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REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Desvelo do firmamento
Por Ana Carolina Pimentel 
10/08/2007
Desde muito cedo, o passeio dos planetas em meio ao quadriculado fixo das estrelas,
os rasgos no céu provocados por estrelas cadentes, o brilho da Lua sendo ofuscado por
uma  sombra  escura  em  um  eclipse  e  muitos  outros  fenômenos  intrigam  e  chamam  a
atenção dos homens. Até mesmo os fenômenos mais próximos, como os relâmpagos,
trovões e chuvas que provocavam grandes enchentes manifestavam a cólera celeste e
eram  motivo  de  curiosidade  aos  olhos  de  nossos  ancestrais.  Temos  então  a  projeção
dos  sentimentos  humanos  enriquecendo  o  céu  com  uma  infindável  manifestação  de
idéias  populares,  mitos  e  folclores,  na  tentativa  de  descrever  e  conhecer  esses  belos
fenômenos.  As  lendas  possuem  variações  e  muitas  vezes  têm  a  sua  estrutura  central
repetida  em  diferentes  culturas.  Veremos  aqui  apenas  algumas  concepções  que,  por
serem transmitidas oralmente, sofreram certas alterações enquanto as areias do tempo
escorriam pelas mãos dos homens.
Universum ­ Representação do Universo gravada em madeira, usada 
por Camille Flammarion na sua obra L'atmosphère: météorologie populaire, (Paris, 1888)
Esses  mitos  celestes  revelam  a  história  do  próprio  homem,  suas  crenças  e  anseios
inspirados  na  convicção  íntima  de  sua  própria  cultura.  Não  se  trata  de  apresentar  a
ciência culta do céu, nem de descrever a hesitação humanitária, mas sim o delinear de
imagens e símbolos que se embaralham no imaginário coletivo tendo o céu e os astros
como  pano  de  fundo.  Trilhamos  esses  caminhos  desvendando  a  profusão  de  vozes  e
riquezas que herdamos das diferentes culturas que habitam nosso planeta.
A ascendência da causa
A inquietude acerca de sua própria existência é uma característica humana. Mesmo em
diferentes culturas encontramos, muitas vezes, explicações semelhantes. 
Para os andamanes, uma das etnias mais antigas da Ásia, o deus supremo é chamado
de Puluga. Ele habita o céu, sua voz é o trovão, o vento é seu sopro e o furacão seu
sinal de cólera. Como a humanidade o esquecia além da conta, para punir os homens,
ele desencadeou um dilúvio que poupou a vida de apenas quatro privilegiados. Puluga
tem  os  atributos  físicos  do  deus  grego  Zeus  e  o  comportamento  de  Javé,  do  povo
judeu.
Ou seja, os indianos, como os ocidentais, têm seu dilúvio. E esses dois dilúvios têm
vários pontos em comum: um único ser é avisado do desastre iminente e esse único
ser é salvo; para nós ocidentais, este personagem é Noé e para os indianos é Manu.
Ambos recebem a ordem de construir uma embarcação. Mas a significação religiosa do
dilúvio de Noé é diferente da do dilúvio de Manu. No caso indiano, ele não é um castigo
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e entra na ordem natural de um mundo que, sem se extingüir totalmente, dissolve­se
periodicamente para ressurgir de uma maneira reorganizada.
O reino no céu
Resvalando­nos  pelo  enredo  mágico  dos  mitos  percebemos  que  nem  sempre  o  Sol  é
lembrado, embora detenha grande prestígio em algumas comunidades. Apenas algumas
culturas em nosso planeta promoveram cultos solares e podemos observar até mesmo
a necessidade de organizar uma estrutura política em algumas sociedades: o rei, ou o
imperador,  filho  do  Sol,  reina  sobre  a  ordem  social  como  o  Sol  reina  sobre  a  ordem
cósmica. 
No Togo, os dagombas dizem que há sobre o Sol um campo de feira que pode ser visto
quando  há  um  halo  em  volta  desse  astro.  Nesse  campo,  vive  o  carneiro  de  deus.
Quando  o  animal  bate  os  cascos  no  Sol,  troveja,  quando  abana  o  rabo,  relampeja.
Quando  chove,  é  porque  caem  flocos  de  neve  de  seu  velo,  e,  se  sopra  o  vento,  é
porque ele está galopando pelo campo. 
Para  os  egípcios,  o  Sol  se  tornou  a  mais  importante  de  todas  as  divindades  e,  em
especial, podemos citar Heliópolis, que apresenta diversos cultos solares dando ao Sol
diversos nomes. Como disco solar, chamava­se Aton, mas como sol nascente, tornava­
se  Khépri  e  era,  então,  aquele  escaravelho  gigante  empurrando  para  frente  o  globo
solar,  assim  como  o  escaravelho  empurra  uma  bolinha  de  estrume,  na  qual,
acreditavam  os  egípcios,  ele  escondia  os  ovos  de  onde  surgiria  a  vida.  Chegando  ao
zênite, o Sol, torna­se Rá, o deus de Heliópolis. Enfim, no poente, era apenas o velho
Aton. Adotava também o nome de Hórus e, quando se queria associar as propriedades
de  Rá  e  de  Hórus,  dava­se­lhe  o  nome  de  Rá­Horakhti.  Assumindo  o  aspecto  de  um
disco alado, ele, então, emergia no horizonte num esplendor que se renova a cada dia. 
O véu escuro
A  Lua  suscita  uma  literatura  abundante.  Muitas  vezes  é  objeto  de  superstições  ou
observações curiosas e, em seus passeios pelo véu escuro da noite, convida os olhos
mais singelos ou poéticos para notarem sua bela feição. A Lua nos apresenta sempre a
sua  mesma  face,  enriquecida  por  manchas  maiores  ou  menores  que,  em  diferentes
tradições,  representam  nas  lendas  diferentes  figuras,  sejam  elas  de  humanos  ou  de
animais.
No céu dos índios Tembé­Tenetehara, habitantes das regiões do rio Gurupi no Pará, a
Lua  é  um  indiozinho  chamado  Zahy,  filho  de  um  casal  que  por  muito  tempo  não
conseguia ter filhos e quando já haviam perdido suas esperanças foram abençoados por
todos os deuses com esse nascimento. Diz a lenda, que muito cedo Zahy desejou sua
tia,  uma  mulher  proibida,  mas  quebrou  seu  destino  e  muitas  tradições  dessa  tribo.
Mesmo  sabendo  que  sua  tia  deveria  ter  um  destino  diferente  do  seu,  Zahy  não
controlou  seu  amor.  Sempre  que  a  noite  chegava,  o  indiozinho  seguia  às  escondidas
para  a  casa  de  sua  tia  para  importuná­la.  Isto  aconteceu  noite  após  noite,  até  que  a
jovem, sem saber quem a procurava, pediu conselhos à índia mais velha.
Foi sugerido à moça uma armadilha. Ela deveria lambuzar seus dedos com jenipapo e
aguardar a partida de Kwarahy (Sol). Naquela noite Zahy foi mais uma vez ao encontro
de sua tia. Ela afagou o rosto desconhecido diversas vezes, seguindo os conselhos da
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velha  índia.  No  dia  seguinte,  Zahy  acordou,  foi  lavar  seu  rosto  no  rio  e  só  então
percebeu  o  que  havia  acontecido.  Por  mais  que  ele  lavasse  o  rosto  as  manchas  não
desapareciam.  Todos  então  descobriram  quem  era  o  amante  misterioso  e  baniram
Zahy da Terra, que foi transformando em Lua e condenado a viver eternamente no céu.
Os índios contam esta lenda aos pequenos para explicar as manchas que vemos na Lua
e explicam que há um período, a Lua Nova, em que não podemos ver Zahy no céu à
noite,  pois  é  o  período  em  que  ele  está  lavando  seu  rosto.  Depois  de  um  tempo  ele
reaparece, período da Lua Crescente, trazendo chuva, a água que ele lavava seu rosto,
que  escorre  do  céu.  A  Lua  Cheia  é  o  período  que  podemos  ver  seu  rosto  ainda
manchado de jenipapo.
Entre os hotentotes da África do Sul, temos as manchas da Lua associadas a uma lebre.
Diz  a  lenda  que  a  Lua,  certa  vez,  encarregou  um  piolho  de  anunciar  aos  homens  que
eles teriam um destino semelhante ao seu e que morreriam para reviver. Pelo caminho
o  piolho  encontrou  uma  lebre  que  declarou  ser  mais  veloz  e  que  por  isso  levaria  a
mensagem  aos  homens.  Mas  as  lebres  perdem  a  memória  quando  correm  e  ela  se
enganou com a mensagem, dizendo aos homens que eles, como a Lua, minguariam e
morreriam.  A  Lua  ficou  muito  contrariada  com  a  deturpação  de  sua  mensagem  e
brandiu um pedaço de pau que atingiu o lábio da lebre. Desde então, o lábio da lebre é
fendido.
A desordem cósmica 
Os eclipses e também os cometas com suas aparições repentinas parecem provocar um
desalinho no arranjo celeste e ocupam então lugar privilegiado no imaginário popular.
São  sempre  os  associados  ao  terror,  à  morte,  à  vingança  e  outros  sentimentos  de
transtorno.
Na  China,  uma  lenda  sobre  os  eclipses  do  Sol  e  da  Lua  diz  que  Hou  Yi,  um  famoso
arqueiro, havia destruído 9 dos 10 sóis que assolavam a Terra; deixando apenas um.
Com  o  passar  dos  anos  o  Sol  tornou­se  preguiçoso  e  houve  uma  época  em  que  ficou
meses  sem  aparecer.  A  vida  na  Terra  começou  a  se  esvair.  Foi  então  que  Yandi,  o
imperador  celeste,  enviou  seu  fiel  mensageiro  com  instruções  de  supervisionar  o  Sol
em suas tarefas diárias. Antes de partir, Yandi pegou um ramo da árvore Ruo, que só
cresce no céu ocidental para acordar o Sol. Yandi usou este ramo diversas vezes para
limpar o céu das nuvens negras e da poeira que impediam o Sol de brilhar. Entretanto,
a  tarefa  mais  importante  de  Yandi  com  o  ramo  de  Ruo  era  acertar  Lung,  um  dragão
negro  que  vivia  a  devorar  com  especial  voracidade  as  estrelas  do  céu  e  que  não
hesitava em tentar devorar o Sol e a Lua (causando eclipses) quando estava faminto.
Já  a  Lua  escandinava  é  habitada  pelo  cão  Managarm  que  tem  a  função  de  avisar  os
homens  quando  avista  Sköl  e  Hati,  dois  lobos  famintos  que  vagueiam  no  céu  e
constantemente devoram o Sol e a Lua, vomitando­os em seguida.
Para  algumas  culturas  ocidentais,  quando  um  cometa  invadia  o  céu,  era  o  diabo  que
havia  acendido  um  cachimbo  e  jogado  fora  o  acendedor.  Ao  aparecer  um  cometa  era
preciso vigiar o local onde ele surgiu, a região para onde ele se desloca, a estrela que
o  influencia  e  a  forma  que  ele  adquire.  Se  o  cometa  tiver  o  aspecto  de  uma  flauta,
trata­se de um presságio relacionado à arte musical, se aparecer nas partes pudendas
de alguma constelação, tem a ver com a depravação de costumes.
Alinhamento estelar
As  imagens  colocadas  pelos  homens  no  céu  testemunham  seus  interesses  e
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preocupações. Quando as culturas dependiam da caça para sobreviver, viam no alto do
firmamento  cães,  tatus,  jacarés,  emas,  ursos  ou  leões.  Se  fossem  povos  que
dependiam de embarcações viam bússolas ou popas de navios. Povos guerreiros viam
seus heróis e as grandes conquistas eram atribuídas às estrelas.
Para os gregos, Pégaso, o cavalo alado,
nasceu  de  uma  triste  história  de  amor.
Perseu,  um  guerreiro  grego  muito
amado pelos deuses, recebeu o broquel
espelhado de Minerva, que o impedia de
ser ferido por seus inimigos, o capacete
de  Plutão,  que  o  tornava  invisível,  e  as
sandálias  de  Mercúrio,  que  o  tornava
veloz.  Graças  a  esse  armamento  divino
e  também  à  sua  coragem,  venceu  os
Górgonas e cortou a cabeça de Medusa.
Porém,  a  cabeça  recém  cortada
derramou  uma  gota  de  sangue  nas
águas e Poseidôn, rei dos mares que, ao
perceber  que  sua  amada  Medusa  havia
morrido,  fez  emergir  deste  encontro  de
sangue e águas uma espuma branca que
deu origem a Pégaso.
Desde  essa  luta,  Perseu  passou  a
carregar  a  cabeça  de  Medusa  em  uma
espécie  de  bolsa  mágica  para  petrificar
seus inimigos. Na volta de uma batalha
escutou  o  chamado  de  uma  jovem
acorrentada  ao  mar,  Andrômeda,  que
seria  devorada  por  Cetus,  um  enorme
monstro marinho. Perseu retirou a cabeça de Medusa da bolsa e apontou­a em direção
ao monstro que afundou petrificado. 
Para os astecas, a constelação conhecida por nós como Ursa Maior, representa o deus
Tezcalipoca,  deus  sombrio  que  teve  um  dos  seus  pés  devorado  pelo  monstro  celeste,
geralmente  associado  à  morte.  Já  na  tradição  hindu,  as  sete  estrelas  mais  brilhantes
dessa mesma constelação são as moradas dos sete Rishis, os sete sábios primordiais.
Uma mesma constelação pode ter diferentes significados para diferentes culturas. Aqui
é  que  percebemos  a  riqueza  cultural  que  faz  jus  aos  olhos  e  corações  humanos,
percebemos  as  diferenças  que  nos  unem,  sejam  em  nossos  medos  e  anseios  ou  nas
maravilhas que observamos. Mas o que devemos realmente lembrar é que o céu, em
toda a sua imensidão, abriga com seus enormes braços todos os olhares e sentimentos
humanos,  sem  fazer  distinção  de  tempo,  cor,  forma  ou  região  física.  Somos  todos
iguais perante o mesmo firmamento.
Ana Carolina Pimentel é graduanda em ciências exatas e com habilitação em física pela
Universidade  de  São  Paulo.  Pesquisadora  de  história  da  ciência  e  divulgadora  da
astronomia  e  sua  história  no  Observatório  da  USP  e  na  Sociedade  Brasileira  para  o
Ensino da Astronomia.
Referências bibliográficas
CORRÊA,  Ivânia  Neves,  et  al.  O  céu  dos  índios  Tembé.  Belém:  Planetário  do  Pará/
UEPA, 2000.
MARTINS, Roberto de Andrade. O universo: teorias sobre sua origem e evolução. São
Paulo: Editora Moderna, 1996.
Mitos antigos da China, livro de Fênix. China, Beijing: Edições em Línguas Estrangeiras
Baiwanzhuang N°24.
PANNEKOEK, A. A history of astronomy. Canadá: Dover, 1989.
PUGLIESE, Márcio. Mitologia greco­romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo:
Madras, 2003.
VERDET, Jean­Pierre. O céu, mistério, magia e mito. São Paulo: Objetiva, 1987.

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  • 1. 14/09/2016 Com Ciência ­ SBPC/Labjor http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=27&id=311&print=true 1/4 REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO Artigo Desvelo do firmamento Por Ana Carolina Pimentel  10/08/2007 Desde muito cedo, o passeio dos planetas em meio ao quadriculado fixo das estrelas, os rasgos no céu provocados por estrelas cadentes, o brilho da Lua sendo ofuscado por uma  sombra  escura  em  um  eclipse  e  muitos  outros  fenômenos  intrigam  e  chamam  a atenção dos homens. Até mesmo os fenômenos mais próximos, como os relâmpagos, trovões e chuvas que provocavam grandes enchentes manifestavam a cólera celeste e eram  motivo  de  curiosidade  aos  olhos  de  nossos  ancestrais.  Temos  então  a  projeção dos  sentimentos  humanos  enriquecendo  o  céu  com  uma  infindável  manifestação  de idéias  populares,  mitos  e  folclores,  na  tentativa  de  descrever  e  conhecer  esses  belos fenômenos.  As  lendas  possuem  variações  e  muitas  vezes  têm  a  sua  estrutura  central repetida  em  diferentes  culturas.  Veremos  aqui  apenas  algumas  concepções  que,  por serem transmitidas oralmente, sofreram certas alterações enquanto as areias do tempo escorriam pelas mãos dos homens. Universum ­ Representação do Universo gravada em madeira, usada  por Camille Flammarion na sua obra L'atmosphère: météorologie populaire, (Paris, 1888) Esses  mitos  celestes  revelam  a  história  do  próprio  homem,  suas  crenças  e  anseios inspirados  na  convicção  íntima  de  sua  própria  cultura.  Não  se  trata  de  apresentar  a ciência culta do céu, nem de descrever a hesitação humanitária, mas sim o delinear de imagens e símbolos que se embaralham no imaginário coletivo tendo o céu e os astros como  pano  de  fundo.  Trilhamos  esses  caminhos  desvendando  a  profusão  de  vozes  e riquezas que herdamos das diferentes culturas que habitam nosso planeta. A ascendência da causa A inquietude acerca de sua própria existência é uma característica humana. Mesmo em diferentes culturas encontramos, muitas vezes, explicações semelhantes.  Para os andamanes, uma das etnias mais antigas da Ásia, o deus supremo é chamado de Puluga. Ele habita o céu, sua voz é o trovão, o vento é seu sopro e o furacão seu sinal de cólera. Como a humanidade o esquecia além da conta, para punir os homens, ele desencadeou um dilúvio que poupou a vida de apenas quatro privilegiados. Puluga tem  os  atributos  físicos  do  deus  grego  Zeus  e  o  comportamento  de  Javé,  do  povo judeu. Ou seja, os indianos, como os ocidentais, têm seu dilúvio. E esses dois dilúvios têm vários pontos em comum: um único ser é avisado do desastre iminente e esse único ser é salvo; para nós ocidentais, este personagem é Noé e para os indianos é Manu. Ambos recebem a ordem de construir uma embarcação. Mas a significação religiosa do dilúvio de Noé é diferente da do dilúvio de Manu. No caso indiano, ele não é um castigo
  • 2. 14/09/2016 Com Ciência ­ SBPC/Labjor http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=27&id=311&print=true 2/4 e entra na ordem natural de um mundo que, sem se extingüir totalmente, dissolve­se periodicamente para ressurgir de uma maneira reorganizada. O reino no céu Resvalando­nos  pelo  enredo  mágico  dos  mitos  percebemos  que  nem  sempre  o  Sol  é lembrado, embora detenha grande prestígio em algumas comunidades. Apenas algumas culturas em nosso planeta promoveram cultos solares e podemos observar até mesmo a necessidade de organizar uma estrutura política em algumas sociedades: o rei, ou o imperador,  filho  do  Sol,  reina  sobre  a  ordem  social  como  o  Sol  reina  sobre  a  ordem cósmica.  No Togo, os dagombas dizem que há sobre o Sol um campo de feira que pode ser visto quando  há  um  halo  em  volta  desse  astro.  Nesse  campo,  vive  o  carneiro  de  deus. Quando  o  animal  bate  os  cascos  no  Sol,  troveja,  quando  abana  o  rabo,  relampeja. Quando  chove,  é  porque  caem  flocos  de  neve  de  seu  velo,  e,  se  sopra  o  vento,  é porque ele está galopando pelo campo.  Para  os  egípcios,  o  Sol  se  tornou  a  mais  importante  de  todas  as  divindades  e,  em especial, podemos citar Heliópolis, que apresenta diversos cultos solares dando ao Sol diversos nomes. Como disco solar, chamava­se Aton, mas como sol nascente, tornava­ se  Khépri  e  era,  então,  aquele  escaravelho  gigante  empurrando  para  frente  o  globo solar,  assim  como  o  escaravelho  empurra  uma  bolinha  de  estrume,  na  qual, acreditavam  os  egípcios,  ele  escondia  os  ovos  de  onde  surgiria  a  vida.  Chegando  ao zênite, o Sol, torna­se Rá, o deus de Heliópolis. Enfim, no poente, era apenas o velho Aton. Adotava também o nome de Hórus e, quando se queria associar as propriedades de  Rá  e  de  Hórus,  dava­se­lhe  o  nome  de  Rá­Horakhti.  Assumindo  o  aspecto  de  um disco alado, ele, então, emergia no horizonte num esplendor que se renova a cada dia.  O véu escuro A  Lua  suscita  uma  literatura  abundante.  Muitas  vezes  é  objeto  de  superstições  ou observações curiosas e, em seus passeios pelo véu escuro da noite, convida os olhos mais singelos ou poéticos para notarem sua bela feição. A Lua nos apresenta sempre a sua  mesma  face,  enriquecida  por  manchas  maiores  ou  menores  que,  em  diferentes tradições,  representam  nas  lendas  diferentes  figuras,  sejam  elas  de  humanos  ou  de animais. No céu dos índios Tembé­Tenetehara, habitantes das regiões do rio Gurupi no Pará, a Lua  é  um  indiozinho  chamado  Zahy,  filho  de  um  casal  que  por  muito  tempo  não conseguia ter filhos e quando já haviam perdido suas esperanças foram abençoados por todos os deuses com esse nascimento. Diz a lenda, que muito cedo Zahy desejou sua tia,  uma  mulher  proibida,  mas  quebrou  seu  destino  e  muitas  tradições  dessa  tribo. Mesmo  sabendo  que  sua  tia  deveria  ter  um  destino  diferente  do  seu,  Zahy  não controlou  seu  amor.  Sempre  que  a  noite  chegava,  o  indiozinho  seguia  às  escondidas para  a  casa  de  sua  tia  para  importuná­la.  Isto  aconteceu  noite  após  noite,  até  que  a jovem, sem saber quem a procurava, pediu conselhos à índia mais velha. Foi sugerido à moça uma armadilha. Ela deveria lambuzar seus dedos com jenipapo e aguardar a partida de Kwarahy (Sol). Naquela noite Zahy foi mais uma vez ao encontro de sua tia. Ela afagou o rosto desconhecido diversas vezes, seguindo os conselhos da
  • 3. 14/09/2016 Com Ciência ­ SBPC/Labjor http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=27&id=311&print=true 3/4 velha  índia.  No  dia  seguinte,  Zahy  acordou,  foi  lavar  seu  rosto  no  rio  e  só  então percebeu  o  que  havia  acontecido.  Por  mais  que  ele  lavasse  o  rosto  as  manchas  não desapareciam.  Todos  então  descobriram  quem  era  o  amante  misterioso  e  baniram Zahy da Terra, que foi transformando em Lua e condenado a viver eternamente no céu. Os índios contam esta lenda aos pequenos para explicar as manchas que vemos na Lua e explicam que há um período, a Lua Nova, em que não podemos ver Zahy no céu à noite,  pois  é  o  período  em  que  ele  está  lavando  seu  rosto.  Depois  de  um  tempo  ele reaparece, período da Lua Crescente, trazendo chuva, a água que ele lavava seu rosto, que  escorre  do  céu.  A  Lua  Cheia  é  o  período  que  podemos  ver  seu  rosto  ainda manchado de jenipapo. Entre os hotentotes da África do Sul, temos as manchas da Lua associadas a uma lebre. Diz  a  lenda  que  a  Lua,  certa  vez,  encarregou  um  piolho  de  anunciar  aos  homens  que eles teriam um destino semelhante ao seu e que morreriam para reviver. Pelo caminho o  piolho  encontrou  uma  lebre  que  declarou  ser  mais  veloz  e  que  por  isso  levaria  a mensagem  aos  homens.  Mas  as  lebres  perdem  a  memória  quando  correm  e  ela  se enganou com a mensagem, dizendo aos homens que eles, como a Lua, minguariam e morreriam.  A  Lua  ficou  muito  contrariada  com  a  deturpação  de  sua  mensagem  e brandiu um pedaço de pau que atingiu o lábio da lebre. Desde então, o lábio da lebre é fendido. A desordem cósmica  Os eclipses e também os cometas com suas aparições repentinas parecem provocar um desalinho no arranjo celeste e ocupam então lugar privilegiado no imaginário popular. São  sempre  os  associados  ao  terror,  à  morte,  à  vingança  e  outros  sentimentos  de transtorno. Na  China,  uma  lenda  sobre  os  eclipses  do  Sol  e  da  Lua  diz  que  Hou  Yi,  um  famoso arqueiro, havia destruído 9 dos 10 sóis que assolavam a Terra; deixando apenas um. Com  o  passar  dos  anos  o  Sol  tornou­se  preguiçoso  e  houve  uma  época  em  que  ficou meses  sem  aparecer.  A  vida  na  Terra  começou  a  se  esvair.  Foi  então  que  Yandi,  o imperador  celeste,  enviou  seu  fiel  mensageiro  com  instruções  de  supervisionar  o  Sol em suas tarefas diárias. Antes de partir, Yandi pegou um ramo da árvore Ruo, que só cresce no céu ocidental para acordar o Sol. Yandi usou este ramo diversas vezes para limpar o céu das nuvens negras e da poeira que impediam o Sol de brilhar. Entretanto, a  tarefa  mais  importante  de  Yandi  com  o  ramo  de  Ruo  era  acertar  Lung,  um  dragão negro  que  vivia  a  devorar  com  especial  voracidade  as  estrelas  do  céu  e  que  não hesitava em tentar devorar o Sol e a Lua (causando eclipses) quando estava faminto. Já  a  Lua  escandinava  é  habitada  pelo  cão  Managarm  que  tem  a  função  de  avisar  os homens  quando  avista  Sköl  e  Hati,  dois  lobos  famintos  que  vagueiam  no  céu  e constantemente devoram o Sol e a Lua, vomitando­os em seguida. Para  algumas  culturas  ocidentais,  quando  um  cometa  invadia  o  céu,  era  o  diabo  que havia  acendido  um  cachimbo  e  jogado  fora  o  acendedor.  Ao  aparecer  um  cometa  era preciso vigiar o local onde ele surgiu, a região para onde ele se desloca, a estrela que o  influencia  e  a  forma  que  ele  adquire.  Se  o  cometa  tiver  o  aspecto  de  uma  flauta, trata­se de um presságio relacionado à arte musical, se aparecer nas partes pudendas de alguma constelação, tem a ver com a depravação de costumes. Alinhamento estelar As  imagens  colocadas  pelos  homens  no  céu  testemunham  seus  interesses  e
  • 4. 14/09/2016 Com Ciência ­ SBPC/Labjor http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=27&id=311&print=true 4/4 preocupações. Quando as culturas dependiam da caça para sobreviver, viam no alto do firmamento  cães,  tatus,  jacarés,  emas,  ursos  ou  leões.  Se  fossem  povos  que dependiam de embarcações viam bússolas ou popas de navios. Povos guerreiros viam seus heróis e as grandes conquistas eram atribuídas às estrelas. Para os gregos, Pégaso, o cavalo alado, nasceu  de  uma  triste  história  de  amor. Perseu,  um  guerreiro  grego  muito amado pelos deuses, recebeu o broquel espelhado de Minerva, que o impedia de ser ferido por seus inimigos, o capacete de  Plutão,  que  o  tornava  invisível,  e  as sandálias  de  Mercúrio,  que  o  tornava veloz.  Graças  a  esse  armamento  divino e  também  à  sua  coragem,  venceu  os Górgonas e cortou a cabeça de Medusa. Porém,  a  cabeça  recém  cortada derramou  uma  gota  de  sangue  nas águas e Poseidôn, rei dos mares que, ao perceber  que  sua  amada  Medusa  havia morrido,  fez  emergir  deste  encontro  de sangue e águas uma espuma branca que deu origem a Pégaso. Desde  essa  luta,  Perseu  passou  a carregar  a  cabeça  de  Medusa  em  uma espécie  de  bolsa  mágica  para  petrificar seus inimigos. Na volta de uma batalha escutou  o  chamado  de  uma  jovem acorrentada  ao  mar,  Andrômeda,  que seria  devorada  por  Cetus,  um  enorme monstro marinho. Perseu retirou a cabeça de Medusa da bolsa e apontou­a em direção ao monstro que afundou petrificado.  Para os astecas, a constelação conhecida por nós como Ursa Maior, representa o deus Tezcalipoca,  deus  sombrio  que  teve  um  dos  seus  pés  devorado  pelo  monstro  celeste, geralmente  associado  à  morte.  Já  na  tradição  hindu,  as  sete  estrelas  mais  brilhantes dessa mesma constelação são as moradas dos sete Rishis, os sete sábios primordiais. Uma mesma constelação pode ter diferentes significados para diferentes culturas. Aqui é  que  percebemos  a  riqueza  cultural  que  faz  jus  aos  olhos  e  corações  humanos, percebemos  as  diferenças  que  nos  unem,  sejam  em  nossos  medos  e  anseios  ou  nas maravilhas que observamos. Mas o que devemos realmente lembrar é que o céu, em toda a sua imensidão, abriga com seus enormes braços todos os olhares e sentimentos humanos,  sem  fazer  distinção  de  tempo,  cor,  forma  ou  região  física.  Somos  todos iguais perante o mesmo firmamento. Ana Carolina Pimentel é graduanda em ciências exatas e com habilitação em física pela Universidade  de  São  Paulo.  Pesquisadora  de  história  da  ciência  e  divulgadora  da astronomia  e  sua  história  no  Observatório  da  USP  e  na  Sociedade  Brasileira  para  o Ensino da Astronomia. Referências bibliográficas CORRÊA,  Ivânia  Neves,  et  al.  O  céu  dos  índios  Tembé.  Belém:  Planetário  do  Pará/ UEPA, 2000. MARTINS, Roberto de Andrade. O universo: teorias sobre sua origem e evolução. São Paulo: Editora Moderna, 1996. Mitos antigos da China, livro de Fênix. China, Beijing: Edições em Línguas Estrangeiras Baiwanzhuang N°24. PANNEKOEK, A. A history of astronomy. Canadá: Dover, 1989. PUGLIESE, Márcio. Mitologia greco­romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2003. VERDET, Jean­Pierre. O céu, mistério, magia e mito. São Paulo: Objetiva, 1987.