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São Paulo, 05 de dezembro de 2011.



“A Paulista precisa dormir”

                                                                          Danilo Paiva Ramos



        Na noite de ontem, o que mais me aterrorizou enquanto era espancado por um PM não
identificado na Avenida Paulista não foi a violência dos golpes cada vez mais fortes em minha
mão e barriga. “Cuzão!”, “Seu merda!”, “Filho da puta!”, “Quer ser espancado de verdade?”
eram as palavras que acompanhavam as pancadas que eu ia recebendo sem ter como me
defender. Mas também não foram as ameaças ou as ofensas que mais me aterrorizaram ontem.
O que mais me assombrou foi perceber, enquanto era espancado, o sorriso e o olhar do policial
que mostravam um prazer maior a cada bofetada. A cada pancada meu medo aumentava. E foi
com espanto que vi o prazer e ódio que cresciam nos rostos dos policiais à medida que
investiam contra qualquer pessoa que, naquele momento, estivesse com uma camiseta do
Corinthians comemorando na calçada, pacificamente, a vitória do campeonato. Indignado, sem
saber por que apanhava, perguntei o nome de meu agressor. Mais ofensas e ameaças seguiram-
se enquanto ele erguia novamente sua arma contra mim. Afastando-me, perguntei por que me
batia. Ele, então, respondeu: “As pessoas da Paulista precisam dormir”.

        Essa talvez fosse a fala de um “camisa negra”, grupo fascista que, na Itália, perseguia os
operários que faziam greve. Ou talvez a fala de um policial da ditadura que investisse contra
estudantes que lutavam pela democracia. Mas estranhei muito que o motivo da violência com
que acabaram com a “festa da vitória” que um grupo de pessoas fazia por volta das 23hs na
calçada da Paulista fosse o sono dos edifícios de bancos e empresas. Ainda sendo coagido pelos
policiais, fui conversar com o sargento que liderava o grupo. Comuniquei a ele que havia sido
espancado por um de seus policiais e que queria saber a razão disso e o nome de meu agressor.
Ele pediu que eu apontasse o oficial. Identifiquei-o. O 3 Sgt LUIZ disse que não conhecia o
policial que continuava a espancar e a coagir as pessoas.

        Memorizei a identificação do sargento Luiz e fui a uma delegacia próxima à minha
casa. Quando contei ao delegado minha intenção de fazer um boletim de ocorrência, B.O., por
ter sido espancado por um PM, ele alterou seu tom de voz. Falando alto e gesticulando
fortemente, afirmou que um policial “não batia por nada” e perguntava repetidamente o que eu
tinha feito. “Nada, não fiz nada! Estava voltando para casa. Saí do metro Trianon-Masp, após
assistir ao jogo com meus amigos, parei durante 5 minutos para ver a festa que o grupo fazia na
calçada. Estava um pouco longe do grupo. Um cordão de policiais formou-se atrás de mim sem
que eu percebesse. Quando virei meu corpo, já recebi os primeiros golpes. Não fiz nada”.
Vítima, machucado e apavorado, tive que perguntar ao delegado se esse era o modo de tratar as
vítimas em sua delegacia. Afirmei que iria a outra D.P. fazer minha ocorrência, já que naquela
não me sentia seguro. Somente, então, o delegado começou a tratar-me como vítima. Registrei a
queixa, fiz exame de corpo de delito e aguardo que consigam identificar o sargento e meu
agressor. Por sugestão do delegado, irei à corregedoria da polícia militar para fazer uma queixa.

        Antropólogo, pesquisador da USP, venho acompanhando a violência, o prazer e a
liberdade com que policiais, soldados e autoridades “competentes” restabelecem a “ordem” na
Universidade, na avenida Paulista ou na Amazônia, onde realizo meu trabalho com um povo
indígena. Espancar, ofender, perseguir, rir, ameaçar parecem ser modos cada vez mais rotineiros
das autoridades que aplicam a coerção física do Estado em estudantes, torcedores, índios,
professores, trabalhadores etc. O prazer que vi no rosto de meu agressor me aterrorizou. A
dificuldade de identificar meu agressor — causada pela falta de distintivo, pela atitude do
sargento que disse não conhecer seus soldados, pelo comportamento do delegado que insistiu
que eu devia ter provocado ou pela dificuldade de saber de qual batalhão eram os PMs que
atuavam na Paulista àquela hora — me assombra. O riso e o prazer de meu agressor iniciam-se
no motivo banal da “Paulista que precisa dormir” e terminam na saciação do sadismo com que
golpeava meu corpo que, naquele momento, por acaso — apenas por acaso —, era o corpo de
um torcedor corintiano.

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A Paulista precisa dormir

  • 1. São Paulo, 05 de dezembro de 2011. “A Paulista precisa dormir” Danilo Paiva Ramos Na noite de ontem, o que mais me aterrorizou enquanto era espancado por um PM não identificado na Avenida Paulista não foi a violência dos golpes cada vez mais fortes em minha mão e barriga. “Cuzão!”, “Seu merda!”, “Filho da puta!”, “Quer ser espancado de verdade?” eram as palavras que acompanhavam as pancadas que eu ia recebendo sem ter como me defender. Mas também não foram as ameaças ou as ofensas que mais me aterrorizaram ontem. O que mais me assombrou foi perceber, enquanto era espancado, o sorriso e o olhar do policial que mostravam um prazer maior a cada bofetada. A cada pancada meu medo aumentava. E foi com espanto que vi o prazer e ódio que cresciam nos rostos dos policiais à medida que investiam contra qualquer pessoa que, naquele momento, estivesse com uma camiseta do Corinthians comemorando na calçada, pacificamente, a vitória do campeonato. Indignado, sem saber por que apanhava, perguntei o nome de meu agressor. Mais ofensas e ameaças seguiram- se enquanto ele erguia novamente sua arma contra mim. Afastando-me, perguntei por que me batia. Ele, então, respondeu: “As pessoas da Paulista precisam dormir”. Essa talvez fosse a fala de um “camisa negra”, grupo fascista que, na Itália, perseguia os operários que faziam greve. Ou talvez a fala de um policial da ditadura que investisse contra estudantes que lutavam pela democracia. Mas estranhei muito que o motivo da violência com que acabaram com a “festa da vitória” que um grupo de pessoas fazia por volta das 23hs na calçada da Paulista fosse o sono dos edifícios de bancos e empresas. Ainda sendo coagido pelos policiais, fui conversar com o sargento que liderava o grupo. Comuniquei a ele que havia sido espancado por um de seus policiais e que queria saber a razão disso e o nome de meu agressor. Ele pediu que eu apontasse o oficial. Identifiquei-o. O 3 Sgt LUIZ disse que não conhecia o policial que continuava a espancar e a coagir as pessoas. Memorizei a identificação do sargento Luiz e fui a uma delegacia próxima à minha casa. Quando contei ao delegado minha intenção de fazer um boletim de ocorrência, B.O., por ter sido espancado por um PM, ele alterou seu tom de voz. Falando alto e gesticulando fortemente, afirmou que um policial “não batia por nada” e perguntava repetidamente o que eu tinha feito. “Nada, não fiz nada! Estava voltando para casa. Saí do metro Trianon-Masp, após assistir ao jogo com meus amigos, parei durante 5 minutos para ver a festa que o grupo fazia na
  • 2. calçada. Estava um pouco longe do grupo. Um cordão de policiais formou-se atrás de mim sem que eu percebesse. Quando virei meu corpo, já recebi os primeiros golpes. Não fiz nada”. Vítima, machucado e apavorado, tive que perguntar ao delegado se esse era o modo de tratar as vítimas em sua delegacia. Afirmei que iria a outra D.P. fazer minha ocorrência, já que naquela não me sentia seguro. Somente, então, o delegado começou a tratar-me como vítima. Registrei a queixa, fiz exame de corpo de delito e aguardo que consigam identificar o sargento e meu agressor. Por sugestão do delegado, irei à corregedoria da polícia militar para fazer uma queixa. Antropólogo, pesquisador da USP, venho acompanhando a violência, o prazer e a liberdade com que policiais, soldados e autoridades “competentes” restabelecem a “ordem” na Universidade, na avenida Paulista ou na Amazônia, onde realizo meu trabalho com um povo indígena. Espancar, ofender, perseguir, rir, ameaçar parecem ser modos cada vez mais rotineiros das autoridades que aplicam a coerção física do Estado em estudantes, torcedores, índios, professores, trabalhadores etc. O prazer que vi no rosto de meu agressor me aterrorizou. A dificuldade de identificar meu agressor — causada pela falta de distintivo, pela atitude do sargento que disse não conhecer seus soldados, pelo comportamento do delegado que insistiu que eu devia ter provocado ou pela dificuldade de saber de qual batalhão eram os PMs que atuavam na Paulista àquela hora — me assombra. O riso e o prazer de meu agressor iniciam-se no motivo banal da “Paulista que precisa dormir” e terminam na saciação do sadismo com que golpeava meu corpo que, naquele momento, por acaso — apenas por acaso —, era o corpo de um torcedor corintiano.