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"Charlie Hebdo", Mídia e Democracia
Autodestrutiva
Publicado por Eduardo Luiz Santos Cabette ­ 5 meses atrás
Não é apanágio da mídia ser ambivalente. Praticamente todas as coisas são dotadas de alguma
ambivalência. No entanto, chama­se a atenção para este seu aspecto no que diz respeito à Democracia,
sua construção e, mais importante, sua manutenção.
Os diversos recursos midiáticos (imprensa em suas várias vertentes, televisão, teatro, internet, redes
sociais, rádio etc.) podem ser e são veículos excelentes para a promoção do debate democrático e para
a disseminação de mensagens positivas. Não obstante, também podem facilmente descambar para o lado
oposto, defendendo ideologias antidemocráticas, insuflando anarquia e, mais intensamente ainda,
contribuindo para a fixação de um pensamento único de interesse de dado setor social ou da própria
mídia. Aqui também entra em jogo a questão do poder financeiro que se impõe nos meios midiáticos,
seja no que diz respeito à posse desses meios, seja em seu financiamento, sua mantença em viabilidade
econômica, que se dá pela publicidade, e então a esfera de influência do poder financeiro se amplia
sobremaneira. Muitos, para não dizer a grande esmagadora maioria dos veículos de mídia são reféns do
poder financeiro privado e/ou público. Nos grandes centros as propagandas dos governos centrais e suas
agências, bem como das grandes empresas e conglomerados econômicos são capazes de ditar
tranquilamente os rumos da mídia. Nas pequenas cidades interioranas a situação é ainda pior,
principalmente sob o prisma público. Pequenos jornais impressos ou programas radiofônicos, por exemplo,
vivem praticamente de financiamentos públicos da municipalidade executiva ou do Poder Legislativo
municipal. O dano à real atuação da mídia em prol de uma Democracia nessa conjuntura é mais que
evidente.
Além disso, surge a tormentosa questão da Liberdade de Expressão que invariavelmente conduz àquela
bifurcação entre dois extremos: a ilimitação dessa liberdade e seus efeitos destrutivos para a Democracia
e a limitação exagerada, o controle milimétrico ou domínio que mata a referida liberdade e, juntamente
com ela, a Democracia.
Todorov é incisivo sobre o tema:
“A liberdade de expressão certamente tem seu lugar entre os valores democráticos, mas é difícil imaginar
como se poderia fazer dela o fundamento comum desses valores. Tal liberdade representa uma exigência
de tolerância integral (nada do que se diz pode ser declarado intolerável), e portanto um relativismo
JusBrasil ­ Artigos
28 de junho de 2015
generalizado de todos os valores: ‘Eu reclamo o direito de defender publicamente qualquer opinião, assim
como o de denegrir qualquer ideal’. Ora, cada sociedade precisa de uma base de valores compartilhados:
substituí­los por ‘eu tenho o direito de dizer tudo o que quiser’ não basta para fundamentar uma vida em
comum. Evidentemente, o direito de subtrair­se a certas regras não pode ser a única regra a organizar a
vida de uma coletividade! ‘É proibido proibir’ é uma bela frase, mas nenhuma sociedade pode limitar­se a
ela.
Ao lado da liberdade de escolha que ele proporciona aos seus cidadãos, o Estado tem (ou deveria ter)
outros objetivos: proteger­lhes a vida, a integridade física e os bens, combater as discriminações, atuar
levando em conta a justiça, a paz e o bem – estar comuns, defender a dignidade de todos. Por esse
motivo, como Burke já sabia bem, a palavra ou as outras formas de expressão sofrem restrições,
impostas em razão dos outros valores aos quais a sociedade adere.
Se levarmos a sério essas reservas quanto ao caráter absoluto da liberdade de expressão, estaremos
obrigados a ir até o outro extremo e exigir que a lei, ou o poder público, controle tudo? Estaremos
condenados a escolher entre caos libertário e ordem dogmática? Não creio. Trata­se antes de afirmar que
a liberdade de expressão deve ser sempre relativa – às circunstâncias, à maneira de expressar­se, à
identidade daquele que se expressa e daquele que descreve seu propósito. A exigência de liberdade só
ganha sentido em um contexto – e os contextos variam enormemente”. [1]
O episódio referente ao pasquim francês “Charlie Hebdo” em que cartunistas e funcionários foram
massacrados por terroristas muçulmanos em represália a charges consideradas desrespeitosas às
crenças islâmicas é extremamente paradigmático. É paradigmático em vários aspectos. Releva abordar
alguns deles:
Um primeiro viés é a questão da força midiática que um acontecimento pode adquirir, tornando­se uma
verdadeira febre, mas também, como toda febre, passageira, sempre que não mate o doente. Um
pasquim sem qualquer representatividade considerável, do dia para a noite se transforma em um símbolo
e em uma causa global. Suas tiragens sobem de alguns milhares de exemplares para milhões, mesmo
assim esgotando­se logo na primeira parte da manhã do lançamento. É a força da mídia que, como já
dito anteriormente, pode ser uma arma para a Democracia ou sua destruição. Ao mesmo tempo essa
força midiática demonstra uma sua fraqueza inerente à fluidez do mundo contemporâneo. Da mesma
forma que o episódio ganhou o mundo, repentinamente desaparece sem deixar vestígios e certamente
suas tiragens não seguirão com milhões de exemplares por um tempo largo. Usando uma imagem, a
mídia é hoje como um prato largo e raso, é marcada por uma dimensão de propagação enorme, mas
extremamente superficial.
Também é exemplar quanto à ignorância e à absoluta impossibilidade de compreensão das ações
terroristas onde pessoas são mortas e outras fazem questão de se matar em nome das mais diversas
crenças de natureza religiosa, ideológica, política etc. A absurdidade dessas atuações não merece sequer
maiores comentários. Trata­se daquilo que é notório.
O que resta é mesmo a discussão acerca da amplitude e adequação da Liberdade de Expressão na
mídia. Retomar a questão dos limites da liberdade que são a ela inerentes ao ponto de que, ao serem
removidos, simplesmente se causa a derrocada da própria liberdade, seja ela de expressão ou outra
qualquer.
Mais uma vez o caso “Charlie Hebdo” é exemplar porque demonstrou como a mídia tem o poder de
apresentar um fato sob um único ângulo, criando uma polarização entre bem e mal de viés maniqueísta e
erigindo vítimas “inocentes”, quando a inocência é algo muito raro de se encontrar na humanidade ao
longo da história e, consequentemente, na contemporaneidade.
Neste ponto é preciso frisar e deixar muito, muito claro que não se está afirmando (mesmo porque seria o
absurdo dos absurdos) que há entre cartunistas e terroristas uma relação vitimaria recíproca. Não.
Terroristas assassinos não passam disso. Terroristas assassinos e nada mais. Não são vítimas de coisa
alguma, a não ser de sua própria consciência deturpada e enlouquecida. Certamente sejam vítimas de
uma doutrinação fanática, mas mesmo neste ponto há sempre uma escolha inicial e continuada pela qual
as pessoas devem responder. É exatamente contra a irresponsabilidade em todas as suas vertentes que
este texto se levanta com maior vigor, como se poderá facilmente perceber.
O ponto fulcral a respeito da divulgação unilateral do acontecimento em destaque não está em afirmar
que os atos terroristas e o homicídio possam, de alguma forma, ser compreensíveis, justificáveis ou
mesmo resultado de uma vítima provocadora – categoria conhecida nos estudos vitimodogmáticos da
vitimologia. Conforme esclarece Oliveira, a vitimodogmática se dedica no momento atual à perquirição da
atuação contributiva da vítima para o evento criminoso. Assim também pesquisa as consequências que a
contribuição vitimal deve ter quando do estabelecimento da pena ao infrator, o que pode variar de uma
absoluta isenção até uma pequena atenuação. [2] A “vítima provocadora”, segundo a reconhecida
classificação de Benjamin Mendelsohn, é também conhecida como “voluntária ou imprudente” porque
“colabora com os fins pretendidos ou alcançados pelo delinquente”. [3]
Por óbvio a reação terrorista assassina não guarda de forma alguma proporção com eventual ofensa
sentida devido às charges do pasquim. Sequer imaginar que possa haver a eventualidade de uma espécie
de atenuação, por mínima que seja, para a punição de atos que tais (acaso os terroristas estivessem
vivos) é totalmente indefensável. Não se trata disso de forma alguma.
Quanto se fala na unilateralidade e no maniqueísmo da divulgação midiática do episódio e de sua
recepção acrítica pela maioria das pessoas, não se está fazendo referência ao caso pretendendo uma
relação entre as duas condutas (dos terroristas e dos cartunistas). Na verdade, estas devem ser
analisadas separadamente. Quanto aos terroristas sicários, como já mencionado, a condenação de seus
atos deve ser veemente e irredutível. No entanto, isso não tem o condão de tornar a atitude dos
cartunistas e do pasquim algo aceitável e moralmente irrepreensível como uma manifestação da
alardeada Liberdade de Expressão sem limites. Como já visto, essa liberdade sem limites, seja a de
expressão ou qualquer outra, corresponde à negação da própria liberdade e, consequentemente, dos
ideais democráticos. A ocorrência do ataque é um exemplo trágico de como a exacerbação de uma
liberdade pode, ainda que de forma totalmente injustificável, gerar uma reação exacerbada, tresloucada,
insana mesmo de outro lado. Não seria melhor, prevenir do que fazer protestos ulteriores com uma fila de
cadáveres às costas? Acreditar num mundo em que as pessoas vão dar a outra face é de um fanatismo
religioso alienante inacreditável por parte exatamente de pessoas que se dizem totalmente avessas a
essa espécie de influência fideísta.
Como bem destaca Schuon:
“Com efeito, oferecer a face esquerda àquele que feriu a face direita, não é coisa que possa ser posta em
prática por uma coletividade social em vista de seu equilíbrio, e só tem sentido a título de atitude
espiritual, somente o espiritual põe­se resolutamente além do encadeamento lógico das reações
individuais”. [4]
Aqui é possível novamente constatar como a Democracia pode ser também tão utópica quanto outros
regimes que são marcados por um totalitarismo em busca de um ideal a ser imposto. Não passa de
puerilidade pretender crer que numa convivência de homens haverá uma tolerância ilimitada. Crer nisso é
o primeiro passo para, como em qualquer utopia encantadora de espíritos juvenis, projetar um “Paraíso
Terrestre” e erigir um “Inferno”.
Para perceber isso nem é preciso levar a tese doidivanas da Liberdade de Expressão ilimitada ao seu
paroxismo. Mesmo assim vale a pena expor a situação numa argumentação “ad absurdum”.
Sabe­se que a Liberdade de Expressão não se reduz ao falar e escrever. Também a compõe a produção
artística em suas mais variadas espécies que não se resume à literatura, às artes cênicas e ao
jornalismo, mas passa pela pintura, pela escultura, pela fotografia etc. Também pode a Liberdade de
Expressão ser manifestada por meio de ações e omissões corporais como, por exemplo, uma greve de
fome, um protesto em que as pessoas caminham pelas ruas com cartazes ou atitudes físicas. Ora, se
uma pessoa defende a liberdade absoluta, irrestrita, ilimitada de expressão, então deveria estar pronta
para admitir que os terroristas estavam, ao matarem as pessoas cruelmente, apenas exercendo seu
direito ilimitado de expressão! – lembremos que estamos numa argumentação “ad absurdum”. Isso soa e
é medonho, mas é uma consequência do pensamento pueril e irresponsável de todo aquele que advoga
uma Liberdade de Expressão absoluta. Aqui se pode usar bem apropriadamente, já que houve um choque
entre charges e uma dada religião, a passagem bíblica em que Jesus pede ao Pai que perdoe seus
algozes porque “eles não sabem o que fazem” (Lucas 23.34). Realmente quem defende a tese de uma
Liberdade de Expressão ou outra qualquer ilimitada não sabe o que faz. Não passa de um infante de
tenra idade brincando com um punhal.
O episódio “Charlie Hebdo” mostra bem cristalinamente que os terroristas eram e são todos loucos, mas
esses sujeitos que se acham engraçados são uns inconseqüentes e canalhas da pior espécie que se
escoram numa suposta liberdade absoluta de expressão a fim de manter uma pose revolucionária e
iconoclasta através da qual podem lucrar financeiramente e ganhar prestígio em certos meios. Não se
sabe sequer se realmente creem em seus supostos ideais, assim como também não se sabe se os
fanáticos religiosos têm realmente fé, já que não deixam a questão de punir os incrédulos ou de perdoá­
los à divindade que veneram. Não há pena de morte por ser canalha, carreirista, caçador de prestígio e
oportunista e abusar de um direito, ofendendo gratuitamente a crença alheia (ao menos na França), por
isso os terroristas são facínoras. No entanto, essa espécie de "beatificação" desse pessoal do pasquim
que ocorreu após a morte também não procede. O brocardo latino que nos ensina que “mors omnia solvit”
(a morte dissolve tudo) tem seu limite. Nem os cartunistas se tornaram santos após a morte, nem os
terroristas podem ser desculpados só porque morreram. Suas memórias devem corresponder às
respectivas perversidades de suas existências. É claro que numa classificação os terroristas vão muito
além na perversidade, mas isso não elimina a perversão dos cartunistas. Além do mais, é visível que os
responsáveis pelo “Charlie Hebdo”, se já exploravam esse campo religioso com ofensas para capitalizar;
agora os que sobraram estão ganhando horrores em cima da morte dos colegas irresponsáveis, o que é
de uma imoralidade enojante. Principalmente quando o fazem sob o manto de uma suposta defesa do
ideal da Liberdade de Expressão e da não – violência. É triste ver o mundo dividido em grandes
contingentes de imbecis puros e imbecis assassinos.
Matar é errado. Ser canalha e ofensivo é também errado. Se eu xingar alguém de um palavrão isso não é
emanação da "liberdade de expressão" nem aqui, nem na China, nem na França, nem na Revolução
Francesa. É injúria. Nenhum direito é ilimitado ou absoluto. A questão é apenas e simplesmente essa.
Seu eu achar que o nudismo é adequado eu não posso incomodar as demais pessoas andando pelado
pela rua como exercício do meu suposto "direito de expressão". Há exercício de direito e Abuso de
Direito, essas são categorias jurídicas, inclusive para quem se mete a palpitar sobre o que desconhece.
Além do mais, antes de falar na Revolução Francesa como a grande precursora de direitos fundamentais
é bom lembrar todos os guilhotinados, dentre eles os seus próprios idealizadores num momento posterior.
Sem ideologias, sem modismos, sem politicamente correto: terrorismo é abominável, homicídio idem, mas
também é abominável, não punível com morte, mas com desprezo moral, o desrespeito pelas pessoas.
Há muitas formas de fazer humor, há muitas formas de fazer inclusive crítica sobre religião e até pregar
ateísmo, não há necessidade alguma dessa apelação horrorosa e pornográfica característica do pasquim
“Charlie Hebdo”.
Um crente, seja ele muçulmano, católico, protestante ou o que for tem para si as divindades como parte
de seu ser mais profundo e uma ligação não somente mística, mas afetiva também como as relações
entre pais e filhos. Quem defende esse tipo de liberdade de expressão deveria então concordar em enviar
uma foto do próprio pai ou da própria mãe com uma autorização registrada em cartório para que o “Charlie
Hebdo” ou qualquer outro folheto similar, as adulterasse e apresentasse numa publicação ou na internet,
por exemplo, numa cena algo similar àquela de uma das publicações que mostra Deus Pai, Jesus cristo
e o Espírito Santo em um ato homossexual. Digo claramente uma coisa: se a pessoa disser que
concordaria com isso em nome da "liberdade de expressão" só há duas hipóteses: 1) Está mentindo e
não tem caráter algum; 2) Está dizendo a verdade e não tem caráter algum.
Também qualquer um que tenha a desfaçatez de defender terroristas que matam pessoas por aí afora a
torto e a direito sofre de demência e não merece nem mesmo discussão. O que fica um pouco
obscurecido é essa questão da liberdade de expressão e seus limites. É estritamente sobre esse aspecto
que se deve chamar a atenção. Aliás, os terroristas com seus atos tresloucados têm a "capacidade" (sic)
exatamente de colocar um véu sobre a intolerância, a falta de respeito, o abuso do direito de expressão
ínsitos a essas espécies de publicação. Transformam canalhas ofensores e intolerantes "de caneta e
tinta" em mártires de sangue vitimados por metralhadoras. Esse é o "dom" (sic) do terrorista assassino
em sua "inteligência privilegiada" (sic).
Sobre os terroristas é preciso denunciar que há realmente, por incrível que possa parecer, pessoas
empenhadas em “justificar” (sic) seus atos. São os defensores doentes e cegos do chamado
“multiculturalismo”. Como bem demonstra Garschagen, não é possível “relativisar” o atentado terrorista.
Este e outros atos similares não constituem “uma reação compreensível diante do histórico de ações
cometidas contra os países muçulmanos pelos governos de países ocidentais”. [5] Não fosse somente
pela morte e lesão a inocentes, bastaria o fato de que nada do que ocorre entre oriente e ocidente é
unilateral. No seio das próprias comunidades, nações e países ofendidos há pessoas, políticos,
governantes etc. Que são tão ou mais responsáveis por qualquer coisa que se descreva como opressão
ou exploração. Bem destaca o já citado Garschagen, usando o ensinamento de Darlymple, que “na
imaginação empobrecida dos multiculturalistas, todos os que não pertencem, por nascimento, à cultura
predominante estão empenhados numa luta conjunta contra a hegemonia opressiva e ilegítima”. [6] Com
essa mentalidade os ataques terroristas podem passar por uma espécie de “guerra ou guerrilha justa”, o
que é, para dizer o menos, um disparatado absurdo, ou, para dizer o correto, usando um neologismo, uma
“ideolorréia” fedegosa e insuportável.
A verdade é que esse assunto relativo ao caso “Charlie Hebdo” enoja de ambos os lados e, como já
visto, é paradigmático da derrocada interna da Democracia, ocasionada pela exacerbação de seus
próprios ideais. Não é possível aderir de forma acrítica a uma postura de quem pensa que o "Direito de
livre expressão" consiste em socar o ar revolucionariamente e gritar "liberdade de expressão ilimitada"! É
bem verdade que em nosso país, além de Pelé quando comemorava gols, há muita gente socando o ar e
pensando que isso pode criar um "mundo melhor" (obviamente gente com sérias limitações mentais,
embora ocupando cargos importantes). Não obstante, não podemos nos deixar contaminar por "palavras
de ordem" e chavões irrefletidos. Enfim, liberdade de expressão, como já dito e repetido e como todo e
qualquer direito individual ou coletivo, não é absoluta, tem restrições. Aliás, qualquer liberdade absoluta
implica obviamente no cerceamento da liberdade alheia. Uma das primeiras lições que qualquer jejuno em
Direito ou em Filosofia aprende é que a liberdade somente é viável mediante mecanismos para sua
própria restrição e controle. É um paradoxo sim, mas há muitos paradoxos e complexidades na
convivência humana harmônica. Tudo isso apenas para dizer que a questão da liberdade de expressão é
muito, muito mais complexa do que um conceito chapado e ilimitado, consistente numa espécie de "grito
de guerra revolucionário" protegido de qualquer visão crítica, debate, questionamento ou limitação.
Ademais, já de cara, tal capa "protetiva" (sic) tornaria o conceito de "liberdade de expressão" autofágico
no exato momento em que ele mesmo seria afastado de qualquer discussão. Para comprovar isso bem
rapidamente qualquer pessoa interessada pode e deve ler o que já se escreveu sobre o assunto.
Perceberá que a produção a respeito e as questões polêmicas sobre o alcance e o limite da liberdade de
expressão na seara jurídica, filosófica, sociológica, cultural, artística etc. É simplesmente inabarcável no
período de uma vida humana. Claramente, portanto, não se trata de sair por aí gritando "liberdade de
expressão"! Como a bibliografia é inabarcável, apenas vou indicar alguns livros essenciais para que se
tenha uma noção básica do assunto e se perceba a sua complexidade: 1) Liberdade de Expressão ­
Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, de Jónatas E. M. Machado, Editora
Coimbra (essa obra do catedrático português, Jónatas Machado tem simplesmente 1.196 páginas! Eu não
errei na digitação, são mesmo 1.196 páginas.). Creio que um gritinho revolucionário não daria material
para isso. 2) A Ironia da Liberdade de Expressão, do autor anglo ­ saxão, Owen Fiss; 3) Liberdade de
Expressão e Discurso do Ódio, da autora brasileira Samantha Meyer Pflug Ribeiro; 4) Aeropagitica ­
Discurso sobre a liberdade de expressão, Clássico de John Milton, e 5) o muito bem lembrado por Fontes
em seu texto de extrema qualidade e sensatez, [7] “Cartas Sobre Tolerância”, de John Locke. Se a
pessoa tiver a curiosidade de passar os olhos somente nestes livros já perceberá a vergonha em que
consiste sair por aí dando soquinhos no ar e gritando "liberdade de expressão" como se isso fosse um
conceito simples, chapado e infenso a limites e discussões as mais variadas nos mais diversos campos
do saber humano. [8]
Mas, será que o campo do humor não seria dotado de uma maior flexibilidade sob o pretexto de que tudo
que é ali dito, escrito, desenhado etc. É feito com o intuito meramente jocoso?
É claro que não, sob pena de criar uma válvula de escape para o abuso de direito no que tange a ofender
pessoas e grupos impunemente, alegando que é apenas uma “brincadeirinha”. Lidar com humor é trabalho
sério.
Quando alguém tem a impressão pessoal de que não há possibilidade de ofensa quando se está no
campo do suposto humor, deve ser convidado a viver de acordo com ela. Afinal, uma dada visão
filosófica ou política defendida por alguém só pode ter alguma validade se tal pessoa ou grupo é capaz
de viver de acordo com seus próprios preceitos. Do contrário trata­se apenas de palavras da boca para
fora, ou de regras boas para os outros, mas não para mim ou para o meu grupo. Quando um indivíduo
fizer uma piada bem ofensiva, inclusive com conotações sexuais bem grosseiras com sua mulher ou
namorada na sua frente sem qualquer respeito, ria simplesmente, com sua mãe, com seu pai ou seu filho
doente, ria adoidado, especialmente se ele o fizer por anos e anos a fio, vá rindo. Acho que até mesmo
seus familiares o desprezarão, sua mulher pedirá o divórcio porque estaria casada com um “banana”, um
“frouxo”, um pusilâmine, sua namorada terminaria o namoro pelo mesmo motivo acima. Percebe? Apenas
se trata de lidar com a realidade do mundo da vida e não com ideias vagas e flutuantes. Uma filosofia,
um pensamento somente tem validade se a pessoa ou grupo que o expressa é capaz de com ele viver.
Mas, sinto dizer que no caso de ofensas tão brutais como as do “Charlie Hebdo”, se a pessoa for capaz
de viver da forma que apregoa, não haverá outra coisa para lhe ser conferida a não ser um desprezo
muito grande. Talvez, pelo fato de algumas pessoas não terem crenças, pensem que é diferente no que
tange à religião, mas não é. O problema nesse caso é uma falta de empatia e uma insensibilidade e
incapacidade de se colocar no lugar do outro. Cada um sabe seus limites, as coisas que lhe são
importantes, aquilo que é capaz de suportar e não é possível julgar os outros pela nossa medida. Há
limites e são limites humanos para tudo, inclusive o humor de bom e de mau gosto. Não penso que o
tema da religião ou qualquer outro deva ser alijado ou proibido em charges, piadas etc. Mas, há limites
para tudo. A charge do “Charlie Hebdo” é tão repulsiva que não é sequer engraçada, é apenas
pornográfica e sem qualquer sentido.
Como bem expõe Antier, trazendo à baila a doutrina de Spinoza:
“Mas há risos e risos. Em sua Éthique, Spinoza denuncia o riso que se transforma em deboche, que
menospreza, que ridiculariza. Opostamente, ele exalta o riso alegre que explode da pessoa feliz, e que é
‘uma pura alegria’, uma virtude”. [9]
Como já disse anteriormente, mas agora retomando a questão da coerência entre ideias e vida prática,
permita a alguém postar uma imagem semelhante àquela do “Charlie Hebdo”, onde se retrata a trindade
cristã em atos homossexuais recíprocos, manipulando fotos de familiares seus, talvez com você no lugar
do Cristo e o pênis de um ancestral seu falecido introduzido no seu ânus, na sua frente seu pai sendo
sodomizado por você. O que acharia disso? Engraçado? A intenção seria apenas humorística? Ora, mas
é religião e você é ateu, então essas figuras não são importantes "para você". Mas, a questão não é
você ou eu; é o crente. Para ele essas figuras não são abstrações ou superstições são algo sagrado e
muito, muito relevante em sua vida, muitas vezes e para muitas pessoas a única coisa relevante. Essa
charge horrorosa é apenas um exemplo. O fato de que você leitor, eu ou seja lá quem for não tenha
alguma fé nada, absolutamente nada tem a ver com a permissividade quanto ao desrespeito grave da
religião alheia. Quando se fala em intolerância somente se pensa no lado do religioso fanático, mas há o
fanatismo, o dogmatismo ateu também que se expressa nessas formas de desrespeito graves em
manifestações supostamente "artísticas" (sic), “humorísticas” (sic) e às vezes também em agressões. A
intolerância geralmente tem duas faces. Isso é preciso compreender. Não se trata aqui propriamente ou
exclusivamente de religião, de certo ou errado em termos dogmáticos desta ou daquela orientação, mas
de viabilização de uma convivência humana pacífica. Também não é possível em época de eleições
marcar comícios de dois partidos opostos no mesmo lugar e na mesma hora. É pedir violência. A
liberdade política também tem limites óbvios, o mesmo se podendo afirmar com relação à religiosa, ao
culto, à expressão etc. São questões muito complexas que não podem ser resolvidas com frases feitas
oriundas do pensamento raso e rasteiro do “politicamente correto”.
REFERÊNCIAS
DALRYMPLE, Theodore. A Vida na Sarjeta. Trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações,
2014.
FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2ª. Ed. São Paulo: RT, 2002.
FISS, Owen M. A Ironia da Liberdade de Expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva
Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
FONTES, Paulo Gustavo Guedes. “Je suis Locke” Charges do “Charlie Hebdo”: liberdade de expressão x
tolerância religiosa. Disponível em http://ambitododireito.blogspot.com.br/, acesso em 19.01.2015.
GARSCHAGEN, Bruno. O multiculturalismo como inimigo da civilização. Disponível em
www.gazetadopovo.com.br, acesso em 25.01.2015.
GUITTON, Jean, ANTIER, Jean – Jacques. O Livro da Sabedoria e das Virtudes Redescobertas. Trad.
José Luiz Miranda. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
LOCKE, John. Cartas Sobre Tolerância. Trad. Joane B. Duarte Rangel e Fernando Dias Andrade. São
Paulo: Ícone, 2004.
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão – Dimensões constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
MEYER – PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009.
MILTON, John. Aeropagítica – Discurso sobre a Liberdade de Expressão. Trad. Benedita Bettencourt.
Coimbra: Almedina, 2009.
OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal. São Paulo: RT, 1999.
SCHUON, Frithjof. Da unidade transcendente das religiões. Trad. Fernando Guedes Galvão. 2ª. Ed. São
Paulo: Martins, 1984.
TODOROV, Tzvetan. Os Inimigos Íntimos da Democracia. Trad. Joana Angélia D’Avila Melo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
[1] TODOROV, Tzvetan. Os Inimigos Íntimos da Democracia. Trad. Joana Angélia D’Avila Melo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 139 – 140.
[2] OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal. São Paulo: RT, 1999, p. 132.
[3] FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2ª. Ed. São Paulo: RT, 2002, p.
550.
[4] SCHUON, Frithjof. Da unidade transcendente das religiões. Trad. Fernando Guedes Galvão. 2ª. Ed.
São Paulo: Martins, 1984, p. 165.
[5] GARSCHAGEN, Bruno. O multiculturalismo como inimigo da civilização. Disponível em
www.gazetadopovo.com.br, acesso em 25.01.2015.
[6] Op. Cit. No original: DALRYMPLE, Theodore. A Vida na Sarjeta. Trad. Márcia Xavier de Brito. São
Paulo: É Realizações, 2014, p. 54 – 55. Note­se que no texto de Garschagen ele utiliza na passagem que
cita de Dalrymple a palavra “tirania”. Neste trabalho foi corrigida para “hegemonia”, pois que no original de
Dalrymple esta é a palavra empregada, ao menos na tradução brasileira da Editora É Realizações que foi
utilizada na pesquisa. Não obstante, a ideia transmitida não se altera praticamente nada com a utilização
de uma ou outra palavra.
[7] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. “Je suis Locke” Charges do “Charlie Hebdo”: liberdade de expressão
x tolerância religiosa. Disponível em http://ambitododireito.blogspot.com.br/, acesso em 19.01.2015.
[8] Esmiuçando as referências citadas no corpo do texto: MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de
Expressão – Dimensões constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora,
2002, “passim”. FISS, Owen M. A Ironia da Liberdade de Expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio
Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, “passim”. MEYER – PFLUG, Samantha
Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009, “passim”. MILTON, John.
Aeropagítica – Discurso sobre a Liberdade de Expressão. Trad. Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina,
2009, “passim”. LOCKE, John. Cartas Sobre Tolerância. Trad. Joane B. Duarte Rangel e Fernando Dias
Andrade. São Paulo: Ícone, 2004, “passim”.
[9] GUITTON, Jean, ANTIER, Jean – Jacques. O Livro da Sabedoria e das Virtudes Redescobertas. Trad.
José Luiz Miranda. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 156.
Disponível em: http://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/163165711/charlie­hebdo­midia­e­democracia­
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Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia e Professor Universitário
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em
Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e
Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós­graduação da
Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e...

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