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REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Desvelo do firmamento
Por Ana Carolina Pimentel
10/08/2007
Desde muito cedo, o passeio dos planetas em meio ao quadriculado fixo das estrelas,
os rasgos no céu provocados por estrelas cadentes, o brilho da Lua sendo ofuscado por
uma sombra escura em um eclipse e muitos outros fenômenos intrigam e chamam a
atenção dos homens. Até mesmo os fenômenos mais próximos, como os relâmpagos,
trovões e chuvas que provocavam grandes enchentes manifestavam a cólera celeste e
eram motivo de curiosidade aos olhos de nossos ancestrais. Temos então a projeção
dos sentimentos humanos enriquecendo o céu com uma infindável manifestação de
idéias populares, mitos e folclores, na tentativa de descrever e conhecer esses belos
fenômenos. As lendas possuem variações e muitas vezes têm a sua estrutura central
repetida em diferentes culturas. Veremos aqui apenas algumas concepções que, por
serem transmitidas oralmente, sofreram certas alterações enquanto as areias do tempo
escorriam pelas mãos dos homens.
Universum Representação do Universo gravada em madeira, usada
por Camille Flammarion na sua obra L'atmosphère: météorologie populaire, (Paris, 1888)
Esses mitos celestes revelam a história do próprio homem, suas crenças e anseios
inspirados na convicção íntima de sua própria cultura. Não se trata de apresentar a
ciência culta do céu, nem de descrever a hesitação humanitária, mas sim o delinear de
imagens e símbolos que se embaralham no imaginário coletivo tendo o céu e os astros
como pano de fundo. Trilhamos esses caminhos desvendando a profusão de vozes e
riquezas que herdamos das diferentes culturas que habitam nosso planeta.
A ascendência da causa
A inquietude acerca de sua própria existência é uma característica humana. Mesmo em
diferentes culturas encontramos, muitas vezes, explicações semelhantes.
Para os andamanes, uma das etnias mais antigas da Ásia, o deus supremo é chamado
de Puluga. Ele habita o céu, sua voz é o trovão, o vento é seu sopro e o furacão seu
sinal de cólera. Como a humanidade o esquecia além da conta, para punir os homens,
ele desencadeou um dilúvio que poupou a vida de apenas quatro privilegiados. Puluga
tem os atributos físicos do deus grego Zeus e o comportamento de Javé, do povo
judeu.
Ou seja, os indianos, como os ocidentais, têm seu dilúvio. E esses dois dilúvios têm
vários pontos em comum: um único ser é avisado do desastre iminente e esse único
ser é salvo; para nós ocidentais, este personagem é Noé e para os indianos é Manu.
Ambos recebem a ordem de construir uma embarcação. Mas a significação religiosa do
dilúvio de Noé é diferente da do dilúvio de Manu. No caso indiano, ele não é um castigo
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e entra na ordem natural de um mundo que, sem se extingüir totalmente, dissolvese
periodicamente para ressurgir de uma maneira reorganizada.
O reino no céu
Resvalandonos pelo enredo mágico dos mitos percebemos que nem sempre o Sol é
lembrado, embora detenha grande prestígio em algumas comunidades. Apenas algumas
culturas em nosso planeta promoveram cultos solares e podemos observar até mesmo
a necessidade de organizar uma estrutura política em algumas sociedades: o rei, ou o
imperador, filho do Sol, reina sobre a ordem social como o Sol reina sobre a ordem
cósmica.
No Togo, os dagombas dizem que há sobre o Sol um campo de feira que pode ser visto
quando há um halo em volta desse astro. Nesse campo, vive o carneiro de deus.
Quando o animal bate os cascos no Sol, troveja, quando abana o rabo, relampeja.
Quando chove, é porque caem flocos de neve de seu velo, e, se sopra o vento, é
porque ele está galopando pelo campo.
Para os egípcios, o Sol se tornou a mais importante de todas as divindades e, em
especial, podemos citar Heliópolis, que apresenta diversos cultos solares dando ao Sol
diversos nomes. Como disco solar, chamavase Aton, mas como sol nascente, tornava
se Khépri e era, então, aquele escaravelho gigante empurrando para frente o globo
solar, assim como o escaravelho empurra uma bolinha de estrume, na qual,
acreditavam os egípcios, ele escondia os ovos de onde surgiria a vida. Chegando ao
zênite, o Sol, tornase Rá, o deus de Heliópolis. Enfim, no poente, era apenas o velho
Aton. Adotava também o nome de Hórus e, quando se queria associar as propriedades
de Rá e de Hórus, davaselhe o nome de RáHorakhti. Assumindo o aspecto de um
disco alado, ele, então, emergia no horizonte num esplendor que se renova a cada dia.
O véu escuro
A Lua suscita uma literatura abundante. Muitas vezes é objeto de superstições ou
observações curiosas e, em seus passeios pelo véu escuro da noite, convida os olhos
mais singelos ou poéticos para notarem sua bela feição. A Lua nos apresenta sempre a
sua mesma face, enriquecida por manchas maiores ou menores que, em diferentes
tradições, representam nas lendas diferentes figuras, sejam elas de humanos ou de
animais.
No céu dos índios TembéTenetehara, habitantes das regiões do rio Gurupi no Pará, a
Lua é um indiozinho chamado Zahy, filho de um casal que por muito tempo não
conseguia ter filhos e quando já haviam perdido suas esperanças foram abençoados por
todos os deuses com esse nascimento. Diz a lenda, que muito cedo Zahy desejou sua
tia, uma mulher proibida, mas quebrou seu destino e muitas tradições dessa tribo.
Mesmo sabendo que sua tia deveria ter um destino diferente do seu, Zahy não
controlou seu amor. Sempre que a noite chegava, o indiozinho seguia às escondidas
para a casa de sua tia para importunála. Isto aconteceu noite após noite, até que a
jovem, sem saber quem a procurava, pediu conselhos à índia mais velha.
Foi sugerido à moça uma armadilha. Ela deveria lambuzar seus dedos com jenipapo e
aguardar a partida de Kwarahy (Sol). Naquela noite Zahy foi mais uma vez ao encontro
de sua tia. Ela afagou o rosto desconhecido diversas vezes, seguindo os conselhos da
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velha índia. No dia seguinte, Zahy acordou, foi lavar seu rosto no rio e só então
percebeu o que havia acontecido. Por mais que ele lavasse o rosto as manchas não
desapareciam. Todos então descobriram quem era o amante misterioso e baniram
Zahy da Terra, que foi transformando em Lua e condenado a viver eternamente no céu.
Os índios contam esta lenda aos pequenos para explicar as manchas que vemos na Lua
e explicam que há um período, a Lua Nova, em que não podemos ver Zahy no céu à
noite, pois é o período em que ele está lavando seu rosto. Depois de um tempo ele
reaparece, período da Lua Crescente, trazendo chuva, a água que ele lavava seu rosto,
que escorre do céu. A Lua Cheia é o período que podemos ver seu rosto ainda
manchado de jenipapo.
Entre os hotentotes da África do Sul, temos as manchas da Lua associadas a uma lebre.
Diz a lenda que a Lua, certa vez, encarregou um piolho de anunciar aos homens que
eles teriam um destino semelhante ao seu e que morreriam para reviver. Pelo caminho
o piolho encontrou uma lebre que declarou ser mais veloz e que por isso levaria a
mensagem aos homens. Mas as lebres perdem a memória quando correm e ela se
enganou com a mensagem, dizendo aos homens que eles, como a Lua, minguariam e
morreriam. A Lua ficou muito contrariada com a deturpação de sua mensagem e
brandiu um pedaço de pau que atingiu o lábio da lebre. Desde então, o lábio da lebre é
fendido.
A desordem cósmica
Os eclipses e também os cometas com suas aparições repentinas parecem provocar um
desalinho no arranjo celeste e ocupam então lugar privilegiado no imaginário popular.
São sempre os associados ao terror, à morte, à vingança e outros sentimentos de
transtorno.
Na China, uma lenda sobre os eclipses do Sol e da Lua diz que Hou Yi, um famoso
arqueiro, havia destruído 9 dos 10 sóis que assolavam a Terra; deixando apenas um.
Com o passar dos anos o Sol tornouse preguiçoso e houve uma época em que ficou
meses sem aparecer. A vida na Terra começou a se esvair. Foi então que Yandi, o
imperador celeste, enviou seu fiel mensageiro com instruções de supervisionar o Sol
em suas tarefas diárias. Antes de partir, Yandi pegou um ramo da árvore Ruo, que só
cresce no céu ocidental para acordar o Sol. Yandi usou este ramo diversas vezes para
limpar o céu das nuvens negras e da poeira que impediam o Sol de brilhar. Entretanto,
a tarefa mais importante de Yandi com o ramo de Ruo era acertar Lung, um dragão
negro que vivia a devorar com especial voracidade as estrelas do céu e que não
hesitava em tentar devorar o Sol e a Lua (causando eclipses) quando estava faminto.
Já a Lua escandinava é habitada pelo cão Managarm que tem a função de avisar os
homens quando avista Sköl e Hati, dois lobos famintos que vagueiam no céu e
constantemente devoram o Sol e a Lua, vomitandoos em seguida.
Para algumas culturas ocidentais, quando um cometa invadia o céu, era o diabo que
havia acendido um cachimbo e jogado fora o acendedor. Ao aparecer um cometa era
preciso vigiar o local onde ele surgiu, a região para onde ele se desloca, a estrela que
o influencia e a forma que ele adquire. Se o cometa tiver o aspecto de uma flauta,
tratase de um presságio relacionado à arte musical, se aparecer nas partes pudendas
de alguma constelação, tem a ver com a depravação de costumes.
Alinhamento estelar
As imagens colocadas pelos homens no céu testemunham seus interesses e
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preocupações. Quando as culturas dependiam da caça para sobreviver, viam no alto do
firmamento cães, tatus, jacarés, emas, ursos ou leões. Se fossem povos que
dependiam de embarcações viam bússolas ou popas de navios. Povos guerreiros viam
seus heróis e as grandes conquistas eram atribuídas às estrelas.
Para os gregos, Pégaso, o cavalo alado,
nasceu de uma triste história de amor.
Perseu, um guerreiro grego muito
amado pelos deuses, recebeu o broquel
espelhado de Minerva, que o impedia de
ser ferido por seus inimigos, o capacete
de Plutão, que o tornava invisível, e as
sandálias de Mercúrio, que o tornava
veloz. Graças a esse armamento divino
e também à sua coragem, venceu os
Górgonas e cortou a cabeça de Medusa.
Porém, a cabeça recém cortada
derramou uma gota de sangue nas
águas e Poseidôn, rei dos mares que, ao
perceber que sua amada Medusa havia
morrido, fez emergir deste encontro de
sangue e águas uma espuma branca que
deu origem a Pégaso.
Desde essa luta, Perseu passou a
carregar a cabeça de Medusa em uma
espécie de bolsa mágica para petrificar
seus inimigos. Na volta de uma batalha
escutou o chamado de uma jovem
acorrentada ao mar, Andrômeda, que
seria devorada por Cetus, um enorme
monstro marinho. Perseu retirou a cabeça de Medusa da bolsa e apontoua em direção
ao monstro que afundou petrificado.
Para os astecas, a constelação conhecida por nós como Ursa Maior, representa o deus
Tezcalipoca, deus sombrio que teve um dos seus pés devorado pelo monstro celeste,
geralmente associado à morte. Já na tradição hindu, as sete estrelas mais brilhantes
dessa mesma constelação são as moradas dos sete Rishis, os sete sábios primordiais.
Uma mesma constelação pode ter diferentes significados para diferentes culturas. Aqui
é que percebemos a riqueza cultural que faz jus aos olhos e corações humanos,
percebemos as diferenças que nos unem, sejam em nossos medos e anseios ou nas
maravilhas que observamos. Mas o que devemos realmente lembrar é que o céu, em
toda a sua imensidão, abriga com seus enormes braços todos os olhares e sentimentos
humanos, sem fazer distinção de tempo, cor, forma ou região física. Somos todos
iguais perante o mesmo firmamento.
Ana Carolina Pimentel é graduanda em ciências exatas e com habilitação em física pela
Universidade de São Paulo. Pesquisadora de história da ciência e divulgadora da
astronomia e sua história no Observatório da USP e na Sociedade Brasileira para o
Ensino da Astronomia.
Referências bibliográficas
CORRÊA, Ivânia Neves, et al. O céu dos índios Tembé. Belém: Planetário do Pará/
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MARTINS, Roberto de Andrade. O universo: teorias sobre sua origem e evolução. São
Paulo: Editora Moderna, 1996.
Mitos antigos da China, livro de Fênix. China, Beijing: Edições em Línguas Estrangeiras
Baiwanzhuang N°24.
PANNEKOEK, A. A history of astronomy. Canadá: Dover, 1989.
PUGLIESE, Márcio. Mitologia grecoromana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo:
Madras, 2003.
VERDET, JeanPierre. O céu, mistério, magia e mito. São Paulo: Objetiva, 1987.