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Carlos Eduardo Fígari
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PRAZERES DISSIDENTES
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Editoração Eletrônica
Luiz Oliveira | Estúdio Garamond
P931
Prazeres dissidentes / María Elvira Díaz-Benítez, Carlos Eduardo Fígari
(orgs).. - Rio de Janeiro : Garamond, 2009.
600 p. ; 14x21 cm (Sexualidade, gênero e sociedade)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7617-166-9
1.Sexo.2.Comportamento sexual.3.Homossexualismo.I.Díaz-Benítez,
María Elvira. II. Figare, Carlos Eduardo. III. Série.
09-4158. CDD: 306.7
CDU: 392.61
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
Apoio:
Agradecemos aos professores Miguel Vale de Almeida e
Osmundo de Araújo Pinho por participarem como debatedo-
res do Seminário que deu origem a este livro e pelas valiosas
sugestões. A Adriana Piscitelli, pelas contribuições conceituais.
A Igor Torres, por batizar este livro de Prazeres dissidentes. Ao
CLAM, por acreditar em nossa proposta, e especialmente a
Anna Paula Uziel, cujo cuidado essencial evitou que o trabalho
de edição se tornasse caótico.
María Elvira e Carlos
SUMÁRIO
PREFÁCIO 11
Adriana Piscitelli
INTRODUÇÃO
SEXUALIDADES QUE IMPORTAM:
ENTRE A PERVERSÃO E A DISSIDÊNCIA 21
Carlos Fígari e María Elvira Díaz-Benítez
BUTLER, A ABJEÇÃO E SEU ESGOTAMENTO 31
Vitor Grunvald
CORPOS E INTERAÇÕES DE FRONTEIRA
GOZOS ILEGÍTIMOS:
TESÃO, EROTISMO E CULPA NA RELAÇÃO SEXUAL
ENTRE CLIENTES E TRAVESTIS QUE SE PROSTITUEM 71
Larissa Pelúcio
NEGOCIANDO DESEJOS E FANTASIAS:
CORPO, GÊNERO, SEXUALIDADE E SUBJETIVIDADE
EM HOMENS QUE PRATICAM CROSSDRESSING 93
Anna Paula Vencato
DIVERSIDADE SEXUAL E TROCAS NO MERCADO ERÓTICO:
GÊNERO, INTERAÇÃO E SUBJETIVIDADE EM UMA BOATE
NA PERIFERIA DO RIO DE JANEIRO 119
Leandro de Oliveira
PERFORMANCES DE GÊNERO EM UM“CLUBE DE MULHERES” 147
Marion Arent
RELAÇÕES IMPURAS: SEXUALIDADE, CORPOS E SUJEITOS
NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA 171
Regina Coeli Machado e Silva
ENCONTROS AO AVESSO
SILÊNCIO, SUOR E SEXO: SUBJETIVIDADES E DIFERENÇAS
EM CLUBES PARA HOMENS 207
Camilo Albuquerque de Braz
SEXO COM PROSTITUTAS: UMA DISCUSSÃO
SOBRE MODELOS DE MASCULINOS 237
Elisiane Pasini
DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES SOBRE
OS TERRITÓRIOS DE“PEGAÇÃO”EM BELO HORIZONTE 263
Alexandre Eustáquio Teixeira
DESEJOS PROIBIDOS PRÁTICAS DA PROSTITUIÇÃO FEMININA 289
Sandra Maria Nascimento Sousa
SOCIABILIDADES FLUIDAS
ENTRECRUZANDO DIFERENÇAS: MULHERES
E (HOMO)SEXUALIDADES NA CIDADE DE SÃO PAULO 309
Regina Facchini
FORA DO ARMÁRIO... DENTRO DA TELA: NOTAS
SOBRE AVATARES, (HOMO)SEXUALIDADES E EROTISMO
A PARTIR DE UMA COMUNIDADE VIRTUAL 343
Carolina Parreiras
“TU É RUIM DE TRANSA!”OU COMO ETNOGRAFAR
CONTEXTOS DE SEDUÇÃO LÉSBICA EM DUAS BOATES
GLBT DO SUBÚRBIO DO RIO DE JANEIRO 373
Andrea Lacombe
NA PONTA DO PÉ: QUANDO O BLACK, O SAMBA
E O GLS SE CRUZAM EM SÃO PAULO 393
Isadora Lins França
JOGOS PROIBIDOS
NO VENTRE DO PAI. DESEJOS E PRÁTICAS DE
INCESTO CONSENTIDO 425
Carlos Eduardo Fígari
DE“PEDÓFILO”À“BOYLOVER”: ILUSÃO OU UMA
NOVA CATEGORIA SEXUAL QUE SE ANUNCIA? 455
Alessandro José de Oliveira
BDSM DE A A Z: A DESPATOLOGIZAÇÃO ATRAVÉS
DO CONSENTIMENTO NOS“MANUAIS”DA INTERNET 481
Bruno DallaCort Zilli
A PORNOGRAFIA“BIZARRA”EM TRÊS VARIAÇÕES:
A ESCATOLOGIA,O SEXO COM CIGARROS E O“ABUSO FACIAL” 509
Jorge Leite Jr
POLÍTICAS E PRAZERES DOS FLUIDOS MASCULINOS:
BAREBACKING, ESPORTES DE RISCO E TERRORISMO BIOLÓGICO 537
Esteban Andrés Garcia
RETRATOS DE UMA ORGIA:
A EFERVESCÊNCIA DO SEXO NO PORNÔ 567
María Elvira Diáz-Benítez
11
PREFÁCIO
Adriana Piscitelli1
A coletânea Prazeres dissidentes, resultado de recentes estudos realizados
por jovens pesquisadores latino-americanos, é expressão da efervescência
da produção sobre o tema na região, particularmente no Brasil. Com-
binando criatividade e reflexão crítica, os artigos consideram recortes
ainda pouco pesquisados ou contemplados em novas abordagens. Uma
multiplicidade de práticas sexuais transgressivas emerge da análise de
produções literárias e fílmicas, espaços de lazer e de encontro, segmentos
da indústria do sexo, sites da web.
O exame das relações que têm lugar nesses espaços contribui para per-
ceber aspectos relevantes nas configurações da sexualidade em diferentes
cenários. Um desses aspectos é a íntima vinculação entre convenções de
erotismo e mercado de consumo. Outro é a indiscutível importância
adquirida pela web na disseminação dessas convenções, amplificando
a circulação de informações e as interações relacionadas com diferentes
estilos de erotismo e também como instrumento pedagógico: afirmando
a normalidade e promovendo a integração social entre pessoas que têm
a fantasia de vestir-se com roupas do sexo oposto; ensinando a “ser gay”,
a praticar o BDSM (bondage, disciplina, dominação e submissão) de
1
Professora do Departamento de Antropologia Social e do Doutorado em Ciências Sociais da Universi-
dade Estadual de Campinas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU/UNICAMP.
12
homossexualidade e cultura
maneira “sadia e não criminosa”; a tornar-se um “boy-lover correto”. Nes-
ses procedimentos, a web aparece como uma mídia central no processo
de dotar de legitimidade estilos de sexualidade estigmatizados. Contudo,
o aspecto mais relevante é que essas análises apontam para diferentes
deslocamentos de limites nas fronteiras da sexualidade e, ao mesmo
tempo, para a recriação de hierarquias, desigualdades e exclusões.
Em 2003, o Centro Latino-americano de Pesquisas sobre Sexualida-
de, recentemente criado, e o PAGU organizaram o Seminário Sexuali-
dades e Saberes, Convenções e Fronteiras. Nesse encontro se teceram
reflexões sobre o estado do campo de estudos e foram esboçadas ideias
para superar alguns impasses na produção sobre o tema. Um dos princi-
pais pontos levantados referiu-se às fundamentais contribuições do arca-
bouço teórico de Foucault, mas também a problemas relativos a aspectos
teóricos e a efeitos políticos da utilização desse referencial, levantados
por autores/as feministas e vinculados ao movimento homossexual.
Um segundo ponto foi a relevância concedida à separação analítica
entre gênero e sexualidade, considerada útil para mapear a “estratifica-
ção sexual” presente nas sociedades modernas, que estabelece limites
entre práticas sexuais “boas” e “más”, inferiorizando indivíduos e grupos
vinculados às últimas. Contudo, percebíamos que algumas linhas dos
estudos “queer” ignoravam gênero, enquanto abordagens sobre hete-
rossexualidades consideravam a articulação entre gênero e sexualidade,
mas em uma perspectiva na qual o gênero aparecia frequentemente
aprisionado em uma distinção binária. A sexualidade tendia a apare-
cer atravessada por uma fronteira clara entre homens e mulheres, e se
estabelecia uma continuidade entre “sexo” e gênero (Piscitelli, Gregori
e Carrara, 2004).
Finalmente, um terceiro ponto, levantado por Luis Fernando Dias
Duarte (2004), foi a relevância das negociações em curso a respeito da
“normalização” de práticas sexuais que foram objeto de intensa rejeição
no passado, como o adultério, a masturbação, a pornografia, a pros-
tituição, a sodomia e o homoerotismo. Entretanto, tais negociações
articulavam-se simultaneamente à “criminalização” de outras práticas,
como a violência sexual ou a pedofilia. Nós perguntávamos então sobre
as convenções que compõem essa normalização e a criminalização de
PRAZERES DISSIDENTES
13
práticas que, embora envolvam questões relativas ao direito da livre
expressão da sexualidade, provocam intensas reações.
Os textos reunidos neste livro contribuem para pensar sobre como
essas questões foram sendo elaboradas durante os anos transcorridos
desde a realização daquele seminário. Os autores que consideramos
clássicos no tratamento do erotismo e da sexualidade, Georges Bataille
e Michel Foucault, continuam sendo revisitados, em um movimento
no qual se esboçam novas leituras críticas. A vinculação entre erotis-
mo e transgressão realizada por Bataille, percebida inclusive, no plano
êmico, como violação (Leite Jr, neste volume) está presente nos textos.
Contudo, às problematizações relativas à maneira como esse autor pensa
a relação entre transgressão, noções de passividade e atividade, femini-
no e masculino, adiciona-se um relevante questionamento. Trata-se de
como Bataille formula a noção do erotismo, situando-o no interior da
matriz heterossexual, dificultando pensar o erótico fora da heteronor-
matividade (Braz, neste volume).
Paralelamente, os capítulos que prestam atenção a “outras” diferen-
ças na constituição das convenções eróticas evocam questionamentos
adicionais a esses autores. Refiro-me à maneira como (não) trataram
da interseção entre diferenças. Essa problematização foi formulada por
feministas vinculadas aos estudos pós-coloniais.
No que se refere a Foucault, nos termos de Ann Stoler (1997), na
centralidade concedida pelo autor à sexualidade, tende-se a apagar que,
nos discursos coloniais, questões vinculadas à sexualidade são frequente-
mente metonímicas de relações mais amplas, envolvendo nações, classes
sociais, códigos raciais e de gênero. Segundo a autora, os discursos sobre
a sexualidade colonizaram e apropriaram-se de complicados conjuntos
de relações de poder. Todavia, seria equivocado pensar que essa proble-
matização se circunscreve apenas às realidades das colônias. De acordo
com Anne McKlintock (1995), o dispositivo da sexualidade teria sido
elaborado em um marco no qual o imperialismo e a invenção da raça
foram aspectos fundamentais da modernidade industrial ocidental. Nas
metrópoles urbanas, essa invenção se tornou central para a autodefi-
nição das classes médias e para o policiamento das “classes perigosas”,
definidas a partir da raça, sexualidade, gênero e classe social. Mas, ao
14
homossexualidade e cultura
privilegiar a sexualidade como o princípio inventado da unidade social,
o autor teria esquecido que, no mesmo contexto, uma elaborada ana-
logia entre raça e gênero se tornava um tropo organizador para outras
formas sociais.
Bataille, por sua vez, não concedeu destaque nenhum a “outras”
diferenças. Nas formulações desse autor, nas quais as relações envolvidas
no erotismo são assimétricas, a diferença é basicamente de gênero. Essa
percepção é contestada nos estudos contemporâneos sobre a produção
da sexualidade nos “lugares do desejo” que se formam na confluência
entre culturas, nas relações estabelecidas no marco do colonialismo
europeu e em suas atualizações no mercado global do sexo atual (Jolly
e Manderson, 1997).
Nesses estudos, que refletem sobre como o erotismo “Ocidental”
está constituído pelos encontros com os “outros” raciais e culturais não
europeus, a diferença é vinculada à relação com essas alteridades (Stoler,
1997). As conexões entre erotismo e transgressão são traçadas levando
em conta tensões relacionadas com raça e gênero no marco das desi-
gualdades coloniais e na recriação e atualização dessas intersecções em
diferentes contextos, considerando as diversas lógicas (de assimilação
ou integração racial) que neles primaram (Piscitelli, 2008).
Considerando esse conjunto de leituras, os textos que neste livro
levam em conta as interseções entre diferenças apontam para uma ins-
tigante diversidade em termos de convenções de erotismo. Conhecidas
noções de transgressão vinculadas a gênero e raça aparecem basicamente
acionadas no marco da indústria do sexo, na utilização de casais inter-
raciais, integrados por mulheres louras e homens negros, na pornografia
“hétero” brasileira (Díaz-Benítez, neste volume). Fora desse âmbito,
o valor concedido à diferença racial nas convenções do erotismo está
presente na análise de alguns espaços frequentados por homens que
se relacionam com outros homens. Contudo, esse valor aparece como
contingente e situacional (França, neste volume). Esse aspecto, e o
fato de a “cor/raça” aparecer como uma distinção pouco relevante em
espaços urbanos frequentados por mulheres que se relacionam com
mulheres (Facchini, neste volume), sugerem uma série de perguntas. É
possível pensar que, nesses cenários voltados para o “homoerotismo”, a
PRAZERES DISSIDENTES
15
“raça” ocupa o lugar de um tensor libidinal oculto (Perlongher, 1987)?2
Ou seria talvez rentável considerar que ter atravessado as fronteiras da
“heterossexualidade” constitui uma transgressão suficiente, a ponto de
tornar a distinção “racial” secundária nas conformações das convenções
eróticas?
O certo é que no jogo de diferenças acionado nesses encontros sexuais,
o gênero, articulado com a classe social e idade/geração, aparece como
elemento significativo no estabelecimento de trocas eróticas. Contudo,
variantes que exacerbam ou atenuam traços masculinos ou femininos
ou os combinam com matizes diferenciados, corporificados por pessoas
que se pensam como homens, mulheres, travestis, “crossdressers”, reme-
tem a noções nas quais o gênero não deriva do “sexo” nem aparece em
formas binárias e tampouco se deixa vincular linearmente com noções
como hetero ou homossexualidade, passividade ou atividade.
Nesse sentido, é importante destacar que vários capítulos mostram
com nitidez que compreender os significados assumidos contextual-
mente pelo gênero requer pensar essa diferenciação, não independen-
temente, mas em relação com a sexualidade. Isto é evidente quando as
performances de gênero são consideradas como expressão da conduta
sexual, como no (aparentemente) desconcertante episódio em que uma
travesti se pensa como heterossexual por gostar de transar com homens
(L. Oliveira, neste volume). A relação entre sexualidade e gênero apa-
rece, porém, com particular força, quando o gênero constitui o lugar a
partir do qual outras diferenciações são inscritas nas falas a respeito da
sexualidade. Vale como exemplo, entre mulheres que amam mulheres,
as gradações entre “perua” e “sapatão”, que remetem a relações de poder
permeadas por diferenciações de classe, cor/”raça” e geração (Facchini,
neste volume).
Gênero adquire essa centralidade na produção de convenções eróti-
cas e, nesses cenários, essa distinção também é crucial para hierarquizar,
inclusive excluir, categorias de pessoas. A valorização da hipermascu-
linidade em espaços frequentados por homens que se relacionam com
homens (Braz, neste volume) associada ao desprezo em relação aos gays
afeminados, “bichas, miguxos” (Parreiras, neste volume); a valorização
2
Agradeço a Maria Filomena Gregori ter chamando minha atenção para este ponto.
16
homossexualidade e cultura
do grau de feminilidade que dota um/a crossdresser de “passabilidade”,
permitindo que chegue a “passar por mulher” (Vencato, neste volume),
a rejeição às “masculinizadas” em círculos de mulheres que se relacio-
nam com mulheres (Facchini, neste volume) parecem remeter, em uma
linguagem de gênero, a uma contínua recriação da inferiorização e ao
preconceito no campo da sexualidade. Como se a ruptura com conven-
ções culturalmente disseminadas de aceitabilidade e “normalidade” fosse
parte de um processo indissociável da produção de categorias modelares
e de novas normatizações.
Esse jogo é perceptível no traçado de novas fronteiras, no âmbito de
práticas sexuais em processo de “normalização” e também no daquelas
que, criminalizadas ou não, tendem a ser situadas nos espaços inferiores
da estratificação sexual (Rubin, 1984). O mecanismo recorrentemente
utilizado por adeptos de diversas práticas sexuais estigmatizadas é con-
testar as definições psiquiátricas/patológicas da sua sexualidade, crian-
do para si um nicho “sadio” produzido através de relações que situam
“outros” nas formas tidas como patológicas.
A linguagem da saúde e da vida, da doença e da prevenção é utilizada
para delinear contornos que separam os “barebackers” dos praticantes do
homoerotismo “seguro” (García, neste volume). Praticantes do BDSM
tentam afirmar-se como “sadios” utilizando a noção de consentimento
e mediante essa noção se distanciam de outros aderentes a essas práticas
(Zilli, neste volume) e também de outras categorias de pessoas estigma-
tizadas, como os pedófilos. Estes últimos, por sua vez, evocando argu-
mentos que os grupos de interesse pedófilos desenvolveram ancorados
em pesquisas acadêmicas (Hacking, 1999), traçam fronteiras entre os
“boy-lovers corretos”, que amam crianças, se excitam com elas, mas
controlam seus desejos, e os “verdadeiros pedófilos”, aqueles que as
violentam tendo relacionamentos sexuais com elas (A. Oliveira, neste
volume). Fora desse mecanismo, aparecem apenas aqueles cujas práti-
cas sexuais estão sujeitas a um grau de coerção que tem como efeito a
ausência de condições de aparição e visibilidade e impedem qualquer
possibilidade de formular uma identidade “positiva”, como é o caso dos
envolvidos no incesto consentido (Fígari, neste volume).
No marco desse contínuo deslocamento de limites, a indústria do
PRAZERES DISSIDENTES
17
sexo ocupa um lugar singular. O processo de relativa normalização da
prostituição parece retirá-la do “lugar de tolerância” a ela concedida no
passado (Foucault, 1997), concedendo-lhe visibilidade, assim como à
pornografia, na superposição entre o mercado do sexo e do entrete-
nimento. As atividades na indústria do sexo ainda ocupam um lugar
ambíguo e, no âmbito literário, a mistura de sexualidade com dinhei-
ro não deixa de remeter a valorizações negativas, à ideia do grotesco
(Machado e Silva, neste volume). Contudo a visibilidade obtida por
essas atividades, alimentada pelos coletivos de trabalhadoras/es do sexo,
vem contribuindo para que sejam consideradas como trabalho (Lim,
2004; McKlintock, 1996) em um setor específico de atividade (Agus-
tin, 2005). Esse processo legitimador tende a removê-las do lugar da
infração e do clandestino. Como entender então a persistência do seu
apelo erótico?
O conjunto de capítulos que, neste livro, tratam da indústria do sexo
oferece sugestivas indicações para se pensar na resposta a essa pergunta,
mostrando as convenções eróticas acionadas para atrair consumidores
e os aspectos que mobilizam estes últimos. A atração aparece ora vin-
culada a práticas que objetificam corpos masculinos para o “consumo”
feminino, erotizando o deslocamento de posições de gênero, como
sucede nos “clubes das mulheres” (Arent, neste volume). A atração eró-
tica também aparece vinculada a práticas sexuais “extremas”, seja por
seu caráter grupal, encontros orgiásticos (Díaz-Benítez, neste volume)
ou por envolver contatos sexuais tidos como particularmente sujos
e/ou humilhantes (Leite Jr, neste volume). Pode tratar-se do consu-
mo de sexo comercial com seres que, como as travestis, corporificam
o embaralhamento de códigos de gênero e sexualidade (Pelúcio, neste
volume). Os textos destinados à prostituição heterossexual na qual os
consumidores são homens apontam, porém, para outro tipo de trans-
gressões que é sugestivo.
Nesses casos, os “clientes” aparecem, majoritariamente, como con-
sumidores de práticas sexuais “banais”. A eventual “fantasia” que os
conduz ao consumo do sexo comercial está longe de materializar-se na
forma de práticas sexuais “extremadas”, embora elas também existam
(Passini, neste volume; Sousa, neste volume). Ao considerar o apelo
18
homossexualidade e cultura
erótico envolvido nessas práticas, vale levar em conta os argumentos de
Elizabeth Bernstein (2001). A autora situa o sexo comercial no contexto
amplo das transformações post-industriais da cultura e da sexualidade,
chamando a atenção para a tensão existente entre as percepções do sexo
como recriação e o impulso normativo a um retorno à noção do sexo
vinculado ao amor romântico.
Bernstein considera que, na reconfiguração da vida erótica, a pro-
cura de intimidade sexual é facilitada pela sua localização no merca-
do. Entretanto, na leitura da autora, que se distancia dos argumentos
“compensatórios” formulados por autores como Anthony Giddens ou
Julia O’Connell Davidson, não se trata de suprir “necessidades” afeti-
vo–sexuais, que só podem ser plenamente satisfeitas em relações íntimas
no espaço privado do lar. A questão é que muitos clientes, para os quais
o encontro sexual mediado pelo mercado é moral e emocionalmente
preferível aos “casos não profissionais” devido ao efeito esclarecedor/deli-
mitador do pagamento, consideram as formas de atividade sexual não
doméstica como as mais satisfatórias. A transgressão está vinculada à
recusa à normatividade do sexo, vinculado ao amor romântico e não a
práticas sexuais específicas.
Finalmente, este livro traz uma bem-vinda reflexão sobre o signifi-
cado de estar no campo para quem realiza etnografias em espaços de
encontros eróticos, em uma linha de discussão ainda pouco trabalhada
no Brasil (Lacombe, neste volume). Pensar sobre a relação entre a cor-
poralidade do antropólogo e a dos/as demais sujeitos/as da pesquisa
em espaços nos quais corpo e erotismo adquirem centralidade e nas
necessárias negociações realizadas pelo/a pesquisador/a abre caminhos
promissores para novas discussões sobre a ética na realização de etno-
grafias sobre sexualidade.
Concluindo, uma última observação. Além de dialogar com a biblio-
grafia “clássica”, particularmente sobre sexualidade e erotismo, nos capí-
tulos que compõem este volume se estabelece uma interlocução com a
produção internacional que tende a ser vinculada aos “queer studies” e
com os trabalhos brasileiros sobre sexualidade. Alguns autores, como
Peter Fry (1982) e Nestor Perlongher (1987), que, estudando “homosse-
xualidades”, se tornaram referências “clássicas” neste campo de estudos.
PRAZERES DISSIDENTES
19
Quando este último autor morreu, em 1992, acompanhado por apenas
um punhado de amigos e colegas, sua etnografia sobre os michês no
centro de São Paulo era uma referência basicamente para (as poucas)
pessoas que estudavam “homossexualidades” ou prostituição. Hoje, o
valor conferido a essa obra é amplamente reconhecido no campo da
sexualidade em sentido amplo, e não apenas no Brasil.
A esses trabalhos se somam os de outros autores, mais recentes, como
Luis Fernando Dias Duarte (2004); Maria Filomena Gregori (2003);
Maria Luiza Heilborn (2004); Sérgio Carrara e Júlio Simões (2007),
Richard Milskoci e Simões (2007) e muitos outros, citados em análi-
ses centradas em recortes específicos. A recorrência dessas referências
aponta nitidamente para a consolidação do campo. Contudo, neste
efervescente espaço de diálogo, a interlocução com referenciais teóricos
feministas ainda é restrita. Ao mesmo tempo, a atenção concedida a
recortes “heterossexuais” (fora do âmbito da indústria do sexo) é com-
parativamente menor. Esta observação é apenas um convite para novas
reflexões, especulando sobre o avanço na produção de conhecimento
que pode resultar do confronto com essas linhas teóricas e com recortes
empíricos pouco contemplados neste campo cujo crescimento é demons-
trado, de maneira brilhante, pelos capítulos deste livro.
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618-631, 2005.
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disparatadas. Cadernos PAGU (28), Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/
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liense, 1987.
PISCITELLI, Adriana, GREGORI, Maria Filomena e CARRARA, Sérgio. Apre-
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PISCITELLI, Adriana. As fronteiras da transgressão: a demanda por brasileiras na
indústria do sexo na Espanha. Texto apresentado no Workshop: Debates contemporâ-
neos sobre raça, etnicidade, sexualidade e gênero, USP, março de 2008.
RUBIN, Gayle. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of Politics of Sexuality. In:
VANCE, Carol (Org.). Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality. Nova York:
Routledge, 1984.
STOLER Ann. Educating Desire in Colonial Southeast Asia: Foucault, Freud and
Imperial Sexualities. In: MANDERSON, Leonore e JOLLY, Margaret (Ed.). Sites of
Desire, Economies of Pleasure. Sexualities in Asia and the Pacific. Chicago: The Uni-
versity of Chicago Press, 1997, p 27-48.
INTRODUc;Ao
SEXUALIDADES QUE IMPORTAM:
ENTRE A PERVERSAO E A DISSIDENCIA
Carlos Figari e Maria Elvira Diaz-Benitez
Em julho de 2007, em pleno inverno porto-alegrense, varios pesqui­
sadores se reuniram no grupo de trabalho "Corpos, desejos, prazeres
e praticas sexuais 'dissidentes': Paradigmas te6ricos e etnogrificos",
durante a VII Reuniao de Antropologia do Mercosul. Desse encontro
surgiu este livro.
Nosso objetivo era discutir e analisar formas de produzir conheci­
mento sobre praticas sexuais e er6ticas que desafiam os efeitos politicos
da abjer;:ao/repugnancia, ou seja, aquelas que se situam nos campos de
impossibilidade significante, mas que com a sua existencia precisamente
corroem, todavezque denunciam, o ponto de nao-suturadassexualidades
instituidas. Consideramos que, no Ocidente, sexo e genero - assim como
sujeito e rar;:a- funcionam como conceitos performativos que se transfor­
mam em substancias ficdcias, unidades que inicialmente s6 tern realidade
linguistica, isto e, 0 sexo nao e natural, tern uma hist6ria, urn momento
de surgimento e e produzido culturalmente, assim como 0 genero.
A sexualidade seria urn dispositivo de poder da modernidade oci­
dental que a colocaria em urn dominio separado do resto da natureza
humana, configurando o sexual como urn campo espedfico e diferen-
21
homossexualidade I e �lcu=.elt=ur,_a__�
ciado na vida das pessoas e produzindo a ideia de identidades sexuais
apoiadas em tipos diferenciais de praticas (Halperin, 1991).
Esta no<;:ao, tributaria de Foucault (1977), pretende explicar que
a lei nao deve atuar sabre urn sujeito que a precede, mas sim e a lei
que inventa o objeto que regula. Assim, por exemplo, nao existiriam
homossexuais antes das reguJa<;:oes cuiturais, medicas e juridicas que OS
avaliassem como seresabjetos (como tampouco existiriam os heterosse­
xuais antes da existencia dos homos, constituindo uma dupla semantica
em urn mesmo ato). Dessa maneira, na linguagem, a gramatica cor­
poriza os generos e os comportamentos er6ticos em termos da matriz
heterossexual obrigat6ria e os faz inteligfveis. E no momenta da gera­
<;:ao da ffi<triz heterossexual, da sexualidade "normal", que se definem
as sexualidades perifericas como seu correlato abjeto, aquila que nao e
para que o outro seja (Butler, 2005).
0 outro subalterno nao s6 e formulado em termos repressivos/proi­
bitivos, isto e, aquila que nao se deve ou nao se pode, mas basicamente
como genese da alteridade sabre a qual repousa minha propria genese.
Necessito de urn outro que afirme minha existencia na nega<;:ao da sua
propria. Meu duplo nao e urn outro per se, mas sim meu reflexo. 56
posso enxergar-me no outro diferente. Em sua/minha repressao, eu o
crio. Nao esta fora de mim, porque constitui meu exterior constituti­
vo. Por isso, nao pode "se igualar", deve seguir sendo a ausencia que
marca minha presen<;:a no mundo, daf o antagonismo e a violencia da
diferen<;:a. Como afirma Irigaray (1998) acercadas diferen<;:as de genera,
as mulheres sao 0 sexo que nao e urn; por esta razao, 0 masculino lhes
oferece urn nome para assim poder tamar o seu Iugar.
A abje<;:ao tampouco e urn mero estado de coisas e posi<;:6es de
sujeitos; ela basicamente suscita emo<;:6es relacionadas as valora<;:6es
que dependem dos particulares contextos de produ<;:ao de sentidos do
antagonismo. Dessa maneira, a emo<;:ao basica em rela<;:ao ao abjeto e
a repugnancia. Segundo Nussbaum (2006), o repugnante nos situa no
campo do asco, daquilo que remete ao putrido da morte, ao nao-ser e a
falta de humanidade. 0 asco e a forma primitiva de rea<;:ao humana ao
abjeto, e representa o sentimento que qualifica a separa<;:ao das fronteiras
entre homem e mundo, entre sujeito e objeto, entre interior e exterior.
22
PRAZERES DISSIDENTES
Ele e rudo o que deve ser evitado, separado e ate eliminado: o perigoso,
0 imoral e o obsceno entram na demarca<;:ao do fetido e do repugnante.
Como exterior (porem interior) constitutivo, a abje<;:ao aparece como
fundante do ser humano, ou seja, como aquilo que o constitui a partir
da sua cisao com o mundo natural. 0 ternor a natureza supoe o ingresso
na cultura e o sustento da linguagem (Kristeva, 1 988).
A ourra associa<;:ao da repugnancia refere-se ao animal no humano,
ainda que nao desligado do abandono do estado de natureza, aquela
natureza que devemos esquecer sob o pre<;:o da civiliza<;:ao. A anima­
lidade repugna e esteticamente atribui beleza, pois quanto mais perto
de urn animal se esteja, mais feios seremos e menos saberemos a que
podemos nos ater. Quanto mais disforme for uma imagem em rela<;:ao
ao canone de beleza masculina ou feminina, mais a identifica<;:ao se fad.
em termos animais. E ainda, entre a animalidade e a deformidade surge
o monstruoso. A monstruosidade impacta em face do ourro nao-natural,
quase animal e absolutamente disforme.
0 monstruoso e o animal nao s6 desagradam, cheiram mal, irritam,
como tambem atemorizam. 0 animal e a nao-civiliza<;:ao, 0 fim da
sociedade. E ali que acaba a seguran<;:a ontol6gica: de que vivemos em
urn mesmo mundo. Representa o fim da sociedade entendida como a
presun<;:ao, em termos de Schutz, de que "eu acredito o que todos acre­
ditam". Distinguir-se do estado de natureza implica o pudor, avergonha
mas, especialmente, a repugnancia.
0 abjeto, de acordo com Mary Douglas ( 1991), tambem polui, con­
tagia, deve ser evitado; o que e considerado sujo ou suscetfvel de polui<;:ao
nao e outra coisa senao a perturbadora "materia fora do lugar". Assim,
muitos comportamentos foram institu!dos como "fora do lugar", na
ilegitimidade, como sexualidades perifericas, especialmente a partir da
voca<;:ao taxon6mica da medicina, encontrando fios de transmissao - e
retroalimenta<;:ao - em outros aparelhos ideol6gicos, como a famllia, a
escola, a religiao, a imprensa, a literatura, os manuais de sexualidade,
de moral e boa conduta etc.
Como exemplo vamos considerar a constru<;:ao das sexualidades
perversas no Brasil, especialmente no campo da Medicina Legal da
primeira metade do seculo XX. Afranio Peixoto ( 1931), seguindo a clas-
23
homossexualidadeI e .,!cu.,lt,.,ur"'-a__.....J
sifica�ao feita em Psychopathia Sexualis pelo psiquiatra alemao Richard
Von Krafft-Ebing, ordenou as patologias psiquiatricas considerando a
"degenera�ao" como urn estado originario psic6tico, pautado em dese­
quilibrios perversos. Por suavez, subdividiu adegenera�aoem anomalias
da inteligencia, da emotividade e da vontade, "pervers6es sexuais", filias,
fobias, obsess6es e impulsos. Em classifica�6es posteriores, adegenera�ao
- e portanto as pervers6es sexuais - enquadra-se nas "personalidades
psicopaticas" (Figari, 2007).
Para Flamfnio Favero (1 937), as pervers6es sexuais sao mais amplas
que uma categoria psiquiatrica, considerando-as "modifica�6es qualitati­
vas ou quantitativas do instinto sexual, ora no que se referea finalidade
do ato, ora no que concerne ao objeto", derivadas tanto de urn vfcio
como de urn fator congenito ou patologia mental.
Dentro das "pervers6es sexuais", trabalhos brasileiros em Sexologia
assinalaram uma multiplicidade inacabavel de priticas que compor­
tam a sexualidade anomala. 56 para lembrar algumas: frigidez (falta
do instinto sexual na mulher, derivado, as vezes, das praticas lesbicas);
anafrodisia (diminui�ao ou falta do impulso sexual masculino); necro­
filia (sexo com cadaveres); narcisismo (deleite na autocontempla�ao);
riparofilia (atra�ao sexual por mulheres sujas, menstruadas ou gravi­
das); mixoscopia ou voyeurismo; erotismo (excesso de desejo sexual);
masturbariio ou onanismo; exibicionismo; Jetichismo; sadismo; maso­
quismo; bestialismo ou zoojilia; lubricidade senil. Outras sexualidades
perifericas sao as "invers6es sexuais" ou "homossexualismo" (masculino
ou uranismo, e feminino ou sajismo). As topoinversoes: felariio (suc�ao
do penis pela mulher) e cunilingua (suc�ao dos genitais femininos
pelo homem). As cronoinversoes: jovens que amam idosos ou idosas
(segundo os autores, o esquema contririo seria natural). Finalmente,
apareciam no registro brasileiro a cromoinversiio (desejo acentuado por
pessoas "de cor") e a etnoinversiio ou preferencia sexual por pessoas de
outras ra�as (Gomes, 1 959).
A constitui�ao desexualidades normais e perifericas denota uma falsa
unidade que fragmenta o corpo, uma desuniao que reduz sua erogenia.
Por isso, quando aparecem outros corpos ou priticas sexuais/er6ticas
que desafiam a l6gica desta gramatica, sao produzidos, como vimos,
24
PRAZERES DISSIDENTES
dois efeitos politicos: 0 primeiro e a considew;:ao de nao-humanidade,
0 segundo, a abje<;:ao e a repugnancia.
Varias dessas praticas sao tratadas oeste livro. Nao obstante, sob
outra lente, que denominamos "dissidencia''. Precisamente, com o titu­
lo Prazeres dissidentes, procuramos englobar pesquisas antropol6gicas a
respeito de praticas e experiencias no campo do sexo-genero que operam
nas fronteiras do er6tico/er6geno normativo: como sao geradas, como
sao vivenciadas, enfim, como existem alem da abje<;:ao.
Uma parte dessas sexualidades dissidentes existe no campo da mera
experiencia, isto e, simplesmente sao vividas e compartilhadas a partir de
uma consciencia pratica (nao-reflexiva em termos cognitivos). Embora
possahavero reconhecimento de urn Nos, isto nao e determinante de uma
identidade coletiva, senao de certa comunhao de interesses e praticas: os
T-loverse as experiencias de incesto consentido como exemplos, nestacole­
tinea, trabalhados por Larissa Pelucio e Carlos Figari, respectivamente.
Outras, pelo contrario, parecem anunciar-se como novas categorias
sexuais: boy/overs, barebackers, discutidos oeste volume por Alessan­
dro de Oliveira e Esteban Garcia. Varias dessas praticas se apoiam na
intensifica<;:ao da a<;:ao sexual em si mesma, em razao de suas condi<;:6es
hist6ricas de apari<;:ao: o BDSM (bondage, disciplina, domina<;:ao,
submissao, sadismo e masoquismo), por exemplo, na analise de Bruno
Zilli oeste volume.
Para Foucault (2000), as praticas que poderiam ser geradas no cam­
po das sexualidades perifericas constituem verdadeiros "laborat6rios de
experiencias sexuais", nos quais se estabelecem jogos, tens6es e deslo­
camentos na utiliza<;:ao de qualquer parte do corpo como instrumento
sexual, e adissemina<;:ao do prazer para alem do sexual. Enfim, a obten­
<;:ao de uma "des-sexualiza<;:ao do prazer" procurando novas e criativas
formas de deleite a partir de objetos ou partes do corpo nao-usuais,
descartando a cren<;:a de que a foote de todo prazer e sexual e que, por
sua vez, este s6 deve proceder do fisico, por exemplo, as Sexy Smokers
ou.tabagismo como transgressao erotica, ou mesmo as praticas de abuso
focial que Jorge Leite Jr. aqui explorara.
Foucault manifestava tambem urn grande entusiasmo pelo impre­
visivel das rela<;:6es que poderiam chegar a ser criadas no mundo das
25
homossexualidade I e l�cu.,lt,.,ur"'-a___j
sexualidades perifericas. Talvez ja antecipasse que o seculo XXI traria
com ele urn espa�o-laborat6rio-chave para corporalidades virtuais,
generos fronteiri�os e encontros interditos - a Internet, ambiente de
desejo circulante no qual os pr6prios sujeitos dissidentes constroem-se,
inventam-se, discutem-se, interpelam-se, identificam-se: crossdressers,
rede pesquisada por Ana Paula Vencato; homens que gostam de outros
homens e que no ciberespa�o elaboram diversas apresenta�6es de si,
como veremos no artigo de Carolina Parreiras, e os ja mencionados
homens que gostam de crian�as, analisados porAlessandro de Oliveira,
serao postos em cena (ou em tela) neste livro.
Algumas praticas sex'uais dissidentes, mesmo construidas sobre a
transgressao, estao longe de ser universos desregrados. Pelo contrario,
normas, valores e conven�6es, por vezes hierarquicas, organizam sua
existencia. Alguns artigos desta coled.nea analisam os limites de tais
dissidencias, mostrando experiencias nas quais se gestam e se afirmam
modelos de masculinidade dominante, por momentos heteronormativa:
os encontros entre frequentadores da Vila Mimosa e mulheres que se
dedicam a prostitui�ao, no artigo de Elisiane Pasini; as orgias de filma­
gens pornograficas etnografadas por Maria Elvira Diaz-Benitez; o clube
de mulheres da pesquisa de Marion Arent, em que diversos "garanh6es"
fazem strip-tease; os encontros er6ticos entre "homens de verdade" com
travestis e gays praticantes de crossdressing em uma boate do suburbio
carioca trabalhados por Leandro de Oliveira.
Como agem estilo, aparencia, ra�a, classe, idade e performances de
genero na conforma�ao de subjetividades e como pesam em intera�6es,
economia da sedu�ao, trocas e circula�ao do desejo em circuitos nao­
normativos? Varios autores deste volume se debru�am nesta questao:
Isadora Fran�a tern como cenario urn samba GLS, e Camilo Braz, em
clubes de sexo para homens que exercem praticas homoer6ticas em
Sao Paulo. Somando o desafio da interseccionalidade, encontram-se
os trabalhos de Regina Facchini e Andrea Lacombe, pesquisadoras que
atravessam variadas redes de mulheres "lesbicas", "fanchas", "enten­
didas", "sapatonas", entre outras classifica�6es que se estabelecem na
articula�ao de diferen�as, condutas er6ticas, identidades, conven�6es
sociais e corporalidades.
26
PRAZERES DISSIDENTES
Oissidencia significa tambern deslocamento: de Iugar, como os terri­
r6rios de "pega<;:ao" que AlexandreTeixeira analisa em Belo Horizonte;
de zonas "legftimas" e por momentos de papeis sexuais "esperiveis",
como acontece entre as travestis e seus clientes na observa<;:ao de Larissa
Pelucio; de roupa, posturas corporais e experiencias de genero, como os
ja mencionados homens que se vestem de mulher analisados por Anna
Paula Vencato.
Podemos afirmar que embora tais comportamentos resultem per­
turbadores para a sociedade em geral enquanto sexualidades dissidentes
que se afirmam em sua vivencia, abrindo urn Iugar no mundo e uma
possibilidade de cleverser, eles resultam francamente intoleraveis quando
aparecem como possibilidade de novos tipos de rela<;:6es, parafraseando
Foucault (2000), "intensas e satisfat6rias".
Marcelo Mirisola, protagonista do unico artigo destacoletaneadedi­
cado a narrativa ficcional, tambem e urn deslocador. Suas paginas estao
carregadas de praticas sexuais "estereis", corpos e sujeitos caracterizados
pela deformidade que, como Regina Coeli Machado e Silva neste volu­
me afirma, ganhamvisibilidade, sobretudo, por meio de "perturba<;:6es"
consideradas impuras, infames e malditas. Outras narrativas compoem
este volume, aquelas que emanam da memoria de mulheres que se
dedicaram a prostitui<;:ao na zona do baixo meretrfcio, em Sao Luis, nas
decadas de 1960 e 1970, e entenderam com seus corpos o papel social
a elas atribufdo, como exp6e o artigo de Sandra Sousa.
Finalmente, o artigo de abertura destacoleranea, de autoria de Vitor
Grunvald, explora o debate sobre a abje<;:ao em uma aguda constru<;:ao
te6rica. Aponta uma contiguidade Ia onde parece haver urn polo em
oposi<;:ao, a abje<;:ao nao como o oposto a cultura, mas como urn polo de
prodw;:ao possfvel - "uma 'polftica da abje<;:ao' como 'polftica do virtual',
mais do que uma polftica da performatividade e do reconhecimento";
e a abje<;:ao como insistencia nao situada em urn Iugar de exterioridade
absoluta, mas sim incorporada como uma l6gica nao-disjuntiva (no
sentido de Kristeva), nem dialetica, nem simb6lica; Ia onde flui o devir
nao em urn� outra coisa, mas sim em uma multiplicidade.
:E isto que oferecemos a comunidade: aos dissidentes, aos nao-dissi­
denres e aqueles que transitam em dissidencias contingenciais, lfquidas
27
homossexualidadeI e l.,cu.,lt,.,ur_,._a---'
e fluidas. Mediante tres artigos: "Retratos de uma orgia", "Silencio, suor
e sexo" e "Diversidade sexual e trocas no mercado er6tico" de Diaz­
Benitez, Braz e L. Oliveira, respectivamente, cujas pesquisas tiveram
como base a observas:ao direta em contextos de interas:ao sexual, esta
coletanea pretende tambem cooperar com urn campo que, pelo menos
no Brasil, nao constitui ainda urn tema de interlocus:ao consolidado
(Oliveira, 2007): a "etnografia das pd.ticas sexuais".
Para a comunidade academicabrasileira, especialmente a antropol6gi­
ca, este livro pretende trazer uma contribuis:ao para o fortalecimento de
uma linha tematica atualmente candente: o estudo de corpos e generos
de fronteira, encontros_interditos, sociabilidades fluidas, jogos sexuais
proibidos e narrativas obscenas.
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PEIXOTO, Afrinio. Medicina legal. Psicopatologia forense. 3. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1931.
29
BUTLER, A ABJE<;:AO E SEU ESGOTAMENTO
Vitor Grunvald'
Niiosetrata desentiro desejo comofolta interior, nem de retardar
oprazerparaproduzir um tipo de mais-valia exteriorizdvel mas,
ao contrdrio, deconstituir um corpo sem 6rgiios intensivo, Tao, um
campo de imanencia onde nadafolta ao desejo e que, assim, niio
mais se relaciona com criterioa/gum exterior ou transcendente.
[. .} 0 campo de imanencia ou plano de consistencia deve ser
construido; ora elepode se-lo emformaroes sociais muito difi­
rentes, epor agenciamentos muito difirentes, perversos, artis­
ticos, cientijicos, misticos, politicos, que niio tem o mesmo tipo
de corpo sem 6rgiios.
Deleuze e Guattari em 28 de novembro de 1947- Como criar
para si um corpo sem 6rgiios.
' Mestre em Amropologia Social pelo Programa de Pos-gradua<;ao em Antropologia Social do Museu Nacio­
nal, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 0 trabalho de elabora<;ao deste arrigo teve etapas mais ou
menos delimitadas. A primeira versao foi testada no curso Familia, gmero e sexualid&ie ministrado pela
Prof' Adriana Vianna no Museu Nacional da UFRJ. Uma deforma<;ao posterior ocorreu a prop6sito da
sua exposi<;ao na VII Reuniao de Antropologia do Mercosul no Grupo de Trabalho Corpos, desejos, prazeres
e prdticas sexuais dissidentes: paradigmas teoricos e etnogrdjicos, coordenado par Maria Elvira Di:iz-Benitez e
Carlos Eduardo Figari. Par fim, o artigo foi revisto e deformado para o presente livro. Agrade�o a todos que
de alguma forma conrribufram com criricas e sugesr6es as vers6es preliminares. Os erros e exageros sao, e
clara, de minha inreira responsabilidade. Sem mais, lembro do Nucleo Abaete de Anrropologia Simerrica,
coordenado por Marcia Goldman e Eduardo Viveiros de Castro. A imporrancia das conversas e discussoes
possibiliradas por essa rede de anrrop6logos nio sera nunca suficienremenre frisada e, sem a sua conrribui­
'lao, esre artigo cerramenre nao seria possivel. Ao Iongo do rexro, as traduc;6es, quando necess<irias, foram
realizadas por mim; as referencias is paginas sao da edi<;ao consultada e listada na bibliografia.
31
homossexualidade I e "-lc,.,ul_,tu.,ra,_____j
Este artigo e o resultado parcial de uma explora�ao longa e con­
tinuada sobre a obra de Judith Butler. Em urn primeiro momento,
era o contraponto entre o que chamei de "politica (e/ou teoria) da
performatividade" e "politica (e/ou teoria) da abje�ao" que balizava
analiticamente a minha argumenta�ao. Nao obstante, o colocar-novas­
quest6es-em-uma-mesma-superfkie levou a outros problemas e, com
isso, este trabalho e completamente deformado e deformante, se visto
a partir de sua primeira proposta ou mesmo do efeito produzido sobre
o conceito que lhe era focal, a ideia de abje�ao.
lnicialmente inclinado a ativar o pensamento de Butler para dele
extrair outras partfculas e superficies, fui eu mesmo corrompido
e, afetado pelo trabalho analftico, passei a funcionar menos como
engenheiro do que como cirurgiao. 0 efeito disso foi, segundo vejo,
menos uma adapta�ao ou complementa�ao do que urn processo
de minora�ao e deforma�ao, tanto da obra em questao quanto do
conceito aludido.' Acredito que amputa�6es na teoria da performa­
tividade foram levadas a cabo pela teoria da abje�ao. 0 que busca­
mos e minorar tambem a segunda, desterritorializar seu conceito
focal para que ele passe a dizer mais ou menos do que dizia antes.
De alguma maneira, trata-se de dobrar recursivamente a abje�ao.
Como pensar a abje�ao a partir dela mesma e nao mais a partir da
"norma socionatural"?
"Com o totemismo e com a histeria e a mesma coisa". Frase de
abertura do dissico Totemismo hoje. Mais adiante o autor precisa:
A compararao [da histeria} com o totemismo sugere uma relarao
[. .} entre as teorias cientijicas e o estado da civilizarao, na qual o
espirito dos estudiosos intervem tanto ou maisdo que o dos homens
2 Como minora<;ao, refiro-me ao processo mediante o qual "procedimentos cirllrgicos" operam o blo­
queio dos cemros de poder que marcam determinada obra e impedem a produc;ao de urn pensamemo
como mulriplicidade: "nem o historico, nem o eterno, mas o imempesrivo" (Deleuze e Bene, 1979, p.
96). Trata-se de dar urn "tratamento menor" a obra de Buder, o que, como esclarece Goldman (1994,
p. 32), "significa buscar 0 que pode haver de mais interessantenuma obrapara umadeterminada epoca (a
nossa); rearivar para o presente algumas ideias, algumas intui<;6es as vezes, que podem funcionar como
linhas de fuga e de forc;a para nossos impasses comemporaneos". Note-se que esse procedimemo vibra
na mesma simonia das imui<;6es merodologicas de Foucault quando da percep<;ao de sua obra como
uma "historia das problemarizac;6es" - ainda que esse pensador frances tenha sempre estado "muiro
Ionge de propor urn verdadeiro merodo" (idem, 1994, p. 30 e 1999).
32
PRAZERES DISSIDENTES
estudados: como se, ao abrigo da objetividade cientijica, osprimei­
ros procurassem inconscientemente tornar os segundos - doentes
mentais ou pretensos "primitivos" - mais diferentes do que 0 sao.
(Levi-Strauss, 1986 [1962], p. 11)
Urn cerro desequilfbrio dinamico das oposis;6es acionadas na cons­
trus;ao do objeto e do sujeito da antropologia ja parece estar presente
no trecho citado. Seu carater contrarrelativista e inegavel. No entanto,
a despeito disso, algumas aplicas;6es da teoria estrutural aos estudos
feministas e de genero parecem ter produzido certo efeito naturali­
zante e estacionario.' E se inicio urn artigo dedicado a te6rica tida
como principal candidata ao titulo de p6s-estruturalista dentro das
discuss6es sobre genero e sexualidade lembrando as desventuras que
0 proprio estruturalismo teve no ambito destes estudos nao e a toa.
Como foi frisado certa vez por Verena Stokke,< foram determinados
"desenvolvimentos levi-straussianos" (e, em especial, o classico artigo
de Ortner [ 1974]) que possibilitaram, atraves da universalizas;ao da
diferens;a sexual, o surgimento da nos;ao de genero como sua contra­
partida sociocultural.5
Essa inflexao - a partir de urn certo modelo estrutural, mais do que
do estruturalismo6 - promoveu 0 ajuste necessario ao estabelecimen­
to de uma base comum entre os estudos de genero e outras quest6es
antropol6gicas a partir do paradigma que, no seculo XX, dominou
' Note-se o incomodo que Sherry Ortner (Deberr e Almeida, 2006) exprimiu recenremenre em rela�ao
a seu arrigo IsFemaletoMale as Natureisto Culture?de 1 974: "Entao ele tern 34 anos - definitivamente
eu nao o escreveria novarnenre, renho cerreza. Esrava sob o efeiro da onda do estruturalismo, embora
eu nao esrivesse rotalmenre convertida ao estrururalismo, rinha muiro interesse [...]. Esre arrigo e urn
objero morro arualmeme, mas ele tern uma historia... " (p. 441-442).
• A observa�ao em questao foi feita por Srolcke quando de sua conferencia na 25• Reuniao Brasileira de
Antrapologia.
' A ideia de que o genera devia ser emendido como a elabora�ao sociocultural dos significados atribuf­
dos as diferen�as naturais e biologicas entre homens e mulheres se rornou urn trufsmo na anrrapologia
da decada de 1970 - recalcirranre era apenas a amrapologia biologica, que insisria em afirmar que, se
nao o genera como urn rodo, pelo menos pane dele era determinada pelo sexo (Moore, 1988).
' Para uma 6tima discussao do estruturalismo, conferir o texro de Deleuze (1982 [1973]) Em que se
pode reconhecer o estruturalismo? Neste artigo, parece claro como o estruturalismo carrega virtualmente
os germes da sua sup<;ra�ao. A estrurura, ela mesma, devendo ser emendida nao apenas como multipla,
mas como mulriplicidade, composta de rela�6es diferenciais e dos ponros singulares que lhes corres­
pondem: a estrurura como "realidade do virtual" (cf. Ddeuze, 2006 [1968], p. 294).
33
homossexualidadeI e �>olc!!!ul"'tu.,_ra,._ ___�
nossa disciplina: o modelo de vers6es distintas (de genero) de urn
mundo natural (sexual) ou, para dizer de outra forma, o modelo do
relativismo sociocultural/ Constitufdos esses polos relacionais como
realidades distintas e irredutfveis, uma grande massa de estudos etno­
grificos apressou-se em afirmar divergentes "elaboras:6es culturais" da
diferens:a sexual, apontando para o fato de que o sexo nao poderia
determinar o genero.'
A antropologia da mulher da decada de 1 970 abriu caminho e se
metamorfoseou na antropologia de genero dos anos 1 980, enquanto
0 sexo, associado a natureza e a diferens:a sexual, permaneceu prati­
camente nao teorizado, ji que, assim entendido, se encontrava fora
do escopo argumentativo da disciplina (Moore, 1 988). No entanto,
"se os anos 1 970 e 1 980 estabeleceram que o genero existia, o fim
dos anos 1 980 sugeriram que o sexo nao" (Moore, 1 999, p. 1 53).9
E mesmo que ainda nao se soubesse ao cerro a que o primeiro ter­
mo se referia, passou-se a questionar as bases universais e naturais
' A disrinr;iio entre natureza e cultura foi apenas urn dos idiomas atraves do qual a incomensurabilidade
posrulada indigenamente no discurso euro-americano foi expressada no feminismo. A oposi'fao entre
domesrico e publico proposta par Rosaldo ( 1974), bern como aquela entre reprodur;iio e produr;iio
elaborada par Harris and Young (198I) aparecem, dentro da hist6ria do feminismo, como outras for­
mas de pensar a irredutibilidade tida como fundamental, a saber, a diferenr;a entre homens e mulheres.
Yanagisako e Collier (I987) prop6em uma analise unificada dessas dicoromias com o parentesco a
partir da ideia de que "o genera e o parentesco foram definidos como campos de esrudo pela nossa con­
cepr;iio nativa da mesma coisa, a saber, os faros biol6gicos da reprodur;iio sexual" (I 987). A reromada
dos insights de Schneider par essas auroras niio e fortuita. Com seu esrudo sabre o parentesco ameri­
cana (I 968), ele parece ter sido urn dos primeiros a construir urn modele re6rico para pensar mundos
irreduriveis uns aos ourros: o que faz da pessoa urn parente nio e o mesmo que faz de urn parenre uma
pessoa; ou, para usarmos a formula srratherniana, "o que da disrintividade a parte ('o indivfduo') como
uma pessoa rota! niio e o que faz da pessoa uma parte da sociedade como urn todo" (Srrathern, I 992b,
p.8I). Assim, o indivfduo parece ser diferente da sociedade na medida mesmo em que ele funciona
como culrura (invenr;iio) em uma sociedade percebida como natureza (convenr;iio). Para a discussiio de
algumas dessas quest6es, mesmo que sob urn ourro prisma, cf. Wagner (I98 I , I99I).
' Tal como afirma Butler: "Originalmente com a intenr;iio de responder a afirmar;iio de que 'biologia nao
e destine', essa distinr;iio serve ao argumento de que, independentemente da imaleabilidade biol6gica
que parece ter o sexo, o gfnero se consrr6i culruralmenre: porranro, o genero nao e o resulrado causal
do sexo nem rampouco e tao aparentemente fixo como ele" (Butler, 200 I , p. 38).
' Lembre-se o modus operandi de Yanagisako e Collier no texto aludido anteriormente: "aestrategia ana­
Ifrica e questionar 0 quanta essas diferenr;as [biol6gicas entre homens e mulheres] sao a base universal
para as caregorias culturais de 'masculine' e 'feminine'" (I987, p. I 5). Ai, as auroras explicitamente
argumenram "contra a no'fio de que varia'f6es inrerculturais nas caregorias e desigualdades de gfnero
sao meramenre elabora'f6es e exrens6es diversas do mesmo faro natural" (ibidem).
34
PRAZERES DISSIDENTES
do segundo: "nern sexo, nern genero erarn rnais esd.veis!" (Moore,
1 999, p. 1 55).1"
Nesse comexto, a vulgata foucaultiana segundo a qual o sexo e urn
efoito de discursos que acabarn por naturalizar o que criarn, tornando-o
como causa, e retornada e a distinc;:ao entre sexo e genero ja nao parece
tao dara.11 Assirn, e aberto o carninho para a constituic;:ao do problema
ao qual Butler oferece a sua teoria da perforrnatividade como resposta:
quais as rnaneiras pelas quais o sexo se estabelece como a base natural
sobre a qual a cultura age conforrnando o genero?
ATEORIA DA PERFORMATIVIDADE COMO L6GICA DO RECONHECIMENTO
As quest6es que inquietarn Butler sao diretarneme oriundas da
experiencia polftica do ferninisrno tal como se constituiu pelo rnenos a
partir de rneados do seculo XX. Como deixa claro ja no prirneiro capi­
tulo de Gender Trouble:
A questiio das mulheres como sujeitos dofeminismo coloca a pos­
sibilidade de que niio haja um sujeito que exista "antes da lei':
esperando a representariio na e por esta lei. Talvez o sujeito e a
invocariio de um "antes" temporalsejam constituidospela lei como
umfondamentojicticio de sua propria ajirmariio de legitimidade.
(Butler, 2001 [1990], p. 35)
'" A ambiguidade do rermo genera era reflerida pela diferen1:a de enfoques analfricos: "De urn !ado, gene­
ro e as relac;6es de g€:nero estavam relacionados com a divisao sexual do uabalho, com os papeis, rarefas
e status sociais da mulher e do homem na vida social enrendida como urn rodo. De ourro, genera se
rrarava de cren�as cosmol6gicas e valora�6es e princfpios simb6licos. Nao e diffcil imaginar que as duas
concep�6es nem sempre eram concordances" (Moore, 1999, p. 152).
" Carecemos de uma revisao crfrica das apropria�6es da reoria foucaulriana pela anrropologia preocupada
com as quesr6es de sexo, genera e sexualidade. Alem do f:icil empobrecimenro do seu argumenro atra­
ves da vulgata "o sexo e construido historicamenre" e da constance reduc;ao da sua obra, dentro desse
campo, as 'hisr6rias da sexualidade' - na verdade, ao volume I, A vontade de saber-, grande parte dos
esrudos desenvolvidos nesse ambito pecam por nao seguirem as inrui�6es de Foucault seja em rela�ao
a hisr6ria seja em rela�ao a subjeriva�iio. Para urn 6timo rrabalho sabre a concep�iio da hisr6ria em
Foucault, cf. Veyne (1998 [1971]); para uma revisao de sua obra e uma excelenre discussao sabre a
subjeriva�ao, cf. Deleuze (2005 [1986]), em especial o ultimo capitulo ''As dobras ou o !ado de fora do
pensamento" e o anexo "Sobre a morte do homem e o super-homem".
35
homossexualidade I e "'lc,.ult,u.,r,._a_____,
A distin�ao entre sexo e genero que era tao fundamental em meados
do seculo XX e que come�a a entrar em crise no final dos anos 1980
recebe, em Buder, urn tratamento radical, sua implosao." 0 genero deixa
de ser apenas urn conceito que serve somente para marcar a inscri�ao
cultural do significado em urn sexo predeterminado e passa a se referir
tambem ao aparato de produ�ao do sexo mesmo:
Como resultado, ogenero niio estdparaa culturacomo o sexo estdpara
a natureza; 0 genero etambem 0 meio discursivolcultural mediante 0
quala "natureza sexuada"ou "um sexo natural"seproduz ese esta­
belece comopre-discursivo, previo a cultura, uma superflciepolitica­
mente neutralsobre a quala cultura age. (Ibidem, p. 40)
Em urn artigo programatico de 1997, Buder retoma alguns insights
da fenomenologia e evidencia a impord.ncia da ideia do "agente social
como urn objeto mais do que urn sujeito dos atos constitutivos" ( 1997a,
p. 402).13 A ideia do genero como o eftito de praticas reguladoras que
buscam manter as identidades uniformes pela imposi�ao de urn sexo
natural (e, por consequencia, da heterossexualidade compuls6ria) se
une com o raciodnio segundo o qual determinados atos sao antes per­
formativos (isto e, criadores) do que constatativos (isto e, descritivos),
originando a teoria da performatividade, a identidade de genero como
"repeti�ao estilizada de atos".'4
12
"Se se impugna o caniter imutivel do sexo, quic;:i essa consrrw;:ao que chamamos 'sexo' esteja tao cul­
wralmenre construida como o genero; de faro, ralvez, sempre foi genero, com a conseqi.iencia de que
a disrin<;iio entre sexo e genero nao exisre como tal" (Ibidem, p. 40). Ou, mais adiante: " [.. .] nao se
pode fazer referencia a urn corpo que niio renha sido desde sempre interpretado mediante significados
culrurais; porranto, o sexo poderia niio cumprir as condi<;6es de uma facricidade anaromica pre-discur­
siva. De faro, ver-se-a que o sexo, por defini<;iio, sempre foi genero" (Ibidem, p. 41)
" Essa quesriio se rornou fundamental para Buder apos a publica<;iio de Gender Trouble, quando a aurora
foi acusada de possuir uma visao voluntarista (e.g. Copjec, 1994) que, em ultima instil.ncia, susrentaria
sua ideia de performarividade - a ral ponto que, no prefacio de Bodies that Matter, a aurora e obrigada
a conrra-argumenrar: "Como se eu rivesse susrenrado que os generos sao performarivos, isso significaria
que eu pensava que alguem se levanrava pela manha, examinava seu guarda-roupas ou algum espa<;o
mais amplo em busca do genero que queria escolher e o arribuia a si durante o dia para volrar a colo­
cl-Io em seu Iugar a noire. Semelhante sujeiro voluntario e instrumental, que decide sobre seu genero,
claramenre nao pertence a esse genero desde o comeo e nao se da conra de que sua exist€:ncia ji esd.
decidida pe/o genero" (2002 [1993], p. 12-13).
1 " Tanto a ideia que se cosruma designar vagamenre como "desnaruralizacyao do sexo" (e sua indiscernibili­
dade em rela<;iio ao genero) quanto aquela segundo a qual a idenridade e sempre resulrado da repeti<;iio
36
PRAZERES DISSIDENTES
0 genero e, portanto, "uma expectativa que acaba produzindo 0
fenomeno mesmo que antecipa", ou seja, a performatividade funcio­
na atraves de uma metalepse na qual "a antecipac;:ao de uma essencia
dotada de genero provoca o que coloca como exterior a si mesma"
(Butler, 200 1 [ 1990], p. 14- 1 5), com a condic;:ao de que tenhamos
em mente que "a performatividade nao e urn ato unico, mas uma
repetic;:ao e urn ritual que logra seu efeito mediante sua naturalizac;:ao
no contexto de urn corpo, entendido, ate certo ponto, como uma
durac;:ao temporal sustentada culturalmente" (Ibidem). Dentro dessa
economia analitica, os varios atos estilizados sao o que cria a ideia
de genero e, sem estes atos, o genero nao existe. "Genero e reconcei­
tualizado nao como algo que voce era, mas como algo que voce fez"
(Moore, 1 999, p. 1 54).
Se a base da identidade de genero e a repetirlio estilizada de atos
atraves do tempo, e nlio uma identidade aparentemente perfei­
ta, entlio, as possibilidades de transformarlio do genero devem ser
encontradas na relariio arbitrdria entre esses atos, na possibilidade
de umaforma diferente de repetirlio, na quebra ou repetirlio sub­
versiva desse estilo. (Butler, 1997a, p. 402)
Eis oquechamei de "politicadaperformatividade": urn tipo de subversao
que opera no e atraves do tempo social ou, em outras palavras, que busca
na cultura sua possibilidade de subversao - possibilidade, alias, que, para
Butler, parece existir desde o principio, em virtude do carater construido
do sexo/genero.'5 A saida construcionista e/ou relativista, portanto.
estilizada de atos buscam ser respostas especfficas aquilo que Buder, desde Gender Trouble e de forma
mais geral, chama de "metafisica da substincia", isto e, urn tipo de pensamento que performa uma
realidade substancial (material ou subjetiva) a ser conhecida sem que esse processo seja, ele proprio,
apresentado como performatico, mas sim como descritivo. A partir de Foucault, Paul Veyne (1998
[1971]) discute urn problema analogo, ao qual chama de "ilusao do objeto natural", ainda que sob urn
prisma completamente diferente e com safdas bastante diversas.
" Observe-se o paragrafo no final de Sujeitos desexolgenero/desejo, que reproduw em parte: "Se nao se pode
recorrer a uma 'pessoa', urn 'sexo' ou uma 'sexualidade' que escape a matriz e is relac;:6es discursivas e de
poder que efetivamente produzem e regulamentam a inreligibilidade desses conceitos, o que constitui a
possibilidade de inversao, subversao ou deslocamento reais dentro dos termos de uma identidade cons­
trufda? Que possibilidades existem em virtude do carater construfdo do sexo e do genera? [...] As rela�6es
de poder que inspiram as ciencias biologicas nao se reduzem facilmente, e a alian� medico-legal que surge
na Europa no seculo XIX gerou categorias fictfcias que nao se poderia prever. A propria complexidade do
37
homossexualidade I e l"'cu""lt,.u,_.rac______J
SEMI6TICO E A "FACETA HOMOSSEXUAL-MATERNA"
Algo parecemudarem Bodies thatMatter. A no<;:ao de performatividade
e aqui apenas urn ponto de partida. De fato, e esse conceito que permite
entrever a preocupa�ao com a constru<;:ao de uma matriz normativa de
sexo/genero a partir da qual se formam os corpos sexuados. Contudo,
ele e agora apenas 0 infcio da argumenta<;:ao, ja que:
Esta matriz excludente mediante a qual se formam os su;ez­
tos requer a produ�ao simultlinea de uma esfira de seres abjetos,
daqueles que nlio sao "sujeitos': mas queformam o exterior cons­
titutivo do campo dos sujeitos {. .] 0 abjeto designa aqui preci­
samente aquefas zonas "invivfveis': "inabitdveis" da vida social
que, contudo, estlio densamentepovoadaspelos que nlio gozam da
hierarquia de sujeitos, mas cuja condi�ao de viver baixo o signo
do "invivfvel" e necessdria para circunscrever a esfira dos sujeitos.
(2002 [1993], p. 19-20)
Acredito que essa no<;:ao de abje<;:ao ja estava suposta em Gender Trou­
ble, mas e a sua explicita<;:ao em Bodies that matterque nos permite ver as
contradi<;:6es a ela inerentes. De alguma forma, o conceito parece tentar
resolver o problema que foi construfdo por Butler quando da refuta<;:ao
de alguns pontos explorados pela te6rica Julia Kristeva.16
0 problema reside no fato de que, segundo a argumenta<;:ao de
Butler, Kristeva postula o Semi6tico como "fonte perpetua de sub­
versao dentro do Simb6lico" (Butler, 200 1 [1 990], p. 1 14), para, em
seguida, subordinar o primeiro ao ultimo. De modo mais espedfico,
a crftica parte da pressuposi<;:ao de que a aurora francesa instaura a
impossibilidade de inteligibilidade cultural da homossexualidade
feminina na medida em que a associa ao territ6rio heterogeneo da
multiplicidade libidinal pre-discursiva, isto e, ao Semi6tico - o que,
mapa discursivo que constr6i o gfnero parece oferecer a promessa de uma convergfncia involuntiria e
geradora dessas esrruturas discursivas e regulamemadoras. Seasficroes regu!dmentadorasdesexoe genero siio,
porsua vez, lugares designificados muito impregnados, entiio a multiplicidade mesma desua comtru(iio oferece
apossibilidade que se destrua seu estabe!ecimento univoco" (op. cit., p. 66, enfase adicional)
" Uma aren<;ao mais derida sobre a obra de Julia Krisreva - algo que extrapola os limites praricos deste
arrigo- poderia sugerir pomos imporrames para a nossa discussao e, em especial, para a ideia de abje­
l'ao. Cf. Krisreva (1982).
38
PRAZERES DISSIDENTES
"por urn !ado, designa a homossexualidade feminina como uma pd.­
rica culruralmente ininteligfvel, inerentemente psic6tica; por outro,
decreta a maternidade como uma defesa obrigat6ria contra o caos da
libido" (Ibidem, p. 1 19).
Minha suspeita e de que as duas auroras nao estao falando damesma
coisa e uma confusao de sentido ocorra em virtude da especificidade da
linguagem de Kristeva.'7 Sera possfvel que Kristeva afirme uma homos­
sexualidade pre-discursiva, mesmo considerando que a experiencia do
Semi6tico (imaginado como corpo materno ou multiplicidade original
da libido) nao permite a conforma�ao de nenhuma forma ou signi­
ficado? Como pode existir af uma homossexualidade que, como tal,
precisa de defini�ao previa para existir? Ha como existir algo tal qual
uma homossexualidade pre-discursiva nos termos aos quais Butler se
refere? Quando Kristeva fala em "faceta homossexual-materna", Butler
enrende homossexualidade feminina." Mas sera que, dentro do quadro
analftico de Kristeva, e possfvel essa substitui�ao sem os cuidados neces­
sarios? Ou, na verdade, a ultima expressao se refere a uma pd.tica sexual
que s6 pode se dar no ambito da inteligibilidade cultural e, portanto,
do Simb6lico, enquanto a primeira diz respeito a uma imagem ("uma
faceta'') construfda justamente para representar tudo aquilo que nao
pode ser representado ou significado? Homossexualidade nao estaria
se referindo, em uma determinada conven�ao te6rica e lexical, a uma
indistin�ao inclusive entre os sexos, mas que pode ser entendida como
17 Ao mesmo tempo influenciadas pelo esrrururalismo e com urn comprometimento em "sanar suas defi­
ciencias"
'
algumas te6ricas francesas iniciaram urn movimento de revisao da gramoitica analftica que are
enrao era urilizada para pensar o mundo social. Esse processo inclui uma recria<;ao das maneiras textuais
atraves das quais suas ideias eram expressas, ja que o problema da (niio)significa�ao era foco de constance
aten�ao e escrutfnio. 0 equfvoco de Butler em rela�o a Kristeva parece ser urn caso particular do faro
mais geral de que, em determinado momenro, "as leiruras anglo-americanas nao bariam com os novos
generos dos textos feministas franceses" (Strathern, 1992a, p. 72). Tal como observa Threadgold: "A teoria
da linguagem de Kristeva e lrigaray !ida litera/mente esca inclinada a manter as dicotomias, 0 logocemris­
mo e a metaffsica que elas, Derrida e os te6ricos da semi6tica social buscavam desconstruir. Na verdade,
enrreranro, sua pd.rica re6rica, que usa essas nos:6es metaforicamente, e. extraordinariamente poderosa.
Seus texros devem sec lidos como metdfora, jogo, paradoxo - e como subversao generica. Someme urn tipo
difereme de leirura pode prevenir a afirma�o da metaffsica da presen�a auaves de seus uabalhos" (1988,
p. 63 apud Strathern, 1992a, p. 72). De qualquer maneira, e significativo que, ap6s o trecho citado,
Butler escreva: "Ainda que Kristeva nao afirme explicitamente nenhuma das duas coisas, ambas sao con­
sequencias de suas opini6es sobre a lei, a linguagem e os impulsos" (Buder, op. cit., p. 1 1 9-120).
" Cf. Butler (2001 [1990), p. 1 18).
39
homossexualldadeI e .,lc,ul,_,t,.ur"a'------'
indistinc;:ao generalizada?'9 Homossexualidade como urn Iugar onde
os sexos nao podem se formar.'0 0 corpo materno e a lei paterna nao
seriam, portanto, apenas uma forma imagetica particular de colocar urn
problema que extrapola seus limites literais?"
Na teoria de Kristeva, a linguagempoeticae urn objeto de reflexao pri­
vilegiado porque e atraves dela que a teoricafrancesa reflete sobre situac;:6es
que nao podem serreduzidas a operac;:io tetica de predicac;:io e julgamento
que constitui, ao mesmo tempo, o ego transcendental como consciencia
operante e o ser significado por esse ego (Kristeva, 1 974, 1977). E essa
linguagem que a leva ate 0 "heterogeneo ao senso e a linguagem" que,
no entanto, nao se restringe a ela e representa uma modalidade de signi­
ficancia mais geral que e chamada de semi6tico.22
19 0 argumento ralvez fique mais claro se o contrapormos a disrincyio entre as relacy6es de mesmo sexo
(same-sex) e as relac;6es de sexo cruzado (cross-sex) construfda pela etnografia melanesia. Nesses estudos,
as duas relac;6es equivalem a dais "tipos" (ou momentos) distintos de socialidade, usando o genera
como idioma privilegiado para pensar a relac;ao e/ou diferenc;a entre as diversas entidades que consri­
tuem o cosmos (cf. Strathern, 2006 [ 1 988], 2001). No caso de Kristeva, a indistinc;ao entre linguagem
e cultura faz com que suas unidades sejam vistas menos como momenros de socialidade do que como
"modalidades de signific:l.ncia" ("modalitedesignifiance", cf. Kristeva, 1 977, p. 40-241) - o que acaba
par confundir e limitar sua argumentac;ao.
" Se, de alguma forma, a consrituic;ao de homens e mulheres e pensada como constiruic;ao da sociedade e
porque a relac;ao mesma entre mulheres e homens e o que estabelece a sociedade como "heterassexual".
Em outras palavras, a hererossexualidade e criada a partir de uma relacyio necessaria entre os sexos na
criac;ao da sociedade; e, como coraLirio, a homossexualidade s6 pode ser percebidacomo dissoluc;ao da
perspectiva do social e, assim, como ameac;a simb6lica e natural. Parece ser esse o tipo de metaforizac;ao
implfcita nas ideias como as de Monique Wittig, quando esta afirma: "0 que constitui uma mulher
e uma relac;ao social especffica com urn homem [...], uma relac;ao da qual as lesbicas escapam quando
repelem se transformar o seguir sendo heterassexuais" (2006 [ 1992], p. 43).
21
0 caso ralvez seja anilogo a confusio inerenre as leiruras da reoria de Levi-Strauss em As estruturas e,
assim, devemos ter em mente aquila que Favret-Saada adverre em relacyio a essa uriliza�o: "Em princfpio,
nao ha ligac;6es entre 'la-pensee-Levi-Strauss' (isto e, de Lacan, Thery ou Legendre) e o pensamento do
Levi-Strauss, aquele que tenta construir em sua obra" (2000, p. 17). Este texro de Favret-Saada ensaia (no
senrido positivo do rermo, ensaisticamente) uma das melhores argumentary6es em relar;:ao a apropriar;:ao
indevida e as crfticas pouco fundamenradas ao pensamento levi-straussianoarravesjustamente do rexto de
Rubin. Nao ganharfamos em compreensao se considerissemos o SemiOtico e o Simb6lico como possuin­
do o mesmo "valor sobretudo merodol6gico" que a dicoromia natureza-culrura possui em Levi-Strauss
(cf. Levi-Strauss, 2006 [1962], p. 275)? Parece que isso pode ser extraido de seu rrabalho apresenrado
no Seminario dirigido pelo estrururalisra frances em 1 974-75 no College de France e publicado no livra
L'identite. Deixe-se clara que nao esrou afirmando que os dais pares conceituais dizem a mesma coisa.
Gostaria apenas de elucidar que ambos podem ser consrruidos como instrumentos metodol6gicos de
sentido mais do que como dominios do ser ou realidades irreduriveis.
" "Esse heterageneo que encontramos nas primeiras ecolalias das crianc;as [...] ; esse heterogeneo que
achamos reativado como ritmos, enronac;6es, glossolalias no discurso psic6tico [...]; esse heterageneo
a significac;ao opera atraves deJa, apesar dela e par cima deJa, para praduzir na linguagem poetica OS
40
PRAZERES DISSIDENTES
Diante do problema politico que construiu parasi de tornar a homos­
sexualidade feminina inteligfvel culturalmente, Butler argumenta que
"o temor de tal 'regressao' a homossexualidade e, entao, urn temor de
perder por completo a san<;:ao e o privilegio culturais". E continua:
Ainda que Kristeva ajirme que essa perda designa um Lugar ante­
rior a cultura, nlio hd razlio para nlio considerd-la uma forma
cultural nova ou nlio reconhecida. Em outras palavras, Kristeva
prefere explicar a experiencia lisbica como um estado regressivo da
Libido anterior a acultura(liO em si do que aceitar 0 desajio que 0
Lesbianismo oferece a sua vislio restringida das Leis culturais pater­
namente sancionadas. (Op. cit., p. 121)
Para Butler, sair do problema colocado por Kristeva e postular o
lesbianismo nao como uma experiencia pre-discursiva, mas sim como
algo que, dentro do discurso, desestabiliza a cultura por estar "fora da
Legitimidade cultural, ainda dentro da cultura, mas culturalmente 'fora
da lei'" (Ibidem).
0 problema colocado pela leitura butleriana do argumento de
Kristeva a leva, portanto, a abolir o "fora da cultura" em favor de urn
questionamento que se da no plano mesmo da discursividade cultural.
E e por isso que, logo ap6s essa discussao, Butler retoma as aporta<;:6es
te6ricas de Foucault.
Valendo-se da mesma 16gica presente no procedimento analftico
que este autor usou para demonstrar como o discurso sobre a sexuali-
efeiros diros musicais, mas rambem de nao-senrido, que destroem nao somente a cren�a e a significa'rio
recebidas mas, em experiencias limite, a simaxe ela mesma, garamia da consciencia tetica (do objeto
significado e do ego) [...] a modalidade de signifidncia na qual niio se trata de semido ou significa,ao:
sem signa, ,sem predica'rao, sem objeto significado e, assim, sem conscifncia operance de urn ego trans­
cendental. Pode-se chamar essa modalidade de significancia semiotica'' (Kristeva, 1977, p. 232, enfase
original). Neste trecho e de fundamental importincia observar niio apenas o caniter da sua concep,ao
do semi6rico, mas tambem sua ressalva de que ele nao se restringe a linguagem poetica. De faro, Kris­
teva quer elaborar uma teoria (no semido de urn discurso analfrico) sabre os sistemas significames que
esreja atenta as crises do sentido, do sujeito e da estrurura (Ibidem, p. 224). E isso par duas raz6es: "de
urn lado, essas crises, Ionge de serem acidenres, constiruem uma verdade da fun'rio significance e por
conseqiiencia do faro social; de ourro, colocados em primeiro plano de atualidade polftica do seculo
XX, os fen6menos que eu rraro atraves da linguagem poetica mas quepodem assumir outrasformas no
Ocidente bem como em outras civilizatiies, nio ficariam fora das cifncias ditas humanas sem levantar
suspeira sabre sua erica'' (Ibidem, p. 224, enfase minha).
41
homossexualidadeI e .,lcu,l"'tu,_r,._a-----'
dade naturaliza o sexo como causa e nao como efeito do genero, Butler
coloca Kristeva em xeque:'3 "como sabemos que o objetivo instintivo
do discurso de Kristeva nao e uma C()llStruyaO do discurso mesmo?"
(Ibidem, p. 1 22).'4 Mas Butler nao estaria af tambem procedendo uma
confusao analftica ou uma reduyao da teoria foucaultiana?
0 VENTO FOUCAULTIANO QUE SOPRA DEHORS"
Nao ha algo tal qual uma exterioridade absoluta em Foucault? Nesse
autor, todaexperiencia e entendida como "a correlayao, em umacultura,
entre os campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjeti­
vidade" (Foucault, 2004a, p. 1 93).'6 0 saber e o mundo, cada estrato
ou formayao hist6rica, composto por singularidades a partir de uma
distribuiyao espedfica do visfvel e do enunciavel, sendo, neste sentido,
urn agenciamento pratico, urn dispositivo de enunciados e de visibili­
dades. E ja que "falar" e "ver" sao irredutfveis, como o agenciamento e
o ajustamento das duas formas sao assegurados de maneira variavel em
cada caso concreto?27
21
Esre recurso e explfciro em Buder: "0 marco foucaultiano prop6e uma maneira de resolver algumas
das dificuldades politicas e epistemologicas colocadas pelo conceito de Krisreva de corpo feminino"
(Ibidem. p. 125).
24 Ou, mais adiante: "Na medida em que Kristeva concebe esse instinto maternal como uma condir;:ao
onrol6gica previa a lei paterna, deixa de considerar uma maneira em que essa mesma lei bern pode ser
a causa do desejo que supostamente reprime" (Ibidem, p. 123).
" Muitas das considera,6es que fal'o aqui estao baseadas na argumenra,ao de Deleuze (2005 [ 1986])
a prop6sito da obra de Foucault. Desculpo-me, desde ja, pelo faro de reduzir a complexidade dessa
carreira inrelectual a umas poucas e desajeitadas palavras que, sem dU.vida, nao conseguem replicar sua
importJ.ncia.
" A distin,ao entre os eixos e, sobrerudo, metodol6gica e nao imp6e uma divisao tipologizante da rea­
lidade (Ibidem, p. 2I 4). De fato, Foucault privilegiou uma dessas dimens6es a cada momenta. Entre­
tanto, o poder j<i estava no saber e reciprocamente: os trfs eixos estabelecem rela'r6es de pressuposir;:ao
recfproca e nao de causalidade ou finalidade, como argumenta Deleuze (2005 [1986]).
" Ou seja, o plano de enunciados nao se confunde com as visibilidades. Eis porque, em Aspalavras e as
coisas, Foucault afirma que "sao irredutfveis urn ao outro: por mais que se diga o que se ve, o que se ve
nao se aloja jamais no que se diz, e por mais que se fa,a ver o que se esta dizendo por imagens, metafo­
ras, compara,6es, 0 Iugar onde estas resplandecem nao e aquele que OS olhos descortinam, mas aqueles
que as sucess6es da sinraxe definem" (1992 [1966], p. 25). E essa considera,ao que leva tambem ao
duplo foco do agenciamenro em Deleuze: "Inicialmente num agenciamento ha como que duas faces
ou duas cabel'as pelo menos. Os estados de coisas, estados de corpos [...]; mas tambem os enuncia­
dos, os regimes de enunciados [.. .] Os enunciados nao se contentam em descrever os estados de coisas
correspondences: sao, antes, como duas formula,6es nao-paralelas, formaliza,ao de expressao e forma-
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PRAZERES DISSIDENTES
Como a questao de saber se sao os enunciados que determinam as
visibilidades ou 0 inverso e teoricamente irresoluvel, 0 problema de
determinar o sentido da relas;ao causal entre os dois polos se torna, ele
mesmo, urn falso problema, no sentido deleuziano do termo. Neste
sentido, as determinas;6es do naturalismo e culturalismo sao apenas
duas faces do mesmo movimento. E, nao existindo nem nos enuncia­
dos e nem nas visibilidades algo que possa assegurar essa determinas;ao,
deve haver algo fora de ambos que possibilite que haja este e nao outro
arranjo entre aquilo que se fala e aquilo que se ve.
E essa a importancia do poder para Foucault. E o poder que asse­
gura a combinas;ao das duas pontas de todo e qualquer agenciamento.
Ele nao tern homogeneidade e se define pelos pontos singulares por
onde passa, define-se por singularidade, sendo coextensivo ao campo
social.28 0 conjunto das fors;as constitui o lado de fora dos enuncia­
dos e das visibilidades e e a partir desse Iugar de exterioridade que lhes
imputa uma determinada combinas;ao do real, isto e, produz formas;6es
ou estratos hist6ricos atraves de urn arranjo espedfico daquilo que se
pode ver e falar.
Mas e a subjetivas;ao? Born, se entendermos o pensamento pelo ato
que coloca, em suas diversas relas;6es possiveis, urn sujeito e urn objeto
(Foucault, 2004b, p. 234), uma hist6ria da verdade, seja ela qual for,
teria, entao, que focalizar as condis;6es nas quais se formaram ou se
modificaram certas relas;6es do sujeito com o objeto, uma vez que estas
sao constitutivas de urn saber possfvel. E foi nas problematizas;6es da
Antiguidade classica que Foucault encontrou a genese dessa questao:
0 cuidado de si, 0 afeto de si para si, e a formula geral de designas;ao
liza<;iio de conteudo, de tal forma que niio se faz jamais aquilo que se diz, niio se diz jamais aquilo que
se faz, mas nao se mente entretanto, nao se engana, agenciam-se somente signos e corpos como peyas
heterogeneas da mesma maquina'' (Deleuze e Pamer, 1 996 [1977], p. 86). A questiio da determina<;iio
e importancia dos polos (material e cultural, digamos) e, dessa forma, urn falso problema com 0 qual
Butler, no entamo, parece ainda estar as voltas no final da decada de 1990, como se pode perceber
atraves da sua polemica com a te6rica Nancy Fraser (cf. Butler [1997b] e Fraser [1997]).
" Foucault (1987 [1975]) defende, por exemplo, que as sociedades modernas podem ser ditas discipli­
nares. Mas, como adverte Deleuze (2005 [1986]), essa disciplina e urn tipo de poder, urna tecnologia,
que atravessa todos os tipos de aparelhos e instituis;6es para faze-los convergir de urn novo modo. A
disciplina niio pode ser idemificada nem com uma instituiyao e nem com urn aparelho espedficos.
Donde o aparente paradoxo: "o poder e local porque nunca e global, mas ele nao e local nem localizivel
porque e difuso" (Ibidem, p. 36).
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homossexualidade I e "'lcu,.,l_,tu"ra.___...J
de uma "tecnologia do eu" que toma o proprio sujeito por objeto de
conhecimento.29 A subjetividade como urn novo eixo da experiencia
ao mesmo tempo distinto e correlacionado com o saber e o poder: urn
cofuncionamento sem isomorfismo possivel, a simpatia de Foucault."
Como vimos, o poder e, para Foucault, o que resolve o classico pro­
blema filos6fico da determina<;:ao entre o que se fala e o que se ve na
(com)forma<;:ao do saber ou de uma forma<;:ao hist6rica. Mas e a subje­
tiva<;:ao que impede o saber e o poder de ficarem presos em urn impasse.
Deleuze formula muito bern esse problema: "se o poder e constitutivo
de verdade, como conceber urn 'poder da verdade' que nao seja mais
verdade de poder, uma verdade decorrente das linhas transversais de
resistencia e nao mais das linhas integrais de poder? Como 'ultrapassar
a linha'?" (Op. cit., p. 102).
0 /ado defora niio e um limitejixo, mas uma materia m6vel, com
movimentos, pregas e dobras que constituem urn lado de dentro, a sub­
jetividade: o lado de dentro do lado de fora, na expressao de Deleuze;
o dentro como opera<;:ao de urn fora pressuposto, como sua dobra, isto
" "A questao e determinar o que deve ser o sujeiro, a que condi<;6es ele esta submetido, qual o seu sta­
tus, que posi<;ao deve ocupar no real ou no imaginario para se rornar sujeiro legitimo deste ou daquele
conhecimento; em suma, rrara-se de dererminar seu modo de "subjeriva(jio"; pais este nao e eviden­
temenre o mesmo quando o conhecimento em paura tern a forma de exegese de urn texro sagrado, de
uma observa<;ao de hisroria natural ou de analise do comportamento de urn doente mental" (Foucault,
2004b, p. 235). Subjetiva<;ao, por urn !ado; objetiva<;ao, por ourro: pois se trata tambem de pensar
como uma coisa p6de se tornar objeto para urn conhecimento possivel, de que maneira foi problema­
tizada como objeto a ser conhecido e que parte dela propria foi considerada pertinente nesse processo.
E do desenvolvimento muruo da objetiva<;ao e da subjetiva<;ao que se originam os jogos de verdade.
"[E] preciso inverter o procedimento filosofico de remontar ao sujeito constiruinte, do qual se exige
dar conta do que pode ser rodo objeto de conhecimento em geral; trata-se, pelo contririo, de descer ao
esrudo das praticas concreras pelas quais o sujeiro e constituido na imanencia de urn campo de conhe­
cimento" (Ibidem, p. 237). Nao apenas a constirui<;ao do sujeiro como objero em rela<;ao a urn dado
campo do conhecimento, mas "a constitui<;ao do sujeiro como objeto para ele proprio: a forma<;ao dos
procedimentos pelos quais o sujeiro e levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como
campo de saber possivel" (Ibidem, p. 236).
" Quando de uma exposi<;ao oral nos encontros da Rede Abaete de Antropologia Simetrica, usei a ideia
de "simpatia" para sinalizar a ontologia simbiotica da obra de Foucault. A tecnologia analirica elabo­
rada por esse auror - nio apenas arraves dos rres eixos, mas rambem com conceiros como o de pd.tica
(Veyne, 1 998 [ 1 971]) - e uma maquina conrraidenriraria (e rambem contrarrepresentacional ou con­
rrafundacional) que acaba por consrruir urn plano de imanencia radical cuja unidade minima do real
nio pode ser ourra coisa que nao o agenciamenro. Nore-se que "as esrrururas esrio ligadas as condi(j6es
de homogeneidade, mas nio OS agenciamentoS. Q agenciamento C 0 co-funcionamento, C a 'simpatia',
a simbiose" (Deleuze e Pamer, 1 996 [1977], p. 65).
44
PRAZERES DISSIDENTES
e, uma rela<;:ao da for<;:a consigo, urn poder de se afetar a si mesmo, urn
afeto de si por si.31
Assim, Foucault nao exclui a possibilidade de urn "fora'', mas precisa
seu sentido como exterioridade absoluta em rela<;:ao a qualquer forma<;:ao
hist6rica, pois nao e saber formado, nem fun<;:ao formalizada. E, contudo,
pode ainda afirmar: "nada escapa ao saber". E esse o estratagema fou­
caultiano que bloqueia o problema que o conceito de abje<;:ao pretende
resolver.''
DE FATO... MAS NAO DE DIREITO
A leitura que empreende de Kristeva, feita a partir de urn problema
politico espedfico, acabou por levar Buder a desconsiderar urn plano
de exterioridade absoluta que, nem por isso, deixa de ser real; mas que
nao se confunde com urn real sobre o qual possamos falar ou ver, ou
seja, que nao e atual ou formalizado. 0 que minha argumenta<;:ao buscar
" A ideia de aferar-se a si mesmo e basrante enfarizada por Foucault quando da sua anilise da enkrateia:
«a enkrateia se caracreriza sobrerudo por uma forma ariva de domfnio de si que permire resisrir ou lurar
e garantir sua dominal'iio no terreno dos desejos e dos prazeres [.. .] A enkrateia, com seu oposro akra­
sia, se situa sobre o eixo da lura, da resistfncia e do combate: ela e comedimenro, tens3.o, 'conrinfncia'.
A enkrateia domina os prazeres e os desejos mas rem necessidade de lutar para vence-los" (Foucault,
1984, p. 6!). E, porranto, urn poder que se exerce sobre si dentro do poder que se exerce sobre os
ourros, pois, como dirava a filosofia clissica da Antiguidade, ningufm pode governar os ourros sem
antes aprender a governar a si mesmo e se constituir, assim, como urn ser virtuoso. A relas:ao consigo
como "prindpio de regulas:ao inrerna".
" 0 que tentei fazer, a partir de urn apanhado da obra de Foucault e de algumas sugest6es de Deleuze,
foi sugerir uma das maneiras atraves das quais esse dehors pode ser percebido ou postulado. E o proprio
Foucault (2006) quem, no campo da lirerarura e da linguagem, oferece-nos "a aberrura para uma lin­
guagem da qual o sujeito esra exclufdo, a revela,ao de uma incompatibilidade talvez irremediavel entre
a apari,ao da linguagem em seu ser e a consciencia de si em sua identidade" (p. 221). 0 "eu falo" como
contrario ao "eu penso" e usado para imaginar o proprio espa'o ficcional do Ocidente. E Foucault e
atento as dificuldades implfcitas nesse empreendimento: "Eis que nos deparamos com uma hiancia que
por muiro tempo permaneceu invisfvel para nos: o ser da linguagem so aparece para si mesmo com o
desaparecimento do sujeito. Como rer acesso a essa estranha rela,ao? Talvez por uma forma de pensa­
mento cuja possibilidade ainda incerta a cultura ocidental delineou em suas margens. Esse pensamento
que se mantem fora de qualquer subjetividade para dele fazer surgir os limires como vindos do exterior,
enunciar seu fim, fazer cinrilar sua dispers3.o e acolher apenas sua invisfvel ausfncia, e que ao mesmo
tempo se mantem no limiar de qualquer posirividade, nao tanto para apreender seu fundamento ou
justificativa, mas para encontrar o espa'O em que ele se desdobra, o vazio que !he serve de Iugar, a dis­
rancia na qual ele se consritui e onde se escondem suas certeza imediatas assim que ali se lance o olhar,
urn pensamento que, em rela,ao a interioridade da nossa reflexao filosofica e a posirividade do nosso
saber, consrirui o que se poderia chamar "o pensamenro do exterior" (Ibidem, p. 222).
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homossexualidade I e l.,cu""lt!!!u!.!!rac_______J
promover e, de certa forma, 0 alargamento da concepc;:ao do real que 0
restringe ou reduz ao seu !ado atualizado, por assim dizer. Essa reduc;:ao
e o que faz com que a apresentac;:ao da abjec;:ao seja sempre urn paradoxo:
por urn !ado, refere-se a esse campo de exterioridade absoluta; por outro
!ado, esta ela propria submetida aos contornos impostos pelas regras da
gramatica cultural que, tomando-a como limite interno, estabelece sua
propria legitimidade. Algumas vezes, pensa-se que "se a 'realidade' do
genero econstitufdapela performancemesma, entao, nao ha recurso para
urn 'sexo' ou 'genero' essencial e nao-realizado que as performances de
genero ostensivamente expressariam [e, portanto,] o genero do travesti
e tao completamente real quanto qualquer urn cuja performance satisfaz
as expectativas sociais" (Butler, 1 997a, p. 41 1); outras vezes, estando
fora da inteligibilidade cultural, os travestis sao (corpos) abjetos e, por­
tanto, encontram-se em "uma zona inabitavel ou inimaginavel do ser":
sao reais de fato (e isso o sabemos!), mas nao o sao de direito. E tudo se
passapelas existencias, como se o real pudesse ser reduzido ao seu estado
atualizado; como se as virtualidades, as insistencias, tivessem sim algo
de real, mas uma realidade subtrafda, a qual algo !he falta.''
Em umanotasobreo conceito de abjec;:ao na introduc;:ao de Bodies that
Matter, Butler esclareceque, "enquanto a no¢o psicanalfticade Verwerfong
traduzida como 'forclusao' produz a socialidade atraves do repudio de urn
significanceprimario que produz urn inconsciente ou, nateorialacaniana,
o registro do real, a noc;:ao de abjec;:ao designa umacondic;:ao degradada ou
exclufda dentro dos termos da socialidade" (op. cit., p. 20).34
Assim, se Butler afirma uma exterioridade da abjec;:ao em relac;:ao a cul­
tura e para, emseguida, reduzir seus contornose !he imputar uma forma,
so que negativamente, a partir do que ainda nao se e ou do que ja nao se
pode mais ser: abje�lio enquantopossiveL35 Considerada como possfvel, a
" Para a ideia de insistencia, cf. Deleuze (2006 [ 1 969]), principalmente a Terceira serie.
" Socialidade em Butler nao significa o mesmo que certos antrop6logos convencionaram chamar par este
nome, mas se confunde com sociedade. Para o termo socialidade e sua constrw;:ao como uma alternativa
analitica que nao sup6e a sociedade, cf. Ingold (I 996), Srrathern (I 988), Gel! (I 999).
" 0 passive! implicaria urn real ao qual lhe faltaria a existencia que, comudo, jaestadada como urn eventual
"viraser" no tempo, como possibilidadepredeterminada e destituida, no emamo, de realiza<;ao. Enquanto
ao virtual nada !he falta: "0 virtual nao se op6e ao real, mas somente ao atual. 0 virtualpossui umaplena
realidtde enquanto virtual. Do virtual, e preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de res­
sonincia: 'Rea.is sem serem arua.is, idea.is sem serem abstraros', e simb61icos sem serem fictfcios. 0 vinual
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  • 1. María Elvira Díaz-Benítez Carlos Eduardo Fígari orgs. PRAZERES DISSIDENTES
  • 2. Coordenação Maria Alzira Brum Lemos CONSELHO EDITORIAL Bertha K.Becker Candido Mendes Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama Dirigida por Maria Luiza Heilborn e Sérgio Carrara Coordenação Editorial Jane Russo e Anna Paula Uziel Produção Editorial Isabel Miranda CONSELHO EDITORIAL Albertina Costa Daniela Knauth Leila Linhares Barsted Maria Filomena Gregori Mariza Correa Parry Scott Peter Fry Regina Barbosa Richard Parker Roger Raupp Rios
  • 3. PRAZERES DISSIDENTES María Elvira Díaz-Benítez Carlos Eduardo Fígari Orgs.
  • 4. Copyright © CEPESC Editora Garamond Ltda. Caixa Postal:16.230 Cep:22222-970 Rio de Janeiro – Brasil Rua da Estrela,79 - 3º andar Rio comprido,RJ Cep:20251-021 Telefax: (21) 2504-9211 e-mail:editora@garamond.com.br www.garamond.com.br Projeto Gráfico de Capa e Miolo Anna Amendola | nitadesign Revisão de Originais Carmem Cacciacarro María Elvira Díaz-Benítez Tradução dos Originais em Espanhol Mauro Brigeiro Revisão de Textos Originais em Espanhol Malu Resende Editoração Eletrônica Luiz Oliveira | Estúdio Garamond P931 Prazeres dissidentes / María Elvira Díaz-Benítez, Carlos Eduardo Fígari (orgs).. - Rio de Janeiro : Garamond, 2009. 600 p. ; 14x21 cm (Sexualidade, gênero e sociedade) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7617-166-9 1.Sexo.2.Comportamento sexual.3.Homossexualismo.I.Díaz-Benítez, María Elvira. II. Figare, Carlos Eduardo. III. Série. 09-4158. CDD: 306.7 CDU: 392.61 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Apoio:
  • 5. Agradecemos aos professores Miguel Vale de Almeida e Osmundo de Araújo Pinho por participarem como debatedo- res do Seminário que deu origem a este livro e pelas valiosas sugestões. A Adriana Piscitelli, pelas contribuições conceituais. A Igor Torres, por batizar este livro de Prazeres dissidentes. Ao CLAM, por acreditar em nossa proposta, e especialmente a Anna Paula Uziel, cujo cuidado essencial evitou que o trabalho de edição se tornasse caótico. María Elvira e Carlos
  • 6.
  • 7. SUMÁRIO PREFÁCIO 11 Adriana Piscitelli INTRODUÇÃO SEXUALIDADES QUE IMPORTAM: ENTRE A PERVERSÃO E A DISSIDÊNCIA 21 Carlos Fígari e María Elvira Díaz-Benítez BUTLER, A ABJEÇÃO E SEU ESGOTAMENTO 31 Vitor Grunvald CORPOS E INTERAÇÕES DE FRONTEIRA GOZOS ILEGÍTIMOS: TESÃO, EROTISMO E CULPA NA RELAÇÃO SEXUAL ENTRE CLIENTES E TRAVESTIS QUE SE PROSTITUEM 71 Larissa Pelúcio NEGOCIANDO DESEJOS E FANTASIAS: CORPO, GÊNERO, SEXUALIDADE E SUBJETIVIDADE EM HOMENS QUE PRATICAM CROSSDRESSING 93 Anna Paula Vencato DIVERSIDADE SEXUAL E TROCAS NO MERCADO ERÓTICO: GÊNERO, INTERAÇÃO E SUBJETIVIDADE EM UMA BOATE NA PERIFERIA DO RIO DE JANEIRO 119 Leandro de Oliveira
  • 8. PERFORMANCES DE GÊNERO EM UM“CLUBE DE MULHERES” 147 Marion Arent RELAÇÕES IMPURAS: SEXUALIDADE, CORPOS E SUJEITOS NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA 171 Regina Coeli Machado e Silva ENCONTROS AO AVESSO SILÊNCIO, SUOR E SEXO: SUBJETIVIDADES E DIFERENÇAS EM CLUBES PARA HOMENS 207 Camilo Albuquerque de Braz SEXO COM PROSTITUTAS: UMA DISCUSSÃO SOBRE MODELOS DE MASCULINOS 237 Elisiane Pasini DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES SOBRE OS TERRITÓRIOS DE“PEGAÇÃO”EM BELO HORIZONTE 263 Alexandre Eustáquio Teixeira DESEJOS PROIBIDOS PRÁTICAS DA PROSTITUIÇÃO FEMININA 289 Sandra Maria Nascimento Sousa SOCIABILIDADES FLUIDAS ENTRECRUZANDO DIFERENÇAS: MULHERES E (HOMO)SEXUALIDADES NA CIDADE DE SÃO PAULO 309 Regina Facchini
  • 9. FORA DO ARMÁRIO... DENTRO DA TELA: NOTAS SOBRE AVATARES, (HOMO)SEXUALIDADES E EROTISMO A PARTIR DE UMA COMUNIDADE VIRTUAL 343 Carolina Parreiras “TU É RUIM DE TRANSA!”OU COMO ETNOGRAFAR CONTEXTOS DE SEDUÇÃO LÉSBICA EM DUAS BOATES GLBT DO SUBÚRBIO DO RIO DE JANEIRO 373 Andrea Lacombe NA PONTA DO PÉ: QUANDO O BLACK, O SAMBA E O GLS SE CRUZAM EM SÃO PAULO 393 Isadora Lins França JOGOS PROIBIDOS NO VENTRE DO PAI. DESEJOS E PRÁTICAS DE INCESTO CONSENTIDO 425 Carlos Eduardo Fígari DE“PEDÓFILO”À“BOYLOVER”: ILUSÃO OU UMA NOVA CATEGORIA SEXUAL QUE SE ANUNCIA? 455 Alessandro José de Oliveira BDSM DE A A Z: A DESPATOLOGIZAÇÃO ATRAVÉS DO CONSENTIMENTO NOS“MANUAIS”DA INTERNET 481 Bruno DallaCort Zilli A PORNOGRAFIA“BIZARRA”EM TRÊS VARIAÇÕES: A ESCATOLOGIA,O SEXO COM CIGARROS E O“ABUSO FACIAL” 509 Jorge Leite Jr
  • 10. POLÍTICAS E PRAZERES DOS FLUIDOS MASCULINOS: BAREBACKING, ESPORTES DE RISCO E TERRORISMO BIOLÓGICO 537 Esteban Andrés Garcia RETRATOS DE UMA ORGIA: A EFERVESCÊNCIA DO SEXO NO PORNÔ 567 María Elvira Diáz-Benítez
  • 11. 11 PREFÁCIO Adriana Piscitelli1 A coletânea Prazeres dissidentes, resultado de recentes estudos realizados por jovens pesquisadores latino-americanos, é expressão da efervescência da produção sobre o tema na região, particularmente no Brasil. Com- binando criatividade e reflexão crítica, os artigos consideram recortes ainda pouco pesquisados ou contemplados em novas abordagens. Uma multiplicidade de práticas sexuais transgressivas emerge da análise de produções literárias e fílmicas, espaços de lazer e de encontro, segmentos da indústria do sexo, sites da web. O exame das relações que têm lugar nesses espaços contribui para per- ceber aspectos relevantes nas configurações da sexualidade em diferentes cenários. Um desses aspectos é a íntima vinculação entre convenções de erotismo e mercado de consumo. Outro é a indiscutível importância adquirida pela web na disseminação dessas convenções, amplificando a circulação de informações e as interações relacionadas com diferentes estilos de erotismo e também como instrumento pedagógico: afirmando a normalidade e promovendo a integração social entre pessoas que têm a fantasia de vestir-se com roupas do sexo oposto; ensinando a “ser gay”, a praticar o BDSM (bondage, disciplina, dominação e submissão) de 1 Professora do Departamento de Antropologia Social e do Doutorado em Ciências Sociais da Universi- dade Estadual de Campinas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU/UNICAMP.
  • 12. 12 homossexualidade e cultura maneira “sadia e não criminosa”; a tornar-se um “boy-lover correto”. Nes- ses procedimentos, a web aparece como uma mídia central no processo de dotar de legitimidade estilos de sexualidade estigmatizados. Contudo, o aspecto mais relevante é que essas análises apontam para diferentes deslocamentos de limites nas fronteiras da sexualidade e, ao mesmo tempo, para a recriação de hierarquias, desigualdades e exclusões. Em 2003, o Centro Latino-americano de Pesquisas sobre Sexualida- de, recentemente criado, e o PAGU organizaram o Seminário Sexuali- dades e Saberes, Convenções e Fronteiras. Nesse encontro se teceram reflexões sobre o estado do campo de estudos e foram esboçadas ideias para superar alguns impasses na produção sobre o tema. Um dos princi- pais pontos levantados referiu-se às fundamentais contribuições do arca- bouço teórico de Foucault, mas também a problemas relativos a aspectos teóricos e a efeitos políticos da utilização desse referencial, levantados por autores/as feministas e vinculados ao movimento homossexual. Um segundo ponto foi a relevância concedida à separação analítica entre gênero e sexualidade, considerada útil para mapear a “estratifica- ção sexual” presente nas sociedades modernas, que estabelece limites entre práticas sexuais “boas” e “más”, inferiorizando indivíduos e grupos vinculados às últimas. Contudo, percebíamos que algumas linhas dos estudos “queer” ignoravam gênero, enquanto abordagens sobre hete- rossexualidades consideravam a articulação entre gênero e sexualidade, mas em uma perspectiva na qual o gênero aparecia frequentemente aprisionado em uma distinção binária. A sexualidade tendia a apare- cer atravessada por uma fronteira clara entre homens e mulheres, e se estabelecia uma continuidade entre “sexo” e gênero (Piscitelli, Gregori e Carrara, 2004). Finalmente, um terceiro ponto, levantado por Luis Fernando Dias Duarte (2004), foi a relevância das negociações em curso a respeito da “normalização” de práticas sexuais que foram objeto de intensa rejeição no passado, como o adultério, a masturbação, a pornografia, a pros- tituição, a sodomia e o homoerotismo. Entretanto, tais negociações articulavam-se simultaneamente à “criminalização” de outras práticas, como a violência sexual ou a pedofilia. Nós perguntávamos então sobre as convenções que compõem essa normalização e a criminalização de
  • 13. PRAZERES DISSIDENTES 13 práticas que, embora envolvam questões relativas ao direito da livre expressão da sexualidade, provocam intensas reações. Os textos reunidos neste livro contribuem para pensar sobre como essas questões foram sendo elaboradas durante os anos transcorridos desde a realização daquele seminário. Os autores que consideramos clássicos no tratamento do erotismo e da sexualidade, Georges Bataille e Michel Foucault, continuam sendo revisitados, em um movimento no qual se esboçam novas leituras críticas. A vinculação entre erotis- mo e transgressão realizada por Bataille, percebida inclusive, no plano êmico, como violação (Leite Jr, neste volume) está presente nos textos. Contudo, às problematizações relativas à maneira como esse autor pensa a relação entre transgressão, noções de passividade e atividade, femini- no e masculino, adiciona-se um relevante questionamento. Trata-se de como Bataille formula a noção do erotismo, situando-o no interior da matriz heterossexual, dificultando pensar o erótico fora da heteronor- matividade (Braz, neste volume). Paralelamente, os capítulos que prestam atenção a “outras” diferen- ças na constituição das convenções eróticas evocam questionamentos adicionais a esses autores. Refiro-me à maneira como (não) trataram da interseção entre diferenças. Essa problematização foi formulada por feministas vinculadas aos estudos pós-coloniais. No que se refere a Foucault, nos termos de Ann Stoler (1997), na centralidade concedida pelo autor à sexualidade, tende-se a apagar que, nos discursos coloniais, questões vinculadas à sexualidade são frequente- mente metonímicas de relações mais amplas, envolvendo nações, classes sociais, códigos raciais e de gênero. Segundo a autora, os discursos sobre a sexualidade colonizaram e apropriaram-se de complicados conjuntos de relações de poder. Todavia, seria equivocado pensar que essa proble- matização se circunscreve apenas às realidades das colônias. De acordo com Anne McKlintock (1995), o dispositivo da sexualidade teria sido elaborado em um marco no qual o imperialismo e a invenção da raça foram aspectos fundamentais da modernidade industrial ocidental. Nas metrópoles urbanas, essa invenção se tornou central para a autodefi- nição das classes médias e para o policiamento das “classes perigosas”, definidas a partir da raça, sexualidade, gênero e classe social. Mas, ao
  • 14. 14 homossexualidade e cultura privilegiar a sexualidade como o princípio inventado da unidade social, o autor teria esquecido que, no mesmo contexto, uma elaborada ana- logia entre raça e gênero se tornava um tropo organizador para outras formas sociais. Bataille, por sua vez, não concedeu destaque nenhum a “outras” diferenças. Nas formulações desse autor, nas quais as relações envolvidas no erotismo são assimétricas, a diferença é basicamente de gênero. Essa percepção é contestada nos estudos contemporâneos sobre a produção da sexualidade nos “lugares do desejo” que se formam na confluência entre culturas, nas relações estabelecidas no marco do colonialismo europeu e em suas atualizações no mercado global do sexo atual (Jolly e Manderson, 1997). Nesses estudos, que refletem sobre como o erotismo “Ocidental” está constituído pelos encontros com os “outros” raciais e culturais não europeus, a diferença é vinculada à relação com essas alteridades (Stoler, 1997). As conexões entre erotismo e transgressão são traçadas levando em conta tensões relacionadas com raça e gênero no marco das desi- gualdades coloniais e na recriação e atualização dessas intersecções em diferentes contextos, considerando as diversas lógicas (de assimilação ou integração racial) que neles primaram (Piscitelli, 2008). Considerando esse conjunto de leituras, os textos que neste livro levam em conta as interseções entre diferenças apontam para uma ins- tigante diversidade em termos de convenções de erotismo. Conhecidas noções de transgressão vinculadas a gênero e raça aparecem basicamente acionadas no marco da indústria do sexo, na utilização de casais inter- raciais, integrados por mulheres louras e homens negros, na pornografia “hétero” brasileira (Díaz-Benítez, neste volume). Fora desse âmbito, o valor concedido à diferença racial nas convenções do erotismo está presente na análise de alguns espaços frequentados por homens que se relacionam com outros homens. Contudo, esse valor aparece como contingente e situacional (França, neste volume). Esse aspecto, e o fato de a “cor/raça” aparecer como uma distinção pouco relevante em espaços urbanos frequentados por mulheres que se relacionam com mulheres (Facchini, neste volume), sugerem uma série de perguntas. É possível pensar que, nesses cenários voltados para o “homoerotismo”, a
  • 15. PRAZERES DISSIDENTES 15 “raça” ocupa o lugar de um tensor libidinal oculto (Perlongher, 1987)?2 Ou seria talvez rentável considerar que ter atravessado as fronteiras da “heterossexualidade” constitui uma transgressão suficiente, a ponto de tornar a distinção “racial” secundária nas conformações das convenções eróticas? O certo é que no jogo de diferenças acionado nesses encontros sexuais, o gênero, articulado com a classe social e idade/geração, aparece como elemento significativo no estabelecimento de trocas eróticas. Contudo, variantes que exacerbam ou atenuam traços masculinos ou femininos ou os combinam com matizes diferenciados, corporificados por pessoas que se pensam como homens, mulheres, travestis, “crossdressers”, reme- tem a noções nas quais o gênero não deriva do “sexo” nem aparece em formas binárias e tampouco se deixa vincular linearmente com noções como hetero ou homossexualidade, passividade ou atividade. Nesse sentido, é importante destacar que vários capítulos mostram com nitidez que compreender os significados assumidos contextual- mente pelo gênero requer pensar essa diferenciação, não independen- temente, mas em relação com a sexualidade. Isto é evidente quando as performances de gênero são consideradas como expressão da conduta sexual, como no (aparentemente) desconcertante episódio em que uma travesti se pensa como heterossexual por gostar de transar com homens (L. Oliveira, neste volume). A relação entre sexualidade e gênero apa- rece, porém, com particular força, quando o gênero constitui o lugar a partir do qual outras diferenciações são inscritas nas falas a respeito da sexualidade. Vale como exemplo, entre mulheres que amam mulheres, as gradações entre “perua” e “sapatão”, que remetem a relações de poder permeadas por diferenciações de classe, cor/”raça” e geração (Facchini, neste volume). Gênero adquire essa centralidade na produção de convenções eróti- cas e, nesses cenários, essa distinção também é crucial para hierarquizar, inclusive excluir, categorias de pessoas. A valorização da hipermascu- linidade em espaços frequentados por homens que se relacionam com homens (Braz, neste volume) associada ao desprezo em relação aos gays afeminados, “bichas, miguxos” (Parreiras, neste volume); a valorização 2 Agradeço a Maria Filomena Gregori ter chamando minha atenção para este ponto.
  • 16. 16 homossexualidade e cultura do grau de feminilidade que dota um/a crossdresser de “passabilidade”, permitindo que chegue a “passar por mulher” (Vencato, neste volume), a rejeição às “masculinizadas” em círculos de mulheres que se relacio- nam com mulheres (Facchini, neste volume) parecem remeter, em uma linguagem de gênero, a uma contínua recriação da inferiorização e ao preconceito no campo da sexualidade. Como se a ruptura com conven- ções culturalmente disseminadas de aceitabilidade e “normalidade” fosse parte de um processo indissociável da produção de categorias modelares e de novas normatizações. Esse jogo é perceptível no traçado de novas fronteiras, no âmbito de práticas sexuais em processo de “normalização” e também no daquelas que, criminalizadas ou não, tendem a ser situadas nos espaços inferiores da estratificação sexual (Rubin, 1984). O mecanismo recorrentemente utilizado por adeptos de diversas práticas sexuais estigmatizadas é con- testar as definições psiquiátricas/patológicas da sua sexualidade, crian- do para si um nicho “sadio” produzido através de relações que situam “outros” nas formas tidas como patológicas. A linguagem da saúde e da vida, da doença e da prevenção é utilizada para delinear contornos que separam os “barebackers” dos praticantes do homoerotismo “seguro” (García, neste volume). Praticantes do BDSM tentam afirmar-se como “sadios” utilizando a noção de consentimento e mediante essa noção se distanciam de outros aderentes a essas práticas (Zilli, neste volume) e também de outras categorias de pessoas estigma- tizadas, como os pedófilos. Estes últimos, por sua vez, evocando argu- mentos que os grupos de interesse pedófilos desenvolveram ancorados em pesquisas acadêmicas (Hacking, 1999), traçam fronteiras entre os “boy-lovers corretos”, que amam crianças, se excitam com elas, mas controlam seus desejos, e os “verdadeiros pedófilos”, aqueles que as violentam tendo relacionamentos sexuais com elas (A. Oliveira, neste volume). Fora desse mecanismo, aparecem apenas aqueles cujas práti- cas sexuais estão sujeitas a um grau de coerção que tem como efeito a ausência de condições de aparição e visibilidade e impedem qualquer possibilidade de formular uma identidade “positiva”, como é o caso dos envolvidos no incesto consentido (Fígari, neste volume). No marco desse contínuo deslocamento de limites, a indústria do
  • 17. PRAZERES DISSIDENTES 17 sexo ocupa um lugar singular. O processo de relativa normalização da prostituição parece retirá-la do “lugar de tolerância” a ela concedida no passado (Foucault, 1997), concedendo-lhe visibilidade, assim como à pornografia, na superposição entre o mercado do sexo e do entrete- nimento. As atividades na indústria do sexo ainda ocupam um lugar ambíguo e, no âmbito literário, a mistura de sexualidade com dinhei- ro não deixa de remeter a valorizações negativas, à ideia do grotesco (Machado e Silva, neste volume). Contudo a visibilidade obtida por essas atividades, alimentada pelos coletivos de trabalhadoras/es do sexo, vem contribuindo para que sejam consideradas como trabalho (Lim, 2004; McKlintock, 1996) em um setor específico de atividade (Agus- tin, 2005). Esse processo legitimador tende a removê-las do lugar da infração e do clandestino. Como entender então a persistência do seu apelo erótico? O conjunto de capítulos que, neste livro, tratam da indústria do sexo oferece sugestivas indicações para se pensar na resposta a essa pergunta, mostrando as convenções eróticas acionadas para atrair consumidores e os aspectos que mobilizam estes últimos. A atração aparece ora vin- culada a práticas que objetificam corpos masculinos para o “consumo” feminino, erotizando o deslocamento de posições de gênero, como sucede nos “clubes das mulheres” (Arent, neste volume). A atração eró- tica também aparece vinculada a práticas sexuais “extremas”, seja por seu caráter grupal, encontros orgiásticos (Díaz-Benítez, neste volume) ou por envolver contatos sexuais tidos como particularmente sujos e/ou humilhantes (Leite Jr, neste volume). Pode tratar-se do consu- mo de sexo comercial com seres que, como as travestis, corporificam o embaralhamento de códigos de gênero e sexualidade (Pelúcio, neste volume). Os textos destinados à prostituição heterossexual na qual os consumidores são homens apontam, porém, para outro tipo de trans- gressões que é sugestivo. Nesses casos, os “clientes” aparecem, majoritariamente, como con- sumidores de práticas sexuais “banais”. A eventual “fantasia” que os conduz ao consumo do sexo comercial está longe de materializar-se na forma de práticas sexuais “extremadas”, embora elas também existam (Passini, neste volume; Sousa, neste volume). Ao considerar o apelo
  • 18. 18 homossexualidade e cultura erótico envolvido nessas práticas, vale levar em conta os argumentos de Elizabeth Bernstein (2001). A autora situa o sexo comercial no contexto amplo das transformações post-industriais da cultura e da sexualidade, chamando a atenção para a tensão existente entre as percepções do sexo como recriação e o impulso normativo a um retorno à noção do sexo vinculado ao amor romântico. Bernstein considera que, na reconfiguração da vida erótica, a pro- cura de intimidade sexual é facilitada pela sua localização no merca- do. Entretanto, na leitura da autora, que se distancia dos argumentos “compensatórios” formulados por autores como Anthony Giddens ou Julia O’Connell Davidson, não se trata de suprir “necessidades” afeti- vo–sexuais, que só podem ser plenamente satisfeitas em relações íntimas no espaço privado do lar. A questão é que muitos clientes, para os quais o encontro sexual mediado pelo mercado é moral e emocionalmente preferível aos “casos não profissionais” devido ao efeito esclarecedor/deli- mitador do pagamento, consideram as formas de atividade sexual não doméstica como as mais satisfatórias. A transgressão está vinculada à recusa à normatividade do sexo, vinculado ao amor romântico e não a práticas sexuais específicas. Finalmente, este livro traz uma bem-vinda reflexão sobre o signifi- cado de estar no campo para quem realiza etnografias em espaços de encontros eróticos, em uma linha de discussão ainda pouco trabalhada no Brasil (Lacombe, neste volume). Pensar sobre a relação entre a cor- poralidade do antropólogo e a dos/as demais sujeitos/as da pesquisa em espaços nos quais corpo e erotismo adquirem centralidade e nas necessárias negociações realizadas pelo/a pesquisador/a abre caminhos promissores para novas discussões sobre a ética na realização de etno- grafias sobre sexualidade. Concluindo, uma última observação. Além de dialogar com a biblio- grafia “clássica”, particularmente sobre sexualidade e erotismo, nos capí- tulos que compõem este volume se estabelece uma interlocução com a produção internacional que tende a ser vinculada aos “queer studies” e com os trabalhos brasileiros sobre sexualidade. Alguns autores, como Peter Fry (1982) e Nestor Perlongher (1987), que, estudando “homosse- xualidades”, se tornaram referências “clássicas” neste campo de estudos.
  • 19. PRAZERES DISSIDENTES 19 Quando este último autor morreu, em 1992, acompanhado por apenas um punhado de amigos e colegas, sua etnografia sobre os michês no centro de São Paulo era uma referência basicamente para (as poucas) pessoas que estudavam “homossexualidades” ou prostituição. Hoje, o valor conferido a essa obra é amplamente reconhecido no campo da sexualidade em sentido amplo, e não apenas no Brasil. A esses trabalhos se somam os de outros autores, mais recentes, como Luis Fernando Dias Duarte (2004); Maria Filomena Gregori (2003); Maria Luiza Heilborn (2004); Sérgio Carrara e Júlio Simões (2007), Richard Milskoci e Simões (2007) e muitos outros, citados em análi- ses centradas em recortes específicos. A recorrência dessas referências aponta nitidamente para a consolidação do campo. Contudo, neste efervescente espaço de diálogo, a interlocução com referenciais teóricos feministas ainda é restrita. Ao mesmo tempo, a atenção concedida a recortes “heterossexuais” (fora do âmbito da indústria do sexo) é com- parativamente menor. Esta observação é apenas um convite para novas reflexões, especulando sobre o avanço na produção de conhecimento que pode resultar do confronto com essas linhas teóricas e com recortes empíricos pouco contemplados neste campo cujo crescimento é demons- trado, de maneira brilhante, pelos capítulos deste livro. REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS AGUSTIN, Laura. The Cultural Study of Commercial Sex. Sexualities, v. 8(5), p. 618-631, 2005. BERNSTEIN, Elisabeth. The Meaning of Purchase. Desire, Demand and the Com- merce of Sex. Ethnography, v. 2 (3), p. 389-420, 2001. CARRARA, Sérgio e SIMÕES, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetó- ria da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos PAGU (28), Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/Unicamp, p. 65-101, 2007. DUARTE, Luis Fernando Dias. A sexualidade nas ciências sociais: leitura crítica das con- venções. In: PISCITELLI, Adriana; GREGORI, Maria Filomena e CARRARA, Sérgio (Orgs.). Sexualidades e saberes, convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond. 2004. FOUCAULT, Michel. Historia de la sexualidad. La voluntad de saber. Trad. Ulises Guiñazú. México: Siglo XXI, 1977. FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no
  • 20. 20 homossexualidade e cultura Brasil. In: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 87-115. GREGORI, Maria Filomena. Relações de violência e erotismo. In: Cadernos PAGU (20), Cadernos PAGU (28), Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/Uni- camp, p. 87-120, 2003. HACKING, Ian. The Social Construction of What? Cambridge: Harvard University Press. 1999. HEILBORN, Maria Luiza. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igua- litário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. LIM, Lin Lean. El sector del sexo: la contribución económica de una industria. In: OSBORNE, Raquel [Ed.] Trabajador@s del sexo. Derechos, migraciones y tráfico en el siglo XXI. Barcelona: Bellaterra, 2004. MANDERSON, Leonore and JOLLY, Margaret. Sites of Desire, Economies of Pleasure. Sexualities in Asia and the Pacific. Chicago: The University of Chicago Press, 1997. McKLINTOCK, Anne. Imperial Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest. New York: Routledge, 1995. _______. Sex Workers and Sex Work. Social Text, n° 37. A Special Section Edited by Anne McKlintock Explores the Sex Trade, 1993. MISKOLCI, Richard e SIMÕES, Júlio Assis. Apresentação do dossiê: sexualidades disparatadas. Cadernos PAGU (28), Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/ Unicamp, p. 9-18, 2007. PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo: Brasi- liense, 1987. PISCITELLI, Adriana, GREGORI, Maria Filomena e CARRARA, Sérgio. Apre- sentação de Sexualidades e saberes, convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 9-39. PISCITELLI, Adriana. As fronteiras da transgressão: a demanda por brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Texto apresentado no Workshop: Debates contemporâ- neos sobre raça, etnicidade, sexualidade e gênero, USP, março de 2008. RUBIN, Gayle. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of Politics of Sexuality. In: VANCE, Carol (Org.). Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality. Nova York: Routledge, 1984. STOLER Ann. Educating Desire in Colonial Southeast Asia: Foucault, Freud and Imperial Sexualities. In: MANDERSON, Leonore e JOLLY, Margaret (Ed.). Sites of Desire, Economies of Pleasure. Sexualities in Asia and the Pacific. Chicago: The Uni- versity of Chicago Press, 1997, p 27-48.
  • 21. INTRODUc;Ao SEXUALIDADES QUE IMPORTAM: ENTRE A PERVERSAO E A DISSIDENCIA Carlos Figari e Maria Elvira Diaz-Benitez Em julho de 2007, em pleno inverno porto-alegrense, varios pesqui­ sadores se reuniram no grupo de trabalho "Corpos, desejos, prazeres e praticas sexuais 'dissidentes': Paradigmas te6ricos e etnogrificos", durante a VII Reuniao de Antropologia do Mercosul. Desse encontro surgiu este livro. Nosso objetivo era discutir e analisar formas de produzir conheci­ mento sobre praticas sexuais e er6ticas que desafiam os efeitos politicos da abjer;:ao/repugnancia, ou seja, aquelas que se situam nos campos de impossibilidade significante, mas que com a sua existencia precisamente corroem, todavezque denunciam, o ponto de nao-suturadassexualidades instituidas. Consideramos que, no Ocidente, sexo e genero - assim como sujeito e rar;:a- funcionam como conceitos performativos que se transfor­ mam em substancias ficdcias, unidades que inicialmente s6 tern realidade linguistica, isto e, 0 sexo nao e natural, tern uma hist6ria, urn momento de surgimento e e produzido culturalmente, assim como 0 genero. A sexualidade seria urn dispositivo de poder da modernidade oci­ dental que a colocaria em urn dominio separado do resto da natureza humana, configurando o sexual como urn campo espedfico e diferen- 21
  • 22. homossexualidade I e �lcu=.elt=ur,_a__� ciado na vida das pessoas e produzindo a ideia de identidades sexuais apoiadas em tipos diferenciais de praticas (Halperin, 1991). Esta no<;:ao, tributaria de Foucault (1977), pretende explicar que a lei nao deve atuar sabre urn sujeito que a precede, mas sim e a lei que inventa o objeto que regula. Assim, por exemplo, nao existiriam homossexuais antes das reguJa<;:oes cuiturais, medicas e juridicas que OS avaliassem como seresabjetos (como tampouco existiriam os heterosse­ xuais antes da existencia dos homos, constituindo uma dupla semantica em urn mesmo ato). Dessa maneira, na linguagem, a gramatica cor­ poriza os generos e os comportamentos er6ticos em termos da matriz heterossexual obrigat6ria e os faz inteligfveis. E no momenta da gera­ <;:ao da ffi<triz heterossexual, da sexualidade "normal", que se definem as sexualidades perifericas como seu correlato abjeto, aquila que nao e para que o outro seja (Butler, 2005). 0 outro subalterno nao s6 e formulado em termos repressivos/proi­ bitivos, isto e, aquila que nao se deve ou nao se pode, mas basicamente como genese da alteridade sabre a qual repousa minha propria genese. Necessito de urn outro que afirme minha existencia na nega<;:ao da sua propria. Meu duplo nao e urn outro per se, mas sim meu reflexo. 56 posso enxergar-me no outro diferente. Em sua/minha repressao, eu o crio. Nao esta fora de mim, porque constitui meu exterior constituti­ vo. Por isso, nao pode "se igualar", deve seguir sendo a ausencia que marca minha presen<;:a no mundo, daf o antagonismo e a violencia da diferen<;:a. Como afirma Irigaray (1998) acercadas diferen<;:as de genera, as mulheres sao 0 sexo que nao e urn; por esta razao, 0 masculino lhes oferece urn nome para assim poder tamar o seu Iugar. A abje<;:ao tampouco e urn mero estado de coisas e posi<;:6es de sujeitos; ela basicamente suscita emo<;:6es relacionadas as valora<;:6es que dependem dos particulares contextos de produ<;:ao de sentidos do antagonismo. Dessa maneira, a emo<;:ao basica em rela<;:ao ao abjeto e a repugnancia. Segundo Nussbaum (2006), o repugnante nos situa no campo do asco, daquilo que remete ao putrido da morte, ao nao-ser e a falta de humanidade. 0 asco e a forma primitiva de rea<;:ao humana ao abjeto, e representa o sentimento que qualifica a separa<;:ao das fronteiras entre homem e mundo, entre sujeito e objeto, entre interior e exterior. 22
  • 23. PRAZERES DISSIDENTES Ele e rudo o que deve ser evitado, separado e ate eliminado: o perigoso, 0 imoral e o obsceno entram na demarca<;:ao do fetido e do repugnante. Como exterior (porem interior) constitutivo, a abje<;:ao aparece como fundante do ser humano, ou seja, como aquilo que o constitui a partir da sua cisao com o mundo natural. 0 ternor a natureza supoe o ingresso na cultura e o sustento da linguagem (Kristeva, 1 988). A ourra associa<;:ao da repugnancia refere-se ao animal no humano, ainda que nao desligado do abandono do estado de natureza, aquela natureza que devemos esquecer sob o pre<;:o da civiliza<;:ao. A anima­ lidade repugna e esteticamente atribui beleza, pois quanto mais perto de urn animal se esteja, mais feios seremos e menos saberemos a que podemos nos ater. Quanto mais disforme for uma imagem em rela<;:ao ao canone de beleza masculina ou feminina, mais a identifica<;:ao se fad. em termos animais. E ainda, entre a animalidade e a deformidade surge o monstruoso. A monstruosidade impacta em face do ourro nao-natural, quase animal e absolutamente disforme. 0 monstruoso e o animal nao s6 desagradam, cheiram mal, irritam, como tambem atemorizam. 0 animal e a nao-civiliza<;:ao, 0 fim da sociedade. E ali que acaba a seguran<;:a ontol6gica: de que vivemos em urn mesmo mundo. Representa o fim da sociedade entendida como a presun<;:ao, em termos de Schutz, de que "eu acredito o que todos acre­ ditam". Distinguir-se do estado de natureza implica o pudor, avergonha mas, especialmente, a repugnancia. 0 abjeto, de acordo com Mary Douglas ( 1991), tambem polui, con­ tagia, deve ser evitado; o que e considerado sujo ou suscetfvel de polui<;:ao nao e outra coisa senao a perturbadora "materia fora do lugar". Assim, muitos comportamentos foram institu!dos como "fora do lugar", na ilegitimidade, como sexualidades perifericas, especialmente a partir da voca<;:ao taxon6mica da medicina, encontrando fios de transmissao - e retroalimenta<;:ao - em outros aparelhos ideol6gicos, como a famllia, a escola, a religiao, a imprensa, a literatura, os manuais de sexualidade, de moral e boa conduta etc. Como exemplo vamos considerar a constru<;:ao das sexualidades perversas no Brasil, especialmente no campo da Medicina Legal da primeira metade do seculo XX. Afranio Peixoto ( 1931), seguindo a clas- 23
  • 24. homossexualidadeI e .,!cu.,lt,.,ur"'-a__.....J sifica�ao feita em Psychopathia Sexualis pelo psiquiatra alemao Richard Von Krafft-Ebing, ordenou as patologias psiquiatricas considerando a "degenera�ao" como urn estado originario psic6tico, pautado em dese­ quilibrios perversos. Por suavez, subdividiu adegenera�aoem anomalias da inteligencia, da emotividade e da vontade, "pervers6es sexuais", filias, fobias, obsess6es e impulsos. Em classifica�6es posteriores, adegenera�ao - e portanto as pervers6es sexuais - enquadra-se nas "personalidades psicopaticas" (Figari, 2007). Para Flamfnio Favero (1 937), as pervers6es sexuais sao mais amplas que uma categoria psiquiatrica, considerando-as "modifica�6es qualitati­ vas ou quantitativas do instinto sexual, ora no que se referea finalidade do ato, ora no que concerne ao objeto", derivadas tanto de urn vfcio como de urn fator congenito ou patologia mental. Dentro das "pervers6es sexuais", trabalhos brasileiros em Sexologia assinalaram uma multiplicidade inacabavel de priticas que compor­ tam a sexualidade anomala. 56 para lembrar algumas: frigidez (falta do instinto sexual na mulher, derivado, as vezes, das praticas lesbicas); anafrodisia (diminui�ao ou falta do impulso sexual masculino); necro­ filia (sexo com cadaveres); narcisismo (deleite na autocontempla�ao); riparofilia (atra�ao sexual por mulheres sujas, menstruadas ou gravi­ das); mixoscopia ou voyeurismo; erotismo (excesso de desejo sexual); masturbariio ou onanismo; exibicionismo; Jetichismo; sadismo; maso­ quismo; bestialismo ou zoojilia; lubricidade senil. Outras sexualidades perifericas sao as "invers6es sexuais" ou "homossexualismo" (masculino ou uranismo, e feminino ou sajismo). As topoinversoes: felariio (suc�ao do penis pela mulher) e cunilingua (suc�ao dos genitais femininos pelo homem). As cronoinversoes: jovens que amam idosos ou idosas (segundo os autores, o esquema contririo seria natural). Finalmente, apareciam no registro brasileiro a cromoinversiio (desejo acentuado por pessoas "de cor") e a etnoinversiio ou preferencia sexual por pessoas de outras ra�as (Gomes, 1 959). A constitui�ao desexualidades normais e perifericas denota uma falsa unidade que fragmenta o corpo, uma desuniao que reduz sua erogenia. Por isso, quando aparecem outros corpos ou priticas sexuais/er6ticas que desafiam a l6gica desta gramatica, sao produzidos, como vimos, 24
  • 25. PRAZERES DISSIDENTES dois efeitos politicos: 0 primeiro e a considew;:ao de nao-humanidade, 0 segundo, a abje<;:ao e a repugnancia. Varias dessas praticas sao tratadas oeste livro. Nao obstante, sob outra lente, que denominamos "dissidencia''. Precisamente, com o titu­ lo Prazeres dissidentes, procuramos englobar pesquisas antropol6gicas a respeito de praticas e experiencias no campo do sexo-genero que operam nas fronteiras do er6tico/er6geno normativo: como sao geradas, como sao vivenciadas, enfim, como existem alem da abje<;:ao. Uma parte dessas sexualidades dissidentes existe no campo da mera experiencia, isto e, simplesmente sao vividas e compartilhadas a partir de uma consciencia pratica (nao-reflexiva em termos cognitivos). Embora possahavero reconhecimento de urn Nos, isto nao e determinante de uma identidade coletiva, senao de certa comunhao de interesses e praticas: os T-loverse as experiencias de incesto consentido como exemplos, nestacole­ tinea, trabalhados por Larissa Pelucio e Carlos Figari, respectivamente. Outras, pelo contrario, parecem anunciar-se como novas categorias sexuais: boy/overs, barebackers, discutidos oeste volume por Alessan­ dro de Oliveira e Esteban Garcia. Varias dessas praticas se apoiam na intensifica<;:ao da a<;:ao sexual em si mesma, em razao de suas condi<;:6es hist6ricas de apari<;:ao: o BDSM (bondage, disciplina, domina<;:ao, submissao, sadismo e masoquismo), por exemplo, na analise de Bruno Zilli oeste volume. Para Foucault (2000), as praticas que poderiam ser geradas no cam­ po das sexualidades perifericas constituem verdadeiros "laborat6rios de experiencias sexuais", nos quais se estabelecem jogos, tens6es e deslo­ camentos na utiliza<;:ao de qualquer parte do corpo como instrumento sexual, e adissemina<;:ao do prazer para alem do sexual. Enfim, a obten­ <;:ao de uma "des-sexualiza<;:ao do prazer" procurando novas e criativas formas de deleite a partir de objetos ou partes do corpo nao-usuais, descartando a cren<;:a de que a foote de todo prazer e sexual e que, por sua vez, este s6 deve proceder do fisico, por exemplo, as Sexy Smokers ou.tabagismo como transgressao erotica, ou mesmo as praticas de abuso focial que Jorge Leite Jr. aqui explorara. Foucault manifestava tambem urn grande entusiasmo pelo impre­ visivel das rela<;:6es que poderiam chegar a ser criadas no mundo das 25
  • 26. homossexualidade I e l�cu.,lt,.,ur"'-a___j sexualidades perifericas. Talvez ja antecipasse que o seculo XXI traria com ele urn espa�o-laborat6rio-chave para corporalidades virtuais, generos fronteiri�os e encontros interditos - a Internet, ambiente de desejo circulante no qual os pr6prios sujeitos dissidentes constroem-se, inventam-se, discutem-se, interpelam-se, identificam-se: crossdressers, rede pesquisada por Ana Paula Vencato; homens que gostam de outros homens e que no ciberespa�o elaboram diversas apresenta�6es de si, como veremos no artigo de Carolina Parreiras, e os ja mencionados homens que gostam de crian�as, analisados porAlessandro de Oliveira, serao postos em cena (ou em tela) neste livro. Algumas praticas sex'uais dissidentes, mesmo construidas sobre a transgressao, estao longe de ser universos desregrados. Pelo contrario, normas, valores e conven�6es, por vezes hierarquicas, organizam sua existencia. Alguns artigos desta coled.nea analisam os limites de tais dissidencias, mostrando experiencias nas quais se gestam e se afirmam modelos de masculinidade dominante, por momentos heteronormativa: os encontros entre frequentadores da Vila Mimosa e mulheres que se dedicam a prostitui�ao, no artigo de Elisiane Pasini; as orgias de filma­ gens pornograficas etnografadas por Maria Elvira Diaz-Benitez; o clube de mulheres da pesquisa de Marion Arent, em que diversos "garanh6es" fazem strip-tease; os encontros er6ticos entre "homens de verdade" com travestis e gays praticantes de crossdressing em uma boate do suburbio carioca trabalhados por Leandro de Oliveira. Como agem estilo, aparencia, ra�a, classe, idade e performances de genero na conforma�ao de subjetividades e como pesam em intera�6es, economia da sedu�ao, trocas e circula�ao do desejo em circuitos nao­ normativos? Varios autores deste volume se debru�am nesta questao: Isadora Fran�a tern como cenario urn samba GLS, e Camilo Braz, em clubes de sexo para homens que exercem praticas homoer6ticas em Sao Paulo. Somando o desafio da interseccionalidade, encontram-se os trabalhos de Regina Facchini e Andrea Lacombe, pesquisadoras que atravessam variadas redes de mulheres "lesbicas", "fanchas", "enten­ didas", "sapatonas", entre outras classifica�6es que se estabelecem na articula�ao de diferen�as, condutas er6ticas, identidades, conven�6es sociais e corporalidades. 26
  • 27. PRAZERES DISSIDENTES Oissidencia significa tambern deslocamento: de Iugar, como os terri­ r6rios de "pega<;:ao" que AlexandreTeixeira analisa em Belo Horizonte; de zonas "legftimas" e por momentos de papeis sexuais "esperiveis", como acontece entre as travestis e seus clientes na observa<;:ao de Larissa Pelucio; de roupa, posturas corporais e experiencias de genero, como os ja mencionados homens que se vestem de mulher analisados por Anna Paula Vencato. Podemos afirmar que embora tais comportamentos resultem per­ turbadores para a sociedade em geral enquanto sexualidades dissidentes que se afirmam em sua vivencia, abrindo urn Iugar no mundo e uma possibilidade de cleverser, eles resultam francamente intoleraveis quando aparecem como possibilidade de novos tipos de rela<;:6es, parafraseando Foucault (2000), "intensas e satisfat6rias". Marcelo Mirisola, protagonista do unico artigo destacoletaneadedi­ cado a narrativa ficcional, tambem e urn deslocador. Suas paginas estao carregadas de praticas sexuais "estereis", corpos e sujeitos caracterizados pela deformidade que, como Regina Coeli Machado e Silva neste volu­ me afirma, ganhamvisibilidade, sobretudo, por meio de "perturba<;:6es" consideradas impuras, infames e malditas. Outras narrativas compoem este volume, aquelas que emanam da memoria de mulheres que se dedicaram a prostitui<;:ao na zona do baixo meretrfcio, em Sao Luis, nas decadas de 1960 e 1970, e entenderam com seus corpos o papel social a elas atribufdo, como exp6e o artigo de Sandra Sousa. Finalmente, o artigo de abertura destacoleranea, de autoria de Vitor Grunvald, explora o debate sobre a abje<;:ao em uma aguda constru<;:ao te6rica. Aponta uma contiguidade Ia onde parece haver urn polo em oposi<;:ao, a abje<;:ao nao como o oposto a cultura, mas como urn polo de prodw;:ao possfvel - "uma 'polftica da abje<;:ao' como 'polftica do virtual', mais do que uma polftica da performatividade e do reconhecimento"; e a abje<;:ao como insistencia nao situada em urn Iugar de exterioridade absoluta, mas sim incorporada como uma l6gica nao-disjuntiva (no sentido de Kristeva), nem dialetica, nem simb6lica; Ia onde flui o devir nao em urn� outra coisa, mas sim em uma multiplicidade. :E isto que oferecemos a comunidade: aos dissidentes, aos nao-dissi­ denres e aqueles que transitam em dissidencias contingenciais, lfquidas 27
  • 28. homossexualidadeI e l.,cu.,lt,.,ur_,._a---' e fluidas. Mediante tres artigos: "Retratos de uma orgia", "Silencio, suor e sexo" e "Diversidade sexual e trocas no mercado er6tico" de Diaz­ Benitez, Braz e L. Oliveira, respectivamente, cujas pesquisas tiveram como base a observas:ao direta em contextos de interas:ao sexual, esta coletanea pretende tambem cooperar com urn campo que, pelo menos no Brasil, nao constitui ainda urn tema de interlocus:ao consolidado (Oliveira, 2007): a "etnografia das pd.ticas sexuais". Para a comunidade academicabrasileira, especialmente a antropol6gi­ ca, este livro pretende trazer uma contribuis:ao para o fortalecimento de uma linha tematica atualmente candente: o estudo de corpos e generos de fronteira, encontros_interditos, sociabilidades fluidas, jogos sexuais proibidos e narrativas obscenas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BUTLER, Judith. Cuerpos queimportan. Sobre los limites materiales y discursivos del "sexo". Buenos Aires: Paid6s, 2005. DOUGLAS, Mary. Pureza y Peligro: un anilisis de los conceptos poluci6n y tabu. Madrid: Siglo XXI, 1991. FAVERO, Flamfnio. Medicina legal. Sao Paulo: Livraria Martins, 1937. FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas: interpelas:oes, experiencias e identidades er6ticas no Rio de Janeiro (seculos XVII ao XX). Coles:ao Origem. Belo Horiwnte: UFMG; Rio de Janeiro: lUPER], 2007. FOUCAULT, Michel. Historia de l:t Sexualidad. La voluntad de saber. Trad. Ulises Guifiazu. Mexico: Siglo XXI, 1977. ____,. Um didlogo sobre osprazeresdo sexo - Nietzsche, Freud e Marx - Theatrum Philosoficum. Sao Paulo: Landi, 2000. GOMES, Helio. Medicina legal. 4. ed. Sao Paulo/Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959. HALPERIN, David M. Sex before Sexuality: Pederasty, Politics and Power in Clas­ sical Athens. In: Duberman, M; Vinicius, M.; Chuancey, G. (Orgs.). Hidden from History. Reclaming the Gay and Lesbian Past. New York: Penguin Books, 1991. IRIGARAY, Luce. Ser dos. Tradus:ao de Patricia Wilson. Buenos Aires: Paid6s, 1998. KRISTEVA, Julia. Poderes de l:t perversion. Buenos Aires: Catilogos, 1988. LACAN, Jacques. Escritos. Madrid: Siglo XXI, 1998. NUSSBAUM, Martha. El ocultamiento de lo humano. Repugnancia, vergiienza y ley. 28
  • 29. PRAZERES DISSIDENTES Buenos Aires: Katz, 2006. OLIVEIRA, Leandro. Ernografia das praticas sexuais: problemas e perspectivas na pesquisa antropol6gica. Paper apresenrado najornada Conjunta de alunos dosprogra­ mas PPGSA (IFCS), PPGAS (Museu Nacional) e PPGSCP (lUPER]). 3 de dezembro, GT Sexualidades, Praticas e Saberes, 2007. PEIXOTO, Afrinio. Medicina legal. Psicopatologia forense. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931. 29
  • 30.
  • 31. BUTLER, A ABJE<;:AO E SEU ESGOTAMENTO Vitor Grunvald' Niiosetrata desentiro desejo comofolta interior, nem de retardar oprazerparaproduzir um tipo de mais-valia exteriorizdvel mas, ao contrdrio, deconstituir um corpo sem 6rgiios intensivo, Tao, um campo de imanencia onde nadafolta ao desejo e que, assim, niio mais se relaciona com criterioa/gum exterior ou transcendente. [. .} 0 campo de imanencia ou plano de consistencia deve ser construido; ora elepode se-lo emformaroes sociais muito difi­ rentes, epor agenciamentos muito difirentes, perversos, artis­ ticos, cientijicos, misticos, politicos, que niio tem o mesmo tipo de corpo sem 6rgiios. Deleuze e Guattari em 28 de novembro de 1947- Como criar para si um corpo sem 6rgiios. ' Mestre em Amropologia Social pelo Programa de Pos-gradua<;ao em Antropologia Social do Museu Nacio­ nal, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 0 trabalho de elabora<;ao deste arrigo teve etapas mais ou menos delimitadas. A primeira versao foi testada no curso Familia, gmero e sexualid&ie ministrado pela Prof' Adriana Vianna no Museu Nacional da UFRJ. Uma deforma<;ao posterior ocorreu a prop6sito da sua exposi<;ao na VII Reuniao de Antropologia do Mercosul no Grupo de Trabalho Corpos, desejos, prazeres e prdticas sexuais dissidentes: paradigmas teoricos e etnogrdjicos, coordenado par Maria Elvira Di:iz-Benitez e Carlos Eduardo Figari. Par fim, o artigo foi revisto e deformado para o presente livro. Agrade�o a todos que de alguma forma conrribufram com criricas e sugesr6es as vers6es preliminares. Os erros e exageros sao, e clara, de minha inreira responsabilidade. Sem mais, lembro do Nucleo Abaete de Anrropologia Simerrica, coordenado por Marcia Goldman e Eduardo Viveiros de Castro. A imporrancia das conversas e discussoes possibiliradas por essa rede de anrrop6logos nio sera nunca suficienremenre frisada e, sem a sua conrribui­ 'lao, esre artigo cerramenre nao seria possivel. Ao Iongo do rexro, as traduc;6es, quando necess<irias, foram realizadas por mim; as referencias is paginas sao da edi<;ao consultada e listada na bibliografia. 31
  • 32. homossexualidade I e "-lc,.,ul_,tu.,ra,_____j Este artigo e o resultado parcial de uma explora�ao longa e con­ tinuada sobre a obra de Judith Butler. Em urn primeiro momento, era o contraponto entre o que chamei de "politica (e/ou teoria) da performatividade" e "politica (e/ou teoria) da abje�ao" que balizava analiticamente a minha argumenta�ao. Nao obstante, o colocar-novas­ quest6es-em-uma-mesma-superfkie levou a outros problemas e, com isso, este trabalho e completamente deformado e deformante, se visto a partir de sua primeira proposta ou mesmo do efeito produzido sobre o conceito que lhe era focal, a ideia de abje�ao. lnicialmente inclinado a ativar o pensamento de Butler para dele extrair outras partfculas e superficies, fui eu mesmo corrompido e, afetado pelo trabalho analftico, passei a funcionar menos como engenheiro do que como cirurgiao. 0 efeito disso foi, segundo vejo, menos uma adapta�ao ou complementa�ao do que urn processo de minora�ao e deforma�ao, tanto da obra em questao quanto do conceito aludido.' Acredito que amputa�6es na teoria da performa­ tividade foram levadas a cabo pela teoria da abje�ao. 0 que busca­ mos e minorar tambem a segunda, desterritorializar seu conceito focal para que ele passe a dizer mais ou menos do que dizia antes. De alguma maneira, trata-se de dobrar recursivamente a abje�ao. Como pensar a abje�ao a partir dela mesma e nao mais a partir da "norma socionatural"? "Com o totemismo e com a histeria e a mesma coisa". Frase de abertura do dissico Totemismo hoje. Mais adiante o autor precisa: A compararao [da histeria} com o totemismo sugere uma relarao [. .} entre as teorias cientijicas e o estado da civilizarao, na qual o espirito dos estudiosos intervem tanto ou maisdo que o dos homens 2 Como minora<;ao, refiro-me ao processo mediante o qual "procedimentos cirllrgicos" operam o blo­ queio dos cemros de poder que marcam determinada obra e impedem a produc;ao de urn pensamemo como mulriplicidade: "nem o historico, nem o eterno, mas o imempesrivo" (Deleuze e Bene, 1979, p. 96). Trata-se de dar urn "tratamento menor" a obra de Buder, o que, como esclarece Goldman (1994, p. 32), "significa buscar 0 que pode haver de mais interessantenuma obrapara umadeterminada epoca (a nossa); rearivar para o presente algumas ideias, algumas intui<;6es as vezes, que podem funcionar como linhas de fuga e de forc;a para nossos impasses comemporaneos". Note-se que esse procedimemo vibra na mesma simonia das imui<;6es merodologicas de Foucault quando da percep<;ao de sua obra como uma "historia das problemarizac;6es" - ainda que esse pensador frances tenha sempre estado "muiro Ionge de propor urn verdadeiro merodo" (idem, 1994, p. 30 e 1999). 32
  • 33. PRAZERES DISSIDENTES estudados: como se, ao abrigo da objetividade cientijica, osprimei­ ros procurassem inconscientemente tornar os segundos - doentes mentais ou pretensos "primitivos" - mais diferentes do que 0 sao. (Levi-Strauss, 1986 [1962], p. 11) Urn cerro desequilfbrio dinamico das oposis;6es acionadas na cons­ trus;ao do objeto e do sujeito da antropologia ja parece estar presente no trecho citado. Seu carater contrarrelativista e inegavel. No entanto, a despeito disso, algumas aplicas;6es da teoria estrutural aos estudos feministas e de genero parecem ter produzido certo efeito naturali­ zante e estacionario.' E se inicio urn artigo dedicado a te6rica tida como principal candidata ao titulo de p6s-estruturalista dentro das discuss6es sobre genero e sexualidade lembrando as desventuras que 0 proprio estruturalismo teve no ambito destes estudos nao e a toa. Como foi frisado certa vez por Verena Stokke,< foram determinados "desenvolvimentos levi-straussianos" (e, em especial, o classico artigo de Ortner [ 1974]) que possibilitaram, atraves da universalizas;ao da diferens;a sexual, o surgimento da nos;ao de genero como sua contra­ partida sociocultural.5 Essa inflexao - a partir de urn certo modelo estrutural, mais do que do estruturalismo6 - promoveu 0 ajuste necessario ao estabelecimen­ to de uma base comum entre os estudos de genero e outras quest6es antropol6gicas a partir do paradigma que, no seculo XX, dominou ' Note-se o incomodo que Sherry Ortner (Deberr e Almeida, 2006) exprimiu recenremenre em rela�ao a seu arrigo IsFemaletoMale as Natureisto Culture?de 1 974: "Entao ele tern 34 anos - definitivamente eu nao o escreveria novarnenre, renho cerreza. Esrava sob o efeiro da onda do estruturalismo, embora eu nao esrivesse rotalmenre convertida ao estrururalismo, rinha muiro interesse [...]. Esre arrigo e urn objero morro arualmeme, mas ele tern uma historia... " (p. 441-442). • A observa�ao em questao foi feita por Srolcke quando de sua conferencia na 25• Reuniao Brasileira de Antrapologia. ' A ideia de que o genera devia ser emendido como a elabora�ao sociocultural dos significados atribuf­ dos as diferen�as naturais e biologicas entre homens e mulheres se rornou urn trufsmo na anrrapologia da decada de 1970 - recalcirranre era apenas a amrapologia biologica, que insisria em afirmar que, se nao o genera como urn rodo, pelo menos pane dele era determinada pelo sexo (Moore, 1988). ' Para uma 6tima discussao do estruturalismo, conferir o texro de Deleuze (1982 [1973]) Em que se pode reconhecer o estruturalismo? Neste artigo, parece claro como o estruturalismo carrega virtualmente os germes da sua sup<;ra�ao. A estrurura, ela mesma, devendo ser emendida nao apenas como multipla, mas como mulriplicidade, composta de rela�6es diferenciais e dos ponros singulares que lhes corres­ pondem: a estrurura como "realidade do virtual" (cf. Ddeuze, 2006 [1968], p. 294). 33
  • 34. homossexualidadeI e �>olc!!!ul"'tu.,_ra,._ ___� nossa disciplina: o modelo de vers6es distintas (de genero) de urn mundo natural (sexual) ou, para dizer de outra forma, o modelo do relativismo sociocultural/ Constitufdos esses polos relacionais como realidades distintas e irredutfveis, uma grande massa de estudos etno­ grificos apressou-se em afirmar divergentes "elaboras:6es culturais" da diferens:a sexual, apontando para o fato de que o sexo nao poderia determinar o genero.' A antropologia da mulher da decada de 1 970 abriu caminho e se metamorfoseou na antropologia de genero dos anos 1 980, enquanto 0 sexo, associado a natureza e a diferens:a sexual, permaneceu prati­ camente nao teorizado, ji que, assim entendido, se encontrava fora do escopo argumentativo da disciplina (Moore, 1 988). No entanto, "se os anos 1 970 e 1 980 estabeleceram que o genero existia, o fim dos anos 1 980 sugeriram que o sexo nao" (Moore, 1 999, p. 1 53).9 E mesmo que ainda nao se soubesse ao cerro a que o primeiro ter­ mo se referia, passou-se a questionar as bases universais e naturais ' A disrinr;iio entre natureza e cultura foi apenas urn dos idiomas atraves do qual a incomensurabilidade posrulada indigenamente no discurso euro-americano foi expressada no feminismo. A oposi'fao entre domesrico e publico proposta par Rosaldo ( 1974), bern como aquela entre reprodur;iio e produr;iio elaborada par Harris and Young (198I) aparecem, dentro da hist6ria do feminismo, como outras for­ mas de pensar a irredutibilidade tida como fundamental, a saber, a diferenr;a entre homens e mulheres. Yanagisako e Collier (I987) prop6em uma analise unificada dessas dicoromias com o parentesco a partir da ideia de que "o genera e o parentesco foram definidos como campos de esrudo pela nossa con­ cepr;iio nativa da mesma coisa, a saber, os faros biol6gicos da reprodur;iio sexual" (I 987). A reromada dos insights de Schneider par essas auroras niio e fortuita. Com seu esrudo sabre o parentesco ameri­ cana (I 968), ele parece ter sido urn dos primeiros a construir urn modele re6rico para pensar mundos irreduriveis uns aos ourros: o que faz da pessoa urn parente nio e o mesmo que faz de urn parenre uma pessoa; ou, para usarmos a formula srratherniana, "o que da disrintividade a parte ('o indivfduo') como uma pessoa rota! niio e o que faz da pessoa uma parte da sociedade como urn todo" (Srrathern, I 992b, p.8I). Assim, o indivfduo parece ser diferente da sociedade na medida mesmo em que ele funciona como culrura (invenr;iio) em uma sociedade percebida como natureza (convenr;iio). Para a discussiio de algumas dessas quest6es, mesmo que sob urn ourro prisma, cf. Wagner (I98 I , I99I). ' Tal como afirma Butler: "Originalmente com a intenr;iio de responder a afirmar;iio de que 'biologia nao e destine', essa distinr;iio serve ao argumento de que, independentemente da imaleabilidade biol6gica que parece ter o sexo, o gfnero se consrr6i culruralmenre: porranro, o genero nao e o resulrado causal do sexo nem rampouco e tao aparentemente fixo como ele" (Butler, 200 I , p. 38). ' Lembre-se o modus operandi de Yanagisako e Collier no texto aludido anteriormente: "aestrategia ana­ Ifrica e questionar 0 quanta essas diferenr;as [biol6gicas entre homens e mulheres] sao a base universal para as caregorias culturais de 'masculine' e 'feminine'" (I987, p. I 5). Ai, as auroras explicitamente argumenram "contra a no'fio de que varia'f6es inrerculturais nas caregorias e desigualdades de gfnero sao meramenre elabora'f6es e exrens6es diversas do mesmo faro natural" (ibidem). 34
  • 35. PRAZERES DISSIDENTES do segundo: "nern sexo, nern genero erarn rnais esd.veis!" (Moore, 1 999, p. 1 55).1" Nesse comexto, a vulgata foucaultiana segundo a qual o sexo e urn efoito de discursos que acabarn por naturalizar o que criarn, tornando-o como causa, e retornada e a distinc;:ao entre sexo e genero ja nao parece tao dara.11 Assirn, e aberto o carninho para a constituic;:ao do problema ao qual Butler oferece a sua teoria da perforrnatividade como resposta: quais as rnaneiras pelas quais o sexo se estabelece como a base natural sobre a qual a cultura age conforrnando o genero? ATEORIA DA PERFORMATIVIDADE COMO L6GICA DO RECONHECIMENTO As quest6es que inquietarn Butler sao diretarneme oriundas da experiencia polftica do ferninisrno tal como se constituiu pelo rnenos a partir de rneados do seculo XX. Como deixa claro ja no prirneiro capi­ tulo de Gender Trouble: A questiio das mulheres como sujeitos dofeminismo coloca a pos­ sibilidade de que niio haja um sujeito que exista "antes da lei': esperando a representariio na e por esta lei. Talvez o sujeito e a invocariio de um "antes" temporalsejam constituidospela lei como umfondamentojicticio de sua propria ajirmariio de legitimidade. (Butler, 2001 [1990], p. 35) '" A ambiguidade do rermo genera era reflerida pela diferen1:a de enfoques analfricos: "De urn !ado, gene­ ro e as relac;6es de g€:nero estavam relacionados com a divisao sexual do uabalho, com os papeis, rarefas e status sociais da mulher e do homem na vida social enrendida como urn rodo. De ourro, genera se rrarava de cren�as cosmol6gicas e valora�6es e princfpios simb6licos. Nao e diffcil imaginar que as duas concep�6es nem sempre eram concordances" (Moore, 1999, p. 152). " Carecemos de uma revisao crfrica das apropria�6es da reoria foucaulriana pela anrropologia preocupada com as quesr6es de sexo, genera e sexualidade. Alem do f:icil empobrecimenro do seu argumenro atra­ ves da vulgata "o sexo e construido historicamenre" e da constance reduc;ao da sua obra, dentro desse campo, as 'hisr6rias da sexualidade' - na verdade, ao volume I, A vontade de saber-, grande parte dos esrudos desenvolvidos nesse ambito pecam por nao seguirem as inrui�6es de Foucault seja em rela�ao a hisr6ria seja em rela�ao a subjeriva�iio. Para urn 6timo rrabalho sabre a concep�iio da hisr6ria em Foucault, cf. Veyne (1998 [1971]); para uma revisao de sua obra e uma excelenre discussao sabre a subjeriva�ao, cf. Deleuze (2005 [1986]), em especial o ultimo capitulo ''As dobras ou o !ado de fora do pensamento" e o anexo "Sobre a morte do homem e o super-homem". 35
  • 36. homossexualidade I e "'lc,.ult,u.,r,._a_____, A distin�ao entre sexo e genero que era tao fundamental em meados do seculo XX e que come�a a entrar em crise no final dos anos 1980 recebe, em Buder, urn tratamento radical, sua implosao." 0 genero deixa de ser apenas urn conceito que serve somente para marcar a inscri�ao cultural do significado em urn sexo predeterminado e passa a se referir tambem ao aparato de produ�ao do sexo mesmo: Como resultado, ogenero niio estdparaa culturacomo o sexo estdpara a natureza; 0 genero etambem 0 meio discursivolcultural mediante 0 quala "natureza sexuada"ou "um sexo natural"seproduz ese esta­ belece comopre-discursivo, previo a cultura, uma superflciepolitica­ mente neutralsobre a quala cultura age. (Ibidem, p. 40) Em urn artigo programatico de 1997, Buder retoma alguns insights da fenomenologia e evidencia a impord.ncia da ideia do "agente social como urn objeto mais do que urn sujeito dos atos constitutivos" ( 1997a, p. 402).13 A ideia do genero como o eftito de praticas reguladoras que buscam manter as identidades uniformes pela imposi�ao de urn sexo natural (e, por consequencia, da heterossexualidade compuls6ria) se une com o raciodnio segundo o qual determinados atos sao antes per­ formativos (isto e, criadores) do que constatativos (isto e, descritivos), originando a teoria da performatividade, a identidade de genero como "repeti�ao estilizada de atos".'4 12 "Se se impugna o caniter imutivel do sexo, quic;:i essa consrrw;:ao que chamamos 'sexo' esteja tao cul­ wralmenre construida como o genero; de faro, ralvez, sempre foi genero, com a conseqi.iencia de que a disrin<;iio entre sexo e genero nao exisre como tal" (Ibidem, p. 40). Ou, mais adiante: " [.. .] nao se pode fazer referencia a urn corpo que niio renha sido desde sempre interpretado mediante significados culrurais; porranto, o sexo poderia niio cumprir as condi<;6es de uma facricidade anaromica pre-discur­ siva. De faro, ver-se-a que o sexo, por defini<;iio, sempre foi genero" (Ibidem, p. 41) " Essa quesriio se rornou fundamental para Buder apos a publica<;iio de Gender Trouble, quando a aurora foi acusada de possuir uma visao voluntarista (e.g. Copjec, 1994) que, em ultima instil.ncia, susrentaria sua ideia de performarividade - a ral ponto que, no prefacio de Bodies that Matter, a aurora e obrigada a conrra-argumenrar: "Como se eu rivesse susrenrado que os generos sao performarivos, isso significaria que eu pensava que alguem se levanrava pela manha, examinava seu guarda-roupas ou algum espa<;o mais amplo em busca do genero que queria escolher e o arribuia a si durante o dia para volrar a colo­ cl-Io em seu Iugar a noire. Semelhante sujeiro voluntario e instrumental, que decide sobre seu genero, claramenre nao pertence a esse genero desde o comeo e nao se da conra de que sua exist€:ncia ji esd. decidida pe/o genero" (2002 [1993], p. 12-13). 1 " Tanto a ideia que se cosruma designar vagamenre como "desnaruralizacyao do sexo" (e sua indiscernibili­ dade em rela<;iio ao genero) quanto aquela segundo a qual a idenridade e sempre resulrado da repeti<;iio 36
  • 37. PRAZERES DISSIDENTES 0 genero e, portanto, "uma expectativa que acaba produzindo 0 fenomeno mesmo que antecipa", ou seja, a performatividade funcio­ na atraves de uma metalepse na qual "a antecipac;:ao de uma essencia dotada de genero provoca o que coloca como exterior a si mesma" (Butler, 200 1 [ 1990], p. 14- 1 5), com a condic;:ao de que tenhamos em mente que "a performatividade nao e urn ato unico, mas uma repetic;:ao e urn ritual que logra seu efeito mediante sua naturalizac;:ao no contexto de urn corpo, entendido, ate certo ponto, como uma durac;:ao temporal sustentada culturalmente" (Ibidem). Dentro dessa economia analitica, os varios atos estilizados sao o que cria a ideia de genero e, sem estes atos, o genero nao existe. "Genero e reconcei­ tualizado nao como algo que voce era, mas como algo que voce fez" (Moore, 1 999, p. 1 54). Se a base da identidade de genero e a repetirlio estilizada de atos atraves do tempo, e nlio uma identidade aparentemente perfei­ ta, entlio, as possibilidades de transformarlio do genero devem ser encontradas na relariio arbitrdria entre esses atos, na possibilidade de umaforma diferente de repetirlio, na quebra ou repetirlio sub­ versiva desse estilo. (Butler, 1997a, p. 402) Eis oquechamei de "politicadaperformatividade": urn tipo de subversao que opera no e atraves do tempo social ou, em outras palavras, que busca na cultura sua possibilidade de subversao - possibilidade, alias, que, para Butler, parece existir desde o principio, em virtude do carater construido do sexo/genero.'5 A saida construcionista e/ou relativista, portanto. estilizada de atos buscam ser respostas especfficas aquilo que Buder, desde Gender Trouble e de forma mais geral, chama de "metafisica da substincia", isto e, urn tipo de pensamento que performa uma realidade substancial (material ou subjetiva) a ser conhecida sem que esse processo seja, ele proprio, apresentado como performatico, mas sim como descritivo. A partir de Foucault, Paul Veyne (1998 [1971]) discute urn problema analogo, ao qual chama de "ilusao do objeto natural", ainda que sob urn prisma completamente diferente e com safdas bastante diversas. " Observe-se o paragrafo no final de Sujeitos desexolgenero/desejo, que reproduw em parte: "Se nao se pode recorrer a uma 'pessoa', urn 'sexo' ou uma 'sexualidade' que escape a matriz e is relac;:6es discursivas e de poder que efetivamente produzem e regulamentam a inreligibilidade desses conceitos, o que constitui a possibilidade de inversao, subversao ou deslocamento reais dentro dos termos de uma identidade cons­ trufda? Que possibilidades existem em virtude do carater construfdo do sexo e do genera? [...] As rela�6es de poder que inspiram as ciencias biologicas nao se reduzem facilmente, e a alian� medico-legal que surge na Europa no seculo XIX gerou categorias fictfcias que nao se poderia prever. A propria complexidade do 37
  • 38. homossexualidade I e l"'cu""lt,.u,_.rac______J SEMI6TICO E A "FACETA HOMOSSEXUAL-MATERNA" Algo parecemudarem Bodies thatMatter. A no<;:ao de performatividade e aqui apenas urn ponto de partida. De fato, e esse conceito que permite entrever a preocupa�ao com a constru<;:ao de uma matriz normativa de sexo/genero a partir da qual se formam os corpos sexuados. Contudo, ele e agora apenas 0 infcio da argumenta<;:ao, ja que: Esta matriz excludente mediante a qual se formam os su;ez­ tos requer a produ�ao simultlinea de uma esfira de seres abjetos, daqueles que nlio sao "sujeitos': mas queformam o exterior cons­ titutivo do campo dos sujeitos {. .] 0 abjeto designa aqui preci­ samente aquefas zonas "invivfveis': "inabitdveis" da vida social que, contudo, estlio densamentepovoadaspelos que nlio gozam da hierarquia de sujeitos, mas cuja condi�ao de viver baixo o signo do "invivfvel" e necessdria para circunscrever a esfira dos sujeitos. (2002 [1993], p. 19-20) Acredito que essa no<;:ao de abje<;:ao ja estava suposta em Gender Trou­ ble, mas e a sua explicita<;:ao em Bodies that matterque nos permite ver as contradi<;:6es a ela inerentes. De alguma forma, o conceito parece tentar resolver o problema que foi construfdo por Butler quando da refuta<;:ao de alguns pontos explorados pela te6rica Julia Kristeva.16 0 problema reside no fato de que, segundo a argumenta<;:ao de Butler, Kristeva postula o Semi6tico como "fonte perpetua de sub­ versao dentro do Simb6lico" (Butler, 200 1 [1 990], p. 1 14), para, em seguida, subordinar o primeiro ao ultimo. De modo mais espedfico, a crftica parte da pressuposi<;:ao de que a aurora francesa instaura a impossibilidade de inteligibilidade cultural da homossexualidade feminina na medida em que a associa ao territ6rio heterogeneo da multiplicidade libidinal pre-discursiva, isto e, ao Semi6tico - o que, mapa discursivo que constr6i o gfnero parece oferecer a promessa de uma convergfncia involuntiria e geradora dessas esrruturas discursivas e regulamemadoras. Seasficroes regu!dmentadorasdesexoe genero siio, porsua vez, lugares designificados muito impregnados, entiio a multiplicidade mesma desua comtru(iio oferece apossibilidade que se destrua seu estabe!ecimento univoco" (op. cit., p. 66, enfase adicional) " Uma aren<;ao mais derida sobre a obra de Julia Krisreva - algo que extrapola os limites praricos deste arrigo- poderia sugerir pomos imporrames para a nossa discussao e, em especial, para a ideia de abje­ l'ao. Cf. Krisreva (1982). 38
  • 39. PRAZERES DISSIDENTES "por urn !ado, designa a homossexualidade feminina como uma pd.­ rica culruralmente ininteligfvel, inerentemente psic6tica; por outro, decreta a maternidade como uma defesa obrigat6ria contra o caos da libido" (Ibidem, p. 1 19). Minha suspeita e de que as duas auroras nao estao falando damesma coisa e uma confusao de sentido ocorra em virtude da especificidade da linguagem de Kristeva.'7 Sera possfvel que Kristeva afirme uma homos­ sexualidade pre-discursiva, mesmo considerando que a experiencia do Semi6tico (imaginado como corpo materno ou multiplicidade original da libido) nao permite a conforma�ao de nenhuma forma ou signi­ ficado? Como pode existir af uma homossexualidade que, como tal, precisa de defini�ao previa para existir? Ha como existir algo tal qual uma homossexualidade pre-discursiva nos termos aos quais Butler se refere? Quando Kristeva fala em "faceta homossexual-materna", Butler enrende homossexualidade feminina." Mas sera que, dentro do quadro analftico de Kristeva, e possfvel essa substitui�ao sem os cuidados neces­ sarios? Ou, na verdade, a ultima expressao se refere a uma pd.tica sexual que s6 pode se dar no ambito da inteligibilidade cultural e, portanto, do Simb6lico, enquanto a primeira diz respeito a uma imagem ("uma faceta'') construfda justamente para representar tudo aquilo que nao pode ser representado ou significado? Homossexualidade nao estaria se referindo, em uma determinada conven�ao te6rica e lexical, a uma indistin�ao inclusive entre os sexos, mas que pode ser entendida como 17 Ao mesmo tempo influenciadas pelo esrrururalismo e com urn comprometimento em "sanar suas defi­ ciencias" ' algumas te6ricas francesas iniciaram urn movimento de revisao da gramoitica analftica que are enrao era urilizada para pensar o mundo social. Esse processo inclui uma recria<;ao das maneiras textuais atraves das quais suas ideias eram expressas, ja que o problema da (niio)significa�ao era foco de constance aten�ao e escrutfnio. 0 equfvoco de Butler em rela�o a Kristeva parece ser urn caso particular do faro mais geral de que, em determinado momenro, "as leiruras anglo-americanas nao bariam com os novos generos dos textos feministas franceses" (Strathern, 1992a, p. 72). Tal como observa Threadgold: "A teoria da linguagem de Kristeva e lrigaray !ida litera/mente esca inclinada a manter as dicotomias, 0 logocemris­ mo e a metaffsica que elas, Derrida e os te6ricos da semi6tica social buscavam desconstruir. Na verdade, enrreranro, sua pd.rica re6rica, que usa essas nos:6es metaforicamente, e. extraordinariamente poderosa. Seus texros devem sec lidos como metdfora, jogo, paradoxo - e como subversao generica. Someme urn tipo difereme de leirura pode prevenir a afirma�o da metaffsica da presen�a auaves de seus uabalhos" (1988, p. 63 apud Strathern, 1992a, p. 72). De qualquer maneira, e significativo que, ap6s o trecho citado, Butler escreva: "Ainda que Kristeva nao afirme explicitamente nenhuma das duas coisas, ambas sao con­ sequencias de suas opini6es sobre a lei, a linguagem e os impulsos" (Buder, op. cit., p. 1 1 9-120). " Cf. Butler (2001 [1990), p. 1 18). 39
  • 40. homossexualldadeI e .,lc,ul,_,t,.ur"a'------' indistinc;:ao generalizada?'9 Homossexualidade como urn Iugar onde os sexos nao podem se formar.'0 0 corpo materno e a lei paterna nao seriam, portanto, apenas uma forma imagetica particular de colocar urn problema que extrapola seus limites literais?" Na teoria de Kristeva, a linguagempoeticae urn objeto de reflexao pri­ vilegiado porque e atraves dela que a teoricafrancesa reflete sobre situac;:6es que nao podem serreduzidas a operac;:io tetica de predicac;:io e julgamento que constitui, ao mesmo tempo, o ego transcendental como consciencia operante e o ser significado por esse ego (Kristeva, 1 974, 1977). E essa linguagem que a leva ate 0 "heterogeneo ao senso e a linguagem" que, no entanto, nao se restringe a ela e representa uma modalidade de signi­ ficancia mais geral que e chamada de semi6tico.22 19 0 argumento ralvez fique mais claro se o contrapormos a disrincyio entre as relacy6es de mesmo sexo (same-sex) e as relac;6es de sexo cruzado (cross-sex) construfda pela etnografia melanesia. Nesses estudos, as duas relac;6es equivalem a dais "tipos" (ou momentos) distintos de socialidade, usando o genera como idioma privilegiado para pensar a relac;ao e/ou diferenc;a entre as diversas entidades que consri­ tuem o cosmos (cf. Strathern, 2006 [ 1 988], 2001). No caso de Kristeva, a indistinc;ao entre linguagem e cultura faz com que suas unidades sejam vistas menos como momenros de socialidade do que como "modalidades de signific:l.ncia" ("modalitedesignifiance", cf. Kristeva, 1 977, p. 40-241) - o que acaba par confundir e limitar sua argumentac;ao. " Se, de alguma forma, a consrituic;ao de homens e mulheres e pensada como constiruic;ao da sociedade e porque a relac;ao mesma entre mulheres e homens e o que estabelece a sociedade como "heterassexual". Em outras palavras, a hererossexualidade e criada a partir de uma relacyio necessaria entre os sexos na criac;ao da sociedade; e, como coraLirio, a homossexualidade s6 pode ser percebidacomo dissoluc;ao da perspectiva do social e, assim, como ameac;a simb6lica e natural. Parece ser esse o tipo de metaforizac;ao implfcita nas ideias como as de Monique Wittig, quando esta afirma: "0 que constitui uma mulher e uma relac;ao social especffica com urn homem [...], uma relac;ao da qual as lesbicas escapam quando repelem se transformar o seguir sendo heterassexuais" (2006 [ 1992], p. 43). 21 0 caso ralvez seja anilogo a confusio inerenre as leiruras da reoria de Levi-Strauss em As estruturas e, assim, devemos ter em mente aquila que Favret-Saada adverre em relacyio a essa uriliza�o: "Em princfpio, nao ha ligac;6es entre 'la-pensee-Levi-Strauss' (isto e, de Lacan, Thery ou Legendre) e o pensamento do Levi-Strauss, aquele que tenta construir em sua obra" (2000, p. 17). Este texro de Favret-Saada ensaia (no senrido positivo do rermo, ensaisticamente) uma das melhores argumentary6es em relar;:ao a apropriar;:ao indevida e as crfticas pouco fundamenradas ao pensamento levi-straussianoarravesjustamente do rexto de Rubin. Nao ganharfamos em compreensao se considerissemos o SemiOtico e o Simb6lico como possuin­ do o mesmo "valor sobretudo merodol6gico" que a dicoromia natureza-culrura possui em Levi-Strauss (cf. Levi-Strauss, 2006 [1962], p. 275)? Parece que isso pode ser extraido de seu rrabalho apresenrado no Seminario dirigido pelo estrururalisra frances em 1 974-75 no College de France e publicado no livra L'identite. Deixe-se clara que nao esrou afirmando que os dais pares conceituais dizem a mesma coisa. Gostaria apenas de elucidar que ambos podem ser consrruidos como instrumentos metodol6gicos de sentido mais do que como dominios do ser ou realidades irreduriveis. " "Esse heterageneo que encontramos nas primeiras ecolalias das crianc;as [...] ; esse heterogeneo que achamos reativado como ritmos, enronac;6es, glossolalias no discurso psic6tico [...]; esse heterageneo a significac;ao opera atraves deJa, apesar dela e par cima deJa, para praduzir na linguagem poetica OS 40
  • 41. PRAZERES DISSIDENTES Diante do problema politico que construiu parasi de tornar a homos­ sexualidade feminina inteligfvel culturalmente, Butler argumenta que "o temor de tal 'regressao' a homossexualidade e, entao, urn temor de perder por completo a san<;:ao e o privilegio culturais". E continua: Ainda que Kristeva ajirme que essa perda designa um Lugar ante­ rior a cultura, nlio hd razlio para nlio considerd-la uma forma cultural nova ou nlio reconhecida. Em outras palavras, Kristeva prefere explicar a experiencia lisbica como um estado regressivo da Libido anterior a acultura(liO em si do que aceitar 0 desajio que 0 Lesbianismo oferece a sua vislio restringida das Leis culturais pater­ namente sancionadas. (Op. cit., p. 121) Para Butler, sair do problema colocado por Kristeva e postular o lesbianismo nao como uma experiencia pre-discursiva, mas sim como algo que, dentro do discurso, desestabiliza a cultura por estar "fora da Legitimidade cultural, ainda dentro da cultura, mas culturalmente 'fora da lei'" (Ibidem). 0 problema colocado pela leitura butleriana do argumento de Kristeva a leva, portanto, a abolir o "fora da cultura" em favor de urn questionamento que se da no plano mesmo da discursividade cultural. E e por isso que, logo ap6s essa discussao, Butler retoma as aporta<;:6es te6ricas de Foucault. Valendo-se da mesma 16gica presente no procedimento analftico que este autor usou para demonstrar como o discurso sobre a sexuali- efeiros diros musicais, mas rambem de nao-senrido, que destroem nao somente a cren�a e a significa'rio recebidas mas, em experiencias limite, a simaxe ela mesma, garamia da consciencia tetica (do objeto significado e do ego) [...] a modalidade de signifidncia na qual niio se trata de semido ou significa,ao: sem signa, ,sem predica'rao, sem objeto significado e, assim, sem conscifncia operance de urn ego trans­ cendental. Pode-se chamar essa modalidade de significancia semiotica'' (Kristeva, 1977, p. 232, enfase original). Neste trecho e de fundamental importincia observar niio apenas o caniter da sua concep,ao do semi6rico, mas tambem sua ressalva de que ele nao se restringe a linguagem poetica. De faro, Kris­ teva quer elaborar uma teoria (no semido de urn discurso analfrico) sabre os sistemas significames que esreja atenta as crises do sentido, do sujeito e da estrurura (Ibidem, p. 224). E isso par duas raz6es: "de urn lado, essas crises, Ionge de serem acidenres, constiruem uma verdade da fun'rio significance e por conseqiiencia do faro social; de ourro, colocados em primeiro plano de atualidade polftica do seculo XX, os fen6menos que eu rraro atraves da linguagem poetica mas quepodem assumir outrasformas no Ocidente bem como em outras civilizatiies, nio ficariam fora das cifncias ditas humanas sem levantar suspeira sabre sua erica'' (Ibidem, p. 224, enfase minha). 41
  • 42. homossexualidadeI e .,lcu,l"'tu,_r,._a-----' dade naturaliza o sexo como causa e nao como efeito do genero, Butler coloca Kristeva em xeque:'3 "como sabemos que o objetivo instintivo do discurso de Kristeva nao e uma C()llStruyaO do discurso mesmo?" (Ibidem, p. 1 22).'4 Mas Butler nao estaria af tambem procedendo uma confusao analftica ou uma reduyao da teoria foucaultiana? 0 VENTO FOUCAULTIANO QUE SOPRA DEHORS" Nao ha algo tal qual uma exterioridade absoluta em Foucault? Nesse autor, todaexperiencia e entendida como "a correlayao, em umacultura, entre os campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjeti­ vidade" (Foucault, 2004a, p. 1 93).'6 0 saber e o mundo, cada estrato ou formayao hist6rica, composto por singularidades a partir de uma distribuiyao espedfica do visfvel e do enunciavel, sendo, neste sentido, urn agenciamento pratico, urn dispositivo de enunciados e de visibili­ dades. E ja que "falar" e "ver" sao irredutfveis, como o agenciamento e o ajustamento das duas formas sao assegurados de maneira variavel em cada caso concreto?27 21 Esre recurso e explfciro em Buder: "0 marco foucaultiano prop6e uma maneira de resolver algumas das dificuldades politicas e epistemologicas colocadas pelo conceito de Krisreva de corpo feminino" (Ibidem. p. 125). 24 Ou, mais adiante: "Na medida em que Kristeva concebe esse instinto maternal como uma condir;:ao onrol6gica previa a lei paterna, deixa de considerar uma maneira em que essa mesma lei bern pode ser a causa do desejo que supostamente reprime" (Ibidem, p. 123). " Muitas das considera,6es que fal'o aqui estao baseadas na argumenra,ao de Deleuze (2005 [ 1986]) a prop6sito da obra de Foucault. Desculpo-me, desde ja, pelo faro de reduzir a complexidade dessa carreira inrelectual a umas poucas e desajeitadas palavras que, sem dU.vida, nao conseguem replicar sua importJ.ncia. " A distin,ao entre os eixos e, sobrerudo, metodol6gica e nao imp6e uma divisao tipologizante da rea­ lidade (Ibidem, p. 2I 4). De fato, Foucault privilegiou uma dessas dimens6es a cada momenta. Entre­ tanto, o poder j<i estava no saber e reciprocamente: os trfs eixos estabelecem rela'r6es de pressuposir;:ao recfproca e nao de causalidade ou finalidade, como argumenta Deleuze (2005 [1986]). " Ou seja, o plano de enunciados nao se confunde com as visibilidades. Eis porque, em Aspalavras e as coisas, Foucault afirma que "sao irredutfveis urn ao outro: por mais que se diga o que se ve, o que se ve nao se aloja jamais no que se diz, e por mais que se fa,a ver o que se esta dizendo por imagens, metafo­ ras, compara,6es, 0 Iugar onde estas resplandecem nao e aquele que OS olhos descortinam, mas aqueles que as sucess6es da sinraxe definem" (1992 [1966], p. 25). E essa considera,ao que leva tambem ao duplo foco do agenciamenro em Deleuze: "Inicialmente num agenciamento ha como que duas faces ou duas cabel'as pelo menos. Os estados de coisas, estados de corpos [...]; mas tambem os enuncia­ dos, os regimes de enunciados [.. .] Os enunciados nao se contentam em descrever os estados de coisas correspondences: sao, antes, como duas formula,6es nao-paralelas, formaliza,ao de expressao e forma- 42
  • 43. PRAZERES DISSIDENTES Como a questao de saber se sao os enunciados que determinam as visibilidades ou 0 inverso e teoricamente irresoluvel, 0 problema de determinar o sentido da relas;ao causal entre os dois polos se torna, ele mesmo, urn falso problema, no sentido deleuziano do termo. Neste sentido, as determinas;6es do naturalismo e culturalismo sao apenas duas faces do mesmo movimento. E, nao existindo nem nos enuncia­ dos e nem nas visibilidades algo que possa assegurar essa determinas;ao, deve haver algo fora de ambos que possibilite que haja este e nao outro arranjo entre aquilo que se fala e aquilo que se ve. E essa a importancia do poder para Foucault. E o poder que asse­ gura a combinas;ao das duas pontas de todo e qualquer agenciamento. Ele nao tern homogeneidade e se define pelos pontos singulares por onde passa, define-se por singularidade, sendo coextensivo ao campo social.28 0 conjunto das fors;as constitui o lado de fora dos enuncia­ dos e das visibilidades e e a partir desse Iugar de exterioridade que lhes imputa uma determinada combinas;ao do real, isto e, produz formas;6es ou estratos hist6ricos atraves de urn arranjo espedfico daquilo que se pode ver e falar. Mas e a subjetivas;ao? Born, se entendermos o pensamento pelo ato que coloca, em suas diversas relas;6es possiveis, urn sujeito e urn objeto (Foucault, 2004b, p. 234), uma hist6ria da verdade, seja ela qual for, teria, entao, que focalizar as condis;6es nas quais se formaram ou se modificaram certas relas;6es do sujeito com o objeto, uma vez que estas sao constitutivas de urn saber possfvel. E foi nas problematizas;6es da Antiguidade classica que Foucault encontrou a genese dessa questao: 0 cuidado de si, 0 afeto de si para si, e a formula geral de designas;ao liza<;iio de conteudo, de tal forma que niio se faz jamais aquilo que se diz, niio se diz jamais aquilo que se faz, mas nao se mente entretanto, nao se engana, agenciam-se somente signos e corpos como peyas heterogeneas da mesma maquina'' (Deleuze e Pamer, 1 996 [1977], p. 86). A questiio da determina<;iio e importancia dos polos (material e cultural, digamos) e, dessa forma, urn falso problema com 0 qual Butler, no entamo, parece ainda estar as voltas no final da decada de 1990, como se pode perceber atraves da sua polemica com a te6rica Nancy Fraser (cf. Butler [1997b] e Fraser [1997]). " Foucault (1987 [1975]) defende, por exemplo, que as sociedades modernas podem ser ditas discipli­ nares. Mas, como adverte Deleuze (2005 [1986]), essa disciplina e urn tipo de poder, urna tecnologia, que atravessa todos os tipos de aparelhos e instituis;6es para faze-los convergir de urn novo modo. A disciplina niio pode ser idemificada nem com uma instituiyao e nem com urn aparelho espedficos. Donde o aparente paradoxo: "o poder e local porque nunca e global, mas ele nao e local nem localizivel porque e difuso" (Ibidem, p. 36). 43
  • 44. homossexualidade I e "'lcu,.,l_,tu"ra.___...J de uma "tecnologia do eu" que toma o proprio sujeito por objeto de conhecimento.29 A subjetividade como urn novo eixo da experiencia ao mesmo tempo distinto e correlacionado com o saber e o poder: urn cofuncionamento sem isomorfismo possivel, a simpatia de Foucault." Como vimos, o poder e, para Foucault, o que resolve o classico pro­ blema filos6fico da determina<;:ao entre o que se fala e o que se ve na (com)forma<;:ao do saber ou de uma forma<;:ao hist6rica. Mas e a subje­ tiva<;:ao que impede o saber e o poder de ficarem presos em urn impasse. Deleuze formula muito bern esse problema: "se o poder e constitutivo de verdade, como conceber urn 'poder da verdade' que nao seja mais verdade de poder, uma verdade decorrente das linhas transversais de resistencia e nao mais das linhas integrais de poder? Como 'ultrapassar a linha'?" (Op. cit., p. 102). 0 /ado defora niio e um limitejixo, mas uma materia m6vel, com movimentos, pregas e dobras que constituem urn lado de dentro, a sub­ jetividade: o lado de dentro do lado de fora, na expressao de Deleuze; o dentro como opera<;:ao de urn fora pressuposto, como sua dobra, isto " "A questao e determinar o que deve ser o sujeiro, a que condi<;6es ele esta submetido, qual o seu sta­ tus, que posi<;ao deve ocupar no real ou no imaginario para se rornar sujeiro legitimo deste ou daquele conhecimento; em suma, rrara-se de dererminar seu modo de "subjeriva(jio"; pais este nao e eviden­ temenre o mesmo quando o conhecimento em paura tern a forma de exegese de urn texro sagrado, de uma observa<;ao de hisroria natural ou de analise do comportamento de urn doente mental" (Foucault, 2004b, p. 235). Subjetiva<;ao, por urn !ado; objetiva<;ao, por ourro: pois se trata tambem de pensar como uma coisa p6de se tornar objeto para urn conhecimento possivel, de que maneira foi problema­ tizada como objeto a ser conhecido e que parte dela propria foi considerada pertinente nesse processo. E do desenvolvimento muruo da objetiva<;ao e da subjetiva<;ao que se originam os jogos de verdade. "[E] preciso inverter o procedimento filosofico de remontar ao sujeito constiruinte, do qual se exige dar conta do que pode ser rodo objeto de conhecimento em geral; trata-se, pelo contririo, de descer ao esrudo das praticas concreras pelas quais o sujeiro e constituido na imanencia de urn campo de conhe­ cimento" (Ibidem, p. 237). Nao apenas a constirui<;ao do sujeiro como objero em rela<;ao a urn dado campo do conhecimento, mas "a constitui<;ao do sujeiro como objeto para ele proprio: a forma<;ao dos procedimentos pelos quais o sujeiro e levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possivel" (Ibidem, p. 236). " Quando de uma exposi<;ao oral nos encontros da Rede Abaete de Antropologia Simetrica, usei a ideia de "simpatia" para sinalizar a ontologia simbiotica da obra de Foucault. A tecnologia analirica elabo­ rada por esse auror - nio apenas arraves dos rres eixos, mas rambem com conceiros como o de pd.tica (Veyne, 1 998 [ 1 971]) - e uma maquina conrraidenriraria (e rambem contrarrepresentacional ou con­ rrafundacional) que acaba por consrruir urn plano de imanencia radical cuja unidade minima do real nio pode ser ourra coisa que nao o agenciamenro. Nore-se que "as esrrururas esrio ligadas as condi(j6es de homogeneidade, mas nio OS agenciamentoS. Q agenciamento C 0 co-funcionamento, C a 'simpatia', a simbiose" (Deleuze e Pamer, 1 996 [1977], p. 65). 44
  • 45. PRAZERES DISSIDENTES e, uma rela<;:ao da for<;:a consigo, urn poder de se afetar a si mesmo, urn afeto de si por si.31 Assim, Foucault nao exclui a possibilidade de urn "fora'', mas precisa seu sentido como exterioridade absoluta em rela<;:ao a qualquer forma<;:ao hist6rica, pois nao e saber formado, nem fun<;:ao formalizada. E, contudo, pode ainda afirmar: "nada escapa ao saber". E esse o estratagema fou­ caultiano que bloqueia o problema que o conceito de abje<;:ao pretende resolver.'' DE FATO... MAS NAO DE DIREITO A leitura que empreende de Kristeva, feita a partir de urn problema politico espedfico, acabou por levar Buder a desconsiderar urn plano de exterioridade absoluta que, nem por isso, deixa de ser real; mas que nao se confunde com urn real sobre o qual possamos falar ou ver, ou seja, que nao e atual ou formalizado. 0 que minha argumenta<;:ao buscar " A ideia de aferar-se a si mesmo e basrante enfarizada por Foucault quando da sua anilise da enkrateia: «a enkrateia se caracreriza sobrerudo por uma forma ariva de domfnio de si que permire resisrir ou lurar e garantir sua dominal'iio no terreno dos desejos e dos prazeres [.. .] A enkrateia, com seu oposro akra­ sia, se situa sobre o eixo da lura, da resistfncia e do combate: ela e comedimenro, tens3.o, 'conrinfncia'. A enkrateia domina os prazeres e os desejos mas rem necessidade de lutar para vence-los" (Foucault, 1984, p. 6!). E, porranto, urn poder que se exerce sobre si dentro do poder que se exerce sobre os ourros, pois, como dirava a filosofia clissica da Antiguidade, ningufm pode governar os ourros sem antes aprender a governar a si mesmo e se constituir, assim, como urn ser virtuoso. A relas:ao consigo como "prindpio de regulas:ao inrerna". " 0 que tentei fazer, a partir de urn apanhado da obra de Foucault e de algumas sugest6es de Deleuze, foi sugerir uma das maneiras atraves das quais esse dehors pode ser percebido ou postulado. E o proprio Foucault (2006) quem, no campo da lirerarura e da linguagem, oferece-nos "a aberrura para uma lin­ guagem da qual o sujeito esra exclufdo, a revela,ao de uma incompatibilidade talvez irremediavel entre a apari,ao da linguagem em seu ser e a consciencia de si em sua identidade" (p. 221). 0 "eu falo" como contrario ao "eu penso" e usado para imaginar o proprio espa'o ficcional do Ocidente. E Foucault e atento as dificuldades implfcitas nesse empreendimento: "Eis que nos deparamos com uma hiancia que por muiro tempo permaneceu invisfvel para nos: o ser da linguagem so aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito. Como rer acesso a essa estranha rela,ao? Talvez por uma forma de pensa­ mento cuja possibilidade ainda incerta a cultura ocidental delineou em suas margens. Esse pensamento que se mantem fora de qualquer subjetividade para dele fazer surgir os limires como vindos do exterior, enunciar seu fim, fazer cinrilar sua dispers3.o e acolher apenas sua invisfvel ausfncia, e que ao mesmo tempo se mantem no limiar de qualquer posirividade, nao tanto para apreender seu fundamento ou justificativa, mas para encontrar o espa'O em que ele se desdobra, o vazio que !he serve de Iugar, a dis­ rancia na qual ele se consritui e onde se escondem suas certeza imediatas assim que ali se lance o olhar, urn pensamento que, em rela,ao a interioridade da nossa reflexao filosofica e a posirividade do nosso saber, consrirui o que se poderia chamar "o pensamenro do exterior" (Ibidem, p. 222). 45
  • 46. homossexualidade I e l.,cu""lt!!!u!.!!rac_______J promover e, de certa forma, 0 alargamento da concepc;:ao do real que 0 restringe ou reduz ao seu !ado atualizado, por assim dizer. Essa reduc;:ao e o que faz com que a apresentac;:ao da abjec;:ao seja sempre urn paradoxo: por urn !ado, refere-se a esse campo de exterioridade absoluta; por outro !ado, esta ela propria submetida aos contornos impostos pelas regras da gramatica cultural que, tomando-a como limite interno, estabelece sua propria legitimidade. Algumas vezes, pensa-se que "se a 'realidade' do genero econstitufdapela performancemesma, entao, nao ha recurso para urn 'sexo' ou 'genero' essencial e nao-realizado que as performances de genero ostensivamente expressariam [e, portanto,] o genero do travesti e tao completamente real quanto qualquer urn cuja performance satisfaz as expectativas sociais" (Butler, 1 997a, p. 41 1); outras vezes, estando fora da inteligibilidade cultural, os travestis sao (corpos) abjetos e, por­ tanto, encontram-se em "uma zona inabitavel ou inimaginavel do ser": sao reais de fato (e isso o sabemos!), mas nao o sao de direito. E tudo se passapelas existencias, como se o real pudesse ser reduzido ao seu estado atualizado; como se as virtualidades, as insistencias, tivessem sim algo de real, mas uma realidade subtrafda, a qual algo !he falta.'' Em umanotasobreo conceito de abjec;:ao na introduc;:ao de Bodies that Matter, Butler esclareceque, "enquanto a no¢o psicanalfticade Verwerfong traduzida como 'forclusao' produz a socialidade atraves do repudio de urn significanceprimario que produz urn inconsciente ou, nateorialacaniana, o registro do real, a noc;:ao de abjec;:ao designa umacondic;:ao degradada ou exclufda dentro dos termos da socialidade" (op. cit., p. 20).34 Assim, se Butler afirma uma exterioridade da abjec;:ao em relac;:ao a cul­ tura e para, emseguida, reduzir seus contornose !he imputar uma forma, so que negativamente, a partir do que ainda nao se e ou do que ja nao se pode mais ser: abje�lio enquantopossiveL35 Considerada como possfvel, a " Para a ideia de insistencia, cf. Deleuze (2006 [ 1 969]), principalmente a Terceira serie. " Socialidade em Butler nao significa o mesmo que certos antrop6logos convencionaram chamar par este nome, mas se confunde com sociedade. Para o termo socialidade e sua constrw;:ao como uma alternativa analitica que nao sup6e a sociedade, cf. Ingold (I 996), Srrathern (I 988), Gel! (I 999). " 0 passive! implicaria urn real ao qual lhe faltaria a existencia que, comudo, jaestadada como urn eventual "viraser" no tempo, como possibilidadepredeterminada e destituida, no emamo, de realiza<;ao. Enquanto ao virtual nada !he falta: "0 virtual nao se op6e ao real, mas somente ao atual. 0 virtualpossui umaplena realidtde enquanto virtual. Do virtual, e preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de res­ sonincia: 'Rea.is sem serem arua.is, idea.is sem serem abstraros', e simb61icos sem serem fictfcios. 0 vinual 46