente médica Dra. Brasilia
Leme Lopes, nunca freqüentou o Laboratório do mestre polonês. Alegava que não o fazia por não
concordar com o “discriminacionismo afetivo” de Radecki. Também ele, parece, não concordava
com algo que, por igual, nunca esclareceu em que consistia. Um verdadeiro mistério. Uma única
vez em que por acaso conversei com Cannabrava sobre Radecki, dele ouvi um episódio
significativo. Ocorreu durante uma conferência pronunciada por Köhler em sua passagem pelo Rio.
Köhler explicava o conceito de estrutura e Radecki solicitou que ele explicasse de que modo esse
conceito podia valer em relação aos processos afetivos. Segundo Cannabrava, que estava presente,
Köhler não ofereceu qualquer explicação. Na verdade, essa foi a única vez em que eu recebi alguma
informação sobre a postura teórica do mestre de Varsóvia. Alguns anos antes, em conversa com o
ilustre professor Nelson Romero, de resto, grande latinista, sabendo que ele havia sido assistente de
Etienne Sourreau na cadeira de Psicologia oferecida pela extinta Universidade do Distrito Federal,
criada por Anísio Teixeira, perguntei-lhe sobre o que me podia dizer sobre Radecki. Sua resposta
foi muito dura: “Foi um simples bedel de Claparède”. Aqui, o preconceito expressava-se em termos
de desvalorização da psicologia experimental, como, por igual, em relação aos testes já se havia
manifestado Alceu de Amoroso Lima, desqualificando-os como tolas tentativas de se medir a alma!
O “Tratado de Psicologia” (resumido) redigido por Radecki, eu o encontrei numa livraria de
livros usados, que existia na rua São José. Trazia uma dedicatória ao Dr. Alberto Farane, com a
assinatura do Mestre. Devorei-o. Confesso que o reli muitas vezes. Ainda recentemente, consultei-
o. Composto de 17 fascículos em que “resumidamente” apresenta o curso que ministrava na Escola
de Aplicação do Serviço de Saúde do Exército, o livro atinge 443 páginas. Ao longo destas, mais de
300 citações podem ser registradas. Em breve levantamento que fiz, verifiquei que Wundt aparece
citado por 49 vezes; Jamer, por 33 vezes; Claparède, por 27 vezes; Ribot, também por 27 vezes; e
Freud, 15 vezes. Dois brasileiros aparecem mencionados no Tratado: Manoel Bonfim, uma única
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vez e sobre questão insignificante, e Nilton Campos, na medida em que colaborou com Radecki
numa pesquisa citada pelo mestre.
Na última releitura que fiz do texto de Radecki, procurei decifrar o enigma do
“discriminacionismo afetivo”. Obviamente, não encontrei uma única vez essa expressão empregada
por Radecki. Li, todavia, o capítulo sobre a “discriminação perceptiva” e tornei a ler o capítulo
sobre a “afetividade”. Procurei integrar os dois textos. Logo se verifica a imensa relevância
concedida à afetividade por Radecki. Todos os processos que a exprimem são definidos como
globais, por oposição aos processos que expressam as atividades dos sentidos e do pensamento.
Aventuro-me a supor que, para Radecki, todas as atividades discriminatórias teriam suporte afetivo.
Admitida essa tese, julgo não impertinente a afirmação de que a perspectiva assumida pelo antigo
catedrático de Psicologia da Universidade Livre de Varsóvia poderia ser considerada como
ocupando um espaço significativo no que, bem posteriormente, se definiu como “New Look in
Perception”. Por outro lado, não custa recordar que durante algum tempo trabalhou com Claparède,
em período em que lá também se encontrava Helena Antipoff. Foi nesse período que conforme
ressalta Nilton Campos, no necrológico publicado em 1953, Radecki realizou memorável pesquisa
sobre “Les phénomènes psycho-électriques”, publicada em 1911. “O digno cientista” - registra
Nilton - polonês, sul-americanizado, adverte que suas investigações coincidem com as que,
contemporaneamente, efetuaram os autores norte-americanos Frederick Wells e Alexander Forber, a
respeito do mesmo assunto. Esse fato, porém, só lhe chegara ao conhecimento tardiamente, por
ocasião da leitura dos “Archives of Psychology”, na publicação de março de 1911, onde constava o
trabalho dos autores citados, intitulado “On certain electrical process in the human body and their
relation to emotional reactions”.
Sobre Nilton Campos e Lourenço Filho já lhes dediquei bom espaço em minha “História da
Psicologia no Rio de Janeiro”, editada pela Imago. Voltei a escrever sobre Lourenço Filho quando
foi editado - sob a organização do Prof. Dr. Carlos Monarcha e edição da Universidade Estadual
Paulista, Campus de Marília - o livro em sua homenagem, sob o título: “Lourenço Filho - Outros
aspectos, mesma obra”, em 1997. Particularmente tenho grandes dívidas com o inesquecível mestre.
A primeira foi a indicação de meu nome ao Itamaraty para fundar, organizar e dirigir uma
Faculdade de Filosofia, em Assunção, no Paraguai. A segunda quando me convidou para assumir a
Presidência da “Associação Brasileira de Psicologia Aplicada”, em substituição ao ilustre Padre
Benko, que finalizara seu mandato. A terceira, quando aceitou meu convite para prefaciar, pouco
antes de falecer, meu livro “Comunicação e Linguagem”.
Sobre Grabois, só me resta destacar sua brilhante cultura e seu aguçado espírito crítico.
Sempre se definiu como um “behaviorista crítico”. Dotado de boa cultura no domínio da Teoria do
Conhecimento e dos grandes sistemas psicológicos, não chegou a fazer a carreira que, sem dúvida,
sempre pensei que pudesse realizar. A rigor, foi meu primeiro grande professor de psicologia.
Assisti seu curso durante um ano. Muito pouco, quando comparo com os três anos durante os quais
fui aluno de Nilton e dos muitos anos em que com ele convivi e aprendi, na condição de assistente.
Confesso que me encantaria muito escrever sobre Grabois. Teria que me restringir, todavia, a uma
evocação de comentários que, vez por outra, desenvolvia sobre a psicologia. Um dado que
pouquíssimas pessoas conhecem é que Grabois não nasceu no Brasil. Na verdade, era argentino.
Sua família, contudo, veio para o Brasil e todos aqui se radicaram. Infelizmente Grabois nada
escreveu. Tampouco fez carreira universitária, desde que jamais se preocupou em fazer a docência-
livre, condição indispensável para que ocupasse o lugar que merecia. Certa vez provoquei-lhe forte
emoção, logo denunciada pelas lágrimas que lhe rolaram pela face, quando, depois de muitos anos
sem vê-lo, com ele acidentalmente me encontrei no centro do Rio. Ao abraçá-lo, confessei-lhe que
eu era o único discípulo que ele formara em sua vida e que minha cátedra, na Universidade, eu a
devia, não só ao Nilton, mas também a ele; e hoje, acrescento, a ambos e ao inesquecível Prof.
Penido com quem, efetivamente, aprendi a pensar.
20
Parte II - História e Psicologia
A OFICINA DA HISTÓRIA: MÉTODO E FICÇÃO
Heliana de Barros Conde Rodrigues2
O título da presente mesa redonda (e deste texto introdutório) resulta de uma combinação
deliberada, e quiçá antropofágica, de raptos e roubos.
A oficina da história é denominação roubada de um conhecido livro do historiador francês
François Furet que, independentemente da excelência de seu conteúdo, é capaz, unicamente
mediante seu título, de provocar o pensamento. Pois se da história faz-se oficina, ou,
alternativamente, se em oficinas fazemos história, esta última emerge sob a figura de um trabalho.
Neste sentido, Clio, sua musa, aparece enquanto produção (de linguagem, imagens, conceitos...)
“suscetível de introduzir uma diferença significativa no campo do saber, ao custo de certo esforço
(...) e com a eventual recompensa de um certo prazer, quer dizer, de um acesso a uma outra imagem
da verdade” (FOUCAULT et al, 1989, p. 7).
Além de roubar títulos, conseguimos raptar alguns daqueles que, através de seus escritos-
trabalho, nos têm instigado exatamente ao esforço em busca de tal pensamento-recompensa. Estão
conosco Luiz Fernando Duarte e Virgínia Fontes, como deveria estar Magali Engel, “fugida” na
última hora, em função de inadiáveis compromissos (talvez com outros raptores...).
Luiz Fernando tem introduzido diferenças significativas no campo de nosso saber - aqui
figurado por Psyché, personificação grega da alma humana - pelo menos desde o começo dos anos
80. Muitos dos presentes decerto recordarão o impacto, sobre nossas “vontades humanistas” ou
alegada e justificavelmente “democratizantes”, do artigo Considerações teóricas sobre a questão do
“atendimento psicológico” às classes trabalhadoras, redigido em co-autoria com Daniela Ropa.
Ali, um criativo manejo de autores-ferramenta como Foucault, Sennett, Castel, Dumont, Boltanski,
Loyola, Figueira, Lévi-Strauss, Berger, Bernstein, Bourdieu e Freire Costa, entre outros, no bojo de
uma pesquisa desenvolvida entre 1981 e 1983 com moradores da periferia do Rio de Janeiro, nos
desalojava, decerto à custa de muito esforço, de nossas até então demasiado tranqüilas plagas
profissionalistas, cientificistas e/ou tecnicistas, mediante uma poderosa oficina (ou mesmo usina) de
reflexões críticas. Dentre estas, recordo apenas uma, que julgo fundamental:
Uma alternativa [psicoterapêutica] que prescindisse da análise destas questões
[relativas às representações das classes trabalhadoras acerca do sofrimento
psíquico, bem como de suas formas para lidar com ele] seria (...) não apenas falha,
como perigosa. Atuar em nome de uma suposta prevalência da ideologia
dominante, desconsiderando as demais representações e visões de mundo seria, na
realidade, mais uma forma de reforço e perpetuação da dominação e uma atitude
tão nociva ou mais do que a ingênua defesa da cultura popular. (DUARTE, ROPA,
1985, p. 181)
A este artigo seguiu-se Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas), tese de
doutorado de Luiz Fernando, publicada em 1986, na qual estas preciosas análises sobre os limites
do pensamento e intervenção psi se fizeram invariavelmente acompanhar da presença perturbadora
de Clio: a figura do “nervoso” seria menos uma “espontânea” criação “popular” do que um
2
Professora e procientista do Departamento de Psicologia Social e Institucional / Instituto de Psicologia da UERJ.
21
cuidadoso artefato de uma certa medicina, sempre alerta para “fazer populares” seus supostamente
tão “complexos” paradigmas organicistas.
A partir de então, Luiz Fernando fez-se constante companheiro discursivo daqueles agentes
psi voltados à ficção. Não porque em suas pesquisas esta se opusesse ao método - seu texto, a
seguir, facilmente desmentiria tal assertiva -, mas porque somente uma corporificação estrita das
reflexões por ele operadas nos propiciariam algum espaço de ruptura, ao menos parcial, com o
encargo social com que tão habilmente nos confrontava - disciplinarização-controle-invalidação -,
permitindo-nos inventar conceituações e práticas até então inexistentes, embora igualmente
arriscadas, acerca das quais deveríamos exercer a mesma atenção crítica. Sendo assim, nosso
companheiro nos incitou a novos roubos, raptos, ou mesmo espoliações, conforme nos sugere
Ewald, em uma referência à Esquizoanálise que a liberta dos usos mercadológico-técnicos de que
tantas vezes se tem visto refém:
Você quer fazer psicologia? Deleuze e Guattari dizem: aprenda a história, percorra
as grandes formações da história universal (...) , espolie a biblioteca do arqueólogo,
do etnólogo, do economista, empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as
disciplinas do desejo, as disciplinas que relatam no seu conjunto e na diversidade
as produções do desejo. (...) Aprenda a ver o múltiplo que aí está em construção
(EWALD, 1991, p. 90).
Embora muito tenhamos espoliado a biblioteca de Magali Engel, de Meretrizes e Doutores
(1989) a suas reflexões mais recentes sobre a construção, no Brasil, da loucura como doença
mental3
- nas quais tem como intercessores4
, além dos historiadores, a literatura de Domingos
Olímpio, Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio -, não a acompanharemos em suas linhas
de fuga. Preferimos começar a nos deixar afetar pelo trabalho de Virgínia Fontes que, em um artigo
recente, incluído na coletânea Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia, nos vem
“interceptar” com o tema História e Modelos. Nada mais apropriado para introduzir esta mesa, que
igualmente trabalha com a sempre tão produtiva conjunção “e”: história e modelos, método e
ficção...
No referido artigo, depois de apresentar os sentidos que toma, em história, o termo modelo, e
de discutir as relações que mantém a disciplina historiográfica com os pressupostos cognitivos
presentes nas elaborações de Karl Marx - a produção da vida material - e Max Weber - os tipos
ideais e a questão da cultura -, assim se refere a autora às tendências atuais de utilização de modelos
em história:
...a tendência contemporânea é a de elaboração de modelos submetidos a controles
mais estritos. Para tanto, ao invés de trabalhar com processos de longuíssima
duração e com universos sociais variados, os modelos tendem a ser construídos a
partir de situações sociais bem demarcadas. (...) Com isso, se a abrangência fica
reduzida, ela se torna capaz de traduzir mais fielmente os momentos de inflexão, de
instabilidade e os parâmetros que indicam as linhas de força e de modificação do
sistema (FONTES, 1997, p. 369-370).
O fragmento fala, simultaneamente, em “tradução fiel” e em “momentos de inflexão e
instabilidade”. Situa-nos, portanto, no cerne da relação problemática entre o procedimento
3
Para uma introdução a estas investigações, ver ENGEL (1991-1992).
4
Segundo Deleuze, “o essencial são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas - para um filósofo,
artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas -, mas também coisas, plantas, até animais (...) Fictícios ou
reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores”. (DELEUZE, 1992, p. 156).
22
metodológico regular ou normatizado - característico dos saberes científicos ou com pretensões ao
conhecimento verdadeiro -, e a circunstância de que, fazendo o saber histórico parte da própria
história, aquele jamais é neutro em suas afirmações, podendo, por conseguinte, favorecer ou
bloquear - portanto, ficcionar - as próprias transformações que investiga. Trata-se necessariamente,
em história, para usar uma terminologia cara a Michel Foucault, de um trabalho de ficção no
interior de processos de veridificação.
Permito-me, a partir deste momento, e para que não se estenda demasiado esta introdução,
mais uma vez raptar/roubar nossos intercessores - no caso, alguns dos campos de análise abertos por
textos publicados de Luiz Fernando e Virgínia -, a fim de com eles formar novas séries, pois “se não
formamos uma série, mesmo que imaginária, estamos perdidos” (DELEUZE, 1992, p. 156).
Recentemente, encontrei uma observação acurada acerca do termo justiça - questão sem
dúvida implicada pelas conjunções Clio e Psyché, ou método e ficção -, da qual lanço mão para que
possamos aspirar a alguma criação:
Se o significado depende do uso como quer a pragmática, nós, brasileiros, temos
um curioso senso de justiça. Costumamos dizer que uma roupa é justa quando está
apertada. O justo se nos afigura ser também o que impede a liberdade de
movimentos; o que, portanto, não é justo. Justiça há quando somos capazes de nos
movimentar, quando mais de um sentido é possível (VAZ, 1997, p. 5).
Tempos houve em que, talvez, fôssemos estritamente “justos” (ou injustos!) e não o
percebêssemos - os saberes e intervenções psi, notadamente os clínicos, se nos afiguravam então
como inevitável e inegavelmente nobres, incomumente aliados ao bem comum e,
conseqüentemente, desejáveis, por si só, por todos e para todos. No Brasil, o período que se estende
aproximadamente de 1968 a 1978 assinala um momento em que os psicólogos almejam quase
unanimemente a tal “nobreza terapêutica” - psicanalítica, em especial -, estabelecendo batalhas, à
época ditas “por justiça”, contra “médicos injustos” que os quereriam impedir de ser, como eles
próprios, alegados “especialistas do bem”(comum?).
Neste sentido, se 1968 já foi chamado “o ano que não terminou” (VENTURA, 1988) e
recentemente se trouxe saudosisticamente à cena literária um feliz 1958 na qualidade de “o ano que
não devia terminar” (SANTOS, 1997), ganha 1978, a nosso ver, o direito de ser apelidado “o ano
em que tudo começou”. O processo de redemocratização brasileira, em grande parte movido pelos
novos personagens - os movimentos sociais - que entravam, então, “em cena” (SADER, 1988),
atualizou nossa apreensão de uma série de dizeres intempestivos e conteúdos inquietantes. Embora
certas Filosofias, Sociologias e Histórias, bem como algumas reflexões sobre o problema do sujeito
não limitadas a fronteiras disciplinadoras já estivessem, há muito, fazendo um trabalho de
dedicados alfaiates - a alargar nossas roupas antes tão “justas” -, é aproximadamente a partir desse
momento que se começa a operar uma radical desnaturalização daquilo que se julgava
essencialmente ligado ao bem, dando início, simultaneamente, à busca pela presença, bem mais rara
e singular, do simplesmente bom.
As histórias efetivas, contudo, jamais estão em atraso. Conforme se poderia dizer, recorrendo
a Nietzsche, apenas o construtor do presente pode voltar-se para o passado no intuito de julgá-lo.
Sendo assim, a partir daquele momento encontramos novos personagens, ou companheiros. No
plano discursivo, os escritos de Foucault, Castel, Deleuze, Guattari, Lourau, Lapassade, Goffman -
para citar apenas meus principais encontros - , bem como aqueles das vibrantes antropologia urbana
e história crítica da psiquiatria brasileiras, nos transformaram, ao menos em parte, de aspirantes à
maestria na “fabricação de interiores” (BAPTISTA, 1987), em mestres da suspeita quanto a nossos
23
próprios dizeres e fazeres, sempre suscetíveis de nos configurar enquanto “guardiães da ordem”
(COIMBRA, 1995), “empresários morais” (BECKER, 1966), “alugadores de orelhas”
(FOUCAULT, 1984), ou, na irreverente linguagem contracultural ou meia-oitista, “psico-tiras”.
No âmbito das intervenções nos tem sido possível, desde então, tanto experimentar riscos
quanto refletir sobre intoleráveis limites. Pois enquanto as ações de Basaglia nos marcavam -
espero que de maneira sempre mais duradoura - com o convite à aventura da desinstitucionalização
- propondo e praticando, em um perturbador paradoxo, uma Psiquiatria Democrática (!!) -, o
passado brasileiro recente, inclusive no plano psi, começava a libertar-se da invectiva do “não conte
a ninguém”.(VIANNA, 1995) Omissões, cumplicidades e conivências, sintetizadas na figura de um
psicanalista torturador, torturador psicanalista ou psicanalista e torturador - o segredo, a
proibição de dizer, é aqui mais relevante que o detalhe significante -, conduziram-nos a um quase
generalizado paroxismo. Sendo assim, a relação entre as intervenções psi e a justiça se fizeram
multiplicidade e pergunta, abandonando as sendas antes inabaláveis das afirmações auto-
legitimadoras e auto-glorificantes.
Os textos a seguir estão, a nosso ver, configurados por este campo problemático: um e
interrogativo substitui qualquer é essencializador. Decerto cada um dos autores se arriscará a
responder mediante uma singular experimentação. A mesma coisa ocorrerá, provavelmente, com os
leitores. Afinal, e aqui penso especificamente nos agentes psi, já somos outros, e o passado a que
fiz referência começa a deixar de ser o nosso? Ou, como não sabemos muito bem o que estamos nos
tornando, ainda somos o que há muito temos sido? Em que forma de justiça podem nossos saberes e
fazeres do presente resultar? A da “roupa justa” ou a do “movimento incessante”?
Ficam as indagações, já que não pretendo formular princípios, notadamente com apoio em
qualquer psicologia. Pois para que a conjunção-indagação método e ficção possa efetivamente
engendrar alguma experimentação, valeria lembrar, parodiando Lobosque (1997, p. 21), que a
pertinência exclusiva dos assuntos ditos psi ao mundo psi constitui justamente um dos modos
principais de sua exclusão da cultura. E, finalmente, acrescentar: bem como de sua exclusão da luta
pela vida bela e pela justiça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAPTISTA, L. A. S. Algumas histórias sobre a fábrica de interiores. Tese de Doutorado. Instituto
de Psicologia da USP, 1987.
BECKER, H. S. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Pres, 1966.
CARDOSO, C.F.,VAIFAS, R. (orgs.) Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus,1997.
COIMBRA, C.M.B. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas ‘psi’ no Brasil do milagre.
Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DUARTE, L.F. Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas). Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
DUARTE, L. F., ROPA, D. “Considerações teóricas sobre a questão do “atendimento psicológico”
às classes trabalhadoras”. Em: Figueira, S.A. (org.) Cultura da psicanálise. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
ENGEL, M. Meretrizes e doutores. São Paulo: Brasiliense, 1989.
24
ENGEL, M. “Notas sobre a construção da loucura como doença mental”. Em Anuário do LASP,
ano I, vol.1, 1991-1992
EWALD, F. “A esquizoanálise”. Em: Escobar, C.H. (org.) - Dossier Deleuze. Rio de Janeiro:
Hólon, 1991.
FONTES, V. “História e modelos”. Em: Cardoso, C. F., Vainfas, R. (orgs.) - Domínios da história:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FOUCAULT, M. et al. “Des travaux”. Em: Association pour le Centre Michel Foucault (org.) -
Michel Foucault philosophe. Paris: Seuil, 1989.
LOBOSQUE, A. M. Princípios para uma clínica antimanicomial. São Paulo: Hucitec, 1997.
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SANTOS, J.F. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Record, 1997.
VAZ, P. O inconsciente artificial. São Paulo: Unimarco, 1997.
VENTURA, Z. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
VIANNA, H. B. Não conte a ninguém: contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
25
Parte II - História e Psicologia
CLIO E PSYCHÉ — À PROCURA DE NOVOS FUTUROS
Virgínia Fontes5
A História e a Psicologia são freqüentemente visitadas pelo mesmo fantasma recorrente: dar
conta de todos e de cada um; pensar o todo, o universal, o estrutural e dar conta de cada indivíduo,
de cada situação específica, irrepetível e irredutível, em sua riqueza, a um modelo qualquer.
O ponto de encontro fundamental entre História e Psicologia é a busca da explicação e
compreensão da relação necessária e constitutiva entre sujeitos, sociedade e processo. De formas
diferenciadas, ambas procuram a redução do sofrimento inútil, sem a perda da experiência —
individual e social — enriquecedora. Numa, a atuação frente a sujeitos individuais ou coletivos;
noutra, a procura da compreensão do processo histórico que nos instaura enquanto sujeitos
propriamente ditos. Em ambas, o desafio de explicar o que nos leva a ser ativos ou submissos;
rebeldes, criativos, agentes, ou adaptados, configurados, pacientes.
A relação entre o conhecimento histórico e o psicológico nem sempre foi fácil. A tensão
primordial permanece e, a meu ver, deve ser preservada. Tentar fundir as duas disciplinas pode ser
tão grave e problemático quanto separá-las radicalmente. As confusões e os deslizes, ainda que
repletos de boa vontade, muitas vezes geraram impasses exatamente para a explicação desse
processo complexo de interação entre indivíduo e sociedade. Aquilo que é conhecido como história
psicologizante, por exemplo, procurando um padrão “humano” para o processo histórico, acabou
por considerar instituições sociais como entidades (enteléquias) dotadas de vontade, consciência e
rumo próprio, independentemente dos indivíduos reais, dos grupos e das classes sociais que
constituíam a sociedade e moldavam os indivíduos. Propunha assim, por exemplo, “nações”
psicologizadas, dotadas de vontade e de “caráter”; Estados vistos como realização de uma razão
universal e dotados de pura consciência, etc.
O inverso também apresentou dificuldades: uma historicização absoluta dos sujeitos arrisca
sempre diluí-los num fluido sem existência própria ou significado, capturados numa transformação
incessante e na incapacidade de compará-los e de pensá-los em conjunto; uma sociologização
irrefletida arrisca-se a relegar a um plano secundário os sofrimentos reais dos indivíduos concretos.
Tentando criticar determinados padrões sociais, muitos analistas esqueciam o quanto a tensão entre
indivíduos e grupos sociais pode contribuir para a transformação da própria sociedade. Com isso,
arriscavam-se a relegar os indivíduos à mercê da mesma sociedade que era criticada...
Para escapar dos dilemas de “fronteiras” inter-disciplinares, o melhor é sempre encará-los de
frente. O mais enriquecedor é certamente explorar a interface, a zona de tensão que une e separa
História e Psicologia, o núcleo do conflito constitutivo que pode permitir a ambas a ampliação de
sua capacidade explicativa, de compreensão e de intervenção social.
Nossas disciplinas, porém, têm outras zonas de penumbra, nas quais nos movemos. História
e Psicologia mantêm laços anteriores, com os quais nutrem uma relação de amor e afeto,
contrabalançada por momentos de raiva e despeito: a filosofia e o telos; a narrativa romanceada e os
modelos de comportamento. Deleite e prazer; conhecimento e razão; engajamento e intervenção
política — áreas incompatíveis?
5
Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
26
Essa interrogação, que fundamenta nossa mesa-redonda hoje, nos conduz às demais questões
que estão no centro de alguns debates atuais. Existem diferenças significativas entre os diferentes
conhecimentos e saberes? O conhecimento somente pode se expressar por uma linguagem
complexa? A narrativa é mais sedutora e rica do que o texto científico? Há ainda algo que
consideremos como conhecimento científico ou universalizante? Devemos rejeitar todas as
pretensões anteriores e admitir que importa apenas o uso (como o quer Rorty6i
)? Nesse sentido, o
estilo e a retórica não seriam mais importantes do que qualquer argumento?
Não tenho a menor pretensão — nem seria o caso, nem disporíamos de tempo e espaço para
tanto — de responder a tais questões. Mas é preciso suscitá-las, relembrá-las, e tentar ver de que
forma nós — e nosso tempo — lidamos com elas. Permito-me assim mudar agora de registro para
abrir um painel provocativo a partir dessas interrogações de partida.
Gostaria de falar sobre um escritor, um homem que escreveu uma das mais belas narrativas
em nosso século. Tratava-se de um rapaz de boa família, criado em bairros finos, com direito a
belas casas sólidas e férias no campo. Totalmente ego-centrado, esse homem decidiu que sua
própria vida — com tudo o que ele conseguisse lembrar e incluir e com as suas características
próprias, estritamente pessoais, inclusive sua exacerbada vaidade e sua grande pretensão — merecia
um relato detalhado, completo. Não deveria ser um relato qualquer — deveria ser o maior, o
melhor. E o foi.
Assim, nosso autor empreendeu uma narrativa ficcional gigantesca e heróica. Designou um
outro “eu” como personagem principal, com a função de desempenhar seu próprio papel. O outro,
porém, era a tal ponto ele próprio que o nome do personagem tornava-se secundário; em alguns
momentos, o autor esquecia e se nomeava a si mesmo, em deslizes significativos.
Nessa narrativa, esse autor exigiu de si próprio o máximo de fidedignidade, de memória, de
“perseverar em seu ser” (como o contatus de Spinoza7
). Nenhuma relação portanto com essas
autobiografias caudalosas, moralizantes e vaidosas, ou com as biografias gigantescas que estão na
moda. Nosso autor empreendeu um verdadeiro mergulho, sem temer os locais desconhecidos e
inóspitos, sem falsos pudores. Obra de imensa vaidade, beira a extrema modéstia. Não pretendia
mostrar apenas um lado “bom” ou louvável, nem se limitar aos aspectos espúrios. Esmiuçou suas
recordações, “fuçou” e revirou suas lembranças, procurou ir ao fundo dos sentimentos mais
generosos, encontrando o laivo de egoísmo que eles carregam; não desdenhou os momentos
obscuros ou cruéis, perscrutando o mais longe que pôde atrás deles, fazendo-nos partilhar com ele
de experiências que também vivemos e que, fugazes, deixamos para trás.
Essa memória procurada e elaborada de si-mesmo relaciona-se aos terrenos que procuramos
palmilhar aqui, Psyché revivida: o sujeito, ao expor-se claramente, ao relembrar sensações,
pensamentos, mesquinharias, alegrias e percepções abria-se para uma verdadeira aventura
psicológica, numa exploração delicada da multifacetada, complexa e conflituosa unidade do único
ser que, segundo Descartes, nos garante a existência do conhecimento (nós mesmos, o cogito).
Na outra ponta da meada, Psyché encontrava o mundo: esse si mesmo somente adquiria
sentido e espessura, nitidez e cores, palavra e sentimento quando se relacionava, quando via os
outros, tocava-os, sentia os demais, reagia a eles, desejava e detestava. Assim, para além de si
próprio (e para chegar a ser si próprio), o afresco devia dar conta das paisagens vistas, das flores
cheiradas, das casas vividas, dos parques, das praias, dos caminhos percorridos. Objetos e coisas
6
Ver, por exemplo, Richard Rorty. “A trajetória do pragmatismo”. Em: Umberto Eco, Interpretação e
Superinterpretação. Ver também o sugestivo artigo de Marcio Duayer e Maria Celia Moraes - “Neopragmatismo: a
história como contingência absoluta”. Em: Tempo, nº 4, Depto. de História da UFF.
7
Cf. Gilles Deleuze. Spinoza, p. 26.
27
que remetem a um mundinho — pequeno, mas preciso — onde o que estava em jogo eram relações
vividas. No mundo, Psyché devia encontrar Clio: o ser existia porque encontrava coisas e seres.
Com os demais, chegava a si-mesmo.
Essa obra literária contém ainda um outro trabalho: o da própria narrativa, infinitas vezes
retomada e corrigida, na busca da precisão, da elegância, da clareza, da completude do sentimento
ou da paisagem8
. Contém também a ficção — o belo apenas visto e não vivido mas que suscita uma
tal impressão que merece figurar como se fosse partilhado, a descrição do lugar inexistente ou do
amigo desejado mas que recusou a paixão e nossa entrega — que se permite o deleite de viver
integralmente o sonho e o horror, à distância segura que a pena e o papel permitem.
Não me parece difícil identificar de que autor estamos falando. Refiro-me a Marcel Proust e
ao que considero uma das maiores delícias da literatura mundial: À la recherche du temps perdu.
Essa obra, magnífica e única, verdadeiro monumento que abre e encerra todo um ciclo
literário, contém elementos — creio que estaremos todos de acordo — de vastos painéis
psicológicos e históricos. Do ponto de vista da psicologia, poucos autores (ou pensadores) foram tão
longe nos detalhes da percepção, na evidência impudica de seus próprios sentimentos, na exposição
pública e sem pejo de sua própria nudez íntima. Retrato de um delicioso, delicado, sutil e raro
personagem, ou de um crápula abjeto, de um egocêntrico vaidoso cuja exposição de sua tara,
unicamente, o redime (como Sade, para muitos).
Se Proust contém e expõe as minúcias de suas experimentações subjetivas, dificilmente
chamaríamos À procura do tempo perdido de um livro de Psicologia. Psyché é aqui a recuperação
de sua própria vivência, mas não a construção de um conhecimento partilhável em suas próprias
premissas.
Da mesma forma, o vasto painel traçado do fin de siècle francês extrapola largamente o
pequeno mundinho no qual Marcel Proust circulava. Constrói um vigoroso afresco histórico9
desse
grupo social em rica decadência, dos conflitos e das dificuldades de vivenciar as novas relações
sociais (o caso Dreyfuss e o anti-semitismo, as prostitutas de luxo e as discriminações sociais, a
burguesia endinheirada e as novas diferenciações mundanas). Essa memória profusa e rica em
detalhes; essa memória finamente trabalhada, como uma ourivesaria da palavra; essa memória
requintada, auxiliada por alguns parcos recursos à sua disposição (recortes de jornais, conversas e
trocas de lembranças), memória despudoradamente aberta a todos e a qualquer um por Proust, é
uma história? Clio, nesse encontro, é apenas um quadro, um pano de fundo, momentos.
No entanto, À procura do tempo perdido, seus milhares de páginas e sua riqueza sempre
renovada, constitui simultaneamente uma história e uma psicologia. Mas a que história e a que
psicologia nos referimos? A experiência de si, por mais rica que seja, substitui o conhecimento?
De forma apenas indicativa, recuperemos algumas das interrogações anteriores. Em primeiro
lugar, a ficção não substitui e não deve substituir, a meu ver, o conhecimento. Uma forma de prazer
não elimina as demais e tanto mais prazeirosa será se nos permitir partilhar de inúmeros outros
prazeres.
A construção do conhecimento opera por procedimentos distintos do ficcional. Remete em
geral a uma linguagem mais árida, a um texto no qual não apenas viajamos, deslizamos em sua
superfície ou mergulhamos em longos períodos de isolamento. Esse prazer, específico da literatura,
desdobra-se em outros, na produção e partilha do conhecimento. Este tipo de leitura exige de nós
8
Há uma riquíssima bibliografia sobre Proust e sua obra. Apenas a título de exemplo, ver Antoine Adam et al. Proust.
9
A literatura é, aliás, generosa nesses magníficos afrescos e não resisto a mencionar dois outros autores: Leon Tolstoi e,
no Brasil, Graciliano Ramos.
28
participação, tensão e diálogo constantes. Um texto cognitivo expõe-se em níveis distintos e permite
deslindar e partilhar seus próprios princípios constitutivos. A ficção se permite ser o que ela é; o
conhecimento deve, a todo tempo, eliminar a ficção que o constitui e que nele se ancora10
. O
conhecimento — histórico e psicológico — exige a desnaturalização incessante das relações
sociais; a denúncia e o esclarecimento do lugar de onde se fala; a procura da tensão necessária entre
o particular e o múltiplo; a evidenciação de um real, ainda que opaco e tenazmente fugidio, mas que
baliza a vida da maioria.
O prazer da leitura de Proust não é comparável ao prazer da leitura de Freud ou de Marx, por
exemplo. São sensações e experiências diversas, insubstituíveis umas pelas outras. Reduzi-las a um
termo comum, escaloná-las ou hierarquizá-las significa, a meu ver, uma perda de dimensões nas
quais nos construímos e nos articulamos, nós próprios, enquanto sujeitos capazes de vivência e de
transformação. Implica não apenas diminuição de prazeres diferentes, mas também limitação de
nossa capacidade de intervenção na vida social.
Em outro nível, me permito reintroduzir uma outra leitura de Proust à luz da história.
Vivemos hoje un fin-de-siècle (e de milênio). Proust vivenciou e narrou um mundo em
decomposição, um mundo que, apesar de sua riqueza e de sua pompa, não era capaz de competir
com o modelo fáustico, embora não tão brilhante, da burguesia emergente. Todo um universo de
minúcias, refinamentos e de detalhes, um savoir-faire, uma prática de reconhecimentos e de
“politesse” se esvaía aos poucos. Novas forças sociais destruíam, por dentro e por fora, aquele
mundo requintado. O próprio fato de Marcel Proust tê-lo descrito tão vivamente pode ser tomado
como sinal do aprofundamento dessa crise e da exposição de sua agonia.
Aquele fim de século XIX apontava para o futuro como o locus próprio de novas
realizações, capitaneado por uma burguesia conquistadora — econômica, militar, política e
ideologicamente. Burguesia cruel e devastadora; rica, esperançosa e empreendedora, Proust nos
mostra seu embate com as formas remanescentes do Antigo Regime e da nobreza, já então em
franca decadência. Nosso fin de siècle é bem mais nostálgico. Também vemos desabar — como a
nobreza proustiana — o mundo no qual acreditávamos; também vemos o lado charlatanesco de
nossos heróis (como Charlus, personagem proustiano). O fáustico que hoje nos é imposto, com a
mundialização e a alta tecnologia, não é mais capaz de nos arrebatar como sonho impetuoso de fuga
para a frente: a contabilização da catástrofe já é grande demais.
A burguesia endinheirada que substituía a nobreza e seus rituais não vive hoje num
mundinho proustiano, fechada numa cultura refinada e decadente. Manteve-se no mesmo pé
pragmático, ocupada pelo horizonte míope da reprodução do capital. Construiu ilhas de riqueza
sobre os mares de miséria, que ela própria reproduz. As tentativas de transformação radical da
sociedade transformaram-se em seu contrário: viraram formas de atingir o desenvolvimento
capitalista, opondo uma vontade férrea e endurecida aos inúmeros obstáculos (internos e externos) à
sua realização.
Este nosso fin de siècle propõe menos futuros do que volta-se para o passado, à procura de
um tempo perdido. Esse movimento, visível especialmente em algumas diretrizes filosóficas
contemporâneas, recupera como novo o relativismo dos inícios do século XIX; abandona as
conquistas sociais da igualdade e fecha-se em culturalismos estanques como forma de se proteger;
procura ignorar a própria história, com seus conflitos e descompassos, à procura desse tempo
perdido, concebido como unidade mítica, como perfeita integração entre o Um e o Todo.
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Nesse sentido, nossa proposição difere significativamente das colocações de Michel de Certeau em, por exemplo,
Histoire et psychanalise entre science et fiction
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A ressalvar, porém, que não é esse o reencontro do tempo perdido em Proust — ao
contrário, o reconhecimento do sabor/odor da madeleine, do bolinho saboreado com uma chávena
de chá em casa da tia abre-se para a admissão do tempo, do transcorrer, do mutável e, no caso, do
próprio envelhecimento.
Essa imagem de um retorno mítico a uma conjunção do Um e do Todo desafia tanto a
História quanto a Psicologia - ambas, disciplinas fundadas no conflito, no desacerto, na procura; na
tensão necessária entre cada um e o coletivo; na tensão que se instaura, internamente a cada um, no
conflito como a condição do processo. Não há uma História e uma Psicologia unas — somos
disciplinas em conflito em torno de grandes eixos teóricos que nos atravessam.
Nesse sentido, o retorno ao século XIX poderia ser mais rico do que vem sendo explorado.
Se foi o período do grande romance histórico, da ficção e da narrativa; da crença no progresso
inexorável e do positivismo; do historicismo absoluto, o novecento foi também o século da criação
de conhecimentos que rejeitavam o absoluto e o harmônico como modelos, que introduziram o
conflito como eixo fundamental para o conhecimento, tal como em Freud e Marx.
No entanto, não me parece que apenas um retorno a esses autores, pura e simplesmente,
assegure a construção de novos futuros. Trata-se de levá-los adiante, de seguir à frente ampliando
os desafios que eles nos descortinaram, mas seu peso e complexidade nos parece às vezes tão
grande que recusamos seus prazeres em nome da dificuldade de atingir novas descobertas.
Menos do que procurar o tempo perdido, do que nos contorcermos numa procura identitária
da qual já dizia A. Koyré (1962) ser a marca dos tempos conservadores — quem somos? —,
seremos capazes de admitir o desafio que significa pensar onde estamos?
Para Psyché e para Clio, hoje, o desafio é a reconstituição de um projeto cognitivo capaz de
enfrentar o singular e o múltiplo. Não perder as bases de universalidade que somente o processo
cognitivo pode abrir, aceitando rebeldemente lidar com o conflito que o pressuposto de uma
igualdade radical impôs tanto à psicologia quanto à história como base primeira de seu método.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAM, Antoine et al. Proust. Paris: Hachette, 1965.
CERTEAU, Michel de. Histoire et psychanalise entre science et fiction. Paris: Folio, 1987.
DELEUZE, Gilles. Spinoza. Paris: PUF, 1970.
DUAYER, Mário e MORAES, Maria Célia. “Neopragmatismo: a história como contingência
absoluta”. Rio de Janeiro: Sette Letras/Dept. de História da UFF. Em Tempo, n. 4, 1997.
KOYRÉ, Alexandre. Introdution à la lecture de Platon, suivi de Entretiens sur Decartes. Paris:
Gallimard, 1962.
RORTY, Richard. “A trajetória do pragmatismo”. Em: Eco, Umberto (org.), Interpretação e
Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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  • 1. CLIO-PSYCHÉ: Histórias da Psicologia no Brasil Ana Maria Jacó-Vilela Fabio Jabur Heliana de Barros Conde Rodrigues Organizadores
  • 2. 2 Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais - www.bvce.org Copyright © 2008, Ana Maria Jacó-Vilela, Fabio Jabour, Heliana de Barros Conde Rodrigues Copyright © 2008 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da última edição: 1999. Rio de Janeiro: UERJ, NAPE Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser reproduzidas para propósito não-comercial na medida em que a origem da publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN 978-85-99662-57-1 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Pirajá, 330/1205 Ipanema - Rio de Janeiro - RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: bvce@centroedelstein.org.br
  • 3. 3 Sumário Introdução: um encontro intempestivo Ana Maria Jacó-Vilela, Fábio Jabur e Heliana de Barros Conde Rodrigues 05 Parte I – Depoimento Minha caminhada na Psicologia Antonio Gomes Penna 07 Parte II - História e Psicologia A oficina da História: Método e ficção Heliana de Barros Conde Rodrigues 20 Clio e Psyché - À procura de novos futuros Virgínia Fontes 25 Método e ficção nas Ciências Humanas: por um universalismo romântico Luiz Fernando Dias Duarte 30 Parte III - Formação, ação e profissão Uma leitura antropológica do mundo "psi" Jane A. Russo 37 Práticas psi no Brasil do "milagre": algumas de suas produções Cecília Maria Bouças Coimbra 43 Formação em Psicologia: gênese e primeiros desenvolvimentos Deise Mancebo 54 Mundos paralelos, até quando? Os psicólogos e o campo da saúde mental pública no Brasil nas duas últimas décadas Eduardo Vasconcelos 72 Uma trajetória profissional Miriam Langebach 91 A beleza de ser um eterno aprendiz: uma palavra sobre a formação do psicólogo Maria Cristina Fernandes Lima 96 Fragmentos da História da Psicologia no Brasil - algumas anotações sobre teoria e Prática Tania R.Catharino 101 Da História da Psicologia para uma História na Psicologia Lia M. Perez B. Baraúna 105 Um olhar sobre o ano de 1997: registros do informativo "Argumento" do CRP-05 108
  • 4. 4 Ira Maria Maciel Infância pobre no Brasil: a importância dos discursos psychologicos nas instituições para menores Leila de Andrade Oliveira 115 Psicologia e tendências pedagógicas no Brasil - perfis de atuação do psicólogo Eloiza da Silva Gomes de Oliveira 125 O psicólogo na Escola: História e formação Alessandra de Castilho Ramos, Marisa Lopes da Rocha, Terezinha de Jesus Pimenta, Vanessa Cristina Breia 129 Breve contribuição à História da Psicologia aplicada ao trabalho, no Rio de Janeiro Antônio Gomes Penna 135 Parte IV - Jogos de verdade e saberes psi História da psicologia no Brasil - origens nacionais Sonia Alberti 140 Psicologia: um saber sem memória? Ana Maria Jacó-Vilela 146 De "criança infeliz" a "menor irregular" - vicissitudes na arte de governar a infância Esther Maria de M. Arantes 152 "Mens in corpore": o positivismo e o discurso psicológico do século XIX no Brasil Ricardo Keide, Ana Maria Jacó-Vilela 155 Educação para a liberdade: um projeto de Helena Antipoff Karina Pereira Pinto, Ana Maria Jacó-Vilela 167 Ulisses Pernambuco: o enamorado da liberdade Walter Melo 172 Uma revolução e um revolucionário? A Psicologia na época de Mira y Lopez Hildeberto Vieira Martins 179 Parte V – Psicologia, História e Educação Psicologia e Educação: resgate e produção de Histórias Marisa Lopes da Rocha 184 Ciência e Política na Primeira República: Origens da Psicologia Escolar Maria Helena Souza Patto 187
  • 5. 5 INTRODUÇÃO UM ENCONTRO INTEMPESTIVO Ana Maria Jacó-Vilela Fábio Jabur Heliana de Barros Conde Rodrigues Planejado com a antecedência e a calma com que, por vezes, julgamos poder dominar a vida, realizou-se, nos dias 27 e 28 de maio de 1998 (em meio, portanto, a uma greve que alterou todas as rotinas da Universidade), o I Encontro Clio-Psyché - Histórias da Psicologia no Brasil. Tratando-se exatamente do desafio que Clio, a musa da história, representa quando interpela Psyché - personificação grega da alma humana -, o momento aparentemente inadequado acabou por se constituir em um desafio às temporalidades instituídas: não obstante as dificuldades quanto à divulgação do evento, cerca de sessenta pessoas inscreveram-se para assistir às mesas redondas e palestras; doze comunicações foram apresentadas nos espaços reservados à exposição de trabalhos de pesquisa. Com tudo isso, instaurou-se um instigante tempo crítico para todos os presentes. Seja na história de vida do Prof. Antonio Gomes Penna, que nos falou sobre sua trajetória enquanto docente de Psicologia desde os primórdios de nossa disciplina no Rio de Janeiro; seja nas três mesas redondas versando, respectivamente, sobre os procedimentos historiográficos (entre o método e a ficção), a formação de psicólogos (entre a continuidade e a ruptura) e as transformações dos jogos de verdade que, a cada momento, constituem os saberes psi (das quais participaram professores de história, antropologia, psicologia e serviço social, tanto da própria UERJ quanto de outros estabelecimentos universitários); seja nas sessões de comunicações, nas quais bolsistas de Iniciação Científica, mestrandos e doutorandos de diferentes áreas e programas trouxeram à cena o desafio da historicização radical das práticas psicológicas; seja, finalmente, na palestra de encerramento, em que a Profa. Maria Helena Souza Patto, docente da USP, nos contemplou com suas agudas observações sobre a Psicologia no período da Primeira República brasileira, os dois dias do evento se constituíram em um dispositivo de publicização daqueles trabalhos que têm procurado reconstruir a(s) história(s) das teorias e práticas psi entre nós, favorecendo, deste modo, a constituição de modos menos intimistas e naturalizados de pensar e fazer Psicologia. A presente publicação decorre, exatamente, da necessidade de ampliar os efeitos deste encontro intempestivo. O leitor encontrará nas páginas que se seguem, revisados e transformados em artigos, todos os trabalhos então apresentados e debatidos, distribuídos em cinco seções: (1) depoimento; (2) história e psicologia; (3) formação, ação e profissão; (4) jogos de verdade e saberes psi; (5) psicologia, história e educação. Esta organização reproduz, aproximadamente, a do próprio evento, eliminando, no entanto, a distinção que aquele mantinha entre “exposições”, “mesas redondas” e “comunicações”. Pois mais uma das surpresas do encontro entre Clio e Psyché foram a qualidade e o rigor generalizados de todas as apresentações, o que nos leva, inclusive, a repensar nossas formas tradicionais de organizar reuniões acadêmicas, que estabelecem a priori hierarquias entre os momentos e os participantes. Neste sentido, julgamos que este livro faz mais justiça à produção efetiva dos autores, dando corpo exatamente àquele desejável desarranjo institucional que Clio provoca quanto a muitos de nossos pressupostos e garantias. O que de mais importante tem a história provocado no povo “psi”, afinal, senão uma contingenciação absoluta daquilo que até então costumávamos tomar como essencial ou necessário? Ou, em outras palavras, senão o arrancar-nos dos limites do tempo
  • 6. 6 presente - no qual somos elementos -, lançando-nos na aventura do atual, do além do nosso tempo - quando somos feitos atores -, e tudo isto, exatamente, através do cuidadoso trabalho com a temporalidade? Dentre nós, Heliana e Ana têm vindo trabalhando em suas próprias perspectivas há algum tempo. Diferentes, sem dúvida. Mas aproximadas por experiências de trabalho conjunto - em que se busca uma distribuição mais microscópica do poder - e por uma rejeição, muitas vezes “epitelial”, à naturalização com que a Psicologia costuma sujeitar seu objeto. Na Psicologia, todavia, este caminho costuma ser solitário. A realização do Encontro possibilitou o “encontro” de um novo parceiro, Fabio, transformando o “nós”, de dual, em tríptico. E nos permitiu também exorcizar temores e sustentar a constituição de um núcleo, denominado simplesmente Clio-Psyché. Ou seja, supomos que o encontro dessas duas figuras mitológicas - que permeiam nosso pensamento ocidental - nos permite a compreensão mais viva do tempo atual, não restrito ao presente. Nesse tempo, sempre social, Mnemosine obriga que se recorde da construção coletiva do Encontro: Hildeberto Vieira Martins, Leila de Andrade Oliveira, Karina Pereira Pinto, Ricardo Abidala Keide, Vanessa Soares de Oliveira Castro, Gabriela Salomão Alves Pinho, Bruno Vitali - bolsistas e ex-bolsistas - constituíram conosco uma equipe em que trabalho e prazer se mesclaram com sucesso.
  • 7. 7 Parte I – Depoimento MINHA CAMINHADA NA PSICOLOGIA Antônio Gomes Penna1 Gostaria que os que venham a ler este texto não o recebam como tendo por meta revelar o que foi minha vida profissional. Na verdade, isso pouco importa. Importa sim que, na condição de testemunha ocular e através de meu próprio itinerário, lhes possa apresentar uma visão panorâmica do que foram os últimos cinqüenta anos de psicologia em nosso país e como, particularmente, eu os vivi. Começaria por confessar que o mundo da cultura abriu-se para mim quando andava pelos meus dezessete anos. Estava, a essa altura, começando um curso de Economia e foi nesse curso que conheci o professor que teve papel decisivo em minha vida. Era professor de Economia Política, mas, na verdade, era muito mais do que isso. De fato, era um dos professores de maior cultura que conheci. Seu nome: David Peres. Suas aulas, extremamente brilhantes e tematicamente variadas, geraram em mim o desejo de lhe seguir os passos. Seis anos depois iniciei-me no magistério lecionando História da Economia. A essa altura já possuía o curso de Economia, na época, em fase inicial entre nós. Lecionei-a durante cinco anos e, ainda hoje, recordo-me do programa que redigi para esse curso, assim como da bibliografia por mim utilizada. Do programa, constava uma análise da economia primitiva. Para cobri-la, recorri ao clássico texto de Thurnswald, grande etnólogo, intitulado “Economia Primitiva”. Li-a e estudei-a numa tradução francesa. Também tirei muito proveito de um bom trabalho publicado por um etnólogo argentino, chamado Imbelloni. Seu livro intitulava-se “Epítome de Culturologia” e nele Imbelloni expunha as grandes teses sustentadas pela Escola Histórico-cultural representada por Graebner e Schmidt. O terceiro texto de que me aproveitei foi a tese de concurso apresentada na Faculdade Nacional de Direito, por Alceu de Amoroso Lima, sob o título “Economia pré-política”. Como quarto texto, recorri ao clássico “A origem da família, do Estado e da propriedade privada” de F. Engels. O segundo grande tema desse curso consistia numa apresentação da economia grega e da economia romana e estava praticamente centrado nas grandes tentativas de Agis e Cleômenes, na Grécia, e de Tibério e Caio Graco, em Roma, objetivando a realização de uma reforma agrária. Problema velho, como a História nos demonstra. Recordo-me da ênfase que concedia ao fato de que, na época de Tibério, a Itália pertencia a sete famílias romanas. Para esse tópico servi-me muito da “História do Socialismo e das lutas sociais”, de Max Beer. O terceiro tema estava centrado no estudo da economia medieval. O estudo do sistema feudal, da condição dos servos de gleba e das corporações de ofício, constituía o núcleo desse tópico. Lembro-me do texto de Henri See; da “Introdução à Economia Moderna”, de Alceu de Amoroso Lima; e da brilhante tese apresentada por Leônidas de Rezende para a disputa da cátedra de Economia Política da antiga Faculdade Nacional de Direito da extinta Universidade do Brasil. Especialmente o livro de Leônidas de Rezende, centrado em teses marxistas e as comparando com as concepções positivistas e com as doutrinas expressivas do Cristianismo primitivo, revelou-se básico para todo o curso que planejei e, por igual, a já mencionada “História do Socialismo e das Lutas Sociais”, de Max Beer. Vale que se ressalte o fato de que no texto de Leônidas de Rezende registrava-se belo exame das condições que determinaram o surgimento da “economia capitalista”, 1 Professor Emérito do Instituto de Psicologia da UFRJ.
  • 8. 8 hoje preferencialmente designada “economia de mercado”. Na verdade, mostrava-se que esse sistema não foi concebido por nenhum teórico; antes, surgiu do desenvolvimento das atividades produtivas fora dos muros das cidades e, conseqüentemente, fora do controle das corporações de ofício. Precisamente, o quarto tema cobria toda a economia moderna e contemporânea, apontando para as três grandes fases do sistema capitalista: a do capitalismo comercial, a do industrial e a do financeiro, este, de resto, identificado com a política imperialista. Por volta de 1942 iniciei minha atividade como professor do Instituto La-Fayette, colégio onde realizei meus estudos primários e secundários. Nele lecionei História, Psicologia e Filosofia por vários anos. Em 1944 passei a integrar, na condição de assistente, o Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, fundada por La-Fayette Côrtes, em 1939, no Instituto La-Fayette, lecionando a disciplina Psicologia Geral. Permaneci nessa função até 1946, quando dela me afastei. Assinale-se que, em 1944, concluí meu curso de Direito na Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciando, já em 1945, o curso de Filosofia na saudosa Faculdade Nacional de Filosofia, da mesma Universidade. Ao concluir o curso, em 1948, fui insistentemente convidado para assistente da cadeira de História da Filosofia pelo eminente Prof. Vieira Pinto e, igualmente, pelo eminente Prof. Nilton Campos. Obviamente optei pela Psicologia, que era a Cadeira ocupada por este último professor. Assumi essa função em 1948, mas minha nomeação só ocorreu em maio de 1949. Isso significou que trabalhei durante todo o ano de 1948 sem receber qualquer remuneração. Por certo, foi na Faculdade Nacional de Filosofia que encontrei meus mais importantes professores. Destaco, dentre eles, o Professor Maurilio Teixeira Leite Penido, de resto, ex-professor de psicologia da religião na Universidade de Friburgo, na Suíça, e considerado como um dos maiores teólogos contemporâneos; o professor René Poirier, que lecionou Lógica e Filosofia da Ciência e que, na Universidade de Paris, sucedeu a A . Lalande, de quem foi aluno; o professor Nilton Campos, ilustre psiquiatra e que foi o maior dos discípulos preparados por Waclaw Radecki e, finalmente, o professor Vieira Pinto, grande professor de História da Filosofia. Obviamente, os que mais me influenciaram foram o Professor Penido, ao meu ver a maior cabeça filosófica que o Brasil já teve, e o Professor Nilton Campos, face ao imenso apoio que me proporcionou. Com ele, efetivamente, trabalhei como assistente, de 1948 até 1963, quando veio a falecer. Em 1951, também com ele colaborei no Instituto de Psicologia, cuja direção ele assumira em 1948, em decorrência da conquista da cátedra de Psicologia Geral. Esta cátedra fora ocupada antes pelo ilustre professor André Ombredane, que fora contratado para assumi-la e que retornou à França onde esperava ocupar uma Cátedra no Sorbonne, fato que, efetivamente, não aconteceu. De sua obra mais importante, intitulada “L’Aphasie et l’élaboration de la pensée explicite” utilizei-me com imenso proveito em meus cursos sobre “psicolingüística”. Na realidade, era a patologia da linguagem seu tema predileto e sobre o qual revelava imensa competência. No Instituto de Psicologia permaneci de 1951 a 1958, quando pedi demissão face a minha nomeação, em decorrência de concurso a que me submetera, para professor de Psicologia Educacional no Instituto de Educação, que fora fundado por Anísio Teixeira e organizado e dirigido por Lourenço Filho. Também em 1950 retornei à já então Universidade do Rio de Janeiro, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para assumir, interinamente, a cátedra de Psicologia Educacional, da qual era catedrático efetivo o professor Lourenço Filho. Na mesma ocasião assumi, também, a cátedra interina de Psicologia Geral que integrava o Curso de Filosofia, nela permanecendo até 1970, quando ocorreu minha aposentadoria, face a episódio que relatarei mais adiante. Somava, a essa altura, 28 anos e meio de atividades docentes, faltando-me, para a aposentadoria por tempo de serviço, apenas ano e meio. A aposentadoria que requeri, denominada de especial, era concedida
  • 9. 9 àqueles que já tivessem vinte e cinco anos de trabalho. Eu tinha mais três anos e meio e já estava, a essa altura, com cinqüenta e três anos de idade. Importa assinalar que, em meus muitos anos de Universidade do Rio de Janeiro, realizei duas docências livres. A primeira, na qual me inscrevera em 1955, só a realizei em final de 1957, na cadeira de Psicologia Geral. A segunda, na disciplina Psicologia Educacional, eu a realizei em 1960. Penso que, até hoje, sou o único docente-livre dessa Universidade a ter alcançado dois títulos dessa natureza. Recordo, ainda, com muita alegria, que fui, nos onze primeiros anos de minhas atividades, portanto de 1950 a 1961, onze vezes paraninfo das turmas que concluíram o curso de Filosofia. Recordo, ainda, que, durante minha passagem por esta Universidade, reuni, em minha casa, um grupo de excelentes alunos, ministrando-lhes aulas de filosofia. Dava-as pelo puro prazer de vivermos juntos a alegria da reflexão centrada nos grandes problemas metafísicos e epistemológicos. Dentre os que participaram desses encontros, cito José Guilherme Merquior, Luis Alfredo Garcia Roza, Clauze Ronald de Abreu, Maniusia Mota de Oliveira, Helcio Mendonça e outros, quase todos, posteriormente, professores desta Universidade e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vale, ainda, registrar minha passagem pelo Colégio Andrews. Nele fui professor de 1949 até 1957 e a ele retornei, por curto período, quando da implantação das chamadas classes experimentais. Nesse período, lecionei psicologia, filosofia, sociologia e economia. Cheguei a ser convidado, em 1957, para assumir a direção do Colégio, convite que, por muitas razões ligadas a meus projetos de vida, declinei. De qualquer forma, registro que minha passagem por esse Colégio me foi muito grata. Sempre fui extremamente apoiado pelo seu ilustre Diretor, o professor Carlos Flexa Ribeiro, de resto brilhante professor de História da Arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e, posteriormente, Secretário de Educação na administração do Governador Carlos Lacerda. Registro que, a seu pedido, cheguei a dar dois cursos para o próprio corpo docente do Colégio, um deles, inclusive, com a honrosa presença de Anísio Teixeira, sem qualquer dúvida o maior educador que nosso país teve. No Instituto de Educação permaneci de 1958 a 1963. Em 1964, todavia, fui transferido para a recém-fundada Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), hoje integrando esta Universidade. Nela lecionei, como um de seus professores fundadores, a disciplina Teoria da Percepção. Dirigido pelo ilustre e saudoso arquiteto M. Roberto, recordo-me dos professores que comigo iniciaram as atividades dessa Escola. Cito o professor Bergmüller, o professor Euryalo Cannabrava e o professor Flávio de Aquino. No que se refere a Cannabrava, não custa lembrar ter sido um dos mineiros do grupo a que pertencia Carlos Drumond de Andrade e um dos que freqüentaram os cursos de Waclaw Radecki, na Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro. Foi, também, um dos primeiros a integrarem a equipe organizada por Mira y López, no ISOP/FGV. Embora a especialidade de Cannabrava fosse a filosofia da matemática e não obstante ter sido, por concurso brilhante, professor de Filosofia do Colégio Pedro II, também lecionou Psicologia Educacional no Instituto de Educação. Vale, ainda, o registro de que, durante poucos anos, integrou a equipe dos programas de pós-graduação do ISOP/FGV. No que se refere a minhas atividades no ensino do Estado, registro que também lecionei, até minha aposentadoria, a disciplina Teoria da Percepção na Escola de Artes Visuais, já há alguns anos instalada no Parque Lage. Quando, em 1951, fui nomeado para o Instituto de Psicologia, sugeri ao Professor Nilton Campos a criação e edição de uma Revista, a que dei o nome de “Boletim do Instituto de Psicologia”. A idéia foi, de imediato, aceita, e sua publicação, iniciada ainda em 1951, estendeu-se até 1974 quando, por falta de apoio da Reitoria, deixou de ser editada. A coleção que deveria ter vinte e três volumes, na verdade só conta com vinte e dois. O primeiro volume, produzido em mimeógrafo e composto de doze números, foi, logo em seguida, editado pela Oficina Gráfica da
  • 10. 10 Universidade e, por erro técnico, designado de “Anuário do Instituto de Psicologia”. Vale, ainda, o registro de que, pouco antes, o Instituto iniciara a publicação da série “Monografias Psicológicas”, e a mim coube publicar a de número 6, dedicada ao Behaviorismo. Intitulada “Notas sobre o Behaviorismo”, resumia o curso que ministrara em 1949, no segundo ano do curso de Filosofia, como parte do estudo das “teorias e sistemas psicológicos contemporâneos”. A boa acolhida do texto justificou convite da ilustre psiquiatra, Dra. Iracy Doyle, para que eu ministrasse curso sobre o mesmo tema na Sociedade de Psicanálise que fundara e dirigia, em perspectiva inspirada em Karen Horney e Clara Thompson, e onde dois brilhantes psiquiatras e psicanalistas com ela cooperavam. Possivelmente foram eles, os Doutores Horus Vital Brasil e Carlos Paes de Barros que, tendo assistido meu curso, sugeriram o convite para que eu o repetisse nessa Sociedade, de resto hoje conhecida como “Instituto Iracy Doyle”. Também em 1953 ocorreu o convite da Escola de Comando e Estado Maior da Aeronáutica (ECEMAR), sediada, então, na Ilha do Governador, para que o professor Nilton Campos ministrasse um curso de Psicologia Aplicada às Forças Armadas. Esse curso seria dado em 15 conferências. O convite foi aceito. Não obstante, poucos dias antes de seu início, o professor Nilton Campos pediu-me que o substituísse. Coube-me, então, realizar estas conferências, as quais justificaram, por sua boa acolhida, que o convite se renovasse até 1968. Por todo esse tempo, meu “Manual de Psicologia Aplicada às Forças Armadas” foi leitura obrigatória para todos os oficiais superiores da Aeronáutica, até 1970. Assinalo que, depois de 1968, os convites cessaram. As razões, eu as apresentarei mais adiante. De qualquer modo, vale que se registre que minha participação na ECEMAR representou, no fundo, uma retomada de contato dos militares com a psicologia, na medida em que, com ela, as Forças Armadas tiveram o primeiro contato através de Waclaw Radecki que, sem dúvida, foi a fonte geradora do Instituto de Psicologia da UFRJ. Ressalte-se que minha contribuição na área do ensino militar registrou-se, ainda, na Escola de Aeronáutica, então sediada no Campo dos Afonsos. De fato, diante do sucesso do curso de conferências que ministrei na ECEMAR, um dos oficiais mais entusiasmados com a importância da Psicologia na formação de aviadores, ao assumir o comando dessa Escola, incluiu-a no seu currículo e logo me convidou para que eu a implantasse, responsabilizando-me pelo seu ensino. Aceitei o convite e permaneci, creio, dois anos na Escola. Indiquei, em seguida, um ex-aluno meu para assumi-la. Não me restringi apenas ao ensino na área da aeronáutica. De fato, em fins da década de cinqüenta ou começos da de sessenta, fui convidado para ministrar cursos de psicologia da aprendizagem, da percepção, da linguagem, etc. para os oficiais do Exército que se preparavam para o exercício da função de ensino. Suponho que minha indicação tenha partido do então Major Hélcio de Mendonça, meu brilhante ex-aluno e fidelíssimo amigo, que estava ligado a esse curso. Inicialmente instalado na antiga sede do Ministério da Guerra, na Praça da República, foi, posteriormente, transferido para o Forte Duque de Caxias, no Leme. Lá, dei continuidade à minha participação no curso, já então ministrado no Centro de Estudos de Pessoal e aberto a oficiais de outras armas. Nesse Centro, minha participação foi extremamente intensa, sendo-me, inclusive, solicitado que fosse a São Paulo adquirir caixas de condicionamento operante para instalá-las em Laboratório de Pesquisas que estava sendo objeto de instalação. De repente, “rumores acerca das minhas atividades subversivas” determinaram meu afastamento. Registro, entretanto, que lá deixei grandes amigos, um deles, inclusive, brilhante oficial que comandou o Centro na fase em que surgiram os tais “rumores” a meu respeito. Em 1963, meu grande amigo e mestre, Professor Nilton Campos, adoeceu, atingido por problemas sérios. Logo veio a falecer. Com sua morte, o Instituto de Psicologia passou a ser dirigido interinamente pelo meu querido e fraterno amigo, Professor Eliezer Schneider. A mim coube assumir interinamente a cátedra de Psicologia Geral do Departamento de Filosofia da
  • 11. 11 Faculdade Nacional de Filosofia. Juntos, então, iniciamos uma cruzada visando a criação, na Faculdade Nacional de Filosofia, do Curso de Psicologia. Foi uma dura cruzada. Contra a criação do curso estavam os psiquiatras. No final, acabamos vencendo. Claro que com severas obrigações. Assim, por exemplo, alegando-se falta de espaço no edifício onde funcionava a Faculdade Nacional de Filosofia, foi exigido que o professor Eliezer Schneider nos garantisse a única sala de aula disponível na sede do Instituto, por sinal ocupando seis salas do edifício de escritórios comerciais, conhecido como “Nilomex”, situado na esquina da rua México com Nilo Peçanha. Quanto a mim, teria que organizar o curso com professores da própria F.N.F. e com os psicólogos do Instituto. Em 1964, foi, então, criado o curso e o Departamento de Psicologia que deveria ministrá-lo, sendo eu, na condição de catedrático interino, designado para dirigi-lo. Na direção do curso permaneci até fins de 1967, quando se deu a extinção da Faculdade Nacional de Filosofia. Passou, então, o curso a ser dirigido pelo Instituto de Psicologia, na verdade, até então, apenas um “órgão suplementar” destinado a oferecer cooperação às cátedras de Psicologia Geral e de Psicologia Educacional da F.N.F.. Uma terceira cátedra, ainda, teria condições de exigir suporte do Instituto. Refiro-me à cátedra de Psicologia aplicada ao desporto, integrante do currículo da Escola de Educação Física e Desporto, da Universidade. Vale assinalar que, como órgão suplementar, não dispunha o Instituto de um Regimento que o habilitasse a exercer as funções de uma Faculdade, ou seja, de uma Escola. Coube a mim, numa passagem transitória pela direção do Instituto, implantar a Congregação, organizar os Departamentos e, com a cooperação de minha mulher, Professora Marion Merlone dos Santos Penna, organizar a Divisão de Psicologia Aplicada. Também foi por minha iniciativa que o Instituto teve o seu regimento modificado e foram realizados dois convênios: com o Detran e com o Colégio Santo Inácio. Vale ressaltar que com a implantação do Departamento de Psicologia e o funcionamento devidamente autorizado do curso de Psicologia, realizou-se o primeiro vestibular. Planejamos o curso para 40 alunos, face a termos, apenas, uma única sala disponível. Por decreto assinado pelo então Presidente João Goulart, as vagas foram duplicadas e tivemos que, em princípio, receber 80 alunos. No final, lançando mão de recursos judiciários, mais 40 alunos entraram no curso. Com 120 alunos e apenas uma sala com 40 cadeiras, tomei a iniciativa de implantar dois turnos; um pela manhã e outro à tarde. Ainda assim, inicialmente, tínhamos que colocar os excedentes num corredor ligado à sala. Assim correu o primeiro ano. Logo, entretanto, o curso foi transferido para a Praia Vermelha, onde ocupamos prédio que, inclusive, dispunha de belo auditório para mais de 120 espectadores. Mantivemos, de qualquer modo, os dois turnos funcionando. Já na administração que resultou de um processo de intervenção no Instituto, os dois turnos foram extintos, implantando-se o regime de tempo integral, com aulas que se distribuíam das 7:00 da manhã até às 18:00 da tarde. Sem dúvida, com sérios problemas para os estudantes. Problema inesperado apresentou-se, já no final de 1967. Organizava-se o currículo do 5o ano e tínhamos a oferecer a disciplina Teoria e Técnicas Psicoterápicas. Inesperadamente vi-me diante de sério impasse. O representante dos docentes-livres no Conselho Universitário, de resto médico- psiquiatra e grande psicanalista, expressando ponto de vista do Professor catedrático de Psiquiatria, então Diretor do Instituto de Psiquiatria, nos recusava o direito de oferecer a citada disciplina. Alegava que a atividade psicoterapêutica era de exclusiva competência médica e não se podia admitir seu ensino em uma unidade não vinculada à Faculdade de Medicina. Mostrei a impossibilidade de se aceitar esse argumento, na medida em que o oferecimento dessa disciplina nos cursos de psicologia decorria de exigência legal. Diante desse argumento, determinou o Reitor que o secretário do Conselho providenciasse o texto e, diante da evidência, concedeu autorização para que a disciplina fosse ministrada no Instituto de Psicologia. Em 1970, fui convidado pela direção do ISOP/FGV para participar de uma Comissão a ser presidida pelo Professor Lourenço Filho, objetivando a implantação, nessa unidade da FGV, de um programa de pós-graduação em Psicologia Aplicada, com quatro áreas de concentração.
  • 12. 12 Infelizmente o eminente Mestre faleceu e as reuniões que se seguiram, por decisão unânime, deixaram de ter alguém ocupando a função vaga. Concluídos os estudos de organização e de seleção dos professores, fui, em janeiro de 1971, nomeado pelo ilustre Presidente da FGV, Chefe do Centro de Pós-graduação e Coordenador dos programas devidamente implantados. Nesta função permaneci durante 22 anos, somente sendo dispensado em novembro de 1992, quando do encerramento das atividades do Centro de Pós-graduação. Precisamente em 1971 e poucas semanas após minha nomeação para o ISOP/FGV, fui procurado pelo Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Gama Filho para ocupar o cargo de Vice-Diretor, estando, de resto, já no exercício da Chefia do Departamento de Psicologia. Nesse cargo e, ainda posteriormente, na Direção do Departamento de Psicologia, permaneci até 1980, quando deles me afastei. Em 1987, fui aposentado compulsoriamente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, na medida em que completara 70 anos. Ao me aposentarem compulsoriamente, tinha 38 anos de atividade, nos quais se somavam as três licenças- prêmio que jamais gozei e que, precisamente por isso, contavam em dobro, alcançando três anos. O total, portanto, chegou a 41 anos de efetivo exercício do magistério na Universidade, não computado o ano de 1948, quando ministrei cursos nos dois períodos letivos sem receber qualquer remuneração. Após minha aposentadoria, recebi o título de Professor Emérito, fato que me ensejou retornar ao Instituto de Psicologia, colaborando por mais cinco anos nos programas de Pós- Graduação em Psicologia Cognitiva e em Psicologia Social e da Personalidade. Ao todo, dediquei à Universidade Federal do Rio de Janeiro 47 anos de sala de aula, sem contar com o ano de 1948. Com ele, 48 anos. Obviamente, nunca fui um “vagabundo”. Ao longo dessa minha intensa atividade, produzi, até agora, 15 livros, uma monografia, um Manual de Psicologia Aplicada às Forças Armadas, 53 verbetes publicados no Enciclopédia Mirador Internacional e cerca de 100 artigos publicados em revistas especializadas. Há um ano espero seja editado meu 16o livro, que tem um título muito sugestivo: “Introdução à Filosofia da Religião”. Estou informado de que, afinal, sairá dentro de muito pouco tempo. Adianto ainda que trabalho, no momento, no meu 17o livro, que deverá ser uma “Introdução à Filosofia”, na qual cada capítulo está dedicado a um de meus mestres na saudosa Faculdade Nacional de Filosofia. Agrada- me muito deixar bem claro que jamais pleiteei ou recebi qualquer ajuda financeira, qualquer bolsa, de qualquer das instituições destinadas ao fomento de atividades científicas. Sempre, apenas, contei com meus salários, minha aplicação ao trabalho e muita disciplina. Nada mais. Importa assinalar que toda essa trajetória foi muito marcada por desagradável turbulência. Nunca contei com “céu de brigadeiro” ou “mar de almirante”. Na verdade, minha caminhada nunca foi tranqüila. Tive muitos obstáculos pela frente, os quais, todavia, não impediram que eu prosseguisse na busca de meus objetivos. Penso que essa turbulência começa nos fins dos anos quarenta e se revela presente em dois momentos: o primeiro, quando aceitei integrar chapa para disputa da direção do Sindicato de Professores; a segunda, quando assinei documento protestando contra o fechamento do Partido Comunista. Vale que se esclareça que nunca participei de nenhum partido político. Ocorre que, no caso da chapa que disputaria as eleições para a direção do Sindicato, havia pelo menos um de meus colegas, por sinal dos mais íntegros que conheci, que jamais escondeu sua ligação com o Partido. Pois a chapa foi considerada tipicamente comunista e todos os seus membros registrados no DOPS. Em 1968, participei da marcha dos Cem Mil. Estava à frente dos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, juntamente com Maria Yedda Linhares e José Américo Peçanha. Ao meu lado, também minha mulher, Marion Merlone dos Santos. Logo em seguida houve a célebre reunião no Colégio André Maurois, sob a presidência da Professora Henriette Amado. Compareci à reunião e logo fui convidado para participar da mesa. Na medida em que eu era um professor catedrático, imagino que pensaram que minha presença poderia dar mais peso à reunião. Ao seu término, produziu-se um documento de protesto contra as violências cometidas contra estudantes. Fui um dos que assinaram o documento. Integrei, ainda, o
  • 13. 13 grupo de professores que levou o citado documento ao Palácio da Cultura, entregando-o às autoridades do Ministério da Educação. Do grupo participavam o professor Leite Lopes, a professora Maria Yedda Linhares e o professor José Américo Peçanha. Obviamente, todos fomos fotografados por imensa equipe de “jornalistas”, na verdade agentes do DOPS e de órgãos de segurança. Por essa altura fui convidado a inscrever-me num concurso para preenchimento de vaga de professor titular da Universidade Federal Fluminense. O convite partiu de meu amigo, Prof. Hans Ludwing Lippmann. Também o Professor Eliezer Schneider deveria inscrever-se no concurso para Adjunto. Fomos, entretanto, surpreendidos com a exigência de apresentação de “atestado de ideologia”. Solicitâmo-lo. Só nos concederam, todavia, após o encerramento do prazo das inscrições. Nessa altura eu já era professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Poderia, contudo, acumular as duas funções. Curiosamente meu atestado de ideologia indicava, simplesmente, “nada consta”. Em função do afastamento do Professor Carlos Sanchez de Queirós, na ocasião Diretor do Instituto de Psicologia, face a convite para participar da Escola Superior de Guerra, assumi interinamente a direção do Instituto. Foi, seguramente, um período muito duro. Durante minha gestão enfrentei vários problemas e sofri várias punições. A primeira, em decorrência do que foi considerado uma greve por motivos políticos contra um professor, colega meu. Lembro-me bem que o convoquei para uma reunião da qual participaram o professor Eliezer Schneider e o professor Octávio Soares Leite. Logo solicitei que ele nos mostrasse o programa da disciplina para a qual fora indicado. Surpreendentemente revelou-me que nunca o redigira. Indaguei-lhe acerca dos autores clássicos que dispunham de textos sobre o assunto. Respondeu-nos, ainda, que não conhecia nenhum, adiantando que ministrava suas aulas com base em sua experiência profissional. Diante da resposta, pedi-lhe, muito amistosamente, que me concedesse algum tempo de modo a que eu conseguisse dar uma solução política ao problema. Não aceitou a proposta, todavia, insistindo que eu deveria punir as duas turmas “em greve”, pois, do contrário, eu é que seria punido. Afinal, insistia em que a greve era puramente política. De fato, nunca o foi. O que os alunos solicitavam era um curso de nível mais elevado. Exigência absolutamente normal, pois essa é a obrigação de qualquer Universidade. Confesso que tentei por todos os meios quebrar o movimento. Apelei para alguns alunos com os quais mantinha maior aproximação e sabia que possuíam prestígio junto aos colegas que se recusavam a assistir às aulas. Minha idéia era a de evitar que o movimento fosse precisamente interpretado como expressivo em intenção política. Infelizmente não consegui êxito. Logo, entretanto, foi o professor Octávio Soares Leite nomeado Vice-Diretor do Instituto, fato que permitiu que eu me afastasse da busca da solução que desejava. De resto, em período de férias, aproveitei-as para acompanhar, juntamente com minha mulher, meu filho, Lincoln de Abreu Penna - posteriormente professor titular do Departamento de História do IFCS/UFRJ e hoje, já aposentado -, à Europa, onde deveria gozar de bolsa fornecida pelo Governo da França e realizar curso de pós- graduação na Universidade de Toulouse. Ele tinha estado quarenta e dois dias preso para interrogatório, na Ilha das Flores. Tendo sido Presidente do Diretório Central de Estudantes desta Universidade, exigiam dele nomes de colegas taxados de subversivos. Agindo com a integridade que sempre lhe foi peculiar, recusou-se a qualquer cooperação com o CENIMAR. Lembro-me de que, quando liberado, ouvi, com muito orgulho, do Capitão de Mar e Guerra que presidia o inquérito, que ele tinha sido um dos presos mais dignos que passaram pelo órgão de segurança da Marinha. Por ocasião de meu retorno, estranhei a presença de dois alunos meus, do Instituto de Psicologia, à minha espera no aeroporto. Eram, precisamente, João Alberto Barreto e José Hesketh. Lá estavam, segundo me esclareceram, para comunicar-me que eu fora punido por falta de exação no cumprimento de minhas obrigações. A falta de exação era definida como resultante do fato de não ter aplicado a punição aos “grevistas”. Por essa altura, soube que alguém, devidamente
  • 14. 14 interrogado pelo agente de segurança que atuava na Reitoria, apontou vários alunos que foram sumariamente expulsos da Universidade. Tanto eu como minha mulher, a Professora Marion Merlone dos Santos Penna, também tínhamos sido ouvidos. Para nosso bem, contudo, os depoimentos de todos os interrogados eram rigorosamente tomados por datilógrafo e, ao fim, todos recebiam cópias de seu depoimento. Guardo o documento que me foi entregue, assim como o de minha mulher. Vale assinalar que, em função da punição que sofri, fui também chamado ao DOPS para prestar declarações. Recordo-me de que fui atendido por um Delegado que logo me perguntou por que não punira os grevistas. Respondi-lhe que não o fizera por dois motivos: o primeiro decorria da ausência de qualquer objetivo político por parte dos alunos; de fato, o que desejavam eram boas aulas. O segundo pelo fato de que qualquer punição que fosse por mim injustamente aplicada aos alunos desencadearia greve em toda a Universidade, e o nome de meu colega, por sinal muito bem sucedido em suas atividades profissionais, certamente seria posto em destaque com acusações graves em todos os Jornais. Afinal, meu procedimento fora o mais correto e bem clara a intenção de protegê-lo. Ao ouvir minha resposta, lembro-me bem que o Delegado sorriu e me confidenciou: essa experiência eu mesmo já vivi aqui no DOPS! Cabe ainda lembrar que no caso da disciplina que gerou o movimento definido como de greve política e no caso do professor que a lecionara, a solução definitiva acabou sendo por mim mesmo dada, quando da primeira Congregação realizada após esses turbulentos episódios e já presidida pelo Diretor nomeado de fora dos quadros docentes do Instituto. Nela, passei às mãos de meu colega um programa que eu mesmo redigira, juntamente com a bibliografia adequada para que ele apresentasse durante a sessão, ao mesmo tempo em que sugeri que a citada disciplina, a ser dada em um ano, tivesse sua duração reduzida para um só período e fosse considerada concluída. Ao término dessa Congregação, o professor Eliezer Schneider, que também fora punido por outro motivo, solicitou que a Congregação se pronunciasse e nos desse um voto de solidariedade. Infelizmente a proposta caiu no vazio. A ela seguiu-se um silêncio tumular. Uma segunda punição ocorreu mais adiante. Esta, às escondidas, me foi anunciada através de ofício sigiloso recebido pelo novo Diretor, que designou o administrador do Instituto e meu velho amigo a passá-lo às minhas mãos. Nesse ofício, diante de uma acusação anônima de que eu faltava muito às aulas, recebia a informação de que, como medida punitiva, passava do regime de 24 horas para o de 12 horas, obviamente com perdas salariais. Registre-se, mais uma vez, que a essa altura eu era o único titular concursado do Instituto de Psicologia. Sem qualquer dúvida, era também o professor com maior carga horária na época, inclusive lecionando Teoria da Percepção na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, no Fundão. O asqueroso ofício informava que minha mulher, a professora Marion Merlone dos Santos Penna, também sofria o mesmo corte em seu regime de trabalho. Uma terceira punição ocorreu em 1970. Indicado para coordenar o vestibular do Instituto, pensei em aperfeiçoar mais a seleção dos candidatos através de mudanças a se introduzirem na prova de português. Convidei, então, para organizá-la, a Professora Dirce Riedel. Ela própria não pôde aceitar o convite, mas prontificou-se a compor uma banca de três professores altamente competentes para redação da prova. Pois foi essa banca que, inteligentemente, escolheu como tema da parte referente à redação, a angustiada pergunta do Papa em sua alocução do fim da década de sessenta: “Para onde caminha a humanidade?”. E tal como o fizeram a Imprensa e as televisões, uma seqüência de nomes e acontecimentos significativos eram apresentados para efeito de reflexão. Claro que nessa seqüência apareciam os nomes de Luther King, Fidel Castro, Che Guevara, poder negro, libertação das colônias africanas, etc. A prova foi muito boa e obviamente difícil, pois, em geral, os candidatos eram adestrados nos cursinhos para redigirem textos sobre temas banais que, na verdade, nada solicitavam em termos da reflexão. Pois, não deu outra. Fui acusado de permitir a
  • 15. 15 realização de uma prova na qual apareciam 50% de palavras subversivas. A punição foi sugerida por professores da própria Universidade, meus colegas, portanto. Um quarto episódio ocorreu quando, estando eu na direção interina do Instituto, fui alertado pelo ilustre Reitor que fechasse rapidamente os portões do Instituto, dado que ele fora avisado de que um grande grupo de alunos encaminhava-se para a nossa Unidade, objetivando realizar reunião política em nosso auditório. Dirigi-me, então, até os portões e logo percebi que estava diante do grupo, já, a essa altura, a aproximadamente dez metros da entrada. Logo mudei a conduta recomendada pelo ilustre Reitor. Ao invés de fechá-los, abri inteiramente os portões e os convidei para o auditório. Chamei, entretanto, uns três integrantes do grupo e com eles mantive uma conversa franca. Solicitei que realizassem a reunião desejada em absoluta ordem e, de minha parte, eu lhes garantia segurança. Tudo acertado, iniciaram a reunião às 9:30 aproximadamente e só a concluíram por volta das 16:30. Como prometeram, a reunião transcorreu na mais perfeita ordem. Registro que nesse dia permaneci só, ao lado do administrador da Unidade. Não tive a companhia de qualquer colega. Sei bem que os tempos eram duros. Mas não deu outra. Foi instalada Comissão de Inquérito. O Presidente era um professor bastante conhecido. Fui chamado para prestar informação. O que o presidente do inquérito desejava é que eu fornecesse nomes. Respondi que, efetivamente, não conhecia ninguém, pois o grupo era constituído de alunos de outras unidades. Adiantava, entretanto, que a reunião fora pacífica e apenas foram discutidos problemas ligados à estrutura da Universidade. Impaciente, ele me cortava a palavra, insistindo em que isso não interessava. O que interessava eram nomes. Claro que a obsessão pela aplicação de punições era terrível. De todo esse período, lembro-me de uma frase pronunciada por Djacir de Menezes, quando exerceu a Reitoria da Universidade. Pressionado para me aplicar pena que poderia ser a mais severa, deu um soco na mesa e repetiu a célebre frase de Lutero: “Irei até aqui e daqui não passarei!” A grande ameaça ocorreu em 1973. Às vésperas do dia dos pais, recebi telefonema do Ministério da Educação, através do Palácio da Cultura, comunicando-me que deveria responder a processo instalado em Brasília, por determinação do Ministro Jarbas Passarinho, objetivando apenas supostas atividades subversivas e recomendando minha aposentadoria. O investigante nomeado, de resto, professor desta Universidade e de outras aqui no Rio, desculpou-se por me passar a notícia às vésperas de dia tão significativo e marcou minha ida ao Palácio da Cultura, para efeito de tomar conhecimento das acusações registradas contra mim, para quinze dias após. No prazo marcado, acompanhado de minha mulher, dirigi-me ao Palácio e logo fui recebido pelo meu investigante. Ressalte-se que a recepção foi em extremo cordial. Ofereceu-me, inclusive, um copo d`água para que eu me descontraísse, dado que ele leria as acusações que contra mim provinham dos vários órgãos de segurança. Podia, inclusive, anotá-las, pois que a mim caberia contestá-las. Soube, então, que o processo fora instaurado em Brasília, por determinação do Ministro Jarbas Passarinho, não obstante já ter sido eu absolvido por duas Comissões de Inquérito, ambas, de resto, presididas pelo ilustre embaixador Meira Penna, em Brasília, sem que eu tivesse sido notificado. Nas duas Comissões contei sempre com o voto de Minerva dado pelo embaixador, que firmara sua posição diante das informações que recolhera, no Rio, de professores de várias Universidades. Vale o registro de que o sobrenome Penna, do Embaixador, em nada tinha a ver com o sobrenome que recebi de meu pai. As acusações de que tomei conhecimento e que registrei, para refutá-las, eram tolas. Uma delas ressaltava o estranho prestígio de que eu dispunha junto aos meus colegas do Instituto de Psicologia. Por certo, desconheciam que a grande maioria era constituída de ex-alunos meus. Outra, referia-se ao fato de que eu era visto sempre conversando com alunos. Outra, a de que eu era pai de um comunista que, por sua vez, era filho de um comunista. As acusações mais incríveis apontavam- me como um marxista que fazia suas pregações através de dois sistemas que, na verdade, eram apenas disfarces da doutrina marxista. Tais sistemas seriam o gestaltismo e a fenomenologia de
  • 16. 16 Husserl! Possivelmente, a que pesava mais era a de que eu falava mal dos militares. Esqueceram-se de que fui, por dezessete anos seguidos, professor-conferencista da ECEMAR, e de que gozava de largo prestígio entre os oficiais que faziam o curso de Estado Maior. Também no CEP, fiz excelentes amigos entre os oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica. O último dos Comandantes da citada instituição até hoje é meu amigo, inclusive concedendo-me a honra de sua presença na homenagem que me foi prestada pelo Instituto de Psicologia quando completei oitenta anos de vida. O que pesava efetivamente contra mim era o ter assinado o documento redigido após a reunião realizada no Colégio André Maurois, no qual se apontavam as autoridades como responsáveis pelas violências cometidas contra estudantes. De qualquer modo tive que apresentar atestados de amigos que afirmassem serem falsas as acusações registradas. Recebi muitos atestados e de todos guardo cópias que não me permitem esquecer os que não me faltaram nas duras horas que vivi. Faço, inclusive, questão de reproduzir, neste texto, um desses atestados, pelo que ele dignifica o seu signatário. Declaração Tendo tomado conhecimento das acusações que pesam sobre o Professor Antonio Gomes Penna, catedrático de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quanto às suas atividades no Instituto de Psicologia desta Universidade, tenho a declarar que: Durante os anos de 1961 a 1964, fui seu aluno no curso de filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara e posteriormente no curso de psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no período de 1964 a 1966, quando então fui convidado a colaborar, na qualidade de professor-auxiliar, na cadeira de Psicologia Geral e Experimental, colaboração esta que se mantém até a presente data. São portanto treze anos de convívio quase diário, primeiro como aluno e depois como colega de trabalho, o que me coloca numa posição privilegiada para atestar sobre sua conduta. Durante estes treze anos, jamais ouvi, dentro ou fora das salas de aula, palavra alguma do Professor Penna que justificasse a mais leve suspeita quanto a uma atividade político- partidária de sua parte, e muito menos de caráter marxista. Seus cursos foram orientados por um claro e inequívoco desejo de transmitir aos seus alunos uma formação filosófica e psicológica dentro de uma linha fenomenológico-gestaltista, o que pode ser comprovado por uma leitura de seus livros ou pelos programas e bibliografias de seus cursos. O que pude verificar durante estes anos, foi a incansável atividade de um homem que mais do que qualquer outro contribuiu para o estabelecimento de uma pesquisa científica no campo da Psicologia em nosso país. Como educador, como professor e pesquisador, assim como homem, o prof. Antonio Gomes Penna dignifica a Universidade brasileira e somente a inveja e o espírito patologicamente mesquinho de alguém, podem ter sido as fontes das referidas suspeitas. O exemplo que ele nos deu foi de honestidade, integridade moral e responsabilidade profissional. Se a conduta profissional do Prof. Penna é razão para alguma suspeita, muito me honraria que esta pairasse também sobre a minha pessoa, pois sempre que possível, não hesito em tomá-la como exemplo. Assinado - Luiz Alfredo Garcia Roza Prof. Adjunto da PUC e Prof. Auxiliar da UFRJ. Em 27 de agosto de 1973. Não posso deixar de consignar também a atitude rigorosamente correta de meu investigante. Desconhecendo o significado da Fenomenologia, em especial, decidiu tomar aulas particulares com o Prof. Vieira Pinto, com o objetivo de avaliar a possibilidade de, efetivamente, identificá-la com o marxismo. Registro, ainda, que depois de todas as suas investigações e no encerramento do inquérito, despediu-se de mim solicitando que, se possível, eu lhe desse alguma orientação para que produzisse sua tese de docência-livre e afirmando que ficaria muito honrado se eu lhe concedesse minha amizade. Obviamente, não lhe cito o nome. Sei que isso lhe desagradaria. Penso, ao
  • 17. 17 contrário, que seu nome até deveria ser sublinhado pela correção com que se conduziu na elaboração do inquérito. Para finalizar este aspecto altamente turbulento de minhas atividades acadêmicas e que, por igual, não esteve ausente nas de muitos de meus colegas, registro, ainda, três episódios bem significativos. O primeiro ocorreu em 1968, nesta Universidade, quando, aberto o concurso para preenchimento de vaga de titular na cadeira de Psicologia Geral, logo me inscrevi. Fui candidato único e, no caso, nomearam o Prof. Hans Ludwig Lippmann para proceder a uma espécie de exame de qualificação do texto que apresentei como tese. O ilustre professor logo apresentou parecer com os maiores elogios ao trabalho que examinara. Foi, então, nomeada a Banca Examinadora e marcado o início das provas para sete dias após a comunicação que recebi. Logo em seguida, todavia, recebi a informação de que o concurso tinha sido suspenso. Incrivelmente nunca me informaram a origem da ordem de suspendê-lo e as razões que a determinaram. Era Reitor nessa época o ilustre professor Dr. João Lyra Filho, irmão do igualmente ilustre General Tavares Lyra. Diante desse ato de total desconsideração, logo solicitei minha aposentadoria especial quando contava com a idade de 53 anos e 28 anos e meio de exercício de docência. O segundo ocorreu quando fui nomeado pelo Presidente da Fundação Getúlio Vargas para Coordenador dos programas de Pós-Graduação em Psicologia e Chefe do centro de Pós-Graduação do ISOP. Logo soube que o ilustre Presidente, Dr. Luís Simões Lopes, recebeu ofício sigiloso do representante do Ministério da Educação, de resto, um general, de que convinha fosse o ato da minha nomeação desfeito face a minha condição de subversivo. Diante do espanto do Dr. Simões Lopes, o Dr. João Carlos Vital reivindicou a solução do impasse. Dirigiu-se ao Palácio de Cultura e teve entrevista com o general. A acusação era de que eu falava mal dos militares e era constantemente visto conversando com estudantes. Segundo me relatou o Dr. João Carlos Vital, sua resposta foi a de que, no que se refere ao fato de eu ser visto conversando com os estudantes, o espantoso era não terem percebido que essa era minha obrigação. Ao ilustre general cabia, obviamente, também, conversar com militares. De qualquer modo, assumiu a responsabilidade, sem me conhecer, por minha nomeação. Efetivamente honro a sua memória ao registrar seu gesto, infelizmente muito raro na época. O terceiro episódio ocorreu na Universidade Gama Filho. Coincidentemente com a minha nomeação para o ISOP/FGV, fui também nomeado para cargo de direção nessa Universidade. Em decorrência disso, soube que o Ministro Gama Filho recebeu documento idêntico ao remetido à FGV e, tal como na FGV, fui mantido nas funções que me tinham sido oferecidas, por certo também mediante termo de responsabilidade. Todos esses episódios comprovam que não foi tranqüila minha longa caminhada profissional. Em seu transcurso, todavia, recebi também muitas provas de respeito pelo que realizei. O título de Prof. Emérito do IP/UFRJ foi dos que mais me agradaram. Não poderia encerrar este texto sem apontar para algumas das mais importantes figuras da psicologia, em relação às quais sempre me sinto em débito. Começaria por Radecki. Nunca o conheci, mas, como no famoso filme, sempre o amei. Na verdade, quando em 1925 assumiu a Chefia do Laboratório que fundou e organizou na Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, eu tinha apenas 8 anos de idade. Todavia, fui discípulo de dois de seus alunos: Jayme Grabois e Nilton Campos. Ambos, efetivamente, entraram na psicologia por suas mãos e viveram alguns anos sob sua influência. Nunca, todavia, me falaram sobre o mestre, no sentido de ressaltarem suas idéias e de esclarecerem a natureza do sistema psicológico que produzira e do qual ambos se consideravam impregnados: Nilton, no texto que publicou sobre a “Psicologia da vida Afetiva” e Grabois, no projeto de pesquisa que elaborou, junto com o prof. Euryalo Cannabrava, e que saiu publicado nos Anais, creio que de 1936. Na realidade, nenhum dos dois jamais me explicou o significado do famoso “discriminacionismo afetivo”. Tampouco, nenhum
  • 18. 18 dos dois me mostrou o exemplar que, obviamente, ambos possuíam, do “Tratado de Psicologia” que o grande mestre polonês publicou no Brasil. Grabois, certamente, me falou muito sobre os aspectos anedóticos da vida de seu professor. Jamais sobre suas contribuições no domínio da psicologia experimental. No caso de Nilton, seu silêncio cheguei a entender. Por ocasião da publicação de seu texto sobre a psicologia da vida afetiva, tendo-o dedicado a Köhler, que passava pelo Rio, deixou muito magoado o mestre que o encaminhara na Psicologia. Houve, então, inevitável rompimento. A reconciliação ocorreu bem mais tarde, quando ambos se encontraram em Congresso Internacional de Psicologia. Nessa ocasião, Nilton tomou a iniciativa de procurá-lo, chamando-o carinhosamente de “meu mestre”. Por ocasião da morte de Radecki, ocorrida em Montevidéu em 1953, Nilton redigiu curto mas muito elogioso necrológio. Da imagem que me foi traçada por Grabois, Radecki teria sido um homem muito sarcástico. Parece que tinha desprezo pelos que se dedicavam à psicologia aplicada. Nesse desprezo incluía o ilustre psicólogo suíço Léon Walther, que teve uma participação muito significativa no que se refere à implantação do que, na época, se definia como psicotécnica. Eis um nome que deve ser anotado pelos que se empenham no resgate da memória da psicologia. Recordo que, conforme o belo texto redigido por Pierre Bovet sobre a História do Instituto J. J. Rousseau, Léon Walther foi o primeiro psicólogo especializado em psicologia do trabalho diplomado pelo Instituto e, posteriormente, Chefe de Departamento voltado para o ensino da Psicologia Aplicada. Seu clássico texto “La Technopsychologia du travail industrial”, publicado na Suíça em 1926, foi muito bem traduzido e publicado pela Melhoramentos de São Paulo, graças a Lourenço Filho. Vale, entretanto, o registro de que o próprio Radecki sofreu severas discriminações durante sua permanência em nosso país. Na própria Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, por exemplo, nunca contou com a simpatia de Plínio Olinto. Este, psiquiatra e, posteriormente, professor de psicologia no Instituto de Educação, embora ensaiasse também algumas pesquisas experimentais na Colônia, tendo, inclusive, a colaboração da posteriormente médica Dra. Brasilia Leme Lopes, nunca freqüentou o Laboratório do mestre polonês. Alegava que não o fazia por não concordar com o “discriminacionismo afetivo” de Radecki. Também ele, parece, não concordava com algo que, por igual, nunca esclareceu em que consistia. Um verdadeiro mistério. Uma única vez em que por acaso conversei com Cannabrava sobre Radecki, dele ouvi um episódio significativo. Ocorreu durante uma conferência pronunciada por Köhler em sua passagem pelo Rio. Köhler explicava o conceito de estrutura e Radecki solicitou que ele explicasse de que modo esse conceito podia valer em relação aos processos afetivos. Segundo Cannabrava, que estava presente, Köhler não ofereceu qualquer explicação. Na verdade, essa foi a única vez em que eu recebi alguma informação sobre a postura teórica do mestre de Varsóvia. Alguns anos antes, em conversa com o ilustre professor Nelson Romero, de resto, grande latinista, sabendo que ele havia sido assistente de Etienne Sourreau na cadeira de Psicologia oferecida pela extinta Universidade do Distrito Federal, criada por Anísio Teixeira, perguntei-lhe sobre o que me podia dizer sobre Radecki. Sua resposta foi muito dura: “Foi um simples bedel de Claparède”. Aqui, o preconceito expressava-se em termos de desvalorização da psicologia experimental, como, por igual, em relação aos testes já se havia manifestado Alceu de Amoroso Lima, desqualificando-os como tolas tentativas de se medir a alma! O “Tratado de Psicologia” (resumido) redigido por Radecki, eu o encontrei numa livraria de livros usados, que existia na rua São José. Trazia uma dedicatória ao Dr. Alberto Farane, com a assinatura do Mestre. Devorei-o. Confesso que o reli muitas vezes. Ainda recentemente, consultei- o. Composto de 17 fascículos em que “resumidamente” apresenta o curso que ministrava na Escola de Aplicação do Serviço de Saúde do Exército, o livro atinge 443 páginas. Ao longo destas, mais de 300 citações podem ser registradas. Em breve levantamento que fiz, verifiquei que Wundt aparece citado por 49 vezes; Jamer, por 33 vezes; Claparède, por 27 vezes; Ribot, também por 27 vezes; e Freud, 15 vezes. Dois brasileiros aparecem mencionados no Tratado: Manoel Bonfim, uma única
  • 19. 19 vez e sobre questão insignificante, e Nilton Campos, na medida em que colaborou com Radecki numa pesquisa citada pelo mestre. Na última releitura que fiz do texto de Radecki, procurei decifrar o enigma do “discriminacionismo afetivo”. Obviamente, não encontrei uma única vez essa expressão empregada por Radecki. Li, todavia, o capítulo sobre a “discriminação perceptiva” e tornei a ler o capítulo sobre a “afetividade”. Procurei integrar os dois textos. Logo se verifica a imensa relevância concedida à afetividade por Radecki. Todos os processos que a exprimem são definidos como globais, por oposição aos processos que expressam as atividades dos sentidos e do pensamento. Aventuro-me a supor que, para Radecki, todas as atividades discriminatórias teriam suporte afetivo. Admitida essa tese, julgo não impertinente a afirmação de que a perspectiva assumida pelo antigo catedrático de Psicologia da Universidade Livre de Varsóvia poderia ser considerada como ocupando um espaço significativo no que, bem posteriormente, se definiu como “New Look in Perception”. Por outro lado, não custa recordar que durante algum tempo trabalhou com Claparède, em período em que lá também se encontrava Helena Antipoff. Foi nesse período que conforme ressalta Nilton Campos, no necrológico publicado em 1953, Radecki realizou memorável pesquisa sobre “Les phénomènes psycho-électriques”, publicada em 1911. “O digno cientista” - registra Nilton - polonês, sul-americanizado, adverte que suas investigações coincidem com as que, contemporaneamente, efetuaram os autores norte-americanos Frederick Wells e Alexander Forber, a respeito do mesmo assunto. Esse fato, porém, só lhe chegara ao conhecimento tardiamente, por ocasião da leitura dos “Archives of Psychology”, na publicação de março de 1911, onde constava o trabalho dos autores citados, intitulado “On certain electrical process in the human body and their relation to emotional reactions”. Sobre Nilton Campos e Lourenço Filho já lhes dediquei bom espaço em minha “História da Psicologia no Rio de Janeiro”, editada pela Imago. Voltei a escrever sobre Lourenço Filho quando foi editado - sob a organização do Prof. Dr. Carlos Monarcha e edição da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília - o livro em sua homenagem, sob o título: “Lourenço Filho - Outros aspectos, mesma obra”, em 1997. Particularmente tenho grandes dívidas com o inesquecível mestre. A primeira foi a indicação de meu nome ao Itamaraty para fundar, organizar e dirigir uma Faculdade de Filosofia, em Assunção, no Paraguai. A segunda quando me convidou para assumir a Presidência da “Associação Brasileira de Psicologia Aplicada”, em substituição ao ilustre Padre Benko, que finalizara seu mandato. A terceira, quando aceitou meu convite para prefaciar, pouco antes de falecer, meu livro “Comunicação e Linguagem”. Sobre Grabois, só me resta destacar sua brilhante cultura e seu aguçado espírito crítico. Sempre se definiu como um “behaviorista crítico”. Dotado de boa cultura no domínio da Teoria do Conhecimento e dos grandes sistemas psicológicos, não chegou a fazer a carreira que, sem dúvida, sempre pensei que pudesse realizar. A rigor, foi meu primeiro grande professor de psicologia. Assisti seu curso durante um ano. Muito pouco, quando comparo com os três anos durante os quais fui aluno de Nilton e dos muitos anos em que com ele convivi e aprendi, na condição de assistente. Confesso que me encantaria muito escrever sobre Grabois. Teria que me restringir, todavia, a uma evocação de comentários que, vez por outra, desenvolvia sobre a psicologia. Um dado que pouquíssimas pessoas conhecem é que Grabois não nasceu no Brasil. Na verdade, era argentino. Sua família, contudo, veio para o Brasil e todos aqui se radicaram. Infelizmente Grabois nada escreveu. Tampouco fez carreira universitária, desde que jamais se preocupou em fazer a docência- livre, condição indispensável para que ocupasse o lugar que merecia. Certa vez provoquei-lhe forte emoção, logo denunciada pelas lágrimas que lhe rolaram pela face, quando, depois de muitos anos sem vê-lo, com ele acidentalmente me encontrei no centro do Rio. Ao abraçá-lo, confessei-lhe que eu era o único discípulo que ele formara em sua vida e que minha cátedra, na Universidade, eu a devia, não só ao Nilton, mas também a ele; e hoje, acrescento, a ambos e ao inesquecível Prof. Penido com quem, efetivamente, aprendi a pensar.
  • 20. 20 Parte II - História e Psicologia A OFICINA DA HISTÓRIA: MÉTODO E FICÇÃO Heliana de Barros Conde Rodrigues2 O título da presente mesa redonda (e deste texto introdutório) resulta de uma combinação deliberada, e quiçá antropofágica, de raptos e roubos. A oficina da história é denominação roubada de um conhecido livro do historiador francês François Furet que, independentemente da excelência de seu conteúdo, é capaz, unicamente mediante seu título, de provocar o pensamento. Pois se da história faz-se oficina, ou, alternativamente, se em oficinas fazemos história, esta última emerge sob a figura de um trabalho. Neste sentido, Clio, sua musa, aparece enquanto produção (de linguagem, imagens, conceitos...) “suscetível de introduzir uma diferença significativa no campo do saber, ao custo de certo esforço (...) e com a eventual recompensa de um certo prazer, quer dizer, de um acesso a uma outra imagem da verdade” (FOUCAULT et al, 1989, p. 7). Além de roubar títulos, conseguimos raptar alguns daqueles que, através de seus escritos- trabalho, nos têm instigado exatamente ao esforço em busca de tal pensamento-recompensa. Estão conosco Luiz Fernando Duarte e Virgínia Fontes, como deveria estar Magali Engel, “fugida” na última hora, em função de inadiáveis compromissos (talvez com outros raptores...). Luiz Fernando tem introduzido diferenças significativas no campo de nosso saber - aqui figurado por Psyché, personificação grega da alma humana - pelo menos desde o começo dos anos 80. Muitos dos presentes decerto recordarão o impacto, sobre nossas “vontades humanistas” ou alegada e justificavelmente “democratizantes”, do artigo Considerações teóricas sobre a questão do “atendimento psicológico” às classes trabalhadoras, redigido em co-autoria com Daniela Ropa. Ali, um criativo manejo de autores-ferramenta como Foucault, Sennett, Castel, Dumont, Boltanski, Loyola, Figueira, Lévi-Strauss, Berger, Bernstein, Bourdieu e Freire Costa, entre outros, no bojo de uma pesquisa desenvolvida entre 1981 e 1983 com moradores da periferia do Rio de Janeiro, nos desalojava, decerto à custa de muito esforço, de nossas até então demasiado tranqüilas plagas profissionalistas, cientificistas e/ou tecnicistas, mediante uma poderosa oficina (ou mesmo usina) de reflexões críticas. Dentre estas, recordo apenas uma, que julgo fundamental: Uma alternativa [psicoterapêutica] que prescindisse da análise destas questões [relativas às representações das classes trabalhadoras acerca do sofrimento psíquico, bem como de suas formas para lidar com ele] seria (...) não apenas falha, como perigosa. Atuar em nome de uma suposta prevalência da ideologia dominante, desconsiderando as demais representações e visões de mundo seria, na realidade, mais uma forma de reforço e perpetuação da dominação e uma atitude tão nociva ou mais do que a ingênua defesa da cultura popular. (DUARTE, ROPA, 1985, p. 181) A este artigo seguiu-se Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas), tese de doutorado de Luiz Fernando, publicada em 1986, na qual estas preciosas análises sobre os limites do pensamento e intervenção psi se fizeram invariavelmente acompanhar da presença perturbadora de Clio: a figura do “nervoso” seria menos uma “espontânea” criação “popular” do que um 2 Professora e procientista do Departamento de Psicologia Social e Institucional / Instituto de Psicologia da UERJ.
  • 21. 21 cuidadoso artefato de uma certa medicina, sempre alerta para “fazer populares” seus supostamente tão “complexos” paradigmas organicistas. A partir de então, Luiz Fernando fez-se constante companheiro discursivo daqueles agentes psi voltados à ficção. Não porque em suas pesquisas esta se opusesse ao método - seu texto, a seguir, facilmente desmentiria tal assertiva -, mas porque somente uma corporificação estrita das reflexões por ele operadas nos propiciariam algum espaço de ruptura, ao menos parcial, com o encargo social com que tão habilmente nos confrontava - disciplinarização-controle-invalidação -, permitindo-nos inventar conceituações e práticas até então inexistentes, embora igualmente arriscadas, acerca das quais deveríamos exercer a mesma atenção crítica. Sendo assim, nosso companheiro nos incitou a novos roubos, raptos, ou mesmo espoliações, conforme nos sugere Ewald, em uma referência à Esquizoanálise que a liberta dos usos mercadológico-técnicos de que tantas vezes se tem visto refém: Você quer fazer psicologia? Deleuze e Guattari dizem: aprenda a história, percorra as grandes formações da história universal (...) , espolie a biblioteca do arqueólogo, do etnólogo, do economista, empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as disciplinas do desejo, as disciplinas que relatam no seu conjunto e na diversidade as produções do desejo. (...) Aprenda a ver o múltiplo que aí está em construção (EWALD, 1991, p. 90). Embora muito tenhamos espoliado a biblioteca de Magali Engel, de Meretrizes e Doutores (1989) a suas reflexões mais recentes sobre a construção, no Brasil, da loucura como doença mental3 - nas quais tem como intercessores4 , além dos historiadores, a literatura de Domingos Olímpio, Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio -, não a acompanharemos em suas linhas de fuga. Preferimos começar a nos deixar afetar pelo trabalho de Virgínia Fontes que, em um artigo recente, incluído na coletânea Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia, nos vem “interceptar” com o tema História e Modelos. Nada mais apropriado para introduzir esta mesa, que igualmente trabalha com a sempre tão produtiva conjunção “e”: história e modelos, método e ficção... No referido artigo, depois de apresentar os sentidos que toma, em história, o termo modelo, e de discutir as relações que mantém a disciplina historiográfica com os pressupostos cognitivos presentes nas elaborações de Karl Marx - a produção da vida material - e Max Weber - os tipos ideais e a questão da cultura -, assim se refere a autora às tendências atuais de utilização de modelos em história: ...a tendência contemporânea é a de elaboração de modelos submetidos a controles mais estritos. Para tanto, ao invés de trabalhar com processos de longuíssima duração e com universos sociais variados, os modelos tendem a ser construídos a partir de situações sociais bem demarcadas. (...) Com isso, se a abrangência fica reduzida, ela se torna capaz de traduzir mais fielmente os momentos de inflexão, de instabilidade e os parâmetros que indicam as linhas de força e de modificação do sistema (FONTES, 1997, p. 369-370). O fragmento fala, simultaneamente, em “tradução fiel” e em “momentos de inflexão e instabilidade”. Situa-nos, portanto, no cerne da relação problemática entre o procedimento 3 Para uma introdução a estas investigações, ver ENGEL (1991-1992). 4 Segundo Deleuze, “o essencial são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas -, mas também coisas, plantas, até animais (...) Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores”. (DELEUZE, 1992, p. 156).
  • 22. 22 metodológico regular ou normatizado - característico dos saberes científicos ou com pretensões ao conhecimento verdadeiro -, e a circunstância de que, fazendo o saber histórico parte da própria história, aquele jamais é neutro em suas afirmações, podendo, por conseguinte, favorecer ou bloquear - portanto, ficcionar - as próprias transformações que investiga. Trata-se necessariamente, em história, para usar uma terminologia cara a Michel Foucault, de um trabalho de ficção no interior de processos de veridificação. Permito-me, a partir deste momento, e para que não se estenda demasiado esta introdução, mais uma vez raptar/roubar nossos intercessores - no caso, alguns dos campos de análise abertos por textos publicados de Luiz Fernando e Virgínia -, a fim de com eles formar novas séries, pois “se não formamos uma série, mesmo que imaginária, estamos perdidos” (DELEUZE, 1992, p. 156). Recentemente, encontrei uma observação acurada acerca do termo justiça - questão sem dúvida implicada pelas conjunções Clio e Psyché, ou método e ficção -, da qual lanço mão para que possamos aspirar a alguma criação: Se o significado depende do uso como quer a pragmática, nós, brasileiros, temos um curioso senso de justiça. Costumamos dizer que uma roupa é justa quando está apertada. O justo se nos afigura ser também o que impede a liberdade de movimentos; o que, portanto, não é justo. Justiça há quando somos capazes de nos movimentar, quando mais de um sentido é possível (VAZ, 1997, p. 5). Tempos houve em que, talvez, fôssemos estritamente “justos” (ou injustos!) e não o percebêssemos - os saberes e intervenções psi, notadamente os clínicos, se nos afiguravam então como inevitável e inegavelmente nobres, incomumente aliados ao bem comum e, conseqüentemente, desejáveis, por si só, por todos e para todos. No Brasil, o período que se estende aproximadamente de 1968 a 1978 assinala um momento em que os psicólogos almejam quase unanimemente a tal “nobreza terapêutica” - psicanalítica, em especial -, estabelecendo batalhas, à época ditas “por justiça”, contra “médicos injustos” que os quereriam impedir de ser, como eles próprios, alegados “especialistas do bem”(comum?). Neste sentido, se 1968 já foi chamado “o ano que não terminou” (VENTURA, 1988) e recentemente se trouxe saudosisticamente à cena literária um feliz 1958 na qualidade de “o ano que não devia terminar” (SANTOS, 1997), ganha 1978, a nosso ver, o direito de ser apelidado “o ano em que tudo começou”. O processo de redemocratização brasileira, em grande parte movido pelos novos personagens - os movimentos sociais - que entravam, então, “em cena” (SADER, 1988), atualizou nossa apreensão de uma série de dizeres intempestivos e conteúdos inquietantes. Embora certas Filosofias, Sociologias e Histórias, bem como algumas reflexões sobre o problema do sujeito não limitadas a fronteiras disciplinadoras já estivessem, há muito, fazendo um trabalho de dedicados alfaiates - a alargar nossas roupas antes tão “justas” -, é aproximadamente a partir desse momento que se começa a operar uma radical desnaturalização daquilo que se julgava essencialmente ligado ao bem, dando início, simultaneamente, à busca pela presença, bem mais rara e singular, do simplesmente bom. As histórias efetivas, contudo, jamais estão em atraso. Conforme se poderia dizer, recorrendo a Nietzsche, apenas o construtor do presente pode voltar-se para o passado no intuito de julgá-lo. Sendo assim, a partir daquele momento encontramos novos personagens, ou companheiros. No plano discursivo, os escritos de Foucault, Castel, Deleuze, Guattari, Lourau, Lapassade, Goffman - para citar apenas meus principais encontros - , bem como aqueles das vibrantes antropologia urbana e história crítica da psiquiatria brasileiras, nos transformaram, ao menos em parte, de aspirantes à maestria na “fabricação de interiores” (BAPTISTA, 1987), em mestres da suspeita quanto a nossos
  • 23. 23 próprios dizeres e fazeres, sempre suscetíveis de nos configurar enquanto “guardiães da ordem” (COIMBRA, 1995), “empresários morais” (BECKER, 1966), “alugadores de orelhas” (FOUCAULT, 1984), ou, na irreverente linguagem contracultural ou meia-oitista, “psico-tiras”. No âmbito das intervenções nos tem sido possível, desde então, tanto experimentar riscos quanto refletir sobre intoleráveis limites. Pois enquanto as ações de Basaglia nos marcavam - espero que de maneira sempre mais duradoura - com o convite à aventura da desinstitucionalização - propondo e praticando, em um perturbador paradoxo, uma Psiquiatria Democrática (!!) -, o passado brasileiro recente, inclusive no plano psi, começava a libertar-se da invectiva do “não conte a ninguém”.(VIANNA, 1995) Omissões, cumplicidades e conivências, sintetizadas na figura de um psicanalista torturador, torturador psicanalista ou psicanalista e torturador - o segredo, a proibição de dizer, é aqui mais relevante que o detalhe significante -, conduziram-nos a um quase generalizado paroxismo. Sendo assim, a relação entre as intervenções psi e a justiça se fizeram multiplicidade e pergunta, abandonando as sendas antes inabaláveis das afirmações auto- legitimadoras e auto-glorificantes. Os textos a seguir estão, a nosso ver, configurados por este campo problemático: um e interrogativo substitui qualquer é essencializador. Decerto cada um dos autores se arriscará a responder mediante uma singular experimentação. A mesma coisa ocorrerá, provavelmente, com os leitores. Afinal, e aqui penso especificamente nos agentes psi, já somos outros, e o passado a que fiz referência começa a deixar de ser o nosso? Ou, como não sabemos muito bem o que estamos nos tornando, ainda somos o que há muito temos sido? Em que forma de justiça podem nossos saberes e fazeres do presente resultar? A da “roupa justa” ou a do “movimento incessante”? Ficam as indagações, já que não pretendo formular princípios, notadamente com apoio em qualquer psicologia. Pois para que a conjunção-indagação método e ficção possa efetivamente engendrar alguma experimentação, valeria lembrar, parodiando Lobosque (1997, p. 21), que a pertinência exclusiva dos assuntos ditos psi ao mundo psi constitui justamente um dos modos principais de sua exclusão da cultura. E, finalmente, acrescentar: bem como de sua exclusão da luta pela vida bela e pela justiça. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAPTISTA, L. A. S. Algumas histórias sobre a fábrica de interiores. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia da USP, 1987. BECKER, H. S. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: The Free Pres, 1966. CARDOSO, C.F.,VAIFAS, R. (orgs.) Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,1997. COIMBRA, C.M.B. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas ‘psi’ no Brasil do milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DUARTE, L.F. Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas). Rio de Janeiro: Zahar, 1986. DUARTE, L. F., ROPA, D. “Considerações teóricas sobre a questão do “atendimento psicológico” às classes trabalhadoras”. Em: Figueira, S.A. (org.) Cultura da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985. ENGEL, M. Meretrizes e doutores. São Paulo: Brasiliense, 1989.
  • 24. 24 ENGEL, M. “Notas sobre a construção da loucura como doença mental”. Em Anuário do LASP, ano I, vol.1, 1991-1992 EWALD, F. “A esquizoanálise”. Em: Escobar, C.H. (org.) - Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991. FONTES, V. “História e modelos”. Em: Cardoso, C. F., Vainfas, R. (orgs.) - Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FOUCAULT, M. et al. “Des travaux”. Em: Association pour le Centre Michel Foucault (org.) - Michel Foucault philosophe. Paris: Seuil, 1989. LOBOSQUE, A. M. Princípios para uma clínica antimanicomial. São Paulo: Hucitec, 1997. SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SANTOS, J.F. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Record, 1997. VAZ, P. O inconsciente artificial. São Paulo: Unimarco, 1997. VENTURA, Z. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. VIANNA, H. B. Não conte a ninguém: contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
  • 25. 25 Parte II - História e Psicologia CLIO E PSYCHÉ — À PROCURA DE NOVOS FUTUROS Virgínia Fontes5 A História e a Psicologia são freqüentemente visitadas pelo mesmo fantasma recorrente: dar conta de todos e de cada um; pensar o todo, o universal, o estrutural e dar conta de cada indivíduo, de cada situação específica, irrepetível e irredutível, em sua riqueza, a um modelo qualquer. O ponto de encontro fundamental entre História e Psicologia é a busca da explicação e compreensão da relação necessária e constitutiva entre sujeitos, sociedade e processo. De formas diferenciadas, ambas procuram a redução do sofrimento inútil, sem a perda da experiência — individual e social — enriquecedora. Numa, a atuação frente a sujeitos individuais ou coletivos; noutra, a procura da compreensão do processo histórico que nos instaura enquanto sujeitos propriamente ditos. Em ambas, o desafio de explicar o que nos leva a ser ativos ou submissos; rebeldes, criativos, agentes, ou adaptados, configurados, pacientes. A relação entre o conhecimento histórico e o psicológico nem sempre foi fácil. A tensão primordial permanece e, a meu ver, deve ser preservada. Tentar fundir as duas disciplinas pode ser tão grave e problemático quanto separá-las radicalmente. As confusões e os deslizes, ainda que repletos de boa vontade, muitas vezes geraram impasses exatamente para a explicação desse processo complexo de interação entre indivíduo e sociedade. Aquilo que é conhecido como história psicologizante, por exemplo, procurando um padrão “humano” para o processo histórico, acabou por considerar instituições sociais como entidades (enteléquias) dotadas de vontade, consciência e rumo próprio, independentemente dos indivíduos reais, dos grupos e das classes sociais que constituíam a sociedade e moldavam os indivíduos. Propunha assim, por exemplo, “nações” psicologizadas, dotadas de vontade e de “caráter”; Estados vistos como realização de uma razão universal e dotados de pura consciência, etc. O inverso também apresentou dificuldades: uma historicização absoluta dos sujeitos arrisca sempre diluí-los num fluido sem existência própria ou significado, capturados numa transformação incessante e na incapacidade de compará-los e de pensá-los em conjunto; uma sociologização irrefletida arrisca-se a relegar a um plano secundário os sofrimentos reais dos indivíduos concretos. Tentando criticar determinados padrões sociais, muitos analistas esqueciam o quanto a tensão entre indivíduos e grupos sociais pode contribuir para a transformação da própria sociedade. Com isso, arriscavam-se a relegar os indivíduos à mercê da mesma sociedade que era criticada... Para escapar dos dilemas de “fronteiras” inter-disciplinares, o melhor é sempre encará-los de frente. O mais enriquecedor é certamente explorar a interface, a zona de tensão que une e separa História e Psicologia, o núcleo do conflito constitutivo que pode permitir a ambas a ampliação de sua capacidade explicativa, de compreensão e de intervenção social. Nossas disciplinas, porém, têm outras zonas de penumbra, nas quais nos movemos. História e Psicologia mantêm laços anteriores, com os quais nutrem uma relação de amor e afeto, contrabalançada por momentos de raiva e despeito: a filosofia e o telos; a narrativa romanceada e os modelos de comportamento. Deleite e prazer; conhecimento e razão; engajamento e intervenção política — áreas incompatíveis? 5 Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
  • 26. 26 Essa interrogação, que fundamenta nossa mesa-redonda hoje, nos conduz às demais questões que estão no centro de alguns debates atuais. Existem diferenças significativas entre os diferentes conhecimentos e saberes? O conhecimento somente pode se expressar por uma linguagem complexa? A narrativa é mais sedutora e rica do que o texto científico? Há ainda algo que consideremos como conhecimento científico ou universalizante? Devemos rejeitar todas as pretensões anteriores e admitir que importa apenas o uso (como o quer Rorty6i )? Nesse sentido, o estilo e a retórica não seriam mais importantes do que qualquer argumento? Não tenho a menor pretensão — nem seria o caso, nem disporíamos de tempo e espaço para tanto — de responder a tais questões. Mas é preciso suscitá-las, relembrá-las, e tentar ver de que forma nós — e nosso tempo — lidamos com elas. Permito-me assim mudar agora de registro para abrir um painel provocativo a partir dessas interrogações de partida. Gostaria de falar sobre um escritor, um homem que escreveu uma das mais belas narrativas em nosso século. Tratava-se de um rapaz de boa família, criado em bairros finos, com direito a belas casas sólidas e férias no campo. Totalmente ego-centrado, esse homem decidiu que sua própria vida — com tudo o que ele conseguisse lembrar e incluir e com as suas características próprias, estritamente pessoais, inclusive sua exacerbada vaidade e sua grande pretensão — merecia um relato detalhado, completo. Não deveria ser um relato qualquer — deveria ser o maior, o melhor. E o foi. Assim, nosso autor empreendeu uma narrativa ficcional gigantesca e heróica. Designou um outro “eu” como personagem principal, com a função de desempenhar seu próprio papel. O outro, porém, era a tal ponto ele próprio que o nome do personagem tornava-se secundário; em alguns momentos, o autor esquecia e se nomeava a si mesmo, em deslizes significativos. Nessa narrativa, esse autor exigiu de si próprio o máximo de fidedignidade, de memória, de “perseverar em seu ser” (como o contatus de Spinoza7 ). Nenhuma relação portanto com essas autobiografias caudalosas, moralizantes e vaidosas, ou com as biografias gigantescas que estão na moda. Nosso autor empreendeu um verdadeiro mergulho, sem temer os locais desconhecidos e inóspitos, sem falsos pudores. Obra de imensa vaidade, beira a extrema modéstia. Não pretendia mostrar apenas um lado “bom” ou louvável, nem se limitar aos aspectos espúrios. Esmiuçou suas recordações, “fuçou” e revirou suas lembranças, procurou ir ao fundo dos sentimentos mais generosos, encontrando o laivo de egoísmo que eles carregam; não desdenhou os momentos obscuros ou cruéis, perscrutando o mais longe que pôde atrás deles, fazendo-nos partilhar com ele de experiências que também vivemos e que, fugazes, deixamos para trás. Essa memória procurada e elaborada de si-mesmo relaciona-se aos terrenos que procuramos palmilhar aqui, Psyché revivida: o sujeito, ao expor-se claramente, ao relembrar sensações, pensamentos, mesquinharias, alegrias e percepções abria-se para uma verdadeira aventura psicológica, numa exploração delicada da multifacetada, complexa e conflituosa unidade do único ser que, segundo Descartes, nos garante a existência do conhecimento (nós mesmos, o cogito). Na outra ponta da meada, Psyché encontrava o mundo: esse si mesmo somente adquiria sentido e espessura, nitidez e cores, palavra e sentimento quando se relacionava, quando via os outros, tocava-os, sentia os demais, reagia a eles, desejava e detestava. Assim, para além de si próprio (e para chegar a ser si próprio), o afresco devia dar conta das paisagens vistas, das flores cheiradas, das casas vividas, dos parques, das praias, dos caminhos percorridos. Objetos e coisas 6 Ver, por exemplo, Richard Rorty. “A trajetória do pragmatismo”. Em: Umberto Eco, Interpretação e Superinterpretação. Ver também o sugestivo artigo de Marcio Duayer e Maria Celia Moraes - “Neopragmatismo: a história como contingência absoluta”. Em: Tempo, nº 4, Depto. de História da UFF. 7 Cf. Gilles Deleuze. Spinoza, p. 26.
  • 27. 27 que remetem a um mundinho — pequeno, mas preciso — onde o que estava em jogo eram relações vividas. No mundo, Psyché devia encontrar Clio: o ser existia porque encontrava coisas e seres. Com os demais, chegava a si-mesmo. Essa obra literária contém ainda um outro trabalho: o da própria narrativa, infinitas vezes retomada e corrigida, na busca da precisão, da elegância, da clareza, da completude do sentimento ou da paisagem8 . Contém também a ficção — o belo apenas visto e não vivido mas que suscita uma tal impressão que merece figurar como se fosse partilhado, a descrição do lugar inexistente ou do amigo desejado mas que recusou a paixão e nossa entrega — que se permite o deleite de viver integralmente o sonho e o horror, à distância segura que a pena e o papel permitem. Não me parece difícil identificar de que autor estamos falando. Refiro-me a Marcel Proust e ao que considero uma das maiores delícias da literatura mundial: À la recherche du temps perdu. Essa obra, magnífica e única, verdadeiro monumento que abre e encerra todo um ciclo literário, contém elementos — creio que estaremos todos de acordo — de vastos painéis psicológicos e históricos. Do ponto de vista da psicologia, poucos autores (ou pensadores) foram tão longe nos detalhes da percepção, na evidência impudica de seus próprios sentimentos, na exposição pública e sem pejo de sua própria nudez íntima. Retrato de um delicioso, delicado, sutil e raro personagem, ou de um crápula abjeto, de um egocêntrico vaidoso cuja exposição de sua tara, unicamente, o redime (como Sade, para muitos). Se Proust contém e expõe as minúcias de suas experimentações subjetivas, dificilmente chamaríamos À procura do tempo perdido de um livro de Psicologia. Psyché é aqui a recuperação de sua própria vivência, mas não a construção de um conhecimento partilhável em suas próprias premissas. Da mesma forma, o vasto painel traçado do fin de siècle francês extrapola largamente o pequeno mundinho no qual Marcel Proust circulava. Constrói um vigoroso afresco histórico9 desse grupo social em rica decadência, dos conflitos e das dificuldades de vivenciar as novas relações sociais (o caso Dreyfuss e o anti-semitismo, as prostitutas de luxo e as discriminações sociais, a burguesia endinheirada e as novas diferenciações mundanas). Essa memória profusa e rica em detalhes; essa memória finamente trabalhada, como uma ourivesaria da palavra; essa memória requintada, auxiliada por alguns parcos recursos à sua disposição (recortes de jornais, conversas e trocas de lembranças), memória despudoradamente aberta a todos e a qualquer um por Proust, é uma história? Clio, nesse encontro, é apenas um quadro, um pano de fundo, momentos. No entanto, À procura do tempo perdido, seus milhares de páginas e sua riqueza sempre renovada, constitui simultaneamente uma história e uma psicologia. Mas a que história e a que psicologia nos referimos? A experiência de si, por mais rica que seja, substitui o conhecimento? De forma apenas indicativa, recuperemos algumas das interrogações anteriores. Em primeiro lugar, a ficção não substitui e não deve substituir, a meu ver, o conhecimento. Uma forma de prazer não elimina as demais e tanto mais prazeirosa será se nos permitir partilhar de inúmeros outros prazeres. A construção do conhecimento opera por procedimentos distintos do ficcional. Remete em geral a uma linguagem mais árida, a um texto no qual não apenas viajamos, deslizamos em sua superfície ou mergulhamos em longos períodos de isolamento. Esse prazer, específico da literatura, desdobra-se em outros, na produção e partilha do conhecimento. Este tipo de leitura exige de nós 8 Há uma riquíssima bibliografia sobre Proust e sua obra. Apenas a título de exemplo, ver Antoine Adam et al. Proust. 9 A literatura é, aliás, generosa nesses magníficos afrescos e não resisto a mencionar dois outros autores: Leon Tolstoi e, no Brasil, Graciliano Ramos.
  • 28. 28 participação, tensão e diálogo constantes. Um texto cognitivo expõe-se em níveis distintos e permite deslindar e partilhar seus próprios princípios constitutivos. A ficção se permite ser o que ela é; o conhecimento deve, a todo tempo, eliminar a ficção que o constitui e que nele se ancora10 . O conhecimento — histórico e psicológico — exige a desnaturalização incessante das relações sociais; a denúncia e o esclarecimento do lugar de onde se fala; a procura da tensão necessária entre o particular e o múltiplo; a evidenciação de um real, ainda que opaco e tenazmente fugidio, mas que baliza a vida da maioria. O prazer da leitura de Proust não é comparável ao prazer da leitura de Freud ou de Marx, por exemplo. São sensações e experiências diversas, insubstituíveis umas pelas outras. Reduzi-las a um termo comum, escaloná-las ou hierarquizá-las significa, a meu ver, uma perda de dimensões nas quais nos construímos e nos articulamos, nós próprios, enquanto sujeitos capazes de vivência e de transformação. Implica não apenas diminuição de prazeres diferentes, mas também limitação de nossa capacidade de intervenção na vida social. Em outro nível, me permito reintroduzir uma outra leitura de Proust à luz da história. Vivemos hoje un fin-de-siècle (e de milênio). Proust vivenciou e narrou um mundo em decomposição, um mundo que, apesar de sua riqueza e de sua pompa, não era capaz de competir com o modelo fáustico, embora não tão brilhante, da burguesia emergente. Todo um universo de minúcias, refinamentos e de detalhes, um savoir-faire, uma prática de reconhecimentos e de “politesse” se esvaía aos poucos. Novas forças sociais destruíam, por dentro e por fora, aquele mundo requintado. O próprio fato de Marcel Proust tê-lo descrito tão vivamente pode ser tomado como sinal do aprofundamento dessa crise e da exposição de sua agonia. Aquele fim de século XIX apontava para o futuro como o locus próprio de novas realizações, capitaneado por uma burguesia conquistadora — econômica, militar, política e ideologicamente. Burguesia cruel e devastadora; rica, esperançosa e empreendedora, Proust nos mostra seu embate com as formas remanescentes do Antigo Regime e da nobreza, já então em franca decadência. Nosso fin de siècle é bem mais nostálgico. Também vemos desabar — como a nobreza proustiana — o mundo no qual acreditávamos; também vemos o lado charlatanesco de nossos heróis (como Charlus, personagem proustiano). O fáustico que hoje nos é imposto, com a mundialização e a alta tecnologia, não é mais capaz de nos arrebatar como sonho impetuoso de fuga para a frente: a contabilização da catástrofe já é grande demais. A burguesia endinheirada que substituía a nobreza e seus rituais não vive hoje num mundinho proustiano, fechada numa cultura refinada e decadente. Manteve-se no mesmo pé pragmático, ocupada pelo horizonte míope da reprodução do capital. Construiu ilhas de riqueza sobre os mares de miséria, que ela própria reproduz. As tentativas de transformação radical da sociedade transformaram-se em seu contrário: viraram formas de atingir o desenvolvimento capitalista, opondo uma vontade férrea e endurecida aos inúmeros obstáculos (internos e externos) à sua realização. Este nosso fin de siècle propõe menos futuros do que volta-se para o passado, à procura de um tempo perdido. Esse movimento, visível especialmente em algumas diretrizes filosóficas contemporâneas, recupera como novo o relativismo dos inícios do século XIX; abandona as conquistas sociais da igualdade e fecha-se em culturalismos estanques como forma de se proteger; procura ignorar a própria história, com seus conflitos e descompassos, à procura desse tempo perdido, concebido como unidade mítica, como perfeita integração entre o Um e o Todo. 10 Nesse sentido, nossa proposição difere significativamente das colocações de Michel de Certeau em, por exemplo, Histoire et psychanalise entre science et fiction
  • 29. 29 A ressalvar, porém, que não é esse o reencontro do tempo perdido em Proust — ao contrário, o reconhecimento do sabor/odor da madeleine, do bolinho saboreado com uma chávena de chá em casa da tia abre-se para a admissão do tempo, do transcorrer, do mutável e, no caso, do próprio envelhecimento. Essa imagem de um retorno mítico a uma conjunção do Um e do Todo desafia tanto a História quanto a Psicologia - ambas, disciplinas fundadas no conflito, no desacerto, na procura; na tensão necessária entre cada um e o coletivo; na tensão que se instaura, internamente a cada um, no conflito como a condição do processo. Não há uma História e uma Psicologia unas — somos disciplinas em conflito em torno de grandes eixos teóricos que nos atravessam. Nesse sentido, o retorno ao século XIX poderia ser mais rico do que vem sendo explorado. Se foi o período do grande romance histórico, da ficção e da narrativa; da crença no progresso inexorável e do positivismo; do historicismo absoluto, o novecento foi também o século da criação de conhecimentos que rejeitavam o absoluto e o harmônico como modelos, que introduziram o conflito como eixo fundamental para o conhecimento, tal como em Freud e Marx. No entanto, não me parece que apenas um retorno a esses autores, pura e simplesmente, assegure a construção de novos futuros. Trata-se de levá-los adiante, de seguir à frente ampliando os desafios que eles nos descortinaram, mas seu peso e complexidade nos parece às vezes tão grande que recusamos seus prazeres em nome da dificuldade de atingir novas descobertas. Menos do que procurar o tempo perdido, do que nos contorcermos numa procura identitária da qual já dizia A. Koyré (1962) ser a marca dos tempos conservadores — quem somos? —, seremos capazes de admitir o desafio que significa pensar onde estamos? Para Psyché e para Clio, hoje, o desafio é a reconstituição de um projeto cognitivo capaz de enfrentar o singular e o múltiplo. Não perder as bases de universalidade que somente o processo cognitivo pode abrir, aceitando rebeldemente lidar com o conflito que o pressuposto de uma igualdade radical impôs tanto à psicologia quanto à história como base primeira de seu método. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, Antoine et al. Proust. Paris: Hachette, 1965. CERTEAU, Michel de. Histoire et psychanalise entre science et fiction. Paris: Folio, 1987. DELEUZE, Gilles. Spinoza. Paris: PUF, 1970. DUAYER, Mário e MORAES, Maria Célia. “Neopragmatismo: a história como contingência absoluta”. Rio de Janeiro: Sette Letras/Dept. de História da UFF. Em Tempo, n. 4, 1997. KOYRÉ, Alexandre. Introdution à la lecture de Platon, suivi de Entretiens sur Decartes. Paris: Gallimard, 1962. RORTY, Richard. “A trajetória do pragmatismo”. Em: Eco, Umberto (org.), Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.