Outubro mês missionário missões no 19 das CEBs - Paróquia Coração de Jesus
Compreender trafico humanos
1. Gráfica: Cliccaquì - Roma
COMPREENDER E COMBATER TRÁFICO DE SERES HUMANOS
IOM OIM
Compreender e Combater
Tráfico de Seres Humanos
Imprensa: Tipolitografia Trullo - Roma
A fotografia da capa
foi outorgada
Actas
cortesmente pela
Fábrica de São Pedro
em Vaticano
do Seminário
para Religiosas
International Union
of Superiors General
IOM International Organization for Migration
OIM Organizzazione Internazionale per le Migrazioni
2. Compreender e Combater
Tráfico de Seres Humanos
Actas do Seminário para Religiosas
IOM International Organization for Migration
OIM Organizzazione Internazionale per le Migrazioni
3. COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Publicado no âmbito do “Programa de Formação para Religiosas favorecendo Ações
na luta contra o tráfico de pessoas”, projeto apoiado pela Embaixada dos Estados
Unidos na Santa Sé e com o financiamento do Gabinete para a População,
Refugiados e Migrações do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América.
A OIM está empenhada no princípio de que uma migração humana e ordenada
beneficia não só os migrantes como a sociedade. Enquanto principal Organização
internacional que se ocupa de migrações, a OIM actua com os seus parceiros na
comunidade internacional para contribuir em responder aos contínuos desafios
operativos na gestão das migrações, melhorar o conhecimento das questões
relacionadas com as migrações, defender a dignidade e o bem-estar dos migrantes.
Publicado por
Organização Internacional para as Migrações
Missão de Ligação na Itália e Coordenação para a Região do Mediterrâneo
Via Nomentana, 62 - 00161 Rome
Tel.: + 39 06 441861
Fax: + 39 06 4402533
E-mail: MRFRome@iom.int
Internet: www.iom.int
ISBN 978-92-9068-231-8
O livro não poderà ser reproduzido na versão integral ou parcial sem prévia
autorização do autor.
4. Compreender e Combater
Tráfico de Seres Humanos
Actas do Seminário para Religiosas
Preparação e Compilação para a OIM por
Stefano Volpicelli
Dezembro de 2004
IOM International Organization for Migration
OIM Organizzazione Internazionale per le Migrazioni
5. COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Agradecimentos
Stefano Volpicelli redigiu este livro na qualidade de consultor externo da
Organização Internacional para as Migrações, em colaboração com:
Anne Munley, IHM, Directora de Programas da União Internacional das
Superioras Gerais (UISG)
Bernadette Sangma, FMA, membro do grupo de trabalho Justiça, Paz e
Integridade sobre tráfico de mulheres e crianças (JPIC)
Pino Gulia, responsável das políticas migratorias para a ACLI (Associação
Católica de Trabalhadores Italianos) e experta na área do tráfico de pessoas
Roberto Rossi, psicólogo e formador
Agradecimentos especiais para:
Eugenia Bonetti, MC, Coordenadora do programa contra o tráfico da Oficina
para a Mobilidade Etnica da União das Superioras Maiores da Itália (USMI) pela
sua contribuição activa na preparação e realização da capacitação
Maria Pia Iammarino, SFP, pelos seus preciosos conselhos e sugestões sobre os
conteúdos do curso
Giulia Falzoi, Chefe da Unidade de Implementação de Projectos na OIM em
Roma, pela sua habilidade na gestão do programa
Teresa Albano e Emila Markgjonaj da Unidade Contra o Tráfico da OIM em
Roma, pelas suas preciosas sugestões baseadas na experiência e pelo seu
encorajamento constante
O Embaixador dos Estados Unidos da América na Santa Sé – Jim Nicholson – e a
sua equipe, por sua dedicação e apoio durante a realização do programa
ACIME para a tradução do manual em português e Martina Andretta para a
revisão
As opiniões expressas neste documento são da responsabilidade dos seus autores e
não reflectem necessariamente posições adoptadas pela OIM.
6. I
Prefácio
A luta contra o tráfico de pessoas é um dos desafios mais prementes que a
comunidade internacional enfrenta actualmente. As vítimas deste crime insidioso
contam-se, a cada ano que passa, em centenas de milhares, talvez milhões, sendo
muitas vezes as faixas mais pobres e desprotegidas da humanidade. Actualmente,
o tráfico de pessoas é uma das actividades criminosas mais lucrativas do mundo,
igual ao tráfico de armas e droga.
O Presidente George W. Bush realçou o empenho dos Estados Unidos da América
em derrotar esta forma de escravatura contemporânea ao levar as suas
preocupações até à Assembléia Geral das Nações Unidas, onde nos últimos dois
anos, por duas ocasiões, colocou o problema perante o mundo. Conforme
observou, “existe uma crueldade especial nos maus tratos e na exploração dos
mais simples e vulneráveis. Qualquer pessoa que seja responsàvel por estas
vítimas e lucre com o seu sofrimento deve ser severamente punido. Todos
aqueles que promovem esta indústria degradam-se a si próprios e agravam o
desespero de outros.”
Os Estados Unidos estão profundamente preocupados com esta tragédia humana e
empenhados em contribuir em pôr-lhe termo. O Departamento de Segurança
Interna (Department of Homeland Security) anunciou que as forças de segurança
ao nível federal, estadual e local trabalharão em conjunto numa iniciativa sem
precedentes para combater o tráfico de pessoas e a violência que este gera.
Dada a sua natureza transnacional, nenhum país tem o poder de erradicar o
tráfico de pessoas por si só. Por esta razão, os Estados Unidos da América
apoiam, quer os esforços de países individualmente considerados, quer os de
organizações internacionais como a Organização Internacional para as Migrações
(OIM), que se esforçam no sentido de encontrar novas formas de combater este
terrível flagelo mundial. Para além disso, encorajam as Nações Unidas, a NATO e
a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) a fim de que
lancem programas institucionais globais destinados a combater o tráfico de
pessoas. Sò através da união de esforços conseguiremos eliminar o flagelo desta
7. II COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
forma de escravatura do século XXI.
Os Estados Unidos da América comprometeram-se jà há alguns anos na luta contra
o tráfico de pessoas. Nesse sentido, aprovaram em 2000 a Lei de Protecção às
Vítimas de Tráfico e Violência (Victims of Trafficking and Violence Protection Act).
Com o objectivo de intensificar ainda mais a cooperação internacional na luta
contra o tráfico, o Departamento de Estado fornece ao Congresso dos Estados
Unidos um Relatório anual sobre o Tráfico de Pessoas; um estudo, através do qual
se avaliam os progressos que cada país desempenha a nível nacional na prevenção
do tráfico, na penalização dos traficantes e na protecção às vítimas. Os Estados
Unidos estão dispostos a dar ajuda àqueles países que demonstrem um
compromisso sincero na luta contra esta escravatura da época moderna.
A Embaixada dos Estados Unidos na Santa Sé concentra muita atenção neste novo
assalto à dignidade humana e trabalha activamente para a sensibilização em
relação ao tema, também através de um programa alargado de formação no
sentido de prevenir e impedir o fenômeno. Foi um privilégio termos tido a
oportunidade de trabalhar com o escritório da OIM em Roma, as Irmãs da União das
Superiores Maiores da Itália e da União Internacional Superioras Gerais na
coordenação do programa de formação de religiosas, cujo objectivo é capacitá-las
para o trabalho contra o tráfico. É um programa pioneiro, que já comprovou o seu
sucesso. Esperamos que a informação incluída no relatório o torne um instrumento
útil que outras pessoas possam utilizar no combate ao tráfico de pessoas. Os
Estados Unidos vêm as pessoas de fé como parceiras essenciais neste trabalho.
Temos a responsabilidade moral de ajudar milhões de pessoas em todo o mundo
que são recrutadas, vendidas, transportadas e retidas contra a sua vontade em
condições muito semelhantes à escravidão. Continuaremos a trabalhar com todas
as pessoas de boa vontade no sentido de sensibilizarmos para as condições terríveis
dos escravos contemporâneos. Já acabamos anteriormente com a escravatura,
podemos e devemos fazê-lo novamente.
Jim Nicholson
Embaixador dos Estados Unidos na Santa Sé
Dezembro de 2004
8. III
Índice
Introdução ......................................................................1
1 O Tráfico de pessoas: o cénario ............................................ 5
1.1 Tráfico de pessoas e migração .............................................. 6
1.1.1 Factores que impelem ....................................................7
1.1.2 Efeitos colaterais das políticas migratórias ............................7
1.2 O Tráfico de pessoas e a relação de gênero ..............................8
1.2.1 Obstáculos no caminho da emancipação ..............................9
1.3 As dimensões e o processo de tráfico ....................................10
1.4 Respostas: institucional ....................................................12
1.5 Respostas: social ............................................................16
1.6 Respostas: trabalho em rede ..............................................17
1.7 Para mais informações ......................................................18
2 Perfis: migrantes, vítimas do tráfico, traficantes, exploradores ..20
2.1 Os migrantes ..................................................................20
2.1.1 O processo ................................................................21
2.2 Os migrantes, vítimas de tráfico ..........................................22
2.2.1 O cénario ..................................................................24
2.3 Os outros protagonistas do tráfico ........................................25
2.3.1 Os traficantes..............................................................25
2.3.2 Perfil do traficante ......................................................26
2.3.3 Os exploradores ..........................................................27
2.4 Para mais informações ......................................................28
3 Tráfico e riscos sanitários ..................................................29
3.1 Os riscos para a saúde: físicos e psicológicos ..........................30
3.2 As Doenças sexualmente transmissíveis (DST) ..........................32
3.3 Saúde: a componente de direitos humanos ..............................33
3.4 Para mais informações ......................................................35
9. IV COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
4 A prevenção do tráfico ......................................................36
4.1 O enquadramento teórico da prevenção ................................36
4.2 Prevenção e informação ....................................................38
4.3 Estratégias de prevenção ..................................................39
4.3.1 Prevenção primária ......................................................39
4.3.2 Prevenção secundária ....................................................40
4.3.3 Prevenção terciária ......................................................42
4.4 Prevenção e estigma social ................................................42
4.5 Para mais informações ......................................................43
5 A Relação de Ajuda ..........................................................45
5.1 A relação de ajuda ..........................................................46
5.2 Modelos de intervenção de ajuda ........................................47
5.3 Perfil psicológico das sobreviventes na relação de ajuda ............48
5.4 Proposta de um modelo operativo: “condições básicas” ..............49
5.5 Proposta de um modelo operativo: “as instâncias psíquicas” ........51
5.5.1 A evolução do SELF ......................................................53
5.6 Proposta de um modelo operacional:
“as competências da técnica de apoio” ..................................53
5.7 Teste: a resposta natural ..................................................55
5.8 Proposta de um modelo operacional: “a metodologia
para a implementação de um modelo de ajuda” ......................62
5.9 A negociação dos conflitos na relação de ajuda ........................64
5.9.1 Definição de conflito ....................................................64
5.9.2 Definição de negociação ................................................65
5.10 Para mais informações ......................................................67
6 Empoderamento (empowerment) ........................................69
6.1 Empoderamento ..............................................................70
6.2 A génese, o processo e os instrumentos do empoderamento ........71
6.3 Mediação entre pares........................................................76
6.3.1 Como iniciar uma intervenção de mediação entre pares ..........77
6.4 Para mais informações ......................................................78
7 O esgotamento (Burn out) ..................................................79
7.1 Síndrome do esgotamento ..................................................79
7.2 Medidas de prevenção do esgotamento ..................................81
7.3 Apoio espiritual ..............................................................83
7.4 Para mais informações ......................................................85
10. 1
Introdução
E
ste documento de formação destina-se a servir como um dos instrumentos
para religiosas jà activas, ou que desejam tornar-se activas, no combate
ao tráfico de pessoas1, numa associação de esforços em actividades de
prevenção e de apoio às vítimas.
O documento é fruto do “Programa de Formação para Pessoal Religioso nas Ações Lucas 4: 18-19
de Combate ao Tráfico de Pessoas”, apoiado pela Embaixada Americana na Santa 18 “O Espirito do Senhor
Sé, subsidiado pelo Governo dos E.U.A. através do Departamento de Estado está sobre mim, porque
(Gabinete para a População, Refugiados e Migrações) e conduzido pela me ungiu; e enviou-me
Organização Internacional para as Migrações (OIM), a União das Superioras Maiores para anunciar a boa nova
aos pobres , para anunciar
da Itália (USMI), a União Internacional das Superioras Gerais (UISG) e a Fundação
aos cativos a rendenção,
Migrantes em Roma da Conferência Episcopal da Itália (CEI). aos cegos a restauração da
Os conteúdos deste documento foram utilizados em muitos cursos de treinamento, vista, para pôr em
liberdade os cativos,
nos quais cerca de 400 mulheres participaram. Os cursos tiveram lugar em Itália,
19 para publicar o ano da
Albânia, România, Nigéria, Tailândia, República Dominicana, Brasil, Portugal, a graça do Senhor.”
região do sudeste asiático e do sul da África. Estes países foram seleccionados
devido à diversidade das suas condições políticas sociais e culturais.
O tráfico de pessoas é um fenômeno indissociavelmente ligado à transformação
geopolítica das duas últimas décadas, como resultado da crescente ligação e
interdependência dos mercados mundiais. Este processo profundamente
transformador é definido “globalização” e teve não só impacto junto dos que têm
papéis de liderança enquanto decisores políticos, empresários e comerciantes,
mas igualmente junto às redes de apoio social (welfare), sindicatos, organizações
criminais e multidões entre as mais desfavorecidas. Esta realidade nos obriga à
reconsideração das políticas de desenvolvimento e de redistribuição de riqueza nos
países de origem (geralmente países em desenvolvimento) e países de destino
(economicamente avançados). Para sermos mais precisos, os países de destino são
chamados a encontrar uma forma de conciliar legítimos interesses econômicos que
se baseiam no trabalho a baixo custo de forma a manterem a sua margem de lucro
notas
e permanecerem competitivos, com o respeito pelos direitos humanos e pela
1. Ao longo do
dignidade daqueles que investem na migração com a esperança de melhorar as documento a terminologia
suas condições de vida. tráfico e anti-tráfico
referem-se exclusivamente
A globalização econômica favoreceu o aumento dos fluxos migratórios, ao tráfico de seres
particularmente entre as mulheres e os menores, grupos anteriormente pouco humanos.
11. 2 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
interessados em migrar. Na busca de uma melhoria de condições de vida para si
próprias e para as suas famílias, milhares de mulheres migraram, atraídas pela
possibilidade de encontrar trabalho em um sector que se tornou estratégico nas
sociedades do primeiro mundo, tal como o sector doméstico. A miragem da
independência financeira, adquirida tomando cuidado de pessoas de idade,
crianças o tomando conta de apartamentos, convenceu muitas mulheres em buscar
melhoria de vida, no exterior.
Em muitos casos, contudo, as promessas não são cumpridas. Em vez de um
trabalho digno e bem remunerado, muitas mulheres são ameaçadas, constrangidas
e sofrem situações de trabalho forçado e exploração sexual, sendo ainda vítimas
de chantagem devido ao seu estatuto de irregularidade juridica2. Impossibilitadas
ou receosas demais para procurar ajuda, são frequentemente obrigadas a pagar
quantias exorbitantes para reembolsar suas despesas de viagem e pagar as de
alojamento.
Lucas 9: 10-17 Em muitos países, a exploração de mulheres para fins laborais surge
10 Os apóstolos voltaram,
frequentemente a par de uma outra grave violação da pessoa: a exploração sexual.
e contaram a Jesus tudo o As mulheres são coagidas (com ou sem o recurso à violência) a prestar serviços
que haviam feito. Jesus os sexuais. Muitas delas toleram estas condições, tanto para manter viva a sua
levou consigo, e se retirou esperança de melhoria de condições de vida como simplesmente para sobreviver.
para um lugar afastado na
direção de uma cidade A sociedade civil reagiu com uma série de iniciativas com o fim de prevenir o
chamada Betsaida. 11 No recrutamento de novas victimas e de reduzir os malefícios – físicos e psicológicos
entanto, as multidões - relacionados com o tráfico. A implementação contínua e coerente destas
souberam disso, e o
medidas, atendendo aos diferentes contextos culturais, nacionais ou regionais,
seguiram. Jesus acolheu-
as, e falava a elas sobre o levou ao seu aperfeiçoamento e, consequentemente, ao desenvolvimento da sua
Reino de Deus, e restituía eficácia. Em muitas regiões geográficas, sobretudo nos países de origem, o pessoal
a saúde a todos os que religioso é o único recurso de apoio capacitado para uma intervenção social
precisavam de cura. 12 A continuada. Assim, o reforço do seu profissionalismo, com competências
tarde vinha chegando.
específicas para intervir no combate ao tráfico de pessoas, facilita a realização de
Os doze apóstolos
se aproximaram de acções eficazes e coordenadas com outros actores sociais.
Jesus, e disseram: A intervenção e as abordagens devem ser constantemente reformuladas e, se for
“Despede a multidão.
necessário, actualizadas, para assegurar que se mantenham adequadas ao seu
continua na página seguinte contexto. Por este motivo, a formação das auxiliares contribui para a eficácia da
intervenção do pessoal religioso feminino, ajudando a reduzir a exposição aos
riscos psicológicos e físicos associados a esta área de intervenção.
notas
Estrutura do livro
2. A maior parte das
mulheres chegam com um
visto de turista que expira
Geralmente, duas correntes de pensamento caracterizam a acção de combate ao
dentro de determinado tráfico:
prazo, deixando-as
desprovidas da mais
1. A primeira, orientada para uma perspectiva de gênero, relaciona o tráfico com
elementar protecção legal a prostituição. Esta perspectiva encara o tráfico sobretudo como uma forma de
e da possibilidade de exploração sexual, causada pelos apetites sexuais distorcidos de homens dos
converter o visto para fins
turísticos numa países mais ricos. Esta corrente de pensamento sustenta que a procura do sexo
autorização de pago é o primeiro factor constitutivo do tráfico de mulheres.
permanência.
12. INTRODUÇÃO 3
2. A segunda corrente de pensamento é comum nos países de origem mas também Assim eles podem ir aos
existe em países de destino. Pode ser caracterizada como uma perspectiva povoados e campos
vizinhos para procurar
“holística”, dado que encerra a perspectiva do tráfico no seu todo, tendo em
alojamento e comida,
conta a complexidade das suas implicações. Esta abordagem analiza os porque estamos num lugar
factores económicos relevantes e as políticas de migração, considerando a deserto.” 13 Mas Jesus
evolução profunda dos papéis de gênero e das relações entre estes. Nesta disse: “Vocês é que têm de
perspectiva, a exploração em geral, não sò sexual mas também do trabalho lhes dar de comer.” Eles
responderam: “Só temos
deve ser o eixo das acções de combate ao tráfico.
cinco pães e dois peixes...
Dando prioridade à segunda perspectiva, mais inclusiva, este livro esforça-se por A não ser que vamos
oferecer à leitora um instrumento profissional e prático para combater e apoiar as comprar comida para toda
esse gente!” 14 De fato,
vítimas. Fá-lo através da promoção de três linhas de acção:
estavam aí mais ou menos
1. prevenção das condições que favorecem o envolvimento das mulheres no cinco mil homens. Mas
tráfico, tais como a pobreza, a desigualdade e os maus tratos familiares; Jesus disse aos discípulos:
“Mandem o povo sentar-se
2. apoio às vítimas, assistindo-as na sua reabilitação e reintegração; em grupos de cinqüenta.”
3. coordenação de actividades dentro das redes sociais de apoio já existentes. 15 Os discípulos assim
fizeram, e todos se
Este documento explica o fenômeno do tráfico de pessoas e as suas consequências, sentaram. 16 Então Jesus
começando por definir conceitos e encarando depois as suas diversas implicações. pegou os cinco pães e os
Os temas principais, no que concerne ao tráfico, estão divididos em sete capítulos, dois peixes, ergueu os
olhos para o céu,
cada um apresentando uma explicação básica como ponto de partida para mais
pronunciou sobre eles a
informações. bênção e os partiu, e ia
Os capítulos 1-3, depois de ter introduzido o mecanismo da migração, debatem as dando aos discípulos a fim
de que distribuíssem para
questões relacionadas com os migrantes e as migrações, antes de avançar para o
a multidão. 17 Todos
tema do tráfico e das suas vítimas. A divisão de temas e a disposição de cada comeram, ficaram
capítulo permite à leitora consultar as secções específicas de acordo com o seu satisfeitos, e ainda foram
interesse ou necessidade, bem como com o seu nível de conhecimento. recolhidos doze cestos de
pedaços que sobraram.
Este texto destina-se à leitoras jà familiarizadas com o processo educacional, por
isso utiliza uma linguagem técnica simplificada que favoreça a comprensão do
tráfico também para leitoras não envolvidas neste assunto.
Foram adoptados dois tipos de abordagens para o ensino e aprendizagem: a
abordagem racional, de conteúdo e metafórica, e a abordagem de relação. A
mensagem de conteúdo representa o que se comunica em termos de sentido e
significado. A mensagem metafórica “entra” na imaginação das leitoras, gerando
dessa maneira uma analogia que descreve o mesmo conceito de uma forma criativa.
No decurso dos momentos formativos, esta segunda abordagem tomou uma forma
concreta através dos exercícios diários realizados pelas participantes. Foi-lhes
pedido que sugerissem e que comentassem passagens das Escrituras (de ambos os
Testamentos) para ser asociados aos temas discutidos durante o trabalho do dia.
Este exercício estimulou uma discussão profunda sobre as premissas espirituais que
sustentam as acções das Irmãs no combate ao tráfico de pessoas.
Nota Editorial
Deverá ser tido em conta que a utilização do feminino neste texto não implica que
13. 4 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
os homens não possam ser vítimas de tráfico. Apesar de ser menos freqüente, o
fenômeno também os atinge. A informação contida neste guia não é específica do
gênero feminino e é aplicável igualmente ao trabalho desenvolvido junto de
vítimas do sexo masculino.
A utilização de termos e conceitos tais como potencial vítima, vítima e sobrevivida
coadunam-se com as várias fases do tráfico: recrutamento, exploração e fuga. A
utilização do termo “pessoa assistida” referindo-se à potencial vítima, vítima ou
sobrevivida, consta do capítulo 5, que trata da Relação de Ajuda.
No entanto, a palavra “vítima” é utilizada simplesmente para facilitar a
comunicação e de forma alguma sugere fragilidade ou inferioridade por parte da
pessoa envolvida numa situação de tráfico. Obviamente, no trabalho desenvolvido
junto de sobreviventes de tráfico, recomenda-se que não se utilize esta
terminologia.
14. 5
O Tráfico de pessoas:
o cenário 1
Resumo do capítulo Isaías 42:18-22
N
18 Surdos, escutem; cegos,
este capítulo são abordadas as causas do fenômeno do tráfico, as suas
olhem e vejam! 19 Quem é
dimensões e a resposta da sociedade civil e das instituições ao nível local cego, senão o meu servo?
e internacional. A análise da migração feminina é o ponto de partida Quem é surdo, senão o
dessa sessão. Focando ambas as modalidades do tráfico – exploração mensageiro que eu
laboral e sexual – chama-se a atenção para o facto de o tráfico de pessoas vai além mandei? 20 Você viu
muitas coisas, e nada
da exploração sexual.
percebeu; abriu os
Neste sentido, o tráfico é um fenômeno mais complexo: constitui uma violação dos ouvidos, e nada ouviu! 21
Por causa de sua própria
direitos humanos que pode incluir mas que não se circunscreve apenas à
justiça, Javé queria
prostituição. A prostituição pode encerrar uma escolha desesperada resultante da engrandecer e glorificar a
ausência de outras alternativas ou ser fruto da discriminação de gênero. O sua lei; 22 mas o seu povo
elemento coercitivo implícito na exploração é uma inquestionável violação dos é um povo espoliado e
direitos humano e a sexual representa a forma mais desprezível de exploração. roubado, todos presos em
cavernas, trancados em
Por isso, neste capítulo é destacada a importância de que para aniquilar o prisões. Era saqueado, e
fenômeno do tráfico é preciso ter em conta os factores que condicionam os ninguém o libertava;
fluxos migratórios. É dada relevância, neste sentido, ao facto de as mulheres do despojado, e ninguém
Sul não migrarem para Norte1 aleatoriamente, mas sim como uma resposta dizia: “Devolvam isso”.
racional às condições do mercado. Há como uma mão invisível que traça o
caminho para o Norte, onde os auxiliares de cuidados médicos ou aqueles que
notas
cuidam dos idosos, as amas e as empregadas domésticas (os papéis tradicionais
1. A generalização de que
que as mulheres do Norte2 não podem ou não querem continuar a desempenhar), o fenômeno ocorre do
não se encontram em número suficiente. Desta forma, podemos considerar que Norte para o Sul ou do
a migração e o tráfico de pessoas estão intimamente ligados às mudanças do Leste para o Ocidente é
utilizada ao longo do
papel social da mulher. documento. Contudo, o
tráfico ocorre em todo o
O primeiro e importante passo para combater o tráfico é representado pelas
mundo; constitui uma rede
acções das instituições públicas ao nível local, internacional e intergovernamental. global onde os países de
Este capítulo explica como isso é possivel através da adopção dos protocolos das origem, trânsito e de
destino se encontram
Nações Unidas (doravante designadas por ONU), que nomeou um Relator Especial, interligados.
das numerosas recomendações da União Européia (doravante designada por UE), 2. Na maior parte dos
da legislação especial anti-tráfico de carácter nacional adoptada em diversos casos, as mulheres
países e dos acordos bilaterais e multilaterais. Por último, é essencial que a ocidentais não podem
deixar de trabalhar fora
sociedade civil, incluindo as pessoas religiosas, continuamente se empenhe no de casa.
15. 6 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
sentido de se organizar numa rede coesa, com vista à harmonização de
mecanismos de prevenção e de assistência das vítimas, seja nos paises de origem
como nos de destino.
Introdução
Esta sessão é dedicada à definição dos factores socioculturais e econômicos que
dão origem ao fenômeno do tráfico de pessoas. Ainda se encontram sob
investigação as razões pelas quais, no final dos anos 70, as mulheres constituíam
menos de 10% da totalidade do fluxo migratório, enquanto que actualmente
constituem cerca de 50% da população migrante.
Somente através de uma consideração de todos os elementos do tráfico é possìvel
compreender as possíveis acções de prevenção, bem como a natureza e a
profundidade do trauma daquelas que caem na armadilha do tráfico.
São referidos também exemplos de iniciativas implementadas ao nível das
instituições locais e internacionais, bem como da sociedade civil, sublinhando a
importância estratégica das acções de trabalho em rede.
Mateus 7:24-27 1.1 Tráfico de pessoas e migração
24 Portanto, quem ouve
O tráfico está intrinsecamente ligado ao fenômeno migratório. Apesar de ser
essas minhas palavras e as
põe em prática, é como o importante não confundir estes conceitos (tráfico não é migração irregular) ou
homem prudente que utilizá-los de forma indiferenciada, é verdade que o tráfico está enraizado na
construiu sua casa sobre a correlação entre o aumento quantitativo de migrantes de países em
rocha. 25 Caiu a chuva, desenvolvimento e as dificuldades de mobilidade que encontram3. A restrição ao
vieram as enxurradas, os
desejo de movimento e de procura de trabalho condiciona negativamente o
ventos sopraram com força
contra a casa, mas a casa projeto migratório de quem busca a sorte no exterior.
não caiu, porque fora Para explicar o aumento dos fluxos migratórios, é necessário regressar a 1989.
construída sobre a rocha.
Depois da queda do comunismo e do desmoronamento conseqüente daquela parte
26 Por outro lado, quem
ouve essas minhas palavras de Europa conhecida como segundo mundo, emergiu uma nova ordem geopolítica,
e não as põe em prática, é provocando mudanças profundas nas políticas de apoio às regiões mais pobres do
como o homem sem juízo, globo. Durante a Guerra Fria, os países em desenvolvimento eram apoiados por
que construiu sua casa uma das duas superpotências. Conseqüentemente, quando a União Soviética se
sobre a areia. 27 Caiu a
desmembrou, a propaganda política para desencorajar a proliferação do
chuva, vieram as
enxurradas, os ventos comunismo deixou de ser necessária. Não demorou muito até que a ordem global,
sopraram com força contra baseada na bipolarização da Guerra Fria, se transformasse em globalização, um
a casa, e a casa caiu, e a sistema que reconhece e valoriza a relação econômica livre entre os Estados e os
sua ruína foi completa!” benefícios da política econômica do Ocidente.
Todavia, a globalização rapidamente demonstrou ter o efeito secundário
notas imprevisto e indesejável de aumentar os fluxos migratórios a partir dos primeiros
3. Mais precisamente, um anos de 90, não só em quantidade mas também em gênero. Há duas explicações
aumento da migração leva principais para este fenômeno. Em primeiro lugar, a queda do Comunismo pôs em
geralmente a um aumento
movimento centenas de milhares de pessoas que anteriormente estavam
das barreiras à migração
nos países de destino. confinadas em seus países. Por outro lado, a diminuição ou interrupção da ajuda
16. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 7
econômica aos países em desenvolvimento, por parte das superpotências,
traduziu-se num verdadeiro êxodo do Sul para o Norte e do Leste para o Ocidente.
Para além disso, a mesma tendência de rumar para o Norte constatou-se dentro
dos próprios países. Está actualmente em curso na China e já aconteceu em outros
países do Sudeste Asiático ou de África.
1.1.1 Factores que impelem
A partir de 1990, homens e mulheres começaram a avançar para além das
fronteiras dos seus países na busca de trabalho. Os homens, num duro esforço para
manter a sua identidade enquanto “chefes de família”, tornaram-se mais dispostos
a aceitar trabalhos no exterior que se revelam precários, temporários e pouco
satisfatórios. A alternativa de permanecer nos países de origem, tranforma-se
igualmente num factor que impele a nova geração, dado que aqueles que não
emigram passam o seu tempo aguardando uma eventual solicitação para um
trabalho precário, mal remunarado e temporário. Estes factores levam a explicitar
a frustração e o senso de impotência no álcool, que, por sua vez, se torna um Êxodo 3: 7-12
factor que impele a emigração feminina. 7 Javé disse: “Eu vi muito
Como sempre no decurso dos séculos, com os homens a trabalhar no estrangeiro, bem a miséria do meu
povo que está no Egito.
as mulheres têm experimentado a ausência dos seus maridos num ambiente de
Ouvi o seu clamor contra
grande privação económica e social. Se associarmos estes factores às já precárias seus opressores, e conheço
condições de vida determinadas pelas estruturas sociais em muitos países em os seus sofrimentos. 8 Por
desenvolvimento e/ou “em transição”, encontramos outro factor que conduz ao isso, desci para libertá-lo
mundo da emigração. do poder dos egípcios e
para fazê-lo subir dessa
Os seguintes exemplos são ilustrativos: terra para uma terra fértil
1. Na Nigéria, no estado de Edo, de onde provêm a maior parte das mulheres e espaçosa, terra onde
corre leite e mel, o
traficadas, elas não têm direitos sucessórios. Se o pai ou o marido falecerem,
território dos cananeus,
a propriedade passa para os seus filhos homens ou para a família do marido. heteus, amorreus,
2. Nos países do ex bloco soviético, o recurso ao consumo de álcool como ferezeus, heveus e
jebuseus. 9 O clamor dos
“analgésico” traduziu-se numa alteração das condições de vida, tendo vindo a
filhos de Israel chegou até
registar-se um aumento impressionante das situações de abuso sexual ou mim, e eu estou vendo a
psicológico no seio da família. Esta situação, como veremos mais à frente, opressão com que os
pode causar micro traumas para as crianças, sobretudo para as meninas. egípcios os atormentam.
Frequentemente estas jovens, na primeira oportunidade, fogem da sua família, 10 Por isso, vá. Eu envio
você ao Faraó, para tirar
tornando-se assim presas fáceis para os traficantes.
do Egito o meu povo, os
As mulheres, em muitos casos, são obrigadas a preocupar-se da gestão económica filhos de Israel”. 11 Então
familiar, além de sofrerem a ausência de direitos ou uma capacidade limitada de Moisés disse a Deus:
“Quem sou eu para ir até o
inserção no mercado de trabalho, que as deixa com menos oportunidades do que
Faraó e tirar os filhos de
os homens. Israel lá do Egito?” 12 Deus
respondeu: “Eu estou com
você, e este é o sinal de
1.1.2 Efeitos colaterais das políticas migratórias que eu o envio: quando
você tirar o povo do Egito,
A responsabilidade pela proliferação do tráfico pode ser atribuída, de forma vocês vão servir a Deus
equitativa, quer aos países de destino quer aos países de origem. Apesar da nesta montanha”.
17. 8 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
globalização enfatizar a interdependência dos mercados, essa impede o livre
movimento das pessoas oriundas de países pobres, bem diferente da facilidade
com que os produtos manufacturados nos seus países são comercializados.
Contudo, o êxodo dos países em vias de desenvolvimento e do antigo bloco
soviético tem vindo a ser confrontado com barreiras defensivas crescentes, para
proteger, de um modo ostensivo, os mercados de trabalho nacionais, combater a
criminalidade e, em alguns casos, zelar pela preservação da “identidade
nacional”. Mesmo aqueles que conseguem ultrapassar o controle e a repressão,
encontram depois inúmeros obstáculos burocráticos que mantêm inacessíveis as
autorizações de trabalho ou de residência. Na Europa, a situação piorou após
alguns Estados-membros tornarem dependente a atribuição de uma autorização de
residência da existência de um contrato de trabalho.
O desejo legítimo de muitas pessoas para melhorar a sua qualidade de vida (e a
dos seus familiares) transforma-se num pesadelo quando encontram as barreiras
acima descritas. A legislação mais recente vem estreitar a linha divisória entre o
estatuto legal e o ilegal. Qualquer mudança nas condições de vida pode levar em
pouco tempo um indivíduo em situação regular a tornar-se irregular, colocando-
a/o numa situação de forte pressão e de extrema vulnerabilidade, da qual poderão
resultar a exploração e/ou maus tratos. Um exemplo paradigmático é o caso de
uma mulher que se junta ao seu marido no estrangeiro e, caso a relação termine
antes do prazo estabelecido para a obtenção da autorização de residência, perde
o direito a permanecer legalmente no país. Outro exemplo são os casos em que um
trabalhador é despedido e perde o direito à autorização de permanência.
Conscientes da vulnerabilidade das suas trabalhadoras, muitos empresários sem
escrúpulos não hesitam em aumentar a sua margem de lucro sobrecarregando-as
com trabalho e não lhes pagando o salário devido. Estes empresários podem dormir
tranquilos na certeza de que estas trabalhadoras não os denunciarão às
autoridades, com receio de expor a sua situação irregular, pois perdendo o
trabalho perderão também o permiso de residência.
1.2 O Tráfico de pessoas e a relação de género
Nos países desenvolvidos, a diminuição dos direitos dos trabalhadores, bem como
o declínio das medidas de protecção da segurança social, influenciaram o processo
de emancipação feminina. Desde os anos 70 que as mulheres passaram a estar
representadas na força laboral global. No entanto, comparativamente aos homens,
os seus salários são mais baixos e altas taxas de desemprego (para aquelas que
pretendem inserir-se no mercado de trabalho) mantêm muitas mulheres numa
situação de pobreza, fazendo que estas representem 60% da mão-de-obra não
qualificada no mundo. Em 2003, 40% dos 2.8 bilhões de trabalhadores do mundo
eram mulheres, o que representa um aumento de 200 milhões de mulheres no
notas mercado de trabalho apenas nos últimos 10 anos4.
4. Global Employment
Trends for Women (2004).
Os números acima indicados produziram uma profunda alteração na estrutura social,
Organização Internacional quer nos países do Sul, quer nos do Norte. Em ambos hemisférios, a entrada das
do Trabalho, Genebra. mulheres no mercado de trabalho provocou uma alteração no equilíbrio familiar e
18. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 9
social: tradicionalmente dedicada ao trabalho doméstico e à assistência aos mais
vulneráveis (crianças, idosos, doentes), a mulher é constrangida a dedicar menos
tempo aos aspectos logísticos e relacionais da família. Consequentemente, criou-se
um novo factor de atracção: uma elevada procura de mão-de-obra para substituir
as mulheres ocidentais no trabalho doméstico e no trabalho que cuida da pessoa.
Respondendo à procura, muitas mulheres do Sul, atraídas pela oferta de trabalho,
são constrangidas a deixar para trás as suas famílias, entregando os seus filhos aos
cuidados de outras mulheres, da sua rede familiar ou de amigos5. Como
consequência desta ausência, encontramos um enfraquecimento do tecido social e
a quebra da instituição familiar nos países em desenvolvimento.
No passado, os imigrantes do sexo masculino podiam desempenhar as actividades
menos atractivas e “degradantes” das sociedades ocidentais, na agricultura, nas
fábricas e na construção civil. Actualmente, no mundo globalizado, as mulheres
migrantes encontram o seu trabalho realizando as tarefas que realizavam as
mulheres ocidentais. Assim, a aldeia global torna-se ainda mais pequena,
constatando-se com clareza, e mesmo ao nível individual, a interdependência de
pessoas de diversas proveniências e culturas. As imigrantes substituìram avós, tios
e amigos nos cuidados das crianças.
1.2.1 Obstáculos no caminho da emancipação
No entanto, o crescimento exponencial das mulheres no mercado de trabalho não
traduz claramente uma melhoria da sua condição socioeconómica. Tudo isso tem
uma clara influência sobre a qualidade das relações entre os géneros quer em
países em vias de desenvolvimento quer nos países desenvolvidos. Nos países de
origem, as mulheres substituem os homens, garantindo o sustento de toda a
família. O papel e a identidade masculina, numa palavra, a sua virilidade,
sofreram um rude golpe. Assim, assistiu-se a um aumento da visibilidade dos
incidentes de abusos e de violência doméstica, possivelmente uma expressão do
poder masculino. Desde sempre o homem fez uso da violência como forma de
reafirmar a sua masculinidade. Assim, uma hipótese sugere que o tráfico pode ser
encarado como uma forma de afirmação da primazia do homem sobre a mulher6. notas
As relações de género têm mudado em todo o mundo. Os antigos estereótipos 5. Rhacel Salazar
Parrenas (2002). “Human
atribuem às mulheres a responsabilidade dos cuidados familiares, mas a Sacrifices. What happens
experiência demonstra que as mulheres são por necessidade ou por vontade when women migrate and
leave families behind?”
própria conduzidas a essa situação Os padrões culturais modificam-se mais
The women’s Review of
lentamente do que a realidade económica das mulheres, o que as compele a entrar Books.
no mercado de trabalho sem que haja uma partilha dos encargos domésticos entre 6. UNIFEM et al “From
os géneros. Assim, quer nas zonas mais ricas do planeta quer nas mais pobres, o violence to supportive
practice: Family, Gender
trabalho feminino é associado a uma degradação das condições de vida de toda a and masculinities in India”
família, ainda que se verifique uma melhoria das condições económicas. and “Masculinity and
Gender based violence”;
Hipoteticamente, o aumento da procura de serviços sexuais pagos pode dever-se Gutmann (1997).
à busca de uma relação assimétrica que permita ao homem ser ainda o elemento “Trafficking in Men: The
anthropology of
dominante da relação. Com esta transacção económica, a mulher migrante é Masculinity” in The Annual
levada a fornecer mais um serviço: para além do sanitário e social, o sexual. Review of Anthropology.
19. 10 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Gênesis 38: 14-26 1.3 As dimensões e o processo do tráfico
Então Tamar tirou o traje
de viúva, cobriu-se com O fenómeno do tráfico pode ser considerado como uma “adaptação” ao crescente
véu e sentou-se na entrada desequilíbrio a nível macroeconómico que caracteriza o proceso de globalização
de Enaim, que fica no económica. Por exemplo, as condições económicas dos países de origem associadas
caminho para Tamna. Ela à distribuição desigual da riqueza e a uma diminuição das oportunidades de
viu que Sela já era adulto
trabalho, surgindo altos índices de desemprego, impelem os indivíduos para áreas
e não lhe fora dado como
esposo.15 Vendo-a, Judá geográficas onde a procura de trabalho é mais elevada. Este quadro propiciou a
pensou que fosse uma exploração dos migrantes em geral e das mulheres em particular. O facto de a
prostituta, pois ela tinha migração ser a única expectativa de um futuro melhor diminui a consciência dos
coberto o rosto. 16 riscos e também das precauções. Os traficantes, conscientes dos mecanismos do
Aproximou-se dela no
mercado de trabalho e do contexto social dos países de origem, respondem à
caminho, e disse: “Deixe-
me ir com você”. Judá não ausência de mão-de-obra no Norte preenchendo-a com o inesgotável manancial
sabia que era a sua nora. humano do Sul. Esta equação de desespero e necessidade, por um lado, e de
Ela perguntou: “O que trabalho disponível no estrangeiro, por outro, é a conjugação que favorece esta
você me dará para ir forma moderna de escravatura.
comigo?” 17 Judá
respondeu: «Eu mandarei A natureza clandestina e dinâmica do fenómeno é tal que não é possível estimar a
para você um cabrito do sua magnitude. É, sem dúvida, um fenómeno que se estende a todo o planeta. A
rebanho». Ela replicou: sua natureza dinâmica permite a circulação de um lugar para outro de acordo com
“Está bem; mas você vai
as necessidades, adaptando-se às respostas das instituições e da sociedade civil.
deixar uma garantia
comigo até mandar o Os valores anuais das vítimas de tráfico variam entre 500.000 (OIM), 1.000.000
cabrito”. 18 Judá (Interpol) e 700.000 (Departamento de Estado Norte Americano)7. Infelizmente
perguntou: “Que garantia estamos em presença de estimativas pouco significativas.
você quer?” Ela respondeu:
“O anel de selo com o Para além disso, as rotas do tráfico atingiram uma dimensão alarmante, que
cordão e o cajado que você preocupa o mundo inteiro. Anteriormente, as rotas do tráfico podiam ser traçadas,
está levando». Judá os sem quaisquer dúvidas, como uma ligação entre o país de origem, geralmente no
entregou e foi com ela, Sul, e o país de destino, no Norte. Por exemplo, as rotas da Nigéria para Itália, ou
deixando-a grávida. 19
do México para os Estados Unidos.
Tamar se levantou, tirou o
véu e vestiu novamente o A alteração de factores como a procura dos países de destino e a sua política
traje de viúva.20 Judá migratória, os controlos fronteiriços, a corrupção dos profissionais das instituições
mandou o cabrito por meio
que lidam com as migrações (embaixadas, ministérios, polícias ou serviços de
de seu amigo de Odolam, a
fim de recuperar os emigração) leva as organizações criminosas dedicadas ao tráfico de pessoas a se
objetos que havia deixado adaptarem rapidamente, redefinindo as novas rotas. Isto gera uma complexa rede
com a mulher. Mas ele não onde não se distinguem facilmente os países de origem, de trânsito e de destino.
a encontrou. 21 Então
perguntou aos homens do Apesar das rotas se alterarem frequentemente, as restantes fases do processo
lugar: “Onde está aquela mantêm-se e aplicam-se universalmente:
prostituta que fica no
caminho de Enaim?”
continua na página seguinte
notas
7. Números da OIM
Boletim trimestral da OIM
n.º 23 de Abril de 2001
Trafficking in Migrants.
20. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 11
Quando falamos de tráfico, devemos pensar num processo longo e demorado no Eles responderam: “Aqui
tempo. Este processo normalmente inclui três momentos chave: o nunca houve prostituta
nenhuma!” 22 Então o
recrutamento, a viagem e a chegada aos países de destino (que pode não ser o
homem voltou a Judá, e
mesmo acordado à partida). Às vezes a exploração, um elemento implícito8 do lhe disse: “Não a
tráfico que o diferencia do incentivo à imigração clandestina, pode ocorrer encontrei, e os homens do
antes da chegada ao destino. lugar disseram que ali
nunca houve prostituta
As modalidades de recrutamento habitualmente observadas são as seguintes: nenhuma”. 23 Judá
Falsas ofertas de trabalho por parte de agências de emprego através de replicou: “Que ela fique
com tudo e não zombe de
anúncios económicos,
nós, pois eu mandei o
Ofertas de trabalho ou de estudos por parte de amigos, conhecidos ou cabrito, e você não a
familiares, encontrou”. 24 Três meses
depois, disseram a Judá:
§ Rapto (recrutamento sob coacção),
“Sua nora Tamar se
§ Venda por parte dos pais. prostituiu e está grávida
por causa de sua má
Ainda que estas quatro formas de recrutamento ocorram em todo o mundo, cada conduta”. Então Judá
país desenvolveu uma tipologia própria que favorece uma ou outra e que ordenou: “Tragam-na
poderíamos definir de um modo “redundante”; a reiteiração baseia-se na para fora e seja
capacidade persuasiva dos traficantes e na qualidade das redes por eles queimada viva”.
desenvolvidas. Em muitos países do Leste Europeu, o tráfico esconde-se em
continua na página seguinte
anúncios de agências de recrutamento para fins laborais. Por vezes, estas agências
são totalmente fictícias, outras vezes são agências genuínas que têm empregados
corruptos com ligações aos traficantes. Frequentemente, nas agências genuínas, a
incompetência e a irresponsabilidade levam a que haja escassa informação sobre notas
a entidade que emprega. As ofertas são absolutamente credíveis, aliciando as 8. Está implícita a
potenciais vítimas com promessas de trabalho em hotéis, restaurantes ou no sector exploração, uma vez que o
tráfico envolve
doméstico. A fraude revela-se apenas depois da chegada ao país de destino e
necessariamente o
quando já não é possível voltar atrás ou pedir ajuda. controle e exploração de
pessoas depois de as
Noutros países, como é o caso da Nigéria, o recrutamento é pessoalmente levado transportar para um local
a cabo por familiares ou conhecidos (tendo em conta o conceito africano de diferente.
família alargada). O engano esconde-se numa generosa oferta (estudar ou 9. Para uma correcta
trabalhar no estrangeiro) realizada por um familiar de confiança, o que não descrição do contexto
Lituano consultar o site da
levanta suspeitas e tranquiliza todos, pais e filhos. Nem sempre o angariador ONG de mulheres Lituanas
conhece a extensão da desgraça que aguarda a potencial vítima, mas está “Praeties pedos”:
www.policy.hu/kalikov/DA
consciente da fraude que a envolve.
TABASE%20ESTONIA/LITHU
Apesar de existir a prática de rapto, esta constitui mais uma excepção do que uma ANIA_ESTONIA_trafficking_
project.html
regra. As estatísticas podem enganar , como é o caso de um artigo que refere a
10. Por exemplo, se a
situação da Lituânia, onde em média duas jovens mulheres, estudantes do ensino jovem está a tentar
secundário, “desaparecem” anualmente em cada liceu. O artigo refere que, em escapar aos maus tratos
familiares, é pouco
2001, as estatísticas indicam que, “de 600 escolas do ensino secundário, 1200
provável que ela dê
jovens desapareceram”9. Devemos ter muito cuidado com esta terminologia. detalhes acerca das suas
“Desaparecer” não implica que as jovens foram raptadas. Em muitos casos, as intenções. Ou, desejando
evitar o estigma associado
jovens se afastam voluntariamente da familia10. à exploração sexual, a
família e/ou a vítima
Normalmente, a nível mundial, a forma mais comum de abordagem é o
podem não assumir que
recrutamento “directo”. Uma pessoa conhecida e de confiança da vítima trabalha, foram burlados por um
de facto, para o traficante, fornecendo-lhe vítimas. Esta figura pode ser um: angariador e alegar rapto.
21. 12 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
25 Quando a agarraram, Conhecido
ela mandou dizer a seu
Vizinho/amigo da família
sogro: “Estou grávida do
homem a quem pertencem Familiar
este anel de selo, este
Amigo
cordão e este cajado”.
26 Judá os reconheceu, Noivo
e disse: “Ela é mais
Marido
honesta do que eu, pois
não lhe dei meu filho Progenitor(es)
Sela”. E não teve mais
relações com ela.
As ofertas usadas para atrair potenciais vítimas são de um modo geral (por ordem
de frequência) para fins de:
Emprego
Estudo
Acompanhante em viagem de negócios
Casamento
Entretenimento (dançarinas, acompanhantes, etc.)
Uma combinação dos acima referidos.
A oferta mais comum é um emprego regular, mas muitas são persuadidas através
de propostas de emprego ou com a possibilidade de casar, estudar ou trabalhar no
mundo “glamouroso” do espectáculo. Mesmo suspeitando que seja de esperar a
prestação de serviços mais íntimos, não têm ideia de que não terão qualquer
controlo em relação ao tipo, frequência e condições destes serviços e de que
serão, provavelmente maltratadas e abusadas, mantendo um estatuto de migrante
irregular e recebendo apenas uma fracção dos seus rendimentos.
Na generalidade dos casos, quando chegam aos países de destino ou de trânsito,
encontram imediatamente as formas através das quais a vítima é explorada (a
frequência depende da zona geográfica):
Prostituição
Trabalho agrícola o industrial
Trabalho doméstico
Bailarinas/entretenimento
Serviço de restauração (garçonete)
Exploração sexual privada
Na Europa, em Israel e na Ásia as formas mais comuns (e visíveis) de exploração
são de cariz sexual, enquanto que nos Estados Unidos e no Médio Oriente a
exploração para fins laborais, tais como o trabalho doméstico e o trabalho
operário/agrícola são mais frequentemente visíveis, mesmo quando a exploração
sexual ocorre.
1.4 Respostas: Institucional
Desde os finais do século XIX que a comunidade internacional tem vindo a
implementar extensa jurisprudência para controlar a escravatura e práticas afins.
22. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 13
Encontramos aqui uma selecção de legislação destinada a combater esta exploração: Lucas 18: 1-8
Acordo Internacional para a Repressão do Tráfico de Escravatura Branca (18 de 1 Jesus contou aos
Maio de 1904; discípulos uma parábola,
para mostrar-lhes a
Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Escravatura Branca, 4 necessidade de rezar
de Maio de 1910 (e sucessivas adaptações em 1921, 1923, 1926); sempre, sem nunca
Convenção para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, 1921; desistir. Ele dizia: 2 “Numa
cidade havia um juiz que
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948; não temia a Deus, e não
Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da respeitava homem algum.
3 Na mesma cidade havia
Prostituição de terceiros, 2 de Dezembro de 1949;
uma viúva, que ia à
Convenção Adicional para a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e procura do juiz, pedindo:
das práticas similares à Escravatura, 7 de Setembro de 1956; ‘Faça-me justiça contra o
meu adversário!’ 4 Durante
Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as muito tempo, o juiz se
Mulheres, 1979; recusou. Por fim ele
Protocolo para a Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de Pessoas, pensou: ‘Eu não temo a
Deus, e não respeito
especialmente Mulheres e Crianças, anexo à Convenção das Nações Unidas
homem algum; 5 mas essa
contra o Crime Organizado Transnacional, 200011. viúva já está me
Para combater especificamente o tráfico, a União Europeia foi o primeiro corpo aborrecendo. Vou fazer-lhe
justiça, para que ela não
supranacional a implementar instrumentos legislativos, como:
fique me incomodando’.”
Resolução sobre o Tráfico de pessoas, 18 de Janeiro de 1996, Parlamento 6 E o Senhor acrescentou:
Europeu. Esta resolução afirma que o tráfico é um acto ilegal,tanto na sua “Escutem o que está
dizendo esse juiz injusto.
forma direta como indireta, que favorece a entrada e permanência de um/a
7 E Deus não faria justiça
cidadã/o estrangeiro/a para sua exploração, utilizando a fraude ou outra aos seus escolhidos, que
qualquer forma de coacção que explore a situação de vulnerabilidade ou uma dia e noite gritam por ele?
incerteza administrativa; Será que vai fazê-los
esperar? 8 Eu lhes declaro
Acção Conjunta 97/154/GAI 24 de Fevereiro de 1997;
que Deus fará justiça para
Declaração Ministerial de Haia de 1997 sobre as Linhas Orientadoras Europeias eles, e bem depressa.
para as medidas efectivas de combate ao tráfico de mulheres para fins de Mas, o Filho do Homem,
quando vier, será que
exploração sexual, Abril 1997.
vai encontrar a fé sobre
Para além das normativas mostradas, como instrumentos operacionais a Comissão a terra?”
Europeia lançou diversos programas, como:
STOP I (de 1996 a 2000) e II (de 2000 a 2002): os objectivos do Programa STOP
visam o encorajamento, apoio e reforço das redes e a cooperação prática
entre as agências responsáveis pela acção contra o tráfico de pessoas e
exploração sexual de menores de idade nos Estados-membros, assim como
melhorar e ajustar a sua formação e competências. O programa destina-se a
juízes, magistrados, autoridades policiais, funcionários públicos e a
elementos da sociedade civil envolvidos na questão das migrações e no
controlo de fronteiras, ONG’s, legislação social e tributária, envolvidos na
luta contra o tráfico e a exploração sexual, fornecendo apoio à vítima e
penalização de crimes. notas
O Programa DAPHNE: este programa (de 2000 a 2003) constitui um programa 11.Para consultar estes
documentos na sua
de acção comunitária sobre medidas preventivas de combate à violência contra íntegra, visite:
crianças, jovens e mulheres. A iniciativa surgiu como parte da resposta da www.unodc.org
23. 14 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Comissão Europeia à crescente preocupação com a violência contra as
crianças, jovens e mulheres na Europa. O seu âmbito de actuação é vasto:
auxiliar as organizações não governamentais e as outras agências activas neste
campo. A violência tem sido entendida no sentido mais amplo, desde o abuso
sexual à violência doméstica, desde a exploração comercial à violência nas
escolas, desde o tráfico de mulheres à violência baseada na discriminação
contra deficientes, minorias, migrantes ou outras pessoas vulneráveis.
HIPPOKRATES: um programa plurianual de incentivos e intercâmbios de
formação e cooperação para a prevenção do crime na União Europeia.
AGIS: um programa-quadro de substituição dos programas STOP e Hippokrates.
Decorre entre 2003 e 2007. O seu objectivo é encorajar os Estados-membros a
iniciar a cooperação entre os advogados, agentes de segurança e
representantes de associações de apoio à vítima com os países da UE, países
candidatos e países terceiros, no estabelecimento de diversas redes europeias,
troca de informação e melhores práticas. O programa AGIS apoia projectos
transnacionais com a duração máxima de dois anos12.
Para além disso, baseada na experiência dos elementos acima referidos, a
Declaração de Bruxelas na Prevenção e Combate ao Tráfico de pessoas (2002)
estabelece directrizes e boas práticas para acções coordenadas tendo em vista a
prevenção e a assistência às vítimas. A Declaração de Bruxelas é o resultado de
iniciativas de base levadas a cabo pelos Estados, instituições internacionais,
instituições religiosas e organizações não governamentais nacionais e
internacionais.
Apesar dos esforços da União Europeia, apenas em 2000 se constatou uma
mobilização global coesa em relação ao tráfico com o Protocolo das Nações Unidas
para a Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de pessoas. O Artigo 3º do
Protocolo estabelece a seguinte definição de Tráfico:
“Tráfico de pessoas significa o recrutamento, transporte, transferência,
acolhimento e alojamento de pessoas por meio de ameaças, uso da força ou outras
formas de coacção, sequestro, fraude, engano ou abuso de poder ou de uma
posição de vulnerabilidade, ou dar ou receber pagamentos ou benefícios para
conseguir o consentimento de uma pessoa que tenha controle sobre outra, com o
propósito de exploração. Isso inclui, no mínimo, a exploração da prostituição de
terceiros ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados,
escravidão ou práticas similares à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos”.
O Protocolo pretende facultar uma definição mais ampla e mais compreensiva,
assegurando que as interpretações são congruentes de um país para outro e de
uma organização internacional para outra. No passado, várias definições de tráfico
levaram à adopção de políticas diferentes baseadas em perspectivas diversas. Por
exemplo, a Europol focou-se no elemento coercivo do tráfico, enquanto que a OIM
se centrou na relação entre o tráfico e a migração irregular e os traficantes.
Algumas organizações concentraram-se no significativo movimento ilegal de
notas
pessoas, enquanto outras se ocupavam do factor exploração. Graças a uma
12.http://europa.eu.int/
comm/justice_home/fundin definição de tráfico precisa e consistente de um país signatário para outro, as
g/agis/funding_agis_en.htm instituições podem utilizar o protocolo para sustentar os seus mandatos individuais
24. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 15
de uma forma mais coordenada.
O Protocolo das Nações Unidas menciona especificamente o apoio a prestar às
vítimas (art. 6, 7, 8), sugerindo a adopção de medidas de prevenção (art. 9), bem
como as medidas de cooperação entre os Estados (art. 10 e 11). Para além disso,
é importante destacar o parágrafo 2 do art. 3, que explicitamente refere que o
consentimento da vítima não é relevante para considerar a sua co-
responsabilidade, especialmente no decurso de um julgamento. Isto significa que,
mesmo que a vítima concorde com as promessas do traficante, ela não pode ser
considerada culpada ou responsável pelo seu próprio tráfico.
“O consentimento da vítima de tráfico de pessoas para o propósito de exploração,
referida no sub-parágrafo (a) será irrelevante quando qualquer um dos meios
referidos no sub-parágrafo (a) tenha sido utilizado”.
O Protocolo das Nações Unidas entrou em vigor no dia 25 de Dezembro de 2003,
três anos após a sua aprovação, graças à ratificação de 45 Estados13. Isto
demonstra o desejo dos países membros das Nações Unidas de estabelecerem
instrumentos legislativos eficazes contra o tráfico. Uma razão económica (entre
outras razões políticas) é que muitos países em desenvolvimentos baseiam parte
do seu produto interno bruto nas remessas dos seus migrantes, incluindo as vítimas
de tráfico.
A importância da legislação
Ao nível nacional, os instrumentos mais eficazes para combater o tráfico são
claramente as legislações nacionais em vigor contra o tráfico de pessoas, que
devem ser claras, específicas e sobretudo susceptíveis de aplicação pelas forças
policiais. Contudo, poucos países têm de facto produzido legislação anti-tráfico.
Entre os países que tomaram essas medidas está Itália (a Itália foi uma das
primeiras nações a implementar formas de protecção para vítimas de tráfico, no
âmbito do art. 18º da Lei da Imigração de 1998), Suécia, Espanha, Roménia,
República Dominicana e Nigéria14. Dispor de legislação clara e punição adequada
para deter e punir os traficantes é fundamental para fortalecer a capacidade de
um país combater o fenómeno. Na ausência de legislação específica relativa ao
tráfico, torna-se necessário levantar uma acusação de outro tipo de actividade
criminosa, geralmente menos grave, como o proxenetismo ofensas à integridade
física, auxílio à imigração ilegal e angariação de mão-de-obra ilegal. A título de
exemplo, em alguns países os traficantes são acusados do crime de prostituição
notas
forçada mas, se a vítima for traficada com o objectivo de exploração laboral,
13. A 1 de Agosto de 2004,
torna-se difícil acusar o traficante. o Protocolo tinha sido
ratificado por 64 Estados.
Para melhor compreender a eficácia da legislação de combate ao tráfico ou à
14.Para uma lista
exploração num dado país, é útil verificar se a legislação reflecte o tipo de tráfico
exaustiva de países,
relevante, que se trate de um país de origem, trânsito ou destino. incluindo detalhes dos
esforços de cada país ou a
Esta informação é útil no estabelecimento de acções de prevenção ou de sua ausência no combate
assistência e é necessária para trabalhar eficazmente com as forças de segurança ao tráfico, ver:
ou as autoridades judiciais. http://www.state.gov/g/ti
p/rls/tiprpt/2005/
25. 16 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
1.5 Respostas: social
Lucas 2: 25-34 As organizações da sociedade civil, a níveis local e internacional, mobilizaram-se
25 Havia em Jerusalém um imediatamente para combater o tráfico. Em muitas áreas geográficas, o pessoal
homem chamado Simeão. religioso feminino està na linha da frente no que respeita à chamada de atenção
Era justo e piedoso. para o tráfico. Nos países de destino e de origem, estabeleceram muitos grupos de
Esperava a consolação de trabalho e de intervenção no terreno. Numerosas casas de Congregações religiosas
Israel, e o Espírito Santo
foram abertas para apoiar um número cada vez maior de mulheres que conseguem
estava com ele. 26 O
Espírito Santo tinha escapar-se à exploração de que são vítimas.
revelado a Simeão que ele Como já foi referido, a União Europeia tem desempenhado um papel fundamental
não morreria sem primeiro
no apoio a programas de prevenção do tráfico e de assistência às vítimas. Outros
ver o Messias prometido
pelo Senhor. 27 Movido actores internacionais são a ONU (com as suas agências individuais) e o Governo
pelo Espírito, Simeão foi dos E.U.A., que têm contribuído para sustentar e fortalecer iniciativas de combate
ao Templo. Quando os pais ao tráfico em todo o mundo. Graças a este esforço, nos últimos anos os governos
levaram o menino Jesus, e as organizações não governamentais envolvidos no combate ao tráfico
para cumprirem as
multiplicaram-se e têm conseguido implementar programas específicos para
prescrições da Lei a
respeito dele, 28 Simeão ajudar as vítimas.
tomou o menino nos Para enfrentar este fenómeno, são necessárias intervenções articuladas e
braços, e louvou a Deus,
multidimensionais. As campanhas de informação e as medidas preventivas devem
dizendo: 29 “Agora,
Senhor, conforme a tua ser abordadas com o envolvimento das populações locais. Não deve ser descurada
promessa, podes deixar o a colaboração com as forças de segurança e com os projectos destinados a
teu servo partir em paz.30 actualizar os conhecimentos e a elevar a consciência sobre o fenómeno. A OIM
Porque meus olhos viram a faculta bons exemplos de integração sectorial, estruturada em seis pontos-chave:
tua salvação, 31 que
preparaste diante de todos 1. Protecção das vítimas, actividades de retorno e reintegração social assistida:
os povos: 32 luz para em coordenação com organizações governamentais e não governamentais,
iluminar as nações e glória organizações internacionais e locais, a OIM presta apoio às vítimas que
do teu povo, Israel.” 33 O
pretendam regressar ao seu país de origem, facultando assistência durante a
pai e a mãe estavam
maravilhados com o que se
viagem e a reintegração. Cada programa de reintegração social está em
dizia do menino. 34 consenso com as pessoas que beneficiam desse programa;
Simeão os abençoou, e 2. Apoio médico e legal: a OIM fornece apoio jurídico e médico, assim como
disse a Maria, mãe do
assistência às vítimas de tráfico nos países de trânsito e de destino. Em
menino: “Eis que este
menino vai ser causa de colaboração com ONG’s, os Ministérios da Saúde e outras entidades envolvidas,
queda e elevação de a OIM procura ir ao encontro dos problemas de saúde e psicológicos das
muitos em Israel. Ele será vítimas;
um sinal de contradição.
3. Campanhas de informação e sensibilização: devem ser organizadas junto
daqueles que querem emigrar, correndo o risco de serem traficados. Estas
campanhas chamam a atenção para os riscos do tráfico (sobretudo quando se
quer emigrar utilizando meios ilegais);
4. Cooperação técnica: através da organização de cursos de formação e de
actualização sobre o tráfico de pessoas e sobre os procedimentos
internacionais, junto dos operadores da sociedade civil local e das forças de
segurança;
5. Pesquisa e recolha de informação: uma actividade indispensável para a
sensibilização da população sobre o fenómeno, facultando aos governos e a
outros actores sociais a informação necessária para o desenvolvimento de
26. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 17
programas de intervenção;
6. Seminários e conferências: através destas actividades conjuntas, é possível o
intercâmbio de informações e de experiências no terreno, apresentando
informações das pesquisas e coordenando acções e políticas com a finalidade
de organizar redes formais e informais entre aqueles que trabalham nesta
área.
Os aspectos da prevenção e da assistência podem ser sintetizados na figura
seguinte:
Mateus 13: 1-9
Naquele dia, Jesus saiu de
casa, e foi sentar-se às
margens do mar da
Galiléia. 2 Numerosas
multidões se reuniram em
volta dele. Por isso, Jesus
entrou numa barca e
sentou-se, enquanto a
1.6 Respostas: trabalho em rede multidão ficava de pé na
praia. 3 E Jesus falou para
A sociedade civil, os governos, as organizações internacionais religiosas e as eles muita coisa com
organizações leigas devem ter em conta a importância crucial da coordenação. parábolas: “O semeador
saiu para semear. 4
Esta constitui um objectivo básico que aumenta a eficácia das acções evitando, ao
Enquanto semeava,
mesmo tempo, a fragmentação ou a multiplicação de intervenções que provoquem algumas sementes caíram à
o desperdício dos recursos económicos e humanos. beira do caminho, e os
passarinhos foram e as
Por esta razão, para combater o fenómeno do tráfico de pessoas, foram criadas, a comeram. 5 Outras
nível local e internacional, redes de parcerias e grupos de trabalho de sementes caíram em
organizações leigas e religiosas (e inter-religiosas), tais como: terreno pedregoso, onde
não havia muita terra. As
A USG/UISG Justiça, Grupo de Trabalho “Justiça e Paz e Integridade da
sementes logo brotaram,
Criaçào”; porque a terra não era
A rede da Caritas (local e internacional); profunda. 6 Porém, o sol
saiu, queimou as plantas,
A Rede Europeia contra o tráfico de mulheres (ENATW); e elas secaram, porque
As linhas telefónicas gratuitas de apoio, instituídas em vários países de origem não tinham raiz. 7 Outras
e de destino. sementes caíram no meio
dos espinhos, e os espinhos
Ainda que os benefícios e o valor das acções de intervenção coordenada sejam cresceram e sufocaram as
inegáveis, é muitas vezes muito dificil iniciar estas colaborações. plantas. 8 Outras
Frequentemente, surgem obstáculos. Estes são devidos às diferenças nas sementes, porém, caíram
em terra boa, e renderam
abordagens metodológicas, de conteúdo, ou políticas e ideológicas, e criam
cem, sessenta e trinta
obstáculos no cumprimento dos objectivos comuns. Algumas das maiores frutos por um. 9 Quem
consequências resultantes da falta de coordenação são: tem ouvidos, ouça!”
27. 18 COMPREENDER E COMBATER O TRÁFICO DE SERES HUMANOS
1. Desperdício de recursos: qualquer intervenção, seja de prevenção ou de
assistência, provoca um maior impacto se for possível concentrar os esforços
com vista a um objectivo comum.
2. Falha no cumprimento de objectivos comuns. Uma estratégia articulada evita
falhas e sobreposições de tarefas no cumprimento dos objectivos. Diversas
organizações levando a cabo a mesma actividade, no mesmo local e em
simultâneo, negligenciando outras questões, podem dar origem a um problema
mais que resolvê-lo. A redundância de projectos pode não constituir um
problema se as actividades similares, desde que eficazes, sejam levadas a cabo
em áreas diferentes e junto de populações alvo diferentes. Contudo, a
coordenação é essencial, quer para a planificação das actividades, quer no que
respeita ao financiamento.
3. As diferentes abordagens do fenómeno nos países de origem e nos países de
destino leva a intervenções incoerentes: um exemplo disso é a sobreposição da
prostituição e do tráfico de pessoas, minimizando o elemento chave da
exploração laboral e/ou sexual. Nos países de origem, esta situação gerou o
que se designa na gíria por “resposta selectiva”, levando a identificar o tráfico
com uma determinada categoria. Isto induz as potenciais vítimas a errar,
fazendo-as pensar que, desde que evitem a prostituição, não cairão nas mãos
de traficantes. Muitas vítimas referiram que, uma vez que não tinham sido
recrutadas como prostitutas, pensaram que não haveria risco de serem
traficadas.
Para aumentar a eficácia das actividades e estabelecer redes, é importante
conhecer as organizações locais e internacionais, assim como os actores locais de
combate ao tráfico. Sugerimos assim que o leitor se informe sobre os objectivos
declarados de cada agência activa no terreno, de forma a compreender os seus
programas e áreas de intervenção. Esta acção preliminar permite assimilar mais
rapidamente as áreas que estão cobertas e com quem é possível trabalhar.
1.7 Para mais informações
Siqueira P., 2004. “Tráfico de Mulheres”, Serviço à Mulher Marginalizada (SMM),SP
AA.VV., 2007. “Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”,
Ministério da Justiça, Brasilia
Faria N. y Poulin R., 2005. “Desafios do livre mercado para o feminismo”, SOF,SP
AA.VV., 2007. “Tráfico de Pessoas: Uma abordagem Política”, SMM, SP
AA.VV., 2005. “Pesquisas em Tráfico de Pessoas, parte 1 e 2”, Ministério da Justiça,
Brasilia
Bales K., 2001. Gente descartável. A nova escravatura na economia mundial,
Lisboa, Editorial Caminho, Nosso Mundo,
Gilligan C., 2003. O nascimento do prazer, Genero Plural, Editora Rocco
Grupo de trabalho sobre o tráfico de mulheres e crianças. Comissão Justiça e Paz
e Integridade da Criação da USG/UISG Tráfico de Mulheres e de Menores,
Instrumento de trabalho informativo e formativo, JPIC, Roma 2003 (publicado em
28. CAPÍTULO I O TRÁFICO DE PESSOAS: O CÉNARIO 19
Espanhol, Francês e Inglês).
Ehrenreich B., Hochschild A. R., 2003. Global Woman: nannies, maids and sex
workers in the new economy, Granta Books, Londres.
Sassen S., 1999. Globalization and its Discontents: Essays on the New Mobility of
People and Money, New Press, Nova Iorque.
Taylor I., Jamieson R., 1999. Sex trafficking and the mainstreaming of market
culture, in crime, Law and Social Change, 32.
“Together is impossible” Proceedings of the International Conference “21st
Century Slavery – The Human Rights Dimension to trafficking in Human Beings”
organizada em Roma a 15-16 de Maio de 2002, FrancoAngeli, Milão, 2002.