Este trabalho analisa os efeitos da franquia Pokémon no Brasil, comparando com Japão e EUA. Aborda a 'localização' da série para a cultura brasileira e a estratégia transmídia utilizada. Busca compreender como a narrativa foi adaptada considerando fatores culturais e o contexto sócio-histórico nacional para conquistar audiência e popularidade.
O papa continua pop - A Espetacularização da notícia na vinda do papa ao Brasil
Pikachu Verde e Amarelo: a saga da franquia Pokémon no Brasil
1. 1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – PUBLICIDADE E PROPAGANDA
GABRIELA BIRNFELD KURTZ
PIKACHU VERDE E AMARELO:
A SAGA DA FRANQUIA POKÉMON NO BRASIL
Porto Alegre
2012
2. 2
GABRIELA BIRNFELD KURTZ
PIKACHU VERDE E AMARELO:
A SAGA DA FRANQUIA POKÉMON NO BRASIL
Trabalho de conclusão de curso apresentado como
requisito para obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social, com habilitação em
Publicidade e Propaganda, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Profª Dra. Silvia Orsi Koch
Porto Alegre
2012
3. 3
GABRIELA BIRNFELD KURTZ
PIKACHU VERDE E AMARELO:
A SAGA DA FRANQUIA POKÉMON NO BRASIL
Trabalho de conclusão de curso apresentado como
requisito para obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social, com habilitação em
Publicidade e Propaganda, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovado em: ____de__________________de________.
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________
Profª Dra. Silvia Koch - PUCRS
______________________________________________
Prof Dr. José Fernando Azevedo - PUCRS
______________________________________________
Prof Dr. Roberto Tietzmann - PUCRS
Porto Alegre
2012
4. 4
AGRADECIMENTOS
Minha trajetória na graduação foi repleta de pessoas especiais. Sem elas,
possivelmente eu não teria aproveitado tanto esta fase da minha vida, com
perseverança e resiliência. Gostaria de agradecer primeiramente à toda a minha
família, em especial aos meus pais, Sandra e Alexandre, meu irmão, Leonardo e à
minha avó Sara, por me apoiarem em todos os momentos, acreditarem e sentirem
orgulho de mim. Expresso também minha gratidão ao meu namorado, Gustavo, que
ficou ao meu lado em todos os momentos de minha graduação, com paciência e
carinho. Também às minhas melhores amigas, parceiras desde o de jardim de
infância, Anelise e Jéssica, que me tiravam da rotina universitária, me lembrando
sempre de que há vida fora do campus.
Na PUCRS, fiz muitos amigos, aprendi com muitos mentores. Quero
agradecer à Ana Carolina (Aninha) e à Renata (Rê), por se tornarem não só
excelentes colegas de trabalhos em grupo, mas amigas para toda a vida. Aos
queridos professores da FAMECOS, em especial a Silvia Koch, minha paciente e
atenciosa orientadora e o Fernando Azevedo, meu primeiro “chefe” no Espaço
Experiência e grande amigo. Agradeço também ao Ir. Albino Trevisan, que me deu a
oportunidade de participar de sua bolsa de iniciação científica, que me proporcionou
muito aprendizado e crescimento pessoal.
5. 5
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo avaliar quais foram os efeitos da série
Pokémon no Brasil. Foram analisados aspectos como audiência, economia e
popularidade da série no Brasil, sempre fazendo a relação com os países onde
Pokémon se originou e foi adaptado, Japão e Estados Unidos, respectivamente. As
diferenças e semelhanças analisadas foram entre o herói principal, cortes de
episódios e cenas, mudanças na imagem, trilha sonora e diálogos. A história
originalmente japonesa surgiu das tradições dos mangás, também conhecidos como
“histórias irresponsáveis”. Pokémon foi modificado nos EUA em diversos aspectos e
a estratégia de lançamento dos produtos também se diferenciou da nipônica. No
Brasil, a narrativa permaneceu a mesma dos norte-americanos, com algumas
adaptações nos nomes dos monstros de bolso, gadgets e músicas. Os lançamentos
e popularidade dos produtos relacionados a Pokémon seguiram as tendências
econômicas da época: lenta recuperação do poder aquisitivo dos brasileiros entre
1999 e 2001. Por meio de pesquisas bibliográficas e documentais, se fez possível
identificar a importância da ‘localização’ de Pokémon para o ocidente. O fato de os
‘localizadores’ se preocuparem com o contexto sócio-histórico e os referenciais da
audiência ocidental neutralizou a influência nipônica, tornando a franquia global.
Palavras-chave: Pokémon. Cultura. Narrativa transmídia.
6. 6
ABSTRACT
The present work has as an objective to evaluate which were the effects of the
Pokémon series in Brazil. Aspects like audience, economy and popularity of the
series in Brazil were analyzed, always making a relation to the countries where
Pokémon has originated and was adapted, Japan and United States, respectively.
The differences and similarities analyzed were between the main hero, cuts in
episodes and scenes, image changes, soundtrack and dialogues. The originally
Japanese story emerged from manga tradition, also known as “irresponsible stories”.
Pokémon was modified in the USA in several aspects, and the launch strategy also
differentiated from the Nipponese one. In Brazil, the narrative remained the same as
the North-Americans’, with some adaptations in the pocket monsters’ names,
gadgets and songs. The launch and the popularity of Pokémon’s related products
followed the economical tendencies of the time: Brazilians’ slow acquisitive power
recovery between 1999 and 2001. Through bibliographic and documental research, it
has been made possible to identify the importance of Pokémon’s ‘localization’ to the
west. The fact that the ‘localizers’ were concerned about the social and historical
context and the western audience’s references neutralized the Nipponese influence,
making the franchise global.
Keywords: Pokémon. Culture. Transmedia Storytelling.
7. 7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Pippi, Pokémon principal nos quadrinhos..................................... 17
Figura 2 – Pikachu, personagem principal nas séries de TV......................... 17
Figura 3 – Caracteres japoneses no primeiro episódio.................................. 24
Figura 4 – Os caracteres japoneses foram inteiramente removidos.............. 24
Figura 5 – Versão original do banner............................................................. 25
Figura 6 – Na tradução para o inglês, o significado é: “Vai, Ash, Vai!”.......... 25
Figura 7 - O Pokémon Pidgey não se parece com um pombo....................... 59
Figura 8 - Paras possuía mais semelhanças com um crustáceo................... 59
Figura 9 - Revista Pokémon CLUB custava R$ 3,90...................................... 63
Figura 10 - Envelopes continham 3 cromos custando R$ 0,35...................... 64
Figura 11 - Cards promocionais entregues no primeiro filme......................... 65
Figura 12 – Miniaturas Pokémon Grud-Grud, da Estrela............................... 66
Figura 13 – Ioiô Pokémon, da Estrela............................................................ 66
Figura 14 – Jogo Poké-Tapa, da Estrela........................................................ 67
Figura 15 – Guaraná Caçulinha...................................................................... 67
Figura 16 – Cartões telefônicos LigMania Pokémon...................................... 68
Figura 17 – Tazos Pokémon Elma Chips....................................................... 68
Figura 18 – Jó-Kén-Pokémon Elma Chips..................................................... 69
Figura 19 – Cartas de batalha Pokémon Elma Chips..................................... 69
Figura 20 - Pokémon Bulbasauro................................................................... 76
Figura 21 – Estratégia de ‘localização’........................................................... 81
Figura 22 – Estratégia transmídia................................................................... 84
Figura 23 – Estratégia Pokémon no Brasil..................................................... 85
8. 8
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Diferenças entre narrativa central de Pokémon x cultura............. 72
Tabela 2 – Música de abertura de Pokémon na primeira temporada............. 73
Tabela 3 – Pokémons e suas traduções......................................................... 75
Tabela 4 – Diálogos do episódio “The Kangaskhan Kid”................................ 79
Tabela 5 – Estratégias de lançamento............................................................ 82
9. 9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10
2 QUEM É ESSE POKÉMON? ........................................................................ 14
2.1 O NASCIMENTO DE UM “SONHO DE MARKETING” .............................. 14
2.2 A VIAGEM DE POKÉMON PARA O OCIDENTE ....................................... 20
3 CULTURA E NARRATIVA TRANSMÍDIA .................................................... 29
3.1 NOÇÃO DE CULTURA NO CONTEXTO ATUAL ....................................... 29
3.2 A CULTURA E O DISCURSO DAS MÍDIAS .............................................. 34
3.3 A NARRAÇÃO ONIPRESENTE: NARRATIVA TRANSMÍDIA.................... 38
3.3.1 O poder da narrativa das marcas ......................................................... 38
3.3.2 Narrativa, hipertexto e hipermídia ....................................................... 42
3.3.3 Narrativa transmídia .............................................................................. 44
4 PIKACHU VERDE E AMARELO: A NARRATIVA NO BRASIL ................... 49
4.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................................... 49
4.2 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO .............................................................. 51
4.3 A TRAJETÓRIA DE POKÉMON NO BRASIL ............................................ 57
4.4 ANÁLISE DA TRAJETÓRIA POKÉMON NO BRASIL ................................ 70
4.4.1 Localização e narrativa ......................................................................... 70
4.4.2 Estratégia transmídia ............................................................................ 81
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 86
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 90
10. 10
1 INTRODUÇÃO
A franquia Pokémon tomou conta do mundo inteiro entre os anos de 1997 e
2001. Milhões de crianças foram englobadas por uma completa estratégia de
narrativa transmídia: assistiam ao desenho animado, trocavam cards colecionáveis,
jogavam os games e consumiam toneladas de brinquedos. Fenômenos assim
ocorreram no passado, mas não com a mesma extensão e escala. Um produto
oriundo do oriente conseguiu cruzar o oceano e invadir o ocidente. Contudo, o quão
japonês é Pokémon? Ao ser exportado para outros países, a Nintendo of America se
encarregou de adaptar a franquia aos padrões estadunidenses, para não causar
estranhamento por parte da audiência ocidental.
A identidade cultural é um fator muito importante quando se analisam formas
simbólicas e suas relações com os receptores. A partir de suas experiências, de
seus contextos sócio-históricos, e da forma com a qual esses indivíduos se
enxergam no mundo, a maneira de interpretar um discurso torna-se diferente. Além
disso, no que tange as estratégias de marketing, nem todo o tipo de mídia e
abordagem funciona com todos os grupos, haja vista que estes são permeados
pelas variáveis citadas anteriormente.
O presente trabalho de conclusão busca explorar a questão da ‘localização’ –
termo de Katsuno e Maret (2004) - e narrativa transmídia no Brasil. A ‘localização’ é
uma expressão criada para explicar adaptações de discursos em âmbitos que vão
além da tradução do texto. Essa tradução é também de formas simbólicas, como
trilha sonora, ícones visuais e estrutura narrativa. Este esforço é sempre permeado
por um contexto sócio-histórico, que define as estratégias adotadas. Já a narrativa
transmídia é o desenrolar de uma história em várias mídias, que trabalham em
conjunto, para complementar a narrativa.
Assim, o problema de pesquisa é: quais foram os efeitos da série Pokémon
no Brasil? Dentro de efeitos, englobam-se aspectos como audiência, economia e
popularidade da série no país, sempre fazendo a relação com os países onde
Pokémon se originou e foi adaptado, Japão e Estados Unidos, respectivamente.
Para responder a esse questionamento central, alguns objetivos específicos foram
elencados.
Primeiramente, é necessário contextualizar Pokémon na perspectiva sócio-
histórica do Brasil e do mundo, já que tal visão explica muito de fenômenos como
11. 11
esse. No momento seguinte, objetiva-se realizar a comparação entre a série no
Japão, nos EUA e em nosso país, para encontrar semelhanças e diferenças na
‘localização’ da série, relacionando, sempre, com fatores culturais que levaram a tais
configurações. No âmbito da estratégia transmídia, se tem por objetivo comparar e
identificar a repercussão da narrativa transmídia de Pokémon nos três países
citados acima, bem como suas particularidades e similaridades.
O caráter da pesquisa é o do estudo exploratório. Este é classificado por não
ser conclusivo, auxiliando o pesquisador a solucionar e/ou aumentar sua expectativa
em função do problema que determinou. Tal estudo é uma opção quando não se
tem informação suficiente sobre determinado tema e se deseja conhecê-lo.
A escolha do caráter exploratório para essa pesquisa é buscar conhecimento
em um assunto não tão explorado, que é Pokémon no Brasil. O tipo de pesquisa é
qualitativo, pois os dados aqui obtidos não são quantificáveis e são dotados de certo
grau de ambiguidade, sendo passíveis de interpretações distintas. A metodologia
empregada na análise dos dados é a Hermenêutica de Profundidade, que se
constitui de três movimentos, que são interdependentes entre si: Análise Formal ou
Discursiva, Análise Sócio-Histórica e Interpretação/Reinterpretação.
Para encontrar informações que contribuíram para a pesquisa, foram
utilizadas técnicas de pesquisa como a bibliográfica e a documental. Na
bibliográfica, autores relacionados ao tema foram utilizados para a base da análise a
fim de delimitar conceitos e pontos de vista. Esta etapa é importante para o trabalho,
pois dá embasamento para a análise posterior. Já na pesquisa documental, foram
levantadas notícias, material publicitário, revistas e imagens na Internet. É
importante destacar que, por Pokémon ser um tema relativamente novo, e
pertencente a uma história que se encontra em constante movimento, a Internet foi o
meio escolhido para buscar os dados necessários para a análise, na falta de
documentos formais sobre o assunto.
Este trabalho é constituído de três capítulos. No primeiro, “Quem é esse
Pokémon?”, foi contextualizada a franquia, desde seu nascimento no Japão –
contido no subcapítulo “O nascimento de um sonho de marketing” - até os esforços
de adaptação da série nos Estados Unidos – no subcapítulo “A viagem de Pokémon
para o ocidente”. Neste é realizada a reflexão acerca da produção de Pokémon e até
que ponto a estratégia contou com a sorte, ou com planejamento puro. Os principais
12. 12
autores abordados neste capítulo são: Anne Allison (2004), Paul Gravett (2006),
Koichi Iwabuchi (2004), Hirofumi Katsuno (2004) e Jeffrey Maret (2004).
No segundo capítulo, “Cultura e narrativa transmídia”, são abordados
conceitos culturais e narrativos. Os autores escolhidos para este capítulo teóricos
são: Denys Cuche (1999), Manuel Castells (2001), John B. Thompson(2009), Patrick
Charaudeau (2006), Lev Manovich (2001) e Henry Jenkins (2009). O primeiro
subcapítulo, “Noção de cultura no contexto atual” aborda o assunto de identidade
cultural, responsável por uma parte da definição nossa como indivíduos. No segundo
subcapítulo, “A cultura e o discurso das mídias”, é discutida a questão da relação
entre a identidade cultural e a análise de discurso, sendo esta análise permeada por
diferenças e semelhanças culturais. No terceiro subcapítulo, “A narração
onipresente: narrativa transmídia”, é abordado o poder que as narrativas têm sobre
as marcas, o hipertexto e a hipermídia – conceitos que vêm antes dos estudos de
transmídia –, convergência de mídias e a própria narrativa transmídia.
Já o terceiro capítulo, “Pikachu verde e amarelo: a narrativa no Brasil”
compreende a análise dos dados obtidos permeado pelo problema de pesquisa e
seus objetivos específicos. No primeiro subcapítulo, é apresentada de forma
detalhada a metodologia utilizada para este trabalho, e os principais autores desta
etapa são: Neves (1996), Thompson (2009), Oliveira (2008) e Duarte (2008). No
segundo subcapítulo, são reunidos dados de contexto sócio-histórico, tanto do Brasil
quanto do mundo, no período que compreendeu o auge da série Pokémon em nosso
país: de 1999 a 2001. No terceiro subcapítulo, “A trajetória de Pokémon no Brasil”, é
o levantamento de dados acerca dos efeitos que a franquia teve nos consumidores
brasileiros, nos âmbitos social, econômico e histórico.
O quarto subcapítulo “Análise da trajetória Pokémon no Brasil” compreende a
interpretação dos dados obtidos durante todo o trabalho de conclusão, por
intermédio de quatro autores considerados mais relevantes: Thompson (2009),
Charaudeau (2006), Castells (2001) e Vincent (2005). Nesta análise, são discutidos
aspectos da adaptação e da narrativa transmídia de Pokémon do Japão para os
EUA, até chegar ao Brasil. Assim, busca-se entender quais os aspectos da
‘localização’ da série são semelhantes e quais são diferentes, e encontrar relações
com os teóricos descritos acima. Também faz parte da análise trazer à tona as
estratégias transmídia distintas que foram empregadas em cada um dos países, com
o intuito de entender os motivos das escolhas dos profissionais de marketing.
13. 13
A motivação para este trabalho partiu do interesse da autora pelo tema, uma
vez que este teve um papel importante em sua infância e pré-adolescência. Em sua
vida acadêmica, ao se deparar com a literatura de Henry Jenkins, “Cultura da
Convergência”, encontrou uma pequena passagem sobre estratégias transmídia
japonesas. E, entre elas, estava Pokémon. A identificação com o assunto foi
imediata, e a pesquisadora desejou buscar mais informações sobre a série, o que
culminou na definição deste TCC. A curiosidade, então, surgiu para avaliar até que
ponto os efeitos – e o sucesso - da série Pokémon foram influenciados pela
identidade cultural.
14. 14
2 QUEM É ESSE POKÉMON?
O primeiro capítulo da presente monografia irá abordar o objeto de pesquisa,
a franquia transmídia Pokémon. Iniciará com uma contextualização histórica da
série, bem como as mudanças que ocorreram no andamento da mesma de acordo
com diferentes mídias e aspectos culturais. O referencial teórico predominante
desse capítulo é o livro Pikachu’s Global Adventure: The Rise and Fall of Pokémon,
organizado por Joseph Tobin. Os autores principais são Anne Allison (2004), Paul
Gravett (2006), Koichi Iwabuchi (2004), Hirofumi Katsuno e Jeffrey Maret (2004).
2.1 O NASCIMENTO DE UM “SONHO DE MARKETING”
Luigi Longinotti-Boutoni (1999, p. 57), em seu livro Vendendo Sonhos,
escreve: “Uma empresa que vende sonhos nunca pode se limitar a vender
simplesmente produtos ou serviços; ela precisa vender uma experiência”. O ex-CEO
da Ferrari North America inseriu no vocabulário de marketing a expressão
“sonharketing” para definir a estratégia de “vender sonhos” para o cliente. Mas o que
exatamente são esses sonhos?
[...] sonhos são compostos de símbolos, chamamos de consumo simbólico
os impulsos multissensoriais que ligam emocionalmente a fantasia do
cliente ao produto físico. Do ponto de vista do consumo simbólico, os
produtos são vistos menos como entidades objetivas e muito mais como
símbolos subjetivos. [...] Os produtos e serviços de que os sonhos são feitos
contêm naturalmente muito mais peso simbólico do que aqueles que
satisfazem necessidades.
(LONGINOTTI-BOUTONI, 1999, p. 67)
O “sonharketing”, então, baseia-se na interpretação juntamente com a
moldagem dos desejos mais fortes dos consumidores. As empresas precisam cativar
os clientes por meio de sua imaginação, criando experiências fantásticas. O objeto
de pesquisa atual faz parte dessa gama de produtos e serviços (como a Ferrari,
Revlon e Coca-Cola) considerados verdadeiros sonhos que se tornaram realidade.
(LONGINOTTI-BOUTONI, 1999)
No final dos anos 80, a era de ouro dos games iniciava. Daquele para este
século, muito mudou, e a tendência no desenvolvimento de games tem sido na
direção de jogos mais complexos, que compele os jogadores para formas solitárias
de engajamento. Perturbado com essa tendência recorrente para o atomismo, um
jovem japonês de 18 anos chamado Tajiri Satoshi idealizou realizar um jogo que
15. 15
promovesse interação social – denominando-o Pokémon. (ALLISON, 2004). Como
Anne Allison (2004) descreve, aos 12 anos, Tajiri era um viciado em games, e
costumava jogar Space Invaders em um fliperama de sua cidade. Tajiri foi fisgado
por esses mundos virtuais como se estivesse na natureza.
Tajiri Satoshi realizou uma entrevista para a revista Time (CHUA-EOAN e
LARIMER 1999), contanto sua trajetória no universo Pokémon. Os próximos dois
parágrafos abordam essa matéria da revista. Juntamente com alguns amigos
(incluindo Ken Sugimori, o designer dos 151 primeiros Pokémons), Tajiri iniciou uma
revista em 1982 chamada Game Freak. Nela havia publicações de dicas e códigos
secretos de seus jogos favoritos. No entanto, Tajiri perseguia algo maior: "Nossa
conclusão foi: não havia muitos jogos de boa qualidade, então vamos fazer o nosso.”
Dessa forma, ele desmontou um console da Nintendo e aprendeu a fazer jogos
sozinho. Em 1989, com o lançamento do Game Boy da Nintendo, Tajiri descobriu
novos horizontes: no console portátil havia um cabo que poderia ligar dois aparelhos
juntos. "Eu imaginei um inseto se movendo para frente e para trás pelo cabo. Foi
isso que me inspirou”. Tajiri encontrou a fórmula que faria Pokémon ser um “sonho
de marketing” (GRAVETT, 2006, p. 75). Coletar criaturas levaria a trocas via Game
Boys, e eventualmente entre colecionadores de cartas e bonecos.
Ainda nesta entrevista (CHUA-EOAN e LARIMER 1999), Tajiri relata que,
mesmo após assinar o contrato para desenvolver o jogo, foram seis anos até sua
conclusão, em meio a altos e baixos. Dessa maneira, quando Pokémon foi
finalizado, em 1996, a tecnologia do Game Boy estava ultrapassada. Masakazu
Kubo, produtor executivo da companhia de publicações Shogakugan Inc. comenta:
“Nenhuma revista ou programa de TV estava interessada. [...] Nem criadores de
brinquedos”.
Contudo, os consoles portáteis ainda eram muito mais acessíveis para os
jovens japoneses. A companhia de Masakazu Kubo entendeu a mensagem e
lançou, juntamente com o game, uma série em mangá e os primeiros cards
colecionáveis. E esse foi apenas o início de parcerias:
Entrando na produção e em acordos de licença com companhias japonesas
- Game Freak, Creatures, Shogakukan and TV Tokyo, entre outras – e com
companhias estrangeiras, incluindo a subsidiária completamente deles, a
Nintendo of America, Wizards of the Coast (agora uma divisão da Hasbro),
4 Kids Enternainment e a Warner Brothers Network, a Nintendo criou um
leque de produtos inter-relacionados que dominaram o consumo infantil
entre 1996 e 2001, aproximadamente (TOBIM, 2004, p. 3, tradução nossa).
16. 16
Antes mesmo de ser conhecido como o animê, Pokémon inciou como jogo
para Game Boy, mangá e cards colecionáveis. No game, o objetivo era capturar 151
Pokémons durante a trajetória de um herói. Conforme Buckingham e Sefton-Green
(2006), o jogo Pokémon foi desenvolvido para explorar os pontos fortes da
plataforma (Game Boy), de uma maneira que iria à contramão das tendências
dominantes da indústria. Longe de aspirar aos realismos 3D da mesma forma que os
consoles contemporâneos, Pokémon visa à simplicidade gráfica. Apesar de criar um
mundo completamente ficcional como em Zelda e Final Fantasy – ambos voltados
para jovens adultos -, ele possibilita às crianças imaginarem a maior parte do mundo
elas mesmas.
Pokémon é um exemplo de narrativa transmídia, assunto que será abordado
no próximo capítulo. Contudo, é preciso contextualizar a história nesse ambiente
onde muitas mídias interagem em conjunto. Dessa forma, sem muito
aprofundamento nesse capítulo, narrativa transmídia, segundo Henry Jenkins:
Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas
plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e
ao comportamento migratório do público dos meios de comunicação, que
vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento
que desejam. (JENKINS, 2009, p. 29)
Nesse contexto, com um produto multiplataforma, a franquia constantemente
se reinventava. Na criação das revistas em quadrinhos (que vieram logo após o
lançamento do game) e na série de televisão, Pippi e Pikachu foram escolhidos
como os personagens principais, respectivamente. Contudo, nem Pippi ou Pikachu
eram os protagonistas no jogo para Game Boy (IWABUCHI, 2004). Iwabuchi ainda
completa:
Pippi (em inglês Clefairy) foi selecionado como o principal personagem
Pokémon para fazer a série de revistas em quadrinhos mais “engajante”.
Contudo, para atrair telespectadores mais jovens e meninas, bem como
suas mães, Pikachu substituiu Pippi como o personagem principal quando a
série de TV foi introduzida em 1997 (IWABUCHI, 2004, p. 63, tradução
nossa).
17. 17
Figura 1 – Pippi, Pokémon principal nos quadrinhos
Fonte: DOCTRUYEN. Disponível em: <http://doctruyen.vechai.info/pokemon-pippi-chap-3/>
Acesso em: 11 nov. 2012.
Figura 2 – Pikachu, personagem principal nas séries de TV
Fonte: POKEMON VERSUS DIGIMON. Disponível em:
<http://pokemonversusdigimon.blogspot.com.br/2010/06/pikachu.html>
Acesso em 11 nov. 2012.
Ainda segundo Iwabuchi (2004), o desenvolvimento da estratégia de
Pokémon foi obtido por tentativa e erro no mercado japonês. No momento em que
os componentes dessa estratégia se encaixaram no Japão, eles poderiam ser
utilizados sistematicamente para introduzir Pokémon ao mercado global. A
promoção da série no ocidente foi formada por um conjunto de desenhos animados,
revistas em quadrinhos, filmes, merchandising dos personagens e jogos de Game
Boy.
A tradição japonesa, até muito recentemente, foi de fornecimento de
eletrônicos. Conhecido como um produtor de tecnologia de alta qualidade
(automóveis, videocassetes, televisões), o selo Japonês na esfera cultural de
tecnologia ‘suave’ – música, dramas de televisão, ídolos pop – têm sido bem mais
18. 18
limitado. Como o designer do Walkman da Sony lamenta, enquanto a tecnologia
japonesa circula abertamente ao redor do mundo, poucas pessoas (fora do Japão)
têm sido similarmente impressionadas ou comovidas pela cultura japonesa
(ALLISON, 2004).
A dificuldade de emplacar sucessos culturais se devia, de maneira geral, ao
“odor cultural” que o oriente possui sobre o ocidente. Segundo Koichi Iwabuchi
(2004), professor de mídia e estudos culturais no Japão, o termo “odor cultural” é
utilizado para se referir à maneira em que cada característica cultural do país de
origem é associada a um produto em particular no processo de consumo.
Culturalmente, o oriente sempre demonstrou diferenças muito grandes em
relação ao ocidente. No Japão, segundo Paul Gravett (2006), a palavra “estrangeiro”
não existe. O que há é a palavra “gaijin”, que significa “pessoa de fora”. Dessa
forma, o país forjou uma imagem de autoisolamento, “selado pelo sangue e pela
tradição”. O primeiro país a interferir nessa cultura foi os Estados Unidos, em 1863,
quando seus navios entraram na baía de Edo. Contratos comerciais foram
assinados, cessando o isolamento oriental:
Dessa forma, já que os japoneses não podiam mais evitá-lo, o contato com
o mundo exterior seria ao menos feito em seus próprios termos, como parte
de seu dever patriótico para tornar a nação mais forte. (GRAVETT, 2006,
p.14)
Após os primeiros contatos, os japoneses se tornaram bons em aprender com
“as pessoas de fora” (GRAVETT, 2006). O fenômeno que ocorreu com o automóvel
e com o chip de computador, segundo Gravett (2006), onde os japoneses superaram
os EUA em seu próprio campo – tecnologia -, se repetiu com o mangá (a origem dos
desenhos animados japoneses, jogos e outras manifestações). Com a base dos
quadrinhos americanos e seu amor tradicional pela arte popular de entretenimento,
os japoneses “os ‘niponizaram’, de forma a criar um veículo narrativo com suas
próprias características” (GRAVETT, 2006, p.14). E, ainda segundo Gravett (2006,
p.14), excedendo os limites das tiras diárias ou dos gibis americanos de 32 páginas,
eles criaram quadrinhos com “narrativas longas e livres, feitas para ambos os sexos
e quase todas as idades e grupos sociais. Os japoneses transformaram os
quadrinhos em uma poderosa literatura de massa”.
Contudo, isso tornou o “odor cultural” (IWABUCHI, 2004, p.47), japonês muito
mais forte, abrindo margens para preconceitos do ocidente. Podem-se citar alguns
19. 19
exemplos contidos no livro de Paul Gravett - Mangá: como o Japão reinventou os
quadrinhos (2006, p. 13). Palavras como “excessos sadistas”, “canibalismo” e
“decapitações” descreviam os mangás em artigos de revistas britânicas como a New
Society e a The Great Hallway Bazaar nos anos 60 e 70. A própria palavra mangá
surgiu na língua inglesa com tom pejorativo. Um estudo realizado por Frederik
Schodt deu início a isso. Em sua publicação, ele explicava que os ideogramas “man”
significava “involuntário” e “ga”, “imagens”:
O ideograma “man”, Schodt completava, “tem um significado secundário e
‘moralmente corrupto’”, o que produziu a tradução “imagens irresponsáveis”.
E essa foi a definição que foi divulgada à exaustão pela mídia e pelos
críticos da área, assegurando a estigmatização do mangá no
Ocidente.(GRAVETT, 2006, p.13)
Segundo GRAVETT (2006, p.156), “O fato de que a aceitação do mangá fora
do Japão seja frívola e distorcida não deveria ser nenhuma surpresa”. O mesmo
ocorre para todas as outras manifestações do entretenimento japonês,
diferentemente do mercado tecnológico:
Sony é o principal exemplo de uma companhia japonesa que desde o início
aspirou ser uma companhia global. O nome da companhia e de seus
produtos, como o Walkman, é em inglês, ‘a língua mundial’. O que
caracteriza a Sony (e os manufaturadores japoneses em geral) é a
estratégia de marketing sensível às diferenças do mercado local. [...] ela é
mais bem expressa por algo que a Sony chama de ‘localização global’, ou
‘glocalização’. Para ter sucesso simultaneamente em mercados locais
diferentes, as companhias tentam ‘transcender diferenças nacionais
vestigiais e criar mercados globais padronizados, ainda continuando
sensível às peculiaridades de mercados locais e segmentos de
consumidores diferentes (IWABUCHI, 2004, p. 67, tradução nossa).
Dessa forma, o Japão se tornou famoso por exportar produtos tecnológicos e
‘culturalmente neutros’, em contraste à indústria de entretenimento norte-americana.
(IWABUCHI, 2004). Ainda de acordo com Iwabuchi (2004, p.56, tradução nossa):
“Hoskings e Mirus contrastam a facilidade de exportar commodities culturalmente
neutras com a dificuldade muito maior de exportar produtos que são culturalmente
enredados”. Esses produtos são, por exemplo, filmes japoneses, programas de
televisão e música (IWABUCHI, 2004). Isso também se deve à imagem negativa que
circula no ocidente, em que o Japão é uma terra de nerds que “evitam contato físico
e pessoal e estão ‘perdidos para o cotidiano’ por causa de sua imersão na realidade
computadorizada” (IWABUCHI, 2004, p.59, tradução nossa).
Em face desses desafios, os japoneses precisariam criar um produto para
exportação diferente do que existia para eles, onde as histórias eram feitas “para
20. 20
japoneses, culturalmente específicos e baseados em valores compartilhados,
criados sem preocupação com possíveis respostas estrangeiras à sua abordagem
do sexo, do cristianismo e de outras questões polêmicas” (GRAVETT, 2006, p. 156).
O diretor da versão animada do aclamado Ghost In The Shell (CREATOR..., [200?]),
Oshii Mamoru, diz que os animadores e cartunistas japoneses inconscientemente
escolheram não desenhar personagens nipônicos realistas, e sim, personagens
baseados em pessoas caucasianas (IWABUCHI, 2004).
2.2 A VIAGEM DE POKÉMON PARA O OCIDENTE
A entrada positiva e definitiva do entretenimento japonês nos mercados
ocidentais (especialmente nos EUA) se deu com ajuda da Marvel Comics e da onda
“cyberpunk”, liderada por Neuromancer, romance de William Gibson, de 1984. Em
1988, a Marvel Comics lançou os quadrinhos originais de Akira, escrito por Katsuhiro
Otomo com a diferença de ter trabalhado em uma colorização que lembrava o
cinema (os originais eram em preto-e-branco) (GRAVETT, 1996). Em novembro de
1995, o filme animado Ghost in the Shell - O Fantasma do Futuro, no Brasil (FILHO,
[2000-2010]) - foi às telas simultaneamente no Japão, América e Grã-Bretanha
(IWABUCHI, 2004):
[...] esse mercado nascente foi ameaçado em vários países por excessos na
produção, escolhas editoriais malfeitas e cobertura tendenciosa por parte da
imprensa. Apesar disso ele sobreviveu e prosperou atraindo novas
gerações de jovens leitores com adaptações de sucesso da TV e jogos para
computadores, além da internet, já que se tornou mais fácil baixar e assistir
a trechos ou episódios completos de anime, ler amostras de mangás e
compartilhar descobertas [...] com as comunidades globais (GRAVETT,
1996, p. 159).
Segundo Iwabuchi (2004), nos anos 90, a Nintendo, a Sony e a Sega – três
companhias japonesas – dominavam o mercado de jogos digitais. Jogos como
Super Mario Brothers e Sonic exemplificam a popularidade dos softwares nipônicos.
De acordo com uma pesquisa de 1995 – citação de Iwabuchi (2004) do livro Sekai
Shohin no Tsukurikata: Nihon Media ga Sekai o Sesshita hi, de Akurosu
Henshushitsu -, Mario havia se tornado um personagem mais conhecido que o
Mickey Mouse entre as crianças norte-americanas. E, foi nesse contexto que surgiu
Pokémon no mundo ocidental.
21. 21
Jenkins (2009, p. 183) afirma que “A narrativa transmídia mais elaborada, até
agora, talvez esteja nas franquias infantis, como Pokémon e Yu-Gi-Oh!”. Jenkins
(2009, p. 283) cita os professores de pedagogia David Buckingham e Julian Sefrom-
Green, que dizem: “Pokémon é algo que você faz, não algo que você apenas lê, vê
ou consome.” A série foi exibida pela primeira vez no Japão em 1997. Iniciou como
um jogo para Game Boy, mas “[...]passou a ser desenho de TV, cardgame, mangá,
brinquedo, filme e sonho de marketing” (GRAVETT, 2006, p. 75).
Diferentemente do Japão, onde Pokémon começou como um jogo para Game
Boy, a franquia surgiu nos Estados Unidos primeiramente como um programa de
televisão. A Nintendo of America (NOA) e a Warner Brothers juntaram forças para
criar uma campanha massiva para o programa de televisão. Dessa forma, alguns
meses depois, os jovens telespectadores norte-americanos esperavam pelo próximo
passo da narrativa de Pokémon. A série de televisão, então, preparou o mercado
para games, cards colecionáveis e merchandising que logo seriam introduzidos
(KATSUNO;MARET, 2004).
Contudo, não foi apenas a ordem dos esforços midiáticos que foi alterada
nessa exportação de Pokémon do oriente para o ocidente. “A série de TV Pokémon
apresentada nos Estados Unidos (e em qualquer outro lugar do mundo fora da Ásia)
não é a mesma série que foi ao ar no Japão” (IWABUCHI, 2004, p. 67, tradução
nossa). Ainda conforme Iwabuchi (2004), copiando os esforços de marketing das
commodities tecnológicas, Pokémon foi adaptado para o mundo globalizado.
Nesse ponto, é importante fazer distinção entre os termos ‘tradução’ e
‘localização’1. Tradução é o ato de traduzir, que por sua vez significa “transpor,
transladar, de uma língua para outra, verter” (FERREIRA, 1993, p. 541). Para
entender o processo de ‘localização’, Katsuno e Maret (2004, apud Delabastita 1990,
p. 101-102) descrevem um texto audiovisual sendo constituído de três signos: signos
verbais transmitidos acusticamente (diálogo), signos não verbais transmitidos
acusticamente (efeitos sonoros e música de fundo) e signos linguísticos transmitidos
visualmente (expressões faciais, entre outras). Como termo “tradução” se refere
apenas a palavras, para descrever o que foi realizado com a série de televisão em
questão ao ser exportada para os Estados Unidos, o termo “localização” é mais
1
Tradução nossa do termo em inglês citado por Katsuno e Maret: ‘localization’.
22. 22
adequado, pois indica o processo de modificação de todos os signos contemplados
acima (KATSUNO;MARET, 2004).
Dessa maneira, em 1998, ao ser contratada pela Nintendo of America para a
dublagem e adaptação da série de TV, a 4Kids Entertainment precisava fazer
esforços para que o desenho animado fosse acessível e atraente para as crianças
estadunidenses e sem objeções por parte de seus pais. Outra preocupação era a
forma com a qual a narrativa da televisão iria interagir e dar suporte aos produtos
relacionados, como videogames, cards colecionáveis, brinquedos, livros e roupas.
(KATSUNO;MARET, 2004). Já que, embora Pokémon estivesse focado em uma
audiência jovem, a série é oriunda da tradição do animê. É necessário aqui fazer um
adendo, com a definição do iDicionário Aulete ([2000-2010]) em relação à palavra
‘animê’. É um desenho animado japonês, gerado por adaptações de histórias em
quadrinho homônimas, conhecidas como mangá. Sendo o animê tipicamente
japonês, alguns episódios estavam predestinados a incluir temas que normalmente
não são encontrados nos desenhos animados ocidentais, mais especificamente,
norte-americanos (KATSUNO;MARET, 2004).
Para Katsuno e Maret (2004), o processo de ‘localização’ da série de
Pokémon nos Estados Unidos precisava estar de acordo com o estilo mais limitado
de desenho animado normalmente assistido pelas crianças norte-americanas. Para
que isso ocorresse, alguns elementos da série japonesa acabaram por ser
modificados ou eliminados, e novos pontos de referência e associações foram
criados. Em algumas situações, novos significados totalmente diferentes do original
surgiam em virtude dessa ‘localização’.
Enquanto nas narrativas japonesas “[...] Bem e mal são raramente
apresentados em preto e branco, e heróis normalmente questionam suas
motivaçoes e valores” (KATSUNO;MARET, 2004, p.83, tradução nossa), nas
narrativas norte-americanas, a dicotomia entre o bem e o mal é claramente definida.
Dessa forma, os ‘localizadores’ adaptaram a série para que Ash fosse, sem sombra
de dúvida, o herói. (KATSUNO;MARET, 2004). Diferentemente das “histórias
irresponsáveis” descritas por Gravett (2006, p.13), os comics norte-americanos
necessitavam um compromisso com a moral e lógica, como David Kunzle (1973)
comenta em The Early Comic Strip.
Um problema identificado na ‘localização’ da série foi a necessidade de retirar
traços de violência contidos nela. Segundo Katsuno e Maret (2004), o episódio: “A
23. 23
Lenda de Dratini” é um exemplo da incapacidade dos ‘localizadores’ de suprimir a
violência. Este episódio nunca foi ao ar nos Estados Unidos. Nesta parte da história,
Satoshi, Kasumi e Takeshi (Ash, Misty e Brock) vão para um local chamado “Safari
Zone”. Lá eles encontram um homem estilo cowboy chamado Kaiza, com uma
personalidade facilmente irritável. Enquanto conversa com Ash, ele aponta uma
arma para o protagonista e o ameaça. Neste mesmo episódio, Kaiza atira nos vilões
da Equipe Rocket, apesar de ninguém ter ficado seriamente machucado.
De acordo com Katsuno e Maret (2004, p.90, tradução nossa), “está claro
porque este episódio foi suprimido do mercado dos EUA. A ameaça de violência
com armas, particularmente nas escolas dos EUA, faz dessa paródia de um cowboy
fanfarrão e violento problemática”. Os autores ainda lembram que, em 1998, ano
que Pokémon estreou nos Estado Unidos, quatro massacres ocorreram em escolas
no país, e nove crianças perderam suas vidas. O massacre de Columbine ocorreu
na primavera seguinte, no momento em que a febre Pokémon estava no auge.
Segundo Jorge Nóvoa (2006), no documentário Tiros em Columbine, Michael Moore
“procura despertar o povo americano para algo que se encontra inevitavelmente
cada vez mais no centro da propulsão do capitalismo mundial: a indústria de
armamentos” (NÓVOA, 2006, p.4). Ainda segundo Nóvoa (2006), o número de
mortes anuais por armas de fogo nos Estados Unidos era de 11 mil em 2006.
Outro aspecto importante na mudança no tom da narrativa foi na trilha sonora.
De acordo com Katsuno e Maret (2004, p. 84, tradução nossa):
“[…] O time de ‘localizadores’ dos EUA alteraram a trilha sonora japonesa
significativamente. […] A série Pokémon japonesa possui uma partitura
orquestral dramática que tende a dar peso e intensidade e intervalos de
silêncio para construir uma tensão dramática. […] A adaptação americana
de Pokémon não utiliza a música , como na versão japonesa, para
aumentar a tensão e drama, mas na tradição dos desenhos animados
americanos, para sinal de entrada aos telespectadores para o tom da ação
na tela. A trilha sonora dos EUA tem muito mais qualidade pop do que a
original japonesa.
Além da evidente alteração na trilha sonora, aspectos visuais também
englobaram a ‘localização’ da série. De acordo com Katsuno e Maret (2004), os
‘localizadores’ da 4Kids Enterntainment procuraram retirar todos os traços exóticos
ou exclusivamente japoneses da série para a audiência estadunidense. Muitas
características do original caracterizadas como japonesas foram escondidas,
suavizadas e até removidas. Logo, o processo foi muito mais do que apenas traduzir
o script para o inglês. Uma das mudanças mais consistentes foi a remoção de letras
24. 24
japonesas. Outras referências visuais relacionadas à cultura, cotidiano e
alimentação foram por vezes eliminadas ou colocadas em segundo plano no
processo de edição, como sugerem as imagens a seguir:
Figura 3 – Caracteres japoneses no primeiro episódio
Fonte: DOGASU’S BACKPACK. Disponível em:
<http://dogasu.bulbagarden.net/comparisons/kanto/ep001.html>.
Acesso em 19 ago. 2012.
Figura 4 – Os caracteres japoneses foram inteiramente removidos
Fonte: DOGASU’S BACKPACK. Disponível em:
<http://dogasu.bulbagarden.net/comparisons/kanto/ep001.html>.
Acesso em 19 ago. 2012.
25. 25
No blog Dogasu’s Backpack ([2000-2012]) é realizada uma análise minuciosa
de todos os episódios da primeira temporada de Pokémon, no que tange o esfoço de
‘localizar’ a série. As imagens acima são do episódio de número 1, marcando a
primeira mudança na parte visual. Em outras situações, o que ocorria era a
eliminação de caracteres japoneses e a colocação de uma tradução, nem sempre
literal, como sugere o autor do blog Dogasu’s Backpack ([2000-2012], tradução
nossa): “Quando a mãe do Satoshi traz todas aquelas pessoas para o laboratório de
Ochid-Hakase para torcer para ele, essas pessoas estão segurando um banner que
diz Ganbare Satoshi! (Boa sorte, Satoshi!). Isso foi traduzido pelos dubladores”.
Figura 5 – Versão original do banner
Fonte: Dogasu’s Backpack. Disponível em:
<http://dogasu.bulbagarden.net/comparisons/kanto/ep001.html>.
Acesso em 19 ago. 2012.
Figura 6 – Na tradução para o inglês, o significado é: “Vai, Ash, Vai!”
Fonte: Dogasu’s Backpack. Disponível em:
<http://dogasu.bulbagarden.net/comparisons/kanto/ep001.html>.
Acesso em 19 ago. 2012.
Outra cena que merece atenção nesta análise ainda se refere ao primeiro
episódio. No blog Dogasu’s Backpack ([2000-2012], tradução nossa), há a descrição
dessa cena: “Quando Kasumi pesca Satoshi para fora da água, ela diz: ‘Você está
bem?’ Satoshi diz que ele está bem e Kasumi lhe dá um tapa na cara, dizendo que
ela estava perguntando sobre o Pokémon dele, não sobre ele.” O que ocorre na
26. 26
versão norte-americana, segundo o autor do blog, é o congelamento da cena no
rosto de Ash (Satoshi) para remover o tapa.
Como Katsuno e Maret (2004) observam, é provável que a remoção deste
tapa ocorreu para amenizar indícios de um relação amorosa entre Satoshi (Ash) e
Kasumi (Misty). Em filmes clássicos de Hollywood, quando uma mulher bate em um
homem no rosto, especialmente em seu primeiro encontro, indica um envolvimento
romântico futuro, que normalmente se torna real no final do filme, como em E O
Vento Levou e Indiana Jones.
Em outras situações, diálogos inteiros são modificados de forma a reduzir
estranhamento em relação à cultura. Conforme analisado por Katsuno e Maret
(2004), na cena final de “Nibi Jimu no Tatakai”, Brock encontra seu pai
desaparecido. Após sua partida, Brock ficou incumbido de cuidar de seus dez (10)
irmãos. Neste episódio, seu pai se oferece para cuidar das crianças para que Brock
possa perseguir seu sonho de ser um treinador de Pokémons. Takeshi (Brock)
dispara rapidamente as instruções de como cuidar das crianças a seu pai.
Na versão japonesa traduzida por Katsuno e Maret (2004, p. 87, tradução
nossa), Takeshi diz: “Jiro gosta de aka-miso, Saburo sempre toma shiro-miso, mas
Imoko sempre comerá apenas azu-miso. E Goro insiste em sumashi-jiru”. Já na
versão americana, lançada pela 4 Kids, a fala é diferente: “Suzy sempre rasga seus
vestidos então é melhor você aprender a costurar, e Timmy come apenas espaguete
gelado no café da manhã. Tommy gosta de cereal no jantar”.
Essa obviamente não é uma tradução literal do script japonês. Aka-miso,
shiro-miso, azu-miso e sumashi-miso são tipos de sopas japonesas. Sem uma
adaptação, muitos telespectadores americanos não entenderiam que se tratava de
comida. Em contraste a isso, “espaguete gelado para o café da manhã” e “cereal no
jantar” são acessíveis para a audiência ocidental. Além disso, continua
demonstrando a caótica maneira de Brock cuidar das crianças (KATSUNO;MARET,
2004).
De certa forma, traduzir desenhos animados japoneses é muito mais fácil do
que traduzir mangás. Paul Gravett discorre sobre o assunto:
Além do tamanho considerável das histórias e as dificuldades de tradução,
os quadros precisavam ser rearranjados para poder ser lidos da esquerda
para a direita. E não é só uma questão de “inverter” a página inteira como
num espelho: isso pode levar personagens destros a se tornarem canhotos
ou as dobras e nós das roupas tradicionais podem acabar ficando fora de
ordem. Por outro lado, se você mantiver os quadros “não invertidos”, mas
27. 27
inverte sua sequência, as falas dos personagens podem acabar ficando fora
de ordem (GRAVETT, 2006, p. 156).
Em comparação, ainda segundo Gravett (2006), os desenhos animados
nipônicos demandavam, proporcionalmente, alterações significativamente menores:
títulos adaptados, dublagem, e alguns cortes nas cenas com traços de violência,
para a adequação às normas televisivas do país de destino. Citado por Iwabuchi
(2004), Kubo Masakasu, um dos encarregados pela produção da série de televisão,
explica que ele e outros produtores acreditavam que Pokémon seria relativamente
fácil de ‘localizar’ para o mercado Global, pois na maioria das aventuras de Satoshi e
Pikachu parecem ser mukokuseki (ocidentais) e não há aspectos religiosos
envolvidos. Parecia fácil produzir versões internacionais apenas apagando
caracteres japoneses o máximo possível.
No entanto, o trabalho de ‘localização’ se deu de maneira muito mais intensa
do que Kubo previa: segundo Iwabuchi (2004), o produtor que primeiro trouxe
objeções às mudanças propostas, admite que a estratégia agressiva contribuiu para
o sucesso global de Pokémon. Assim, comprovando a hegemonia da cultura norte-
americana sobre a japonesa, a versão refeita nos EUA foi exportada para o resto do
mundo. A ambição da NOA (Nintendo of America) era justamente de tornar
Pokémon um produto global, em vez de japonês (IWABUCHI, 2004).
Nesse sentido, de acordo com Buckingham e Sefton-Green (2006 p. 19), “[…]
a diferença entre Pokémon e fenômenos anteriores pode ser uma questão de escala
ou grau, em vez de tipo”. O jogo para Game Boy foi traduzido para inglês, francês,
alemão, espanhol e português. O programa de televisão e os filmes foram ainda
mais longe, incluindo versões em italiano, mandarim, cantonês, coreano, hebraico e
grego. (IWABUCHI, 2004)
Como foi observado nesse capítulo inicial, Pokémon conquistou o mundo com
sua narrativa transmidiática com dimensões dificilmente vistas em outras febres do
mesmo gênero. Contudo, não bastou apenas a criação de uma estratégia no oriente:
grande parte do trabalho de disseminação da franquia se deu graças a esforços de
‘localizadores’ da Nintendo of America (NOA). Neutralizando aspectos culturais da
narrativa e adaptando-a a valores morais estadunidenses, Pokémon é a prova de
que nada que ocorre no mercado atual é por acaso. A sorte esteve ao lado de Tajiri
nos primeiros momentos, mas foi a preocupação por parte da NOA com a cultura e
com as diferentes modalidades da narrativa que realmente configuram a série como
28. 28
notável. No próximo capítulo serão abordados temas teóricos relacionados ao objeto
de pesquisa, iniciando por aspectos culturais, passando por narrativa e narrativa
transmídia.
29. 29
3 CULTURA E NARRATIVA TRANSMÍDIA
Como foi visto no capítulo anterior, a influência da cultura na construção e
adaptação da série Pokémon é direta e também um dos fatores de sucesso da
franquia. Sem a preocupação de ‘localizadores’, a narrativa em si não poderia ser
entendida em outros locais fora do Japão, e o efeito transmidiático não ocorreria
com a mesma abrangência. Nesse capítulo será abordada a noção de cultura, sua
importância na construção de discursos, e a narrativa transmídia. Os principais
autores escolhidos são: Denys Cuche (1999), Manuel Castells (2001), John B.
Thompson (2009), Patrick Charaudeau (2006), Lev Manovich (2001) e Henry
Jenkins (2009).
3.1 NOÇÃO DE CULTURA NO CONTEXTO ATUAL
De acordo com Denys Cuche (1999), a cultura é necessária para estudar as
diferenças humanas além do âmbito biológico. De certa forma, ela dá explicações
mais satisfatórias para a diferença entre os povos. Ainda segundo o autor:
O homem é essencialmente um ser de cultura. O longo processo de
hominização, começado há mais ou menos quinze milhões de anos,
consistia fundamentalmente na passagem de uma adaptação genética ao
meio ambiente natural a uma adaptação cultural (CUCHE, 1999, p. 9-10).
Cuche (1999, p. 10) pondera que “a noção de cultura se revela então o
instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos
comportamentos humanos. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela
cultura”. O antropólogo Lévi-Strauss (2003) conceitua a cultura como todo e
qualquer conjunto etnográfico que demonstra diferenças significativas em relação a
outros. No entanto, a definição de cultura é muito abrangente. Segundo Cuche
(1999), a palavra ‘cultura’ passou por diversas modificações ao longo dos anos. No
início do século XIV a palavra significava a ação de cultivar a terra, e foi apenas no
meio deste mesmo século que se forma o sentido conotativo, e ‘cultura’ “pode
designar então a cultura de uma faculdade, isto é, trabalhar para desenvolvê-la”.
(CUCHE, 1999, p.19)
O sentido figurado de cultura começou a se popularizar no século XVIII, na
França. Sua entrada no Dicionário de Academia Francesa em 1718 é seguida
normalmente de um complemento, como “cultura das artes”, “cultura das letras”,
30. 30
entre outros. (CUCHE, 1999). O autor ainda complementa dizendo que, com o
passar dos tempos, a palavra foi se desvencilhando dos complementos anteriores e
passa a ser ligada à “educação” ou “formação” do espírito. Trata-se de “ter cultura”
no sentido oposto à natureza: ser culto. Assim, no Iluminismo a cultura é “a soma
dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade” (CUCHE, 1999, p. 20). O
surgimento da palavra “civilização”, utilizada para classificar povos com mais ou
menos cultura, dá origem aos pensamentos na cultura como vemos atualmente
(CUCHE, 1999).
Ainda no século XVIII, na Alemanha, surge a palavra Kultur, que parece a
transcrição exata da palavra francesa. (CUCHE 1999). Cuche (1999) destaca a
diferença entre a aristocracia e a burguesia alemã. Na primeira, o Francês era a
língua utilizada, remetendo à cultura e grande saber. Já na burguesia, a palavra
Kultur é oriunda do alemão e é uma forma de oposição à cultura relacionada à
civilização da nação francesa, com sua maneira cerimonialista e superficial. Para a
classe sem poder, Kultur significava o enriquecimento intelectual e espiritual.
A concepção universalista da palavra cultura irá surgir muitos anos mais
tarde, com o fundador da antropologia britânica, Edward Burnett Tylor, de acordo
com Cuche (1999). Em 1871, Tylor escreve que:
Cultura e significação [...] são um conjunto complexo que inclui o
conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as
outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro
da sociedade (CUCHE apud TYLOR, 1999, p. 35).
Em oposição à Tylor, com a concepção de cultura particularista, Franz Boas,
em 1986, nos Estados Unidos, traz outra visão antropológica para a cultura. Para
ele, a principal diferença entre os povos e grupos humanos é cultural, e não racial.
Ele abandona o conceito de “raças” e passa a estudar “as culturas” e não apenas a
“cultura” de Tylor (CUCHE, 1999). Assim, Boas se preocupava em “não somente
descrever os fatos culturais, mas de compreendê-los juntando-os a um conjunto ao
qual eles estavam ligados” (CUCHE, 1999, p. 45).
Durkheim trouxe o conceito de estudos das culturas para a França. No
entanto, o pai da sociologia moderna não se interessava diretamente aos estudos
antropológicos, mas trouxe elucidações interessantes ao termo ‘civilização’ ao
descartar a ideia de povos primitivos e civilizados (CUCHE, 1999). Muitos outros
estudos na área culminaram na teoria de Lévi-Strauss, citado no início desse
31. 31
subcapítulo. Segundo Cuche (1999, p. 95), em 1950, Strauss definiu a cultura dessa
maneira:
Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas
simbólicos. No primeiro plano destes sistemas colocam-se a linguagem, as
regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião.
Todos estes sistemas buscam exprimir certos aspectos da realidade física e
da realidade social, e mais ainda, as relações que estes dois tipos de
realidade estabelecem entre si e que os próprios sistemas simbólicos
estabelecem uns com os outros.
De acordo com Cuche (1999), a marca da antropologia estrutural de Strauss
é: além de estudar as variações culturais, pretende analisar a invariabilidade da
cultura. Para Strauss, não se pode fugir da referencia da ‘cultura’ como “capital
comum”. Este é a referência para que grupos sociais criem seus próprios modelos
(CUCHE, 1999). Nesse sentido, apesar da amplitude do termo cultura para os
estudos da sociedade, a linha utilizada na presente monografia seguirá
primariamente o conceito de Strauss.
Cuche (1999) pondera que apenas as diferenças culturais não são fatores de
separação entre grupos etno-culturais. Para o professor de antropologia, “o que cria
a separação, a ‘fronteira’, é a vontade de se diferenciar e o uso de certos traços
culturais como marcadores de sua identidade específica” (CUCHE, 1999, p. 200).
Dessa forma, pode-se perceber que as diferenças culturais são importantes quando
se considera que elas possuem uma “identidade cultural”:
Não se pode pura e simplesmente confundir as noções de cultura e
identidade cultural ainda que as duas tenham uma grande ligação. Em
última instância, a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao
passo que as estratégias de identidade podem manipular e até modificar
uma cultura que não terá, então, quase nada em comum com o que ela era
anteriormente [...] A identidade remete a uma norma de vinculação,
necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas (CUCHE,
1999, p. 176).
Tal identidade é descrita por Castells (2001, p. 23) como “o processo de
construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto
de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras
fontes de significado”. Esses atributos são a forma de uma cultura ser conhecida
pelos outros, a noção de “nós e eles” (CASTELLS apud CALHOUN, 2001). A
construção de identidades, ainda segundo Castells (2001, p. 23), é sempre oriunda
da “história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória
coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho
religioso”. Assim, indivíduos, grupos sociais e sociedades interpretam o significado
32. 32
dos aspectos citados anteriormente em função de tendências sociais e culturais que
estão dentro de sua estrutural social, assim como seu ponto de vista no contexto
espaço-temporal (CASTELLS, 2001).
Assim, é crucial, quando se leva em conta o conceito de cultura, pensar
nessas manifestações também como criações de identidades culturais que vão além
das diferenças entre os sistemas de cultura. Segundo Lévi-Stauss (2003), esses
sistemas são diversos, podendo ser universal, continental, nacional, provincial, local,
familiar, profissional, confessional, político, entre outros. Todavia, pensar em cultura
apenas no sentido de diferenciação é insuficiente.
Em um mundo globalizado, diferentes sistemas se comunicam (CUCHE,
1999). Para Richard Sennett (2006), a globalização possui diferentes interpretações,
como a do sociólogo Leslie Sklair, que considera o fenômeno apenas no âmbito de
corporações multinacionais, e sustenta que o jogo não irá mudar de acordo com o
país dominante (ele sustenta que os chineses podem um dia desempenhar o mesmo
papel que as multinacionais estadunidenses fazem hoje). Ainda segundo Sennett
(2006), críticos da página nova (referente ao novo capitalismo, com teorias opostas
aos ensaios Marxistas) acreditam que há mais a ser observado:
[...] a ascensão de imensas cidades interligadas numa economia global
própria; inovações que, na área da tecnologia de comunicações e dos
transportes, muito pouco tem a ver com as maneiras como os indivíduos
costumavam viver, com suas formas de fazer contato ou os tipos de
transportes dos bens e produtos (SENNETT, 2006, p. 25).
A sociedade atual passa por um momento onde identidade e globalização são
tendências presentes, mas conflitantes. (CASTELLS, 2001). De acordo com Castells
(2001), o novo capitalismo e as inovações na tecnologia de informação trouxeram
uma configuração social diferente: a sociedade em rede. Essa nova configuração
está sendo difundida em todo o mundo, e se caracteriza por uma cultura de
“virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado
e altamente diversificado” (CASTELLS, 2001, p.17), onde o padrão de vida está se
transformando. Há mais flexibilidade e instabilidade nas estruturas de produção.
Pierre Lévy (1999) introduz a ideia de sociedade em rede quando aborda a
cibercultura. Segundo Lévy, o Ciberespaço é “o espaço de comunicação aberto pela
interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY,
1999, p. 92). Este está em constante mutação, como sugere o autor, já que o digital
é “fluido [...], desprovido de qualquer essência estável” (LÉVY, 1999, p. 27). A
33. 33
sociedade em rede de Castells (2001) obrigatoriamente perpassa o conceito
levantado por Lévy: a inteligência coletiva (1999). Esta é uma das grandes
responsáveis da mutação do espaço cibernético. Lévy (1999) resgata a ideia de
Chardin em relação ao pensamento coletivo, em que já não é possível negar que
uma rede de filiações econômicas e psicológicas está em formação em crescente
velocidade, e se encontra na vida das pessoas cada vez mais entrelaçada.
Atualmente, é muito difícil agir ou pensar de maneira que não a coletiva.
Para Pierre Lévy, a inteligência coletiva “é uma inteligência distribuída por
toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta uma
mobilização efetiva das competências” (LÉVY, 1999, p. 28). De certa forma, a
inteligência coletiva é a forma mais viva da sociedade em rede. Para essa realmente
florescer, Lévy (1999) destaca que é necessário existir o Ciberespaço, pois ele
funciona como suporte dessa inteligência e é também uma das principais condições
para seu desenvolvimento.
Seria falacioso, no entanto, dizer que a inteligência coletiva e a sociedade em
rede proporcionam a homogeneização completa da cultura e das identidades
culturais. De acordo com Castells (2001), a humanidade se encontra em uma era em
que expressões de identidade coletiva vão à contramão da globalização em virtude
das diferenças existentes entre sociedades. Para o autor, “Essas expressões
encerram ações múltiplas, são altamente diversificadas e seguem os contornos
pertinentes a cada cultura, bem como às fontes históricas da formação de cada
identidade” (CASTELLS, 2001, p.18). No segundo volume de seu livro “O poder da
identidade” (2001), Castells estuda as diferentes manifestações sociopolíticas que
envolvem diversos países, a fim de entender processos sociais que são ao mesmo
tempo diferentes, mas interligados quanto a seu significado, formando então uma
relação direta com a monografia em questão.
Logo, pode-se perceber que a cultura e identidade cultural são, ao mesmo
tempo, propícias para a separação e para a convergência. A globalização trouxe
muitos pontos de contato entre diferentes nações e grupos sociais, mas também
acentuou diferenças. Assim, a definição de Castells (2001, p. 19) de “sociedades
culturalmente inter-relacionadas” serve a presente monografia para trazer a
compreensão de por que a ‘localização’ da série Pokémon foi tão importante para
que se tornasse um fenômeno transmídia por todo o mundo.
34. 34
3.2 A CULTURA E O DISCURSO DAS MÍDIAS
No subcapítulo anterior foi contextualizado o termo cultura e suas diferentes
interpretações. Foi observado que a cultura pode ser ao mesmo tempo força
divergente e convergente em relação à identidade. Retomando o conceito de que a
natureza do homem “é inteiramente interpretada pela cultura” (CUCHE, 1999, p.10),
as ideias abordadas a seguir serão no âmbito dos espaços de interação entre as
pessoas e o discurso, permeados pela cultura.
Em seu livro Ideologia e Cultura Moderna (2009), Thompson propõe uma
nova análise cultural, por meio do estudo das formas simbólicas. Esta é denominada
como concepção estrutural da cultura. Esta vem para enfatizar tanto o caráter
simbólico dos fenômenos culturais, como a maneira que tais fenômenos se inserem
nos seus contextos sociais estruturados. (THOMPSON, 2009). O autor ainda
enfatiza que, sendo formas simbólicas, os fenômenos culturais se constituem na
interpretação por parte das pessoas em suas vidas cotidianas. Esta interpretação
está sempre inserida em contextos e processos socio-históricos, e, por meio destes,
se produz, se transmite e se recebe.
As formas simbólicas são, para Thompson (2009), expressões de um sujeito e
para um sujeito (ou sujeitos). O sujeito produz, constrói ou emprega uma forma
simbólica perseguindo certos objetivos ou propósitos e busca expressar por si
mesmo o que quer dizer. Este sujeito produtor também possui a intenção de ser
entendido por outro sujeito (ou mais de um) recebe a mensagem e a interpreta de
acordo com seu entendimento. (THOMPSON, 2009). Assim, as formas simbólicas
serão produzidas e compreendidas pelos sujeitos nas cinco características das
formas simbólicas: intencional, convencional, estrutural, referencial e contextual.
De maneira resumida, as características podem ser entendidas como formas
de interação cultural. A primeira, intencional, implica em dizer que as formas
simbólicas são sempre intencionais, a transmissão de algo de um sujeito para outro
(ou outros). A convencional supõe que toda a produção, construção e interpretação
das formas simbólicas precisam passar por regras, códigos e convenções. Tais
formas também são estruturais, ou seja, possuem uma estrutura normalmente inter-
relacionada com outros elementos da cultura e do contexto, por exemplo. Em
relação ao seu aspecto referencial, tais formas sempre irão representar, referir-se ou
dizer algo sobre alguma coisa. Já a última característica é a mais pertinente à
35. 35
presente monografia: o aspecto contextual das formas simbólicas. Essas são
sempre inseridas em contextos e processos sociais e históricos, sendo específicos
dos âmbitos em que são produzidas, transmitidas e recebidas (THOMPSON, 2009).
O conceito do aspecto contextual das formas simbólicas dialoga diretamente
com o pensamento de Cuche (1999). Uma das naturezas humanas é a
comunicação, e as formas simbólicas são produzidas para significar algo para a
alguém (THOMPSON, 2009). Tais formas irão possuir uma interpretação por parte
de quem recebe a mensagem, cujo entendimento irá depender do aspecto
contextual destas. Ao examinar tal aspecto, Thompson (2009) afirma que, a inserção
das formas simbólicas em um contexto social implica que, mesmo sendo produção
de um sujeito, este está inserido em um contexto sócio-histórico específico, e dotado
de habilidades e recursos que nem sempre todos possuem. Da mesma maneira, os
sujeitos interpretantes também se encontram na mesma situação, o que influenciará
diretamente a interpretação da forma simbólica.
Adentrando no conceito sócio-histórico, há alguns aspectos deste que
merecem atenção. Para se entender como a influência da cultura se dá em uma
produção simbólica, é importante entender que há diversos tipos de situações que
ocorrem no contexto sócio-histórico: as espaço-temporais, os campos de interação,
a estrutura social e a mídia. (THOMPSON, 2009). O autor (2009) conceitua que as
situações espaço-temporais podem ser mecanismos sociais e ambientes
histórico/geográficos, enquanto os campos de interação se constituem em círculos
mais específicos que os espaço-temporais (de aspectos familiares e de instituições
religiosas, por exemplo). A estrutura social também é outro fator contextual,
juntamente com a mídia, que atua como fator de envelopamento do receptor. Tais
situações nunca ocorrem sozinhas, pois sempre irão influenciar uma na outra no
processo de produção e interpretação de formas simbólicas.
Para complementar as ideias de Thompson (2009), Patrick Charaudeau
(2006) traz seus conceitos em estudos de recepção. Para ele, a significação
discursiva é uma resultante de dois componentes:
[...] dos quais um pode ser denominado linguístico, já que opera com
material verbal (a língua), sendo ele mesmo estruturado de maneira
significante segundo os princípios de pertinência que lhe são próprios, e
outro, situacional, já que opera com material psicossocial, testemunha dos
comportamentos humanos, que colabora na definição dos seres ao mesmo
tempo como atores sociais e como sujeitos comunicantes (CHARAUDEAU,
2006, p. 6).
36. 36
Dessa maneira, tais componentes agem como uma resultante nessa
equação: mesmo ambos sendo simultaneamente autônomos, são também
interdependentes quando se fala em efeitos, ou seja, na análise de um discurso, não
é possível chegar a conclusões sem levar em conta estes dois aspectos
(CHARAUDEAU, 2006). O autor comenta também que a análise dos fatos de
linguagem “tornou-se pólo em torno do qual gravitam diferentes correntes das
ciências da linguagem: pragmática, etnometodológica, conversacional,
sociolinguística, etc.” (CHARAUDEAU, 2006, p. 6). Ao mesmo tempo, de acordo com
Charaudeau (2006), houve um consenso em como abordar tal problemática da
significação discursiva, convencionando-se em denominá-la “uso da fala”.
Tal consenso foi construído em torno de três proposições: proposicional X
relacional, explícito X implícito, interno X externo (CHARAUDEAU, 2006). Ainda em
conformidade com as ideias do autor, pode-se entender que a primeira oposição –
proposicional X relacional - “produziu uma mudança definitiva sobre a maneira de
conceber a língua: esta não tem mais por vocação quase exclusiva voltar-se para o
mundo referencial para segmentá-lo, estruturá-lo e representá-lo de maneira factual”
(CHARAUDEAU, 2006, p.7). A função dessa proposição vai além da linguagem em
si, e parte para significar a relação que ocorre entre os parceiros no momento em
que ocorre o ato de linguagem. Mais do que isso: essa relação não é apenas entre o
locutor e o interlocutor, é um triângulo, “que subordina a referência ao mundo (a
proposicional) à intersubjetividade dos interlocutores (a relacional)” (CHARAUDEAU,
2006, p.7).
Já a segunda oposição, a explícita X implícita, tem como cerne a mudança de
pensamento em relação à construção de sentido. Este não é unicamente concebido
por junções de vocábulos e por regras semânticas: este é apenas o que está
explícito. Há um leque muito maior de significados contidos no espaço implícito, que
atua de maneira inter-relacionada com o espaço explícito, denominando-se um
“intercâmbio linguageiro” (CHARAUDEAU, 2006, p.8).
A oposição interno X externo é uma correlação das duas oposições citadas
anteriormente. Dessa maneira, Charaudeau (2006) defende que aceitar que existe
um sentido relacional e um sentido implícito no significado de um discurso é aceitar
o chamado “fora da linguagem”. Este ainda não está totalmente definido, sendo o
maior desafio apontado pelo autor:
37. 37
E é aí que está o problema. Porque se nenhuma das abordagens da
linguagem definidas anteriormente chega a negar a existência desse “fora
da linguagem” empírico, os métodos de análise e sua teorização não lhe
dão todos o mesmo estatuto. Para alguns, trata-se somente de um dado
empírico que não pode ser integrado no estudo da linguagem; para outros,
ele pode ser estudado, mas permanece exterior à linguagem enquanto
outros se contentam em realizar pequenas incursões nesse terreno
(CHARAUDEAU, 2006, p.8).
O que Patrick Charaudeau (2006) defende então é: uma teoria do discurso
que impossibilita a construção do jogo de comunicação sem levar em consideração
um espaço externo e um espaço interno de forma simultânea. Assim, o autor sugere
que “a significação é construída por meio de duas inter-relações que se articulam ao
mesmo tempo uma sobre a outra” (CHARAUDEAU, 2006, p. 8). A primeira, como
sugere o autor (1996), é entre os dois espaços de produção de sentido: o externo e
o interno. A segunda é entre dois espaços de enunciação: o de produção
(conceituado como EU) e de interpretação (nesse caso o TU), com a interposição da
avaliação.
Assim como Thompson (1999) traz à luz seu conceito de situações espaço-
temporais como forma de interpretar formas simbólicas, Charaudeau (2006) utiliza o
termo sociolinguageiro para a análise de um discurso. Recapitulando as ideias
anteriores, o autor (2006) escreve que um ato de linguagem indica que há uma
intenção dos sujeitos falantes, que são parceiros nesse ato, não podendo existir um
sem o outro. Tal ato depende da identidade deles, que é resultante de um “objetivo
de influência”, sendo portador de um “propósito sobre o mundo”. Junto a isso, ele se
realiza em uma situação espaço-temporal, denominada por Charaudeau (2006)
como “situação”.
Nota-se então a relação direta das ideias de Charaudeau (2006) de que não
há uma análise de discurso sem a noção situacional e de identidade dos sujeitos
parceiros de um intercâmbio, com as propostas de Cuche (1999) e Castells (2001).
Para o primeiro autor (1999), tudo o que é da natureza humana necessariamente é
perpassado pela cultura. Castells (2001) complementa com uma descrição de
identidade cultural, como sendo a construção de significados com base em
características culturais, o que gera a noção de “nós e eles”.
38. 38
3.3 A NARRAÇÃO ONIPRESENTE: NARRATIVA TRANSMÍDIA
Como abordado no primeiro capítulo, Pokémon iniciou sua trajetória no
Japão, passou por adaptações de conteúdo nos Estados Unidos, e essa versão
“ocidentalizada” foi exportada para o restante do mundo, o que inclui o Brasil. Pode-
se perceber, no subcapítulo anterior, que a noção de cultura é de suma importância
para a produção e compreensão de discursos. O presente subcapítulo abordará a
relação entre cultura, narrativa das marcas, bem como linearidade e não linearidade
desta, e narrativa transmídia.
3.3.1 O poder da narrativa das marcas
Em seu livro, Marcas Legendárias (2005), Laurence Vincent escreve sobre a
importância da narrativa para as marcas atuais. Essas, que possuem um forte valor
na vida das pessoas são conceituadas por ele como Marcas Legendárias. O autor
cita o advento do consumismo como um dos fatores que originaram essa
configuração de marca:
Não tenha dúvida a respeito; vivemos em uma sociedade muito mais
focalizada no consumo do que na produção de bens e serviços. O consumo
é rei. Definimos a nós mesmos, nossas vidas e nosso bem-estar por aquilo
que consumimos. Nossos hábitos de consumo constituem presentemente
uma forma de aceitação social. [...] A cultura do novo consumidor cria uma
grande demanda por bens e serviços que servem para nos diferenciar
(VINCENT, 2005, p.10-11).
Segundo Vincent (2005), tal cultura consumista é vista com pessimismo por
muitos, chegando a inspirar reações agressivas de sociólogos. Estes colocam o
peso de muitos problemas sociais nas marcas que oferecem ao consumidor valor
existencial, metafísico ou pessoal. Ignoram o fato de que os consumidores atuais
são muito mais esclarecidos e céticos em relação às mensagens de marketing que
os rodeiam. Ainda de acordo com Vincent (2005), manipular as pessoas não é uma
estratégia válida, já que “os consumidores anseiam por marcas que representem
efetivamente algo, marcas que ajudem a proporcionar significado e ordem em suas
vidas” (VINCENT, 2005, p.12).
Como escreve Vincent (2005), as pessoas estão expostas a um número cada
vez maior de mídias diferentes. Contudo, esse não é o maior desafio para as
empresas. Estas tantas formas de comunicar uma mensagem possuem um volume
39. 39
de informação sem precedentes, e o alcance e a rapidez da propaganda nunca
estiveram em tamanhas proporções. Assim, “durante os últimos 25 anos, o mundo
da propaganda evoluiu para uma indústria sofisticada” (VINCENT, 2005, p. 13). A
técnica, ainda segundo o autor (2005), precisava também aliar a narrativa. Essa, por
sua vez, precisava ser contada com muito mais rapidez e apelo visual do que no
passado. Ou seja, as pessoas possuem uma inclinação a serem convencidas mais
facilmente de algo quando há uma história envolvida. “A velha técnica de gritar
repetidamente ‘compre’, para os consumidores, chegou ao fim” (VINCENT, 2005, p.
13). Para distinguir a marca comum da Marca Legendária, Vincent conceitua:
Existe uma distinção básica entre as Marcas Legendárias e todas as demais
marcas de produtos. A mitologia da marca usa a narrativa para transmitir
uma visão de mundo, um conjunto de crenças sagradas que transcendem
os atributos funcionais e cognitivos do produto. A narrativa, que une o
consumidor e a marca em um tipo de vínculo existencial, constitui o
fundamento da força da marca. A mitologia da marca opera em um ciclo
autogratificante que envolve a participação do consumidor (VINCENT, 2005,
p. 19).
Vincent (2005) afirma que a mitologia da marca atua na parte cognitiva das
pessoas de maneira semelhante a religiões e crenças. O autor realiza um paralelo
entre a mitologia ocidental das civilizações antigas e a mitologia da marca,
apontando que ambas têm o intuito de explicar o mundo à sua volta e que tanto uma
quanto outra opera por meio de instrumentos narrativos. Conforme Vincent (2005, p.
25), “é de nossa natureza buscar uma prova para nossas crenças”. Para o autor,
isso normalmente é encontrado como um agente. Este é a prova tangível de que a
nossa visão de mundo é verdadeira. Nem sempre esse agente é uma pessoa, mas
precisa ser algo físico, com o qual sejamos capazes de vincular tal visão de mundo a
uma pessoa, a um local ou a alguma coisa.
No caso de Pokémon, o agente físico mudou de acordo com o local onde se
encontrava: no Japão era o rato amarelo Pikachu, e no ocidente (por conta dos
esforços de ‘localização’) era o menino Ash. Isso ocorreu porque os aspectos
culturais diferentes propiciavam identificações igualmente distintas, como abordado
no primeiro capítulo.
Vincent (2005) acrescenta que, embora os agentes de marca sejam
indispensáveis para tal conjunto de crenças, eles não têm sustentação sem a
narrativa. Para o autor, a narrativa é o componente mais importante da mitologia da
40. 40
marca. Ele faz valer as palavras de Robert McKee2 para comprovar seu ponto de
vista: “contar uma história é a demonstração criativa da verdade. Uma história é a
prova viva de uma ideia, a conversão da ideia em ação. A estrutura de eventos de
uma história é o meio pelo qual você primeiro expressa e então prova sua ideia”
(VINCENT apud MCKEE, 2005, p. 27). Vincent (200) ainda vincula a narrativa a um
processo cognitivo que o torna essencial a um sistema de crenças sagradas: a
narrativa vincula suas crenças a um agente, o que dá credibilidade à história, já que
a torna tangível. Após essa etapa, a narração estimula a parte emocional e subjetiva
das pessoas, tornando a crença mais forte ainda. Por fim, essa narrativa “prescreve
o comportamento exigido para se viver o sistema de crenças e adaptar-se à cultura
de marca” (VINCENT, 2005, p. 27-28).
No momento em que a narrativa dita o costume e “o comportamento
necessários para a pessoa beneficiar-se do sistema de crenças” (VINCENT, 2005, p.
33), ela naturalmente convida essa pessoa a “conversar” com a marca, interagindo
com ela. Para obter êxito, ela agrega comportamentos humanos ao sistema, como a
formação de sociedades e grupos, a prática de rituais e o uso de símbolos.
(VINCENT, 2005). Criando um paralelo entre os conceitos de Vincent e o objeto de
pesquisa, as Marcas Legendárias normalmente “ganham força pela formação de
tribos que compartilham uma aceitação das crenças sagradas da marca” (VINCENT,
2005, p. 34).
O autor (2005) ainda pondera que, os consumidores que fazem parte das
tribos o fazem a fim de confirmar mais uma vez que sua crença é correta. No caso
da franquia Pokémon, os fãs se reuniam e, imersos na mitologia existente, trocavam
informações e produtos, o que criou uma “compreensão social” (VINCENT, 2005, p.
35), facilitando a confirmação dessas crenças. Os rituais de troca de informações, de
brincadeiras e jogos criavam justamente estes vínculos. O último comportamento
significativo diz respeito ao uso de símbolos:
[...] as tribos de culturas de marcas usam símbolos para se vincular à
marca. Símbolos, muitas vezes, são a insígnia da tribo. Símbolos agradam
a nossa mente orientada visualmente. A afirmação de que uma imagem
vale mil palavras é mais verdadeira do que a maioria das pessoas pensa.
Uma simples imagem pode provocar uma resposta emocional co muito mais
rapidez do que uma frase em um livro. [...] Símbolos proporcionam uma
representação visual instantânea de uma criação significativa. Em termos
2
Criador de histórias de Hollywood, que descreve em seu livro Story: Substance, Structure, Style, and The
Principles of Screenwriting (2006), a ligação entre narrativa e crenças.
41. 41
simples, provocam uma crença lógica ligada às emoções (VINCENT, 2005,
p. 35).
Vincent (2005) afirma que as Marcas Legendárias usam os símbolos de um
modo diferente. Eles relembram a pessoa de uma narrativa da marca. No caso de
Pokémon, por ser uma franquia completamente visual, símbolos iguais transitavam
por entre as várias mídias, facilitando o reconhecimento da narrativa como unidade.
Por exemplo: no jogo para Game Boy, a Pokébola (uma espécie de repositório para
armazenar Pokémons) possuía as mesmas características e utilidade que no
desenho animado.
Vincent destaca que as Marcas Legendárias precisam estar presentes no
cotidiano das pessoas: “Como os consumidores baseiam suas vidas nas narrativas,
e as marcas tentam se tornar parte das narrativas, o entretenimento e o consumo se
fundem” (VINCENT, 2005, p. 77). É importante levar em consideração também a
necessidade que o ser humano tem por entretenimento, por práticas lúdicas.
Joah Huizinga (2000), constata que, mesmo nas formas mais primitivas e
simples, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico,
ultrapassando os limites de uma atividade apenas física:
É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo
existe alguma coisa "em jogo" que transcende as necessidades imediatas
da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não
se explica nada chamando "instinto" ao princípio ativo que constitui a
essência do jogo; chamar-lhe "espírito" ou "vontade" seria dizer demasiado.
Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo
encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em
sua própria essência (HUIZINGA, 2005, p. 5).
Conforme Huizinga (2005), apesar de haver diferentes estudos nas áreas de
psicologia e fisiologia, há sempre o consenso: estas pesquisas procuram determinar
a natureza e o significado do jogo, fornecendo-lhe uma participação no sistema
cotidiano. Dessa maneira, não importa o campo de estudo: “a extrema importância
deste lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade da função do jogo são
geralmente consideradas coisa assente, constituindo o ponto de partida de todas as
investigações do gênero” (HUIZINGA, 2005, p. 5).
Pode-se observar que há alguns elementos importantes que atuam
juntamente com a narrativa: aspectos do comportamento humano, como formações
de tribos, realização de rituais e uso de símbolos; agentes de marca (VINCENT,
2005); e a capacidade que a narrativa tem de interagir com o público, utilizando o
potencial lúdico do ser humano (HUIZINGA, 2005). Assim, para uma história
42. 42
realmente chegar ao ponto de emocionar, engajar e mover as pessoas, ela precisa
ser completa e sincera, para se adaptar ao consumidor cada vez mais exigente
(VINCENT, 2005).
3.3.2 Narrativa, hipertexto e hipermídia
Como foi observado anteriormente, a narrativa é um recurso poderoso para
gerar identificação entre o consumidor e a marca, principalmente quando propicia a
interação e participação no processo por parte das pessoas. Antes de conceituar a
narrativa transmídia propriamente dita, é importante trazer a distinção entre os
conceitos de hiperxtexto e hipermídia, sendo essa última importante para explicar o
fenômeno de integração de diferentes mídias em uma narrativa.
De acordo com Vicente Gosciola (2003), “a arte de contar histórias é uma
qualidade por vezes deixada em segundo plano quando uma nova técnica ou uma
nova tecnologia surge” (GOSCIOLA, 2003, p. 19). Em seu livro “Roteiro para as
Novas Mídias” (2003), o autor escreve que, no começo do cinema, as histórias
contadas eram muito menos complexas que a literatura da época, mas a evolução
da tecnologia propiciou narrativas mais elaboradas. E esse fenômeno não ocorreu
apenas em uma mídia:
As novas tecnologias de comunicação e de informação, ou as novas mídias,
abriram-se também para as possibilidades de contar histórias. Assim como
no caso do cinema, no período inicial de contar histórias através das novas
mídias, as histórias eram mais simples. Porém, agora, elas são contadas de
maneira complexa, isto é, graças aos recursos das novas mídias, podem
ser apresentadas por diversos pontos de vista, com histórias paralelas, com
possibilidade de interferência na narrativa, com opções de continuidade ou
descontinuidade da narrativa e muito mais (GOSCIOLA, 2003, p. 19).
Um exemplo dessa mudança da narrativa conforme a evolução tecnológica é
o desenho animado inspirado em Charles Chaplin, parte da programação do canal
de Tv a cabo Gloob. Pela primeira vez, o personagem de Chaplin, O Vagabundo,
dos anos 20 (FLOOD, 2012), ganhou uma nova roupagem na forma de uma
animação em 3D (MUNDOGLOOB, 2012a). A produção é francesa e cada episódio
tem cerca de 7 minutos. Apesar de ser inspirada no personagem, a histórias se
passam nos dias atuais, mas a vestimenta e os trejeitos de Carlitos são os mesmos,
e não há falas (SANTOS 2012). Além da série de televisão, há também jogos e
vídeos na temática do desenho animado no site do canal Gloob (MUNDOGLOOB,
43. 43
2012b). Dessa maneira, há extensões da narrativa que não poderiam existir na
época do cinema mudo, e novas experiências são trazidas ao telespectador – que
se torna também um usuário, ao ir além da série na televisão e buscar outras formas
de interagir na internet.
Essas mudanças influenciadas pelo contexto tecnológico das mídias também
afetam programações para jovens adultos. Pode-se exemplificar isso com o seriado
Dallas. Entre os anos 1978 e 1991 (IMDB, [2000-2012]), Dallas foi uma série
dramática de sucesso nos EUA e em muitas partes do mundo, com personagens
marcantes e assuntos da época. Assim, quando o novo seriado foi proposto, tornou-
se fundamental adequar o discurso ao público de jovens adultos, consumidores
ativos de seriados norte-americanos. Na nova trama, Dallas entra no século 21 com
intrigas por e-mail e preocupação com novas formas de energia, mas com a mesma
fórmula de novela que a primeira possuía (REUTERS, 2012).
Aqui entra um importante adendo: o que são as novas mídias propriamente
ditas? Lev Manovich, em The Language of the New Media (2001), conceitua as
novas mídias como objetos que podem ser descritos matematicamente. Assim, elas
são programáveis. As mídias anteriores se encaixavam em um pensamento
industrial: no momento em que um “modelo” (podendo ser uma fotografia, um filme,
entre outros) é criado, numerosas cópias podem ser produzidas a partir de sua
matriz. As novas formas midiáticas correm então, à contramão da sociedade pós-
industrial, trazendo customização individual ao invés de padronização massificada.
(MANOVICH, 2001)
Gosciola (2003) pondera que, uma vez que a narrativa torna-se não-linear e
estruturada pelas novas mídias, ela gera usuários, e não leitores apenas. O usuário,
diferentemente do leitor, interage com a narrativa, utiliza-a para seus próprios fins e
comunica-se com ela de forma singular. Seguindo essa lógica, Manovich (2001)
explica que, ao invés de “empurrar” as mesmas informações para uma audiência
massificada, o marketing agora tenta atingir cada indivíduo separadamente.
Ainda de acordo com Manovich (2001), as novas mídias são interativas: em
contraste com a mídia antiga, onde a ordem da apresentação é fixa, o usuário atual
pode interagir com o objeto. Nesse processo o indivíduo pode escolher quais
elementos serão mostrados, ou quais caminhos serão seguidos, gerando, assim,
uma peça única. Seguindo essa linha de raciocínio, o usuário torna-se co-autor de
uma peça. No entanto, é preciso tomar cuidado com as generalizações. Manovich