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A NOTA DE CEM MIL-RÉIS

Artur Azevedo


O Cavalcânti era um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais
forte; imaginem que os seus recursos não davam para acudir a todas as
necessidades da família e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine
Leveau, uma cocotte francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas
alegres, e se prestava aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês,
quer em português.


Como a esposa do Cavalcanti era uma hábil costureira, recorreu à sua
habilidade para ajudar nas despesas de casa. Um dia fez um vestido para
uma amiga, e, tão bem feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca em
boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar.
Havia meses em que ela fazia trezentos mil-réis.


O Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como vão ver.


Uma bela manhã, a Josephine mandou-lhe pedir cem mil-réis para uma
necessidade urgente, e ele não os tinha, nem sabia onde ir buscá-los. Hesitou
durante algum tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já
o leitor adivinhou que o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar
à amante.


A pobre senhora não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto,
abriu uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de
cem mil-réis, ainda nova. Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de
jantar, contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para
sempre, e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com
letra miúda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida - ela
chamava-se Margarida - tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas
palavras "Nem eu!".


O Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de alegria.


- Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele.


- Não - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia.
Meia hora depois, o Cavalcânti entregava a nota, dentro de um envelope, a
Josephine Leveau.


Nesse mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que esperava.
Contra o seu costume, o Cavalcânti estava em casa.


- Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava receber. A
freguesa é boa.


- Quem ela é? perguntou o marido.


- Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de
seda, riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato.


- Mas é senhora séria?


- Parece. É francesa, e casada com um banqueiro, disse-me ela.
Naturalmente o marido é também francês, porque ela chama-se Madame
Leveau.


- Leveau! repetiu o Cavalcânti empalidecendo.


- Conheces?


- Não.


- Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje
de manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro.


- Onde mora essa Madame Leveau?


- Na Rua do Catete.


Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-réis.
- Que coincidência! disse ela; a nota é da mesma estampa da qual te dei hoje
de manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!...


Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te verei",
e o seu acréscimo: "Nem eu!".


- Que foi? perguntou o Cavalcanti.


- A nota é a mesma!...


- A mesma? repetiu o marido gaguejando.


- A mesmíssima! Reconheço-a por causa destas palavras... Vê! a minha
letra!...


O Cavalcanti arranjou uma desculpa esfarrapada: disse que tinha pago os
cem mil-réis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D.
Margarida não engoliu a pílula, e foi à casa de Josephine certificar-se de que
esta era uma cocotte freqüentada por seu marido.


A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha
muito dinheiro.

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A história da nota de cem mil-réis

  • 1. A NOTA DE CEM MIL-RÉIS Artur Azevedo O Cavalcânti era um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais forte; imaginem que os seus recursos não davam para acudir a todas as necessidades da família e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine Leveau, uma cocotte francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês, quer em português. Como a esposa do Cavalcanti era uma hábil costureira, recorreu à sua habilidade para ajudar nas despesas de casa. Um dia fez um vestido para uma amiga, e, tão bem feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca em boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar. Havia meses em que ela fazia trezentos mil-réis. O Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como vão ver. Uma bela manhã, a Josephine mandou-lhe pedir cem mil-réis para uma necessidade urgente, e ele não os tinha, nem sabia onde ir buscá-los. Hesitou durante algum tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já o leitor adivinhou que o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante. A pobre senhora não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem mil-réis, ainda nova. Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de jantar, contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para sempre, e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com letra miúda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida - ela chamava-se Margarida - tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas palavras "Nem eu!". O Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de alegria. - Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele. - Não - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia.
  • 2. Meia hora depois, o Cavalcânti entregava a nota, dentro de um envelope, a Josephine Leveau. Nesse mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que esperava. Contra o seu costume, o Cavalcânti estava em casa. - Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava receber. A freguesa é boa. - Quem ela é? perguntou o marido. - Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de seda, riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato. - Mas é senhora séria? - Parece. É francesa, e casada com um banqueiro, disse-me ela. Naturalmente o marido é também francês, porque ela chama-se Madame Leveau. - Leveau! repetiu o Cavalcânti empalidecendo. - Conheces? - Não. - Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje de manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro. - Onde mora essa Madame Leveau? - Na Rua do Catete. Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-réis.
  • 3. - Que coincidência! disse ela; a nota é da mesma estampa da qual te dei hoje de manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!... Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te verei", e o seu acréscimo: "Nem eu!". - Que foi? perguntou o Cavalcanti. - A nota é a mesma!... - A mesma? repetiu o marido gaguejando. - A mesmíssima! Reconheço-a por causa destas palavras... Vê! a minha letra!... O Cavalcanti arranjou uma desculpa esfarrapada: disse que tinha pago os cem mil-réis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida não engoliu a pílula, e foi à casa de Josephine certificar-se de que esta era uma cocotte freqüentada por seu marido. A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha muito dinheiro.