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Universidade Federal de Santa Catarina
Universidade Federal de Santa Catarina
Pró-Reitoria de Pós-Graduação
Coordenadoria de Educação Continuada
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Estudos de Gênero
Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola
Coleção Livros Didáticos do GDE UFSC
Miriam Pillar Grossi, Olga Regina Zigelli Garcia, Pedro Rosas Magrini (Editoras)
Livro 2 – Módulo II
4. Gênero, diversidade sexual e religião
5. As diferenças de gênero no espaço escolar
Ficha Catalográfica
Elaborada por Sibele Meneghel Bittencourt - CRB 14/244
E73 Especialização em gênero e diversidade na escola : Livro II,
Módulo II / Miriam Pillar Grossi, Olga Regina Zigelli
Garcia, Pedro Rosas Magrini (coord.). - - Tubarão : Ed.
Copiart, 2016.
143 p. : il. color. ; 28 cm. - (Livros didáticos do GDE/
UFSC)
ISBN 978.85.8388.056.1
1. Sexo - Diferenças (Educação). 2. Identidade de
gênero na educação. 3. Prática de ensino. I. Grossi, Miriam
Pillar, coord. II. Garcia, Olga Regina Zigelli, coord. III. Magrini,
Pedro Rosas, coord.
CDD (22. ed.) 306.43
2015
Copyright@2015. Universidade Federal de Santa Catarina / Instituto de Estudos de
Gênero. Nenhuma parte desse material poderá ser reproduzida, transmitida e gra-
vada, por qualquer meio eletrônico, fotocópia e outros, sem a prévia autorização,
por escrito, das/os autoras/es.
CAPA: Rochelle dos Santos e William Carvalho (UFSC)
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: William de Carvalho (UFSC)
GROSSI, Miriam Pillar; GARCIA, Olga Regina Z.; MAGRINI, Pedro Rosas (org.).
Livro 2 – Módulo II- Gênero, diversidade sexual e religião; As diferenças de
gênero no espaço escolar. Florianópolis: Instituto de Estudos de Gênero / /
Centro de Filosofia e Ciências Humanas / UFSC, 2015. 141p. Livro didático.
Inclui bibliografia
Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola, modalidade a
Distância.
1. Gênero. 2. Diversidade. 3. Sexualidades. 4. Religião. 5. Escola.
Dilma Vana Roussef
PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Eleonora Menicucci
MINISTRA DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SPM/PR
Renato Janine Ribeiro
MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Adriano Almeida Dani (Substituto)
SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E IN-
CLUSÃO – SECADI / MEC
Nilma Lino Gomes
SECRETÁRIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL – SEPPIR/MEC
Roselane Neckel
REITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
Joana Maria Pedro
PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATA-
RINA – PROPG/UFSC
Mara Coelho de Sousa Lago
Miriam Pillar Grossi
Zahidé Lupinacci Muzart
COORDENADORAS DO INSTITUTO DE ESTUDOS DE GÊNERO – IEG/UFSC
Equipe do Curso de Especialização Gênero e Diversidade na Escola – IEG/UFSC –
Edição 2015
Coordenação do Projeto GDE Especialização
Miriam Pillar Grossi e Olga Regina Zigelli Garcia – Coordenação Geral
Marie-Anne Stival Pereira e Leal Lozano – Coordenação de Ambiente de Ensino Vir-
tual (AVEA)
Pedro Rosas Magrini – Coordenação Editorial
Carmem Vera Ramos – Coordenação Financeira
Jonatan Pereira - Secretário do GDE UFSC
Quadro Docente do Curso GDE UFSC
Professoras/es doutoras/es Adriano Henrique Nuernberg (Departamento de Psicolo-
gia UFSC), Amurabi Pereira de Oliveira (Departamento de Sociologia Política UFSC),
Antonela Maria Imperatriz Tassinari (Departamento de Antropologia UFSC), Carmem
Silvia Rial (Departamento de Antropologia UFSC), Claudia Lima Costa (Departamento
de Letras e Literatura Vernáculas UFSC), Cristina Scheibe Wolff (Departamento de
História UFSC), Fernando Cândido da Silva (Departamento de História UFSC), Janine
Gomes da Silva (Departamento de História UFSC), Jair Zandoná (Departamento de
Língua e Literatura Vernáculas , Leandro Castro Oltramari (Departamento de Psico-
logia UFSC), Luciana Patricia Zucco (Departamento de Serviço Social UFSC), Luzinete
Simões Minella (Departamento de Sociologia Política UFSC), Mara Coelho de Souza
Lago (Departamento de Psicologia), Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC), Marivete Gess-
er (Departamento de Psicologia UFSC), Miriam Pillar Grossi (Departamento de Antro-
pologia UFSC), Olga Regina Zigelli Garcia (Departamento de Enfermagem UFSC), Re-
gina Ingrid Bragagnolo (Núcleo do Desenvolvimento Infantil UFSC), Rodrigo Moretti
(Departamento de Saúde Pública UFSC), Tania Welter (Pós-doutoranda PPGAS), Teo-
philos Rifiotis (Departamento de Antropologia Social UFSC); Tereza Kleba Lisboa (De-
partamento de Serviço Social UFSC).
Revisão de Conteúdo
Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini
NOTA / GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA - GDE
Gênero e Diversidade na Escola é um projeto destinado à formação de profission-
ais da área de educação que também permite a participação de representantes de
Organizações Não Governamentais (ONGs) e de movimentos populares, buscan-
do a transversalidade nas temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual e
relações étnico-raciais. A concepção do projeto é da Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM/PR) e do British Council, em parceria com a Secretaria de Ed-
ucação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI/PR), Secretaria
de Ensino a Distância (SEED-MEC), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR/PR) e o Centro-Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
(CLAM/IMS/UERJ).
PÓLOS PRESENCIAIS – GDE ESPECIALIZAÇÃO 2015
CONCÓRDIA
PREFEITO – João Girardi
COORDENADORA DO PÓLO – Leonita Cousseau
ENDEREÇO – Travessa Irmã Leopoldina. Nº: 136. Centro. Concórdia – SC.
CEP: 89700-000
Tel: (49) 3482-6029.
FLORIANÓPOLIS
PREFEITO – Cesar Souza Júnior
COORDENADORA DO PÓLO – Fabiana Gonçalves
ENDEREÇO – Rua Ferreira Lima, nº82. Centro. Florianópolis – SC.
CEP: 88015-420
Tel: (48) 2106-5910 / 2106-5900
ITAPEMA
PREFEITO – Rodrigo Costa
COORDENADORA DO PÓLO – Soeli Uga Pacheco
ENDEREÇO – Rua 402-B. Morretes. Prédio Escola Bento Elóis Garcia. Itapema – SC.
CEP: 88220-000.
Tel: (47) 3368-2267 / 3267-1450
LAGUNA
PREFEITO – Everaldo dos Santos
COORDENADORA DO PÓLO – Maria de Lourdes Correia
ENDEREÇO – Rua Vereador Rui Medeiros. Portinho. Laguna – SC.
CEP: 88790-000.
Tel: (48) 3647-2808
PRAIA GRANDE
PREFEITO – Valcir Daros
COORDENADORA DO PÓLO – Sílvia Regina Teixeira Christovão
ENDEREÇO – Rua Alberto Santos. Nº: 652. Centro. Praia Grande – SC.
CEP: 88990-970
Tel: (48) 3532-1011
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................... 13
Miriam Pillar Grossi, Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini
I. Disciplina 4
Gênero, diversidade sexual e religião
1. Ensino, religião e educação.................................................................................. 15
Tânia Welter
2. Educação laica e ensino brasileiro...................................................................... 29
Tânia Welter
3. Representações e relações de gênero em diferentes grupos religiosos......... 40
Fernando Candido da Silva
4. Direitos reprodutivos e religião: ensinando a transgredir................................ 57
Isabel Aparecida Felix
II. Disciplina 5
As diferenças de gênero no espaço escolar
1. Políticas públicas de gênero no campo da educação......................................... 71
Mareli Eliane Graupe
Lúcia Aulete Búrigo de Sousa
2. Gênero e educação............................................................................................. 111
Mareli Eliane Graupe
Lúcia Aulete Búrigo de Sousa
3. Diversidade como princípio pedagógico inclusivo........................................... 121
Regina Ingrid Bragagnolo
Raquel Barbosa
12
Apresentação
É com imensa satisfação que apresentamos o segundo volume da Coleção Editorial
de Livros Didáticos da Especialização à distância em Gênero e Diversidade na Escola
(GDE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), referente ao módulo II do
curso.
A primeira disciplina deste segundo módulo, Gênero, diversidade sexual e religião,
está dividida em quatro capítulos. No primeiro, Ensino, Religião e Educação, Tânia
Welter procura demonstrar a força da denúncia profética de agentes e discursos re-
ligiosos que impossibilitam a construção de um mundo de justiça e diversidade. No
segundo capítulo, Educação laica e ensino Brasileiro, a mesma autora discorre sobre
as relações entre educação e religião, em especial, a relação entre ensino religioso
e o Estado laico. No terceiro capítulo, Representações e relações de gênero em dif-
erentes grupos religiosos, Fernando Cândido da Silva reflete que a articulação entre
gênero e religião não implica, necessariamente, na simples eliminação do religioso,
mas antes sugere, uma revisita – laica e democrática – aos temas do sagrado. Por úl-
timo, o capítulo Direitos reprodutivos e religião de Isabel Aparecida Felix, apresenta
uma reflexão sobre o imprescindível engajamento pedagógico em prol da conscien-
tização em torno dos direitos reprodutivos.
A segunda disciplina, As diferenças de gênero no espaço escolar, está dividida em
dois capítulos. O primeiro, assinado por Mareli Graupe e Lúcia Aulete Búrigo de Sou-
sa, apresenta a discussão das políticas públicas de gênero no campo da educação e da
formação de professoras/es. O segundo, também escrito pelas duas autoras, aborda
o conceito de gênero e a importância da articulação entre gênero e educação. O ter-
ceiro capítulo, de Regina Ingrid Bragagnolo e Raquel Barbosa, trata da temática das
relações de gênero no cotidiano escolar, estereótipos sexuais, violências de gênero
e a luta contra as desigualdades de gênero. As quatro autoras buscam, através do
texto, estimular a/o cursista a iniciar ou dar continuidade aos seus estudos em gêne-
ro no campo da educação, especialmente através do desenvolvimento de atitudes e
práticas reflexivas no cotidiano escolar.
13
Ressaltamos que temos consciência que este livro didático é uma obra inacabada,
uma vez que estas temáticas estão em constante construção e transformação, mas
acreditamos que ele tenha potencial para a provocação do exercício da ação-reflex-
ão-ação nas práticas pedagógicas.
Boa leitura!
Profa Dra Miriam Pillar Grossi (Departamento de Antropologia UFSC)
Profa Dra Olga Regina Zigelli Garcia (Departamento de Enfermagem UFSC)
Pós-doutorando Pedro Rosas Magrini (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –
PPGAS/UFSC)
Editoras da Coleção Livros Didáticos do GDE UFSC
15
Ensino, religião e educação
Tânia Welter
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua
pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para
odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem
aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar (Nel-
son Mandela).
Inspirada nessa epígrafe do líder sul africano Nelson Mandela, proponho refletirmos
sobre ensino numa interface com religião e diversidade sexual, tendo como person-
agens principais homens e mulheres, meninos e meninas, jovens e adultos, que sabe-
mos têm históricos, corpos e desejos diferenciados. São sujeitos sociais em constan-
tes e dinâmicos “jogos sérios” com outros sujeitos1
.
Falar sobre educação escolar implica reco¬nhecer: (a) as diferenças sócio-históricas
das/os sujeitos que compõem a escola – estudantes e educadoras/es2
; (b) que seus
corpos são genereificados, sexualizados, racializados, marcados por especificações
sociais de gênero, orientação sexual, raça, etnia, religião, classe social e outras; e (c)
dessemelhanças nas nomeações, representações e identidades que dizem respeito
a estilos de vida, preferências estéticas, imagens corporais, acesso a bens materi-
ais, entre outras. A partir disso, é possível formular uma primeira constatação: assim
como na sociedade, a diversidade está presente no espaço escolar.
1
A categoria “sujeitos sociais” está sendo apropriada aqui na perspectiva de Shery Ortner (2007, p.
74), ou seja, como agentes inseridos em teias de relações de afeto, solidariedade, poder e rivalidade.
Não são agentes totalmente livres, nem para formular e atingir suas metas, nem para controlar suas
relações, e atuam dentro de teias de relações que compõem seus mundos sociais. Essa categoria
parece adequada para entender os sujeitos-agentes da escola, que sabemos que possuem desejos,
intenções, objetivos e projetos em constantes e dinâmicas disputas com outros sujeitos: estudantes,
educadoras/es, pais e legislações.
2
Por entender sua ação direta na formação de estudantes, estou utilizando o termo educador para
definir o conjunto de profissionais que atua na escola: professoras/es, técnicos em assuntos educacio-
nais, especialistas em educação, agentes de serviços gerais, de vigilância, de segurança e de cozinha,
bibliotecária/o, entre outras.
16
Escola, escolas
A escola, desde sua criação, distinguiu e separou sujeitos: distinguia quem tinha e
quem não tinha acesso a ela e, nela separava adultos de crianças, católicos de prot-
estantes, negros de brancos, ricos de pobres, meninos de meninas (LOURO, 1997).
Importante ressaltar que houve um tempo em que esta distinção era ainda mais seg-
regadora e tinha respaldo na legislação, uma vez que havia, por exemplo, leis que
proibiam que escravos, africanos libertos e mulheres frequentassem as escolas.
(SANTA CATARINA, 2014).
Neste cenário, crianças com deficiências ou com diferenças comportamentais e emo-
cionais foram, por muito tempo, excluídas do convívio com outras crianças. Grupos
étnicos foram proibidos do uso de suas línguas maternas, como nos casos dos indíge-
nas, dos descendentes de africanos ou dos imigrantes de europeus e asiáticos. Além
disto, grande parte dos conteúdos da escola e livros didáticos pautava-se por uma
visão etnocêntrica, masculina e burguesa na qual a liberdade religiosa era restrita
aos praticantes do segmento religioso dominante – cristão.
A transformação nesse modelo não impediu muitas instituições escolares de promov-
erem distinções e desigualdades entre sujeitos sociais, especialmente estudantes3
,
mas também educadoras/es, tendo como base: classe social, sexo, gênero, religião,
cor de pele, orientação sexual ou outros atributos. Neste contexto, a escola se apre-
senta muitas vezes como espaço para experiências e relações assimétricas, estímulo
para valores hegemônicos, repressões e opressões sobre padrões não hegemônic-
os, exercícios de poder, promoção de desigualdades, conflitos e violências (macro e
micro)4
, as quais nem sempre são penalizadas, e, dessa forma, promoveu e promove
também uma invisibilidade dos conteúdos da diversidade servindo como uma das
estratégias de sua homogeneização.
A escola, portanto, é um espaço contraditório, ao mesmo tempo que é reconhecida
como espaço para produção e socialização de conhecimentos (MENDONÇA, 2011),
servindo para encontros e produções de diferenças, distinções e desigualdades.
Poderia ser ela, um espaço para formação, reflexão, desconstrução e desnatural-
ização das violências e desigualdades?
3
Essa discussão pode ser encontrada em Guacira Louro (1997), Marília Carvalho (2008), Sérgio Carrara
et al. (2009).
4
Ideia inspirada em Miriam Abramovay (2003).
17
O direito à liberdade religiosa e sexual
O direito à liberdade de culto está previsto na legislação nacional desde a consti-
tuição de 1824, mesmo reconhecendo a Igreja Católica como a religião oficial5
. Na
prática, o Brasil é um país multicultural e plurireligioso desde antes do período da
colonização europeia. As múltiplas formas de religiosidade (mesmo no contexto do
cristianismo) trazidas da Europa pelos conquistadores conviveram e misturaram-se
a crenças e práticas dos povos tradicionais e das múltiplas religiosidades africanas
trazidas por meio do tráfico para o Brasil (MUSSKOPF, 2013; WELTER, 2007; SERPA,
1997).
Essa relação nunca foi harmoniosa e respeitosa, mas repleta de disputas, conflitos
e perseguições às religiões e religiosidades minoritárias. As perseguições ocorridas,
inclusive no interior dos próprios grupos, foram realizadas por instituições religiosas
e escolares, muitas vezes disfarçando-se de afirmação da ortodoxia e prática verda-
deira, e “[...] não raro aparelharam o Estado para a efetivação de suas concepções e
práticas na esfera pública.” (MUSSKOPF, 2013, p. 160).
Segundo Emerson Giumbelli (2005), cada religião tem suas dinâmicas
que dialogam não apenas entre si, mas com forças do
campo social mais amplo. Às vezes, a rigidez em uma
dimensão é contrabalançada pela porosidade de
outra. E nenhuma delas, isoladamente, pode resumir
a totalidade de uma religião; ao contrário, cada uma
dessas dimensões é plural, embora essa pluralidade
frequentemente fique ocultada sob visões e pronun-
ciamentos mais peremptórios. (GIUMBELLI, 2005, p.
12).
A afirmativa deste antropólogo sugere ser necessário romper com a ideia monolíti-
ca de religião e esforçar-se para pensar amplamente em perspectivas religiosas ou
religiosidades. Religiosidade6
como uma experiência eminentemente subjetiva, in-
efável e composta pelo conjunto de disposições referentes ao sagrado transcenden-
5
Para uma análise da complexa e conflituosa relação entre legislação e igreja confessional, ver André
Musskopf (2013).
18
6
Religiosidade como o “[...] conjunto socialmente difuso de sentimentos, crenças e práticas referentes
ao sagrado que podem ou não institucionalizar-se em sistemas e organizações religiosas [...]. Cabem
neste campo tanto as formas religiosas institucionalizadas quanto as expressões do sagrado não estru-
turadas, inclusive aquelas que não se reconhecem a si como propriamente religiosas” (OLIVEIRA, 1999,
p. 1).
7
O sagrado é tomado aqui como aquilo que possui um caráter divino, religioso, e, ao adquirí-lo, não
pode ser tocado, violado ou infringido.
8
Forma de descrever populações “não heterossexuais” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009).
te7
(OLIVEIRA, 1999). Apesar de ser subjetiva e individualizada, a identidade religiosa
é constituída a partir das relações sociais e do contato dos sujeitos com princípios,
valores, práticas, símbolos e rituais religiosos que são coletivos. A partir desse conta-
to é que o sujeito pode ou não sentir desejo de ter acesso ao sagrado transcendente.
Esse processo pode ocorrer de forma gradual a partir das relações familiares e comu-
nitárias ou diretamente em perspectivas religiosas, institucionalizadas ou não.
A perspectiva religiosa é um modo de ver, aprender e compreender, uma forma par-
ticular de olhar a vida, uma maneira particular de construir o mundo (GEERTZ, 1978).
Ela difere do senso comum, porque se move além das realidades da vida cotidiana e
da científica, porque questiona as realidades da vida cotidiana e da estética e porque
se preocupa com o fato.
No que tange a liberdade sexual, podemos afirmar que a relação com a diversidade
sexual8
também nunca foi tranquila, nem tampouco sua vivência garantida pela leg-
islação. Cunhado no contexto conhecido como medicalização das relações homoafe-
tivas no século XIX, o termo “homossexualismo” representava as diversas teorias
explicativas sobre orientação sexual e identidade de gênero (termos e conceitos re-
centes) desviantes da heterossexualidade, desenvolvidos com o objetivo de descrim-
inalizar as pessoas, suas identidades e práticas (MUSSKOPF, 2013).
Os discursos médicos sobre a homossexualidade promoveram consequências nefas-
tas sobre indivíduos, mas também fomentaram o surgimento de organizações por
direitos civis homossexuais nos anos cinquenta do século vinte. A substituição do
termo “homossexualismo” (associado a algum tipo de patologia) por “homossexuali-
dade” refletiu uma mudança significativa nas décadas de 1960-70, com a organização
de movimentos sociais e a configuração de uma área de produção conhecida como
Estudos Gays e Lésbicos. Com o aprofundamento das pesquisas acadêmicas sobre
gênero e sexualidade, o desenvolvimento dos estudos queer e a multiplicação das
siglas – GLS, GLBT, LGBT, LGBTTT, LGBTI –, o tema da homossexualidade foi desloca-
19
do para uma perspectiva da diversidade sexual, na qual se enquadram as expressões
“orientação sexual” e “identidade de gênero” (MUSSKOPF, 2013).
Os movimentos sociais têm reivindicado leis e políticas públicas visando à proteção
e respeito da população LGBT e à criação de instrumentos de combate à intolerân-
cia, comumente chamada de homofobia, mas também lesbo e transfobia9
, sexis-
mo, heterossexismo10
, machismo. No Brasil, “a homofobia é um conceito que liga os
movimentos LGBTTT com os Estudos de Gênero e feminismos, bem como com out-
ros movimentos sociais, como, e.g., os movimentos negro ou ambientalista.” (FER-
NANDES, 2011, p. 67). Ela se configurou como “[...] uma categoria capaz de responder
a interpretações sobre as violências individuais e coletivas, materiais e simbólicas,
que orientam as práticas que estão à margem dos padrões hegemônicos de sexuali-
dade.” (FERNANDES, 2011, p. 67-68).
Pedagogias, estratégias e exclusões
Embora existam legislações (gerais e específicas), orientações e formações, obser-
va-se, nas escolas brasileiras, o uso recorrente de pedagogias excludentes por parte
de estudantes e educadoras/es diante de expressões de gênero, sexuais ou religio-
sas não normativas. Alguns estudos aprofundaram essas questões. Na pesquisa de
Stela Caputo (2012), por exemplo, a autora acompanhou e entrevistou crianças e jo-
vens iniciadas/os e praticantes do Candomblé durante 20 anos. As/os informantes
relataram que foram discriminados por seu pertencimento religioso por suas/seus
professoras/es e sofreram retaliações e exclusões por parte de colegas. Um menino
de quatro anos contou que foi chamado de “filho do diabo” por sua professora e uma
menina de sete anos contou que na escola “só gostam de alunos crentes” e, por isso,
deseja se tornar crente. Para se protegerem das agressões sofridas, muitos dessas/
es estudantes contaram que utilizaram estratégias para se tornarem invisíveis na es-
cola, como: esconder seu pertencimento religioso; afirmar ser católico; participar de
9
Para Daniel Borrilo, a homofobia é um termo que indica atitude de hostilidade, rejeição irracional ou
mesmo ódio para com os homossexuais. Ela “[...] é uma manifestação arbitrária que consiste em quali-
ficar o outro como contrário, inferior ou anormal.” (BORRILO, 2009, p. 15).
10
Heterossexismo é a atitude de discriminação, negação, estigmatização ou ódio contra toda sexual-
idade não heterossexual. Essa atitude está fundamentada na noção de que a heterossexualidade é
superior e mais desejável às demais formas de orientação sexual (BORILLO, 2009).
20
rituais de iniciação católica; não utilizar colares e guias; esconder “curas”; inventar
doenças para justificar a cabeça raspada “para o santo”, entre outras.
Além dos relatos das/os estudantes, a pesquisadora realizou também entrevistas
com as professoras sobre a religiosidade dessas crianças e jovens. A partir das res-
postas, concluiu que elas “não são vistas”, “não existem” ou, “quando existem”, são
encaradas pelas/os professoras/es como um problema, mas “que pode ser resolvi-
do”. Assim, para Stela Caputo, mais do que sincretismo religioso, estas são ações
discriminatórias, formas de silenciamento da diversidade religiosa na escola e ten-
tativas de invisibilização das singularidades praticadas por estudantes, mas também
de educadoras/es.
Em outra pesquisa realizada com mais de 50 mil diretoras/es de escolas no Brasil
(questionário respondido à Prova Brasil, 2011), constatou-se que 51% delas cultivam
o hábito de cantar músicas religiosas ou fazer orações na entrada ou saída da sala
de aula e 22% possuem objetos, imagens, frases ou símbolos religiosos expostos em
ambientes públicos das escolas (SALLA, 2013). Para Luiz Cunha e Ana Maria Mendes
de Miranda11
e Roseli Fischmann (POLATO, 2009), ações como estas desrespeitam o
princípio constitucional da laicidade de Estado12
e são formas discriminatórias contra
religiosidades não hegemônicas.
Como sua escola se relaciona com a diversidade religiosa?
Luiz Lopes (2008) afirma que a escola é uma das principais agências de (re)produção
e organização de identidades sociais de forma generificada, sexualizada e racializa-
11
Durante sua participação no programa conexão futura, da TV cultura, exibido em 19 de abril de 2013,
cujo tema era religião na escola. A gravação do programa está disponível em http://www.youtube.com/
watch?v=xik6bczluqo.
12
A laicidade é um dispositivo político que organiza as instituições básicas e públicas do Estado (como
cortes, hospitais, escolas) e regula seus funcionamentos quanto à separação entre a ordem secular e os
valores religiosos. Nesse modelo, não há religião oficial e as liberdades de consciência e de crença são
garantias constitucionais, “[...] o que protege o direito de expressão tanto de crentes religiosos quando
de agnósticos. Não é permitido ao Estado estabelecer vínculos com grupos religiosos, uma exigên-
cia que estimula a neutralidade, a igualdade e a não discriminação no funcionamento das instituições
básicas” (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010, p. 12-13). O dispositivo jurídico da laicidade está presente no
ordenamento constitucional do Brasil, além de ser periodicamente reafirmado pelos acordos interna-
cionais dos quais o Brasil é signatário. (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010).
21
da e defesa de uma lógica monocultural. Para tanto, recorre, entre outras estraté-
gias, àquela que Rogério Junqueira (2009) denominou de “pedagogia do insulto”,
constituída por piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações e expressões des-
qualificantes diante daquelas/es que não se ajustam aos padrões de gênero e de
sexualidade admitidos na cultura em que vivem, mas minorias sociais, como negras/
os, indígenas, mulheres, seguidoras/es de religiões não hegemônica, camponesas/
es e outros grupos. As práticas discriminatórias são pautadas e repetidas incansavel-
mente no espaço escolar, ora através de mensagens normatizadoras, ora através do
silêncio e do consen¬timento da violência. Por meio da “pedagogia do insulto”, estu-
dantes e educadoras/es aprendem a ser hostis à estes grupos, servindo como poder-
oso mecanismo de silenciamento e dominação simbólica.
Agindo dessa forma, a escola reproduz padrões sociais, perpetua concepções, va-
lores e clivagens sociais, participa ou compactua com a normatização de corpos e
identidades13
, legitima relações de poder, hierarquias e processos de acumulação,
estimula a internalização do heterossexismo, misoginia14
, negação, autoculpabili-
zação, autoaversão de jovens e adultos com identidades e desejos sexuais não hege-
mônicos. Muitas vezes, isso ocorre com a participação ou a omissão da família15
, da
comunidade escolar, da sociedade em geral e do Estado.
Ao defender a lógica monocultural, a escola apóia a homogeneização e não contribui
para o reconhecimento e respeito às diferenças existentes (heterogeneização) e nem
para a problematização das desigualdades (LOPES, 2008).
Durante a realização de pesquisas sobre a disciplina de Ensino Religioso e sobre as
representações de iniciação sexual e homossexualidade em escolas públicas de San-
ta Catarina16
, verificou-se o uso recorrente da “pedagogia do insulto” e de discursos
sexistas, homofóbicos, heteronormativos e machistas, muitas vezes, pautados por
argumentos teológicos. A heterossexualidade como “única forma de chegar a Deus”
e o matrimônio heterossexual como “o verdadeiro par” foram utilizados, por exem-
plo, em uma peça teatral numa escola em Santa Catarina. Constatou-se também um
esforço de invisibilização e/ou uso da “pedagogia do armário” por muitos gays, lésbi-
13
Noção inspirada especialmente em Michel Foucault (LOURO, 1997).
14
Sentimento de repulsa ou aversão às mulheres, recorrentemente confundido com machismo.
15
Sobre homofobia familiar, consultar Sarah Schulman (2010).
16
Miriam Grossi, Felipe Fernandes e Fernanda Cardozo (2014) e Miriam Grossi, Maria Amélia Dickie e
Tânia Welter (2014).
22
cas, trans e iniciados em religiões minoritárias (não hegemônicas) como alternativas
para fugir da “pedagogia do insulto”.
As pesquisas apontam que toda forma de discriminação interfere nas expectativas
de sucesso e rendimento escolar; produz intimidação, insegurança, estigmatização,
segregação, isolamento; estimula a simulação para ocultar a diferença; gera desinter-
esse pela escola; produz abandono e evasão, tumultua o processo de configuração e
expressão identitária, levando inclusive a tentativa de suicídio17
. Rogério Junqueira
(2009) afirma também que tais dificuldades tendem a ser ainda maiores, se pessoas
homoeróticas, com identidade ou expressão de gênero “fora do padrão convencio-
nal”, forem pobres, iletrados, negros, indígenas, soropositivos, tiverem deficiência
física ou mental e não puderem (ou não quiserem) “[...] manter um estilo de vida
sintonizado com a celebração hedonista do ‘ser jovem’ e ter um ‘corpo sarado’” (JUN-
QUEIRA, 2009, p. 25)18
.
Costumeiramente, a escola afirma que estudantes evadem da escola. Berenice Ben-
to (2011) se contrapõe a essa ideia afirmando que estudantes que são submetidos à
“pedagogia do insulto” não evadem da escola, mas sim são “expulsos”. Essa análise
indica que a escola tem responsabilidade sobre essas práticas e como agente impor-
tante na constituição de sujeitos, deve estar à frente, problematizar a naturalização
da vida social, os ideais de normalidade, não contribuir com a homogeneização de
corpos, culturas e discursos (LOPES, 2008).
Para tanto, a escola pode e deve ser espaço para reflexões, desnaturalizações,
formações, resistência e inovações, apesar de estar permeada por conflitos e con-
tradições, ser recorrentemente espaço para experiências e relações assimétricas,
estímulo para valores hegemônicos, realização ou conivência com repressões e
opressões sobre padrões não hegemônicos, tornando-se palco para inúmeras violên-
cias que promovem graves consequências pessoais a estudantes e educadoras/es.
17 Ver especialmente os estudos de Marilia Carvalho (2008), Sérgio Carrara et al. (2009), Fernando Teix-
eira-Filho, Carina Rondini e Juliana Bessa (2011).
18 Kimberly Crenshaw (2002) sugere o uso do conceito de interseccionalidade, a fim de capturar os
aspectos estruturais e dinâmicos da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A partir desse
uso, pode-se pensar como o racismo, sexismo e homofobia criam desigualdades que posicionam social
e politicamente alguns grupos.
23
Por uma cultura de direitos humanos
Nas últimas décadas, segmentos e movimentos sociais têm demandado, para o Es-
tado brasileiro e seus órgãos federativos, a necessidade de estabelecimento de
políticas públicas, das quais o campo da educação se destaca. Na recente atualização
da Proposta Curricular de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2014), afirma-se a im-
portância na formação de crianças e jovens na representação das identidades plurais
no currículo e cotidiano escolar, o respeito aos marcos históricos e civilizatórios, o
reconhecimento dos processos históricos e sociais diferenciados e o questionamen-
to da ausência de suas especificidades nos currículos oficiais.
Tendo em vista o preconceito e discriminação vivenciada por grupos minoritários,
que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) afirma ser
obrigatório o ensino de conteúdos históricos sobre populações afro-brasileiras e
indígenas nas escolas19
, o direito à educação e à acessibilidade para indígenas, qui-
lombolas, sujeitos do campo e sujeitos da educação especial; da mesma forma, para
aqueles que se reconstroem em seus direitos, em suas identidades, nos movimentos
de direitos humanos, nas relações de gênero e na diversidade sexual20
. É, no entanto,
necessário intensificar ações de combate a violências e discriminações, fortalecer
e ampliar pactos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos com
medidas e políticas que acelerem a construção de “uma cultura de direitos” em que
se reconheçam as diferentes identidades e sejam garantidos processo de inclusão de
grupos socialmente vulneráveis.
As ações e propósitos firmados no documento (estatal) de Santa Catarina estão rel-
acionados, nas últimas décadas, às lutas históricas, provocações e articulações en-
tre movimentos sociais, seja ele os feministas, LGBTIs, negros, entre outros, e a ac-
ademia brasileira (LOPES, 2008; GROSSI, 2014). Estes movimentos e conhecimentos
acadêmicos demandaram ao Estado brasileiro mudanças nas legislações e criação
de políticas públicas. Com apoio estatal, foram realizadas conferências (municipais,
estaduais e federais) para que a sociedade civil “fosse ouvida” nas demandas e nas
propostas. A partir deste conjunto de fatores e tendo como foco questões de gêne-
19
Referindo-se à Lei n.º 10.639/2003 e Lei nº 11.645/2008.
20
Referindo-se, entre outras, às políticas de ações afirmativas (conhecidas por políticas de cotas) e ao
uso do nome social.
24
ro, sexualidade e étnico raciais, observou-se no Brasil, a partir de 2003, a criação de
secretarias especiais em nível federal, como as:
•Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM);
•Secretaria de Educação Continuada e Alfabetização, Diversidade e Inclusão
(SECADI); e
•Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR).
Além de inúmeras políticas públicas, algumas bastante progressistas, ações afirmati-
vas (políticas de cotas para negros, escola pública e por renda familiar), leis de com-
bate às violências raciais e sexistas, leis para garantir direitos ao casamento e filiação
de pessoas do mesmo sexo, foram criados programas nacionais de formação contin-
uada para educadoras/es em gênero e diversidade sexual e étnico-racial como é o
caso do GDE. Programas anti-homofobia, como o Programa de Combate à Violência
e à Discriminação Contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual chama-
do “Brasil sem Homofobia, entre outras iniciativas como a criação do concurso de
redações “Igualdade de Gênero”, criação de universidades, centros e institutos fed-
erais, cursos de graduação e pós-graduação especiais para educadoras/es (GROSSI,
2014; FERNANDES, 2011).
Diferentemente de outros contextos nacionais, no Brasil, o Estado incentivou a ação
de movimentos sociais, propôs e financiou políticas públicas em torno das questões
de gênero, sexualidade, étnico-racial, religião, entre outras (FERNANDES, 2011).
Essa estrutura estatal possibilitou a realização e financiamento de projetos visando
o questionamento de práticas discriminatórias nas escolas e fora dela, investimen-
to na formação de estudantes e educadoras/es e no fortalecimento de uma cultura
para os direitos humanos. É o que observamos, por exemplo, em projetos como Papo
Sério21
, Projeto Antropologia, Educação e Diversidade - Iniciação Científica no Ensino
21
Projeto de extensão realizado desde 2007 pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da
Universidade Federal de Santa Catarina. Com objetivo de problematizar as representações de gênero
e sexualidade com estudantes, professoras(es) e outros profissionais de escolas públicas da Grande
Florianópolis, o projeto Papo Sério possui três subprojetos: Oficinas Papo Sério, Concurso de Cartazes
sobre Homo-Lesbo-Transfobia e Heterossexismo nas Escolas e Iniciação Científica Júnior (PIBIC EM).
Desde seu início, esses projetos envolveram e impactaram milhares de estudantes e educadores(as).
Reflexões sobre esse projeto podem ser encontradas em Mareli Graupe et al. (2011), Ariana Sala e Mir-
iam Grossi (2013). Informações sobre o NIGS e outros projetos podem ser encontradas em www.nigs.
ufsc.br.
25
22
Este projeto foi financiado pelo Programa Institucional de bolsas de iniciação científica no ensino
médio (PIBIC EM/CNPq) e foi desenvolvido na Universidade Federal da Fronteira Sul entre 2013 e 2014.
Com objetivo de fortalecer o processo de disseminação das informações e conhecimentos científicos e
tecnológicos básicos, bem como desenvolver as atitudes, habilidades e valores necessários à educação
científica e tecnológica, esse projeto envolveu estudantes do ensino médio de escolas públicas da Rede
Estadual de Ensino de Santa Catarina, município de Chapecó (SC), além de estudantes e professoras da
Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó..
23
O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) é financiado com recursos da Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da Educação (Brasil)
e tem como objetivos oportunizar e estimular a iniciação à docência de licenciandos(as), aproximar o
ensino superior da Educação Básica, criar e fortalecer projetos que visem a melhoria da educação públi-
ca. O PIBID de Ciências Sociais foi realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS, Chapecó)
entre 2012 e 2014, envolveu estudantes e professora da UFFS e professor da Rede Estadual de Ensino
de Santa Catarina, município de Chapecó (SC). Dados sobre este projeto, ver pibidsociologiachapeco.
blogspot.com.br.
Médio (PIBIC EM)22
, PIBID Ciências Sociais23
e curso Gênero e Diversidade na Escola
(GDE)24
realizados na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis)
e na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS, Chapecó). Estes projetos têm con-
tribuído na formação de inúmeros estudantes e educadoras/es, para problematizar
a naturalização da vida social, na desmistificação das injustiças e desigualdades, na
promoção de uma educação e uma sociedade equitativa e na constituição de uma
cultura para direitos humanos.
Por fim, percebo que “[...] educar para a diversidade não significa apenas reconhecer
as diferenças, mas refletir sobre as relações e os direitos individuais e coletivos”.
(GRAUPE; GROSSI, 2014, p. 29). Considero fundamental “Que a escola seja um lugar
de (re)criar e politizar a vida social, de compreender a necessidade de não separar
cognição e corpo, de se livrar de discursos binários aprisionadores, de se questionar
ininterruptamente e de se preocupar com justiça social e ética!” (LOPES, 2008, p.
144). Desejo que a escola seja o espaço para aprender a superar as representações
negativas sobre os corpos, as religiosidades, os desejos (HOOKS, 2003) e que ela
invista mais na promoção da equidade e do respeito às diferenças do que na sua dis-
criminação.
26
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29
24
Gênero e Diversidade na Escola (GDE) é um programa pioneiro de formação de profissionais da ed-
ucação básica da rede pública de ensino do Brasil financiado pelo Ministério da Educação (MEC). Fo-
cado nas temáticas de gênero, orientação sexual e relações étnico-raciais, esse curso é oferecido nas
modalidades de educação presencial e a distância e visa capacitar essas(es) profissionais para atuarem
na educação formal promovendo a igualdade e equidade. Segundo Graupe e Grossi (2014, p. 14), essa
formação integra a orientação do governo brasileiro, que, a partir de 2003, criou secretarias e políticas
educacionais “[...] voltadas para o reconhecimento da diversidade cultural, a promoção da igualdade
de todos e todas e o enfrentamento do preconceito e de todas as formas de discriminação.” Em Santa
Catarina foram realizadas duas edições deste curso. Sobre a primeira edição do GDE em Santa Catari-
na, ver Luzinete Minella e Carla Cabral (2009). Sobre a segunda edição, ver Olga Garcia, Miriam Grossi
e Mareli Graupe (2014).
25
Para visualizar os vídeos e a repercussão do caso, visitar www.paulopes.com.br. Acesso em dezembro
2014.
26
Durante o programa Conexão Futura, da TV Cultura, exibido em 19 de abril de 2013, cujo tema foi
religião na escola. O vídeo está disponível em www.youtube.com/watch?v=xik6bczluqo.
Educação laica e ensino brasileiro
Tânia Welter
Maciel Vieira, 17 anos, estudante de uma escola pública da cidade de Miraí/MG, pro-
duziu e socializou um vídeo na internet, em abril de 2012, como forma de protesto
contra a ação pedagógica da professora de Geografia de sua escola, que iniciava suas
aulas com a oração cristã “Pai Nosso”. Buscou também denunciar ato discriminatório
praticado por colegas de classe e questionar a postura de gestoras/es da Secretaria
da Educação e da direção da escola diante da sua denúncia25
. Questionado, o estu-
dante explicou26
que não participava da oração porque era ateu e que só decidiu
reagir e denunciar a ação da professora, quando essa o criticou diante de toda classe
afirmando que “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida” e
colegas de classe (supostamente com a aquiescência da professora) que acrescen-
taram seu nome à frase “livrai-nos do mal”. Contou também que se surpreendeu com
o desconhecimento da professora e das/os gestoras/es (direção e Secretaria da Ed-
ucação) a respeito da legislação nacional (Constituição Federal e Lei de Diretrizes e
Bases da Educação), especialmente do princípio da laicidade.
30
Para a professora Ana Maria Mendes de Miranda27
, a história deste estudante (que
se expôs sozinho) é semelhante a outras ocorridas em escolas estaduais do Rio de
Janeiro. Discentes buscam orientação em secretarias da educação ou direções de
escola, por se sentirem prejudicados por ações pedagógicas proselitistas nas esco-
las onde estudam. Grande parte não obtém respostas satisfatórias, orientações ou
ações eficazes de combate a essas pedagogias28
. Esses fatos explicitam, para essa
pesquisadora, uma desqualificação das/os profissionais diante de um direito previsto
por lei. Ela observou que as ações de denúncia e combate da intolerância religiosa no
estado do Rio de Janeiro têm ocorrido a partir de grupos e organizações não gover-
namentais, e isso ocorre porque faltam mecanismos estatais eficazes que garantam
a liberdade de expressão religiosa.
Este breve relato e reflexão nos indica que a educação brasileira é marcada por con-
flitos entre legislação, perspectivas pessoais e ações teórico-metodológicas. A re-
ligião, a religiosidade, os modos ou perspectivas religiosas, mobilizam ou são mo-
bilizados por “sujeitos sociais” (ORTNER, 2007) na defesa de interesses pessoais ou
institucionais. A partir disso, pontuamos algumas questões: os discursos e pedago-
gias proselitistas são utilizados na sua escola? Quais são os impactos destes na vida
de estudantes e educadoras/es? É possível eliminar esses discursos e pedagogias?
Em que medida esses discursos e ações comprometem o princípio constitucional da
laicidade? O que, na sua opinião, caracteriza uma educação laica?
Estado laico, laicidade e secularização
As reflexões acadêmicas sobre o princípio da laicidade no Brasil são necessárias na
ponderação sobre os conflitos observados nas escolas, especialmente públicas, mas
também em outros espaços, como o Congresso e Senado Federal. Também aqui, a
perspectiva religiosa (progressista ou conservadora) orienta a visão de mundo de
representantes do povo.
27
Opinião emitida durante sua participação no programa conexão futura, da TV Cultura, que foi ao ar
em 19 de abril de 2013. Para assisti-la, acessar http://www.youtube.com/watch?v=xik6bczluqo.
28
Essa informação está respaldada em uma pesquisa sobre a disciplina de ensino religioso em escolas
públicas do Rio de Janeiro, realizada pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF) da
Universidade Federal Fluminense.
31
Para exemplificar, transcrevo discursos significativos desse debate reunidos no cur-
ta-documentário “Estado laico?”29
. O deputado federal Paulo Rubem (PDT/PE) de-
fende que o Estado brasileiro é um estado laico, que não tem religião, e, por isso,
as políticas públicas devem ser construídas independentes de credo religioso, de
“opções sexuais individuais, de origem, de faixa etária, de nível de renda”. Ele afir-
mou ainda estar preocupado com as/os parlamentares que tentam impor, à maioria
da sociedade, determinadas concepções que considera discriminatórias, preconcei-
tuosas e que tentam intervir na vida privada das/os cidadãs/ãos. O que não cabe ao
Estado em hipótese alguma.
O deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) afirma que, desde a Proclamação da
República (1889), Estado e Igreja se separaram. Mesmo assim, desde lá, as igrejas
institucionais vêm renovando suas estratégias para influenciarem o Estado em suas
decisões. Ele percebe que a influência da Igreja Católica Apostólica Romana é inte-
grada e ocupa o espaço do Congresso Nacional realizando missas: “Agora as igrejas
evangélicas realizam cultos e os deputados vão à tribuna dizer que estão a serviço
de Jesus”. Essa postura estaria desrespeitando pessoas de outras religiões e pessoas
que não têm religião. O surpreendente, segundo ele, é que isso ocorre num país que
é multicultural, plurireligioso e com uma formação cultural e religiosa diversa.
O deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ) afirma que leva em conta a “palavra de Deus”
para decidir seu voto. Já o deputado João Campos (PSDB/GO) afirma que a primeira
carta de direitos humanos, do ponto de vista universal, é a Bíblia Sagrada. Ele tam-
bém aciona o discurso “oficial”, ao afirmar que o Brasil é um Estado laico, que não
tem uma religião oficial, não financia ou estimula religião institucional específica,
mas garante, assegura e respeita todas. Para este, o estado brasileiro respeita inclu-
sive o cidadão que não tem religião30
.
Vemos aqui os diversos aspectos observados na literatura sobre laicidade no Brasil:
o relato histórico (oficial) reafirmando e defendendo o princípio constitucional do
Estado Laico, as dificuldades e os conflitos gerados pelo desrespeito a esse princípio,
29
Curta-documentário produzido, em 2012, pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)
em parceria com as Loucas de Pedra Lilás, para a campanha “Quanto Vale seu Voto?”. Vídeo disponível
no endereço eletrônico do Observatório da Laicidade na Educação: www.edulaica.net.br.
30
Tanto o deputado Jair Bolsonaro, quanto o deputado João Campos, fazem parte da Frente Parlamen-
tar Evangélica. Segundo o curta-documentário Estado Laico?, esta frente é formada por 79 deputados
federais e 03 senadores (mandato 2010-2014).
32
e a religiosidade orientando escolhas pessoais e institucionais. A afirmação provoca-
dora do filósofo Olavo de Carvalho – “O Estado é laico, a sociedade não”31
– teria uma
relação com isso? O que a escola pública tem a ver com isso?
O antropólogo Ari Oro diferencia os termos laicidade (ou laicização) de secularização.
Este é um fenômeno que “abrange ao mesmo tempo a sociedade e as suas formas
de crer”, enquanto aquela “designa a maneira pela qual o Estado se emancipa de
toda referência religiosa” (ORO, 2008, p. 83), ou seja, “secularização expressa a ideia
de exclusão das religiões do campo social, que se encontra, então, ‘secularizado’, as
normas religiosas interferindo cada vez menos nos comportamentos cotidianos, na
maneira de compreender a vida e de se representar a morte” (ORO, 2008, p. 83). Na
laicidade, não há uma eliminação total da religião na sociedade e diz respeito, so-
bretudo ao Estado.
Em sua opinião, o Brasil seria um país secularizado?
No Brasil, desde a edição do decreto 119-A (1890), de provável autoria de Rui Bar-
bosa, o Estado incorporou noções ligadas ao princípio da laicidade e também es-
tabeleceu igualdade de tratamento entre as religiões. Com a Constituição de 1891,
institui-se a separação entre Igreja e o Estado, em que este não mais reconhece ou
financia uma religião oficial (que até então era a católica), mas assume, de forma de-
finitiva, as rédeas da educação (LUI, 2011).
Segundo Giumbelli (2004), a laicidade, concebida como um valor comum necessário
passa por três princípios, que a garantem e limitam. O primeiro, princípio da sepa-
ração, “assegura que as opções espirituais ou religiosas não envolvam o Estado e que
este não se envolva com aquelas” (2004, p. 50). Ele demanda também que o Estado
assegure a expressão religiosa, “assim como postula a renúncia, por parte das re-
ligiões, à sua dimensão política.” (2004, p. 50). A laicidade exige de cada religião um
esforço de adaptação e conciliação dos dogmas com as leis que regem a sociedade.
O segundo princípio é o da igualdade, que comanda um tratamento isonômico por
parte do Estado, “mas exige das religiões que não façam demandas particularistas”
(2004, p. 50). O terceiro princípio, o da liberdade de consciência, “funda o direito à
livre expressão religiosa no espaço e no debate público” (2004, p. 50) e “ impele o
Estado a proteger o indivíduo contra toda imposição religiosa” (2004, p. 50).
O fato de a escola expor objetos sagrados no espaço público ou oferecer a disciplina
de Ensino Religioso fere o princípio estatal da laicidade.
31
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8HQMZ-ekNfo. Acesso: dezembro 2014.
33
Do direito à diferença na legislação brasileira
Observando a legislação brasileira, constatam-se garantias jurídicas de respeito à
liberdade religiosa e sexual desde a Constituição Federal até legislações específicas,
assim como controvérsias. Embora mantendo o catolicismo romano como religião
oficial, a Constituição brasileira de 1824 reconhecia o direito à liberdade religiosa
(MUSSKOPF, 2013). Mesmo com o reconhecimento da laicidade pela constituição de
1891, havia um projeto modernizador para a sociedade brasileira, que utilizava o dis-
curso sobre liberdade de culto e a separação entre Igreja e Estado, para promover re-
ligiosidades supostamente afinadas com esse projeto. Uma prova dos limites desse
projeto era a constante perseguição a religiões de matriz africana e indígena, que
eram acusadas de primitivas e selvagens (MUSSKOPF, 2013).
A Constituição Federal de 1988 reafirmou a liberdade religiosa e o princípio da laici-
dade32
, embora orientasse a oferta (obrigatória) da disciplina de Ensino Religioso em
escolas públicas. De uma forma geral, essa constituição ecoou e concordou com o
estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que, em seu arti-
go XVIII, afirma que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência
e religião, incluindo liberdade de mudar de religião ou crença e de manifestá-la pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em pú-
blico ou em particular.
O tema da religião e sua relação com o Estado consta também no Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH-3), na “Diretriz 10 – Garantia da igualdade na diversi-
dade”, em seu “Objetivo estratégico VI: Respeito às diferentes crenças, liberdade de
culto e garantia da laicidade do Estado.” (BRASIL, 2013, p. 19). As ações programáti-
cas são: instituir mecanismos para assegurar o livre exercício das práticas religiosas,
coibir manifestações de intolerância religiosa, estimular o respeito à diversidade reli-
giosa, disseminar a cultura da paz, estabelecer o ensino da diversidade e história das
religiões na rede pública de ensino (com ênfase no reconhecimento das diferenças
culturais, na promoção da tolerância e na afirmação da laicidade do Estado) e apre-
sentar dados de pesquisas sobre práticas religiosas33
.
32
Artigo quinto do capítulo “Dos direitos e deveres individuais e coletivos” do título “Dos direitos e
garantias fundamentais”.
33
Seguindo as indicações do PNDH-3, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da Repúbli-
ca editou a cartilha “Diversidade religiosa e direitos humanos” (STHÖHER, 2013) reafirmando o com-
promisso do Estado brasileiro “[...] com o direito constitucional à liberdade religiosa e à condenação de
atos de intolerância com base na religião ou na convicção” (STHÖHER, 2013, p. 5).
34
A questão central desses documentos
é que o direito à liberdade religiosa implica, necessaria-
mente, o reconhecimento da pluralidade. Dessa forma,
o direito à liberdade religiosa e a separação entre Igreja
e Estado têm sido invocados por grupos religiosos e não
religiosos (ateus e agnósticos) minoritários em nome de
seu direito à crença/não crença e contra a influência de
grupos religiosos em matérias de Estado e de políticas
públicas, ou então, aparentemente contraditório, por
grupos majoritários para garantir seu poder de influência
em questões de Estado e não ter limitada sua prerrogati-
va de discurso e prática quando parecem contradizer out-
ros direitos assegurados aos cidadãos. (MUSSKOPF, 2013,
p. 163).
Para esse pesquisador,
A discussão em torno do direito à liberdade religiosa e o
respeito à pluralidade religiosa no contexto de documen-
tos e órgãos governamentais não está em oposição ao
princípio da laicidade do Estado. Ao contrário, a liberdade
e o respeito à diversidade (de crença e não crença) são
entendidos como manifestação legítima em um Estado
laico, como um direito a ser garantido por ele mesmo no
contexto da promoção dos direitos humanos e da cidada-
nia, tanto que, no PNDH-3, o respeito às diferentes cren-
ças e à liberdade de culto são colocados ao lado da garan-
tia da laicidade do Estado. (MUSSKOPF, 2013, p. 166).
De forma semelhante à liberdade religiosa, a livre orientação sexual e a identidade
de gênero colocam-se na pauta política e social como uma questão de direitos hu-
manos e constitucionais (MUSSKOPF, 2013).
Como afirmado anteriormente, diferentemente de outros contextos nacionais, no
Brasil, o Estado incentivou a ação de movimentos sociais, propôs e financiou políti-
cas públicas e uma “agenda anti-homofobia” a partir de programas como o “Brasil
sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação Contra GLTB e
de Promoção da Cidadania Homossexual”, lançado em 200434
.
34
A agenda estatal anti-homofobia foi criada no governo Lula, a partir de 2003 (FERNANDES, 2011).
35
Além disso, o governo brasileiro propôs a inclusão de identidade de gênero e ori-
entação sexual na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como um posi-
cionamento claro sobre a temática. “Ao longo dos últimos anos, diversas formas de
garantia de direitos foram conquistadas no Brasil, em termos de políticas públicas
e ações governamentais (as mais recentes e importantes no âmbito do poder judi-
ciário).” (MUSSKOPF, 2013, p. 165).
Disputas e Educação Laica
As supostas incompatibilidades entre o princípio constitucional da laicidade, a ideia
moderna da secularização e a noção de liberdade religiosa e sexual mobilizaram in-
úmeras reflexões acadêmicas. São recorrentes também embates entre laicistas e
grupos religiosos (RANQUETAT JÚNIOR, 2012). No campo da sexualidade, o confron-
to ocorre geralmente em torno da homossexualidade, dos direitos reprodutivos e da
educação sexual nas escolas. Já no campo da educação, são recorrentes discussões
acaloradas sobre a oferta da disciplina de Ensino Religioso nas escolas públicas e o
uso de objetos e símbolos religiosos em espaços públicos.
O ensino da religião foi instituído pela Constituição Brasileira de 1988, tendo rece-
bido o nome de “Ensino Religioso” através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 9.3941996) e deveria ser implantado como disciplina em todos os es-
tados brasileiros, sobretudo a partir da modificação de seu artigo 33 em 1997 (Lei
9.4751997).
A partir desta legislação, a disciplina passou a ser atribuição do Estado, de oferta
obrigatória nas escolas públicas e privadas, facultativa para estudantes, devendo as-
segurar o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil e vedando quaisquer for-
mas de proselitismos. Como cabe aos sistemas de ensino regulamentar sua oferta,
é possível encontrar inúmeros modelos: desde a perspectiva inter-religiosa prevista
em lei, até a perspectiva confessional.
O Decreto Legislativo no 698/2009 em seu artigo 11, que trata diretamente da disci-
plina de Ensino Religioso, embora argumente sobre liberdade religiosa e diversidade
cultural traz à tona questões sobre o princípio da laicidade do Estado, especialmente
porque afirma que o ensino religioso será “católico e de outras confissões religio-
sas”. Para Soares (2011), esse artigo distorce o espírito do art. 33 da LDB e indica
o caráter confessional da disciplina de Ensino Religioso. Por outro lado, o Projeto
de Lei da Câmara 160/2009 afirma que “é uma reivindicação de denominações reli-
36
giosas, especialmente as evangélicas, para garantir isonomia com a Igreja Católica.”
(BRASIL, 2014). “O texto também prevê o ensino religioso, de matrícula facultativa,
como disciplina do ensino fundamental, respeitando a diversidade cultural religiosa.”
(BRASIL, 2014).
Como visto, a oferta da disciplina de ensino religioso nas escolas brasileiras tem mo-
bilizado reações por parte de pessoas e organizações. Muitos defendem que a laici-
dade do Estado é precondição para a liberdade e igualdade, que é o caráter de laico
ou um Estado que tenha na base a diversidade e liberdade que garantirá os direitos
individuais (FISCHMANN, 2012). Recorrentemente se observa que a religião ou o reli-
gioso se submete a instrumentalização legal com a finalidade de assumir um lugar na
esfera pública (DICKIE E LUI, 2007). No caso da educação pública, muitos defendem
que a disciplina de Ensino Religioso e os símbolos religiosos expostos em espaços
públicos são uma afronta ao princípio da laicidade.
É a posição da equipe do observatório da laicidade na educação35
, que concebe a ed-
ucação publica laica entendendo que:
a) a religião não é disciplina, nem é um conteúdo coadjuvante de outras, ou seja, não
existe a disciplina de Ensino Religioso, nem mesmo em caráter facultativo e a religião
não pode ser “referência para sustentação de valores, visões de mundo, comporta-
mentos ou atitudes”;
b) “o ensino é pautado pela atitude crítica diante do conhecimento, ou seja, não há
conhecimento sagrado ou inquestionável”. Todo conhecimento é produzido histori-
camente e, portanto, pode ser questionado;
c) não objetiva “pôr as crianças nos trilhos”, de cujo traçado prefixado jamais sairão;
d) considera e respeita as escolhas religiosas dos discentes e suas famílias, “sem se
prender a critérios estatísticos das religiões dominantes”;
e) não pode incorporar homofobia de origem religiosa;
f) “não abandona práticas nem conteúdos próprios da cultura escolar nem da cultura
popular porque os adeptos deste ou daquele culto podem ficar melindrados”; e
g) não há lugar para o integrismo ou totalitarismo.
35
Dados sobre este observatório e o texto a seguir disponíveis em: http://www.edulaica.net.br/. Acesso
em dezembro de 2014.
37
Esta mesma equipe conclui que “não basta suprimir os elementos mais ostensivos
da presença religiosa na escola pública para que ela seja efetivamente laica”. Mes-
mo sem esses elementos, a escola pode estar preparando indivíduos não críticos.
Para que ela seja laica é necessário investir na formação de professoras/es e outras/
os profissionais da educação para que tenham “uma atenta consciência pedagógica
e ética”. É necessário também dotar as escolas de “recursos materiais adequados
como bibliotecas, laboratórios de ciências e espaços de expressão de artes e lazer”.
Considerações finais
É possível afirmar que,
do ponto de vista da discussão dos direitos humanos, não
há aparente contradição entre o direito à liberdade re-
ligiosa e o direito à livre orientação sexual e identidade
de gênero. Ainda assim, como os próprios objetivos do
PNDH-3 indicam, seja na diversidade religiosa, seja na
diversidade sexual, existem questões que precisam ser
enfrentadas para que essas liberdades sejam garantidas,
principalmente quando a questão da diversidade sexual é
contraposta à questão religiosa, um dos grandes (senão o
maior) empecilho ao reconhecimento e à efetivação dess-
es direitos. (MUSSKOPF, 2013, p. 166)
Retomando os relatos sobre a ação pedagógica da professora de Geografia de Miraí/
MG, a postura das/os colegas de classe, das/os gestoras/es estaduais diante da denún-
cia do estudante Maciel e os discursos e ações discriminatórias dos deputados fede-
rais conservadores do Congresso Nacional, é possível perceber que o marco jurídico
não garante às/aos cidadãs/ãos o direito à liberdade religiosa e sexual e que temos
muito a avançar se quisermos contribuir na construção de uma sociedade igualitária,
uma escola democrática e uma educação critica e emancipatória.
38
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40
Representações e relações de gênero em
diferentes grupos religiosos
Fernando Candido da Silva
Gênero e Religião: pensando o problema
O que é gênero? Como a aproximação desta categoria ao fenômeno religioso pode
gerar um problema? Como (re)pensar a religião a partir do gênero?
Segundo Bila Sorj (1992), a categoria de gênero possui duas dimensões problema-
tizadoras centrais: em primeiro lugar, “o gênero é um produto social, aprendido, rep-
resentado, institucionalizado e transmitido ao longo de gerações” (p. 15-16). E, em
segundo lugar, ainda no que tange ao conceito, “o poder é distribuído de maneira
desigual entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na organi-
zação da vida social” (p. 16). Se assim for, pois, a categoria de gênero apresenta, no
mínimo, dois desafios básicos às religiões e seus discursos antropológicos, a saber:
(i) como as religiões produzem representações de gênero e (ii) como estas embasam
a distribuição do poder de modo desigual entre os sexos? Como se vê, trata-se de
um problema que exige, de saída, uma tomada de posição clara quanto às formas
hierárquicas de se representar os gêneros nas mais diferentes tradições religiosas.
Assim sendo, diferentemente de alguns estudos das religiões que perpetuam o sta-
tus transcendental das Tradições, a categoria de gênero faz com que o Verbo se torne
Carne literalmente. Essa ruptura metodológica implica, forçosamente, na tarefa de
se compreender os diferentes discursos religiosos no contexto da corporeidade e
da cotidianidade. Isso quer dizer que símbolos, mitos, ritos e seus textos sagrados
não estão separados do mundo profano que os engendrou. Por tornar, assim, a Tran-
scendência acessível e pública, precisamos situar a agenda pedagógica acerca das
relações de gênero em diferentes grupos religiosos neste mundo. Porque esse pro-
cedimento laico é fundamental?
Para localizar a importância da análise crítica e pública das religiões no que se refere
às relações de gênero, uma rápida avaliação da discussão em torno do Plano Nacion-
al de Educação pode ser salutar.36
Sancionado pela Presidenta Dilma Rousseff em 25
de junho deste ano (2014), o Plano – com diretrizes e metas para a educação até 2020
– passou por uma série de revisões e alterações. Entre elas, a proposta de “super-
41
ação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial,
regional, de gênero e de orientação sexual” foi substituída pela genérica e abstrata
(quer dizer, não corporificada) “superação das desigualdades educacionais, com ên-
fase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.
Tal alteração é bastante significativa para nossa discussão, em especial, porque foi
fomentada, sobretudo, por grupos religiosos conservadores a partir da condenação
do que chamam de “ideologia de gênero”. Trata-se, pois, de um episódio ilustrativo
bastante revelador de como representações religiosas de gênero – supostamente
sagradas e imutáveis – intervém para perpetuar a assimetria profana das relações de
gênero. Por meio do conturbado debate do Plano Nacional da Educação podemos
entrever a urgência da crítica laica aos discursos religiosos. Como desenvolvê-la em
perspectiva genuinamente republicana e democrática?
Esta é uma questão metodológica que certamente transcende, em nossos tempos
globais, os limites nacionais. Para além deste ou daquele grupo religioso, o princípio
laico moderno encontra barreiras por todo o mundo nas mais diferentes tradições
religiosas, sobretudo porque se engessou em sua resolução ocidental de privatizar
assuntos religiosos. O fundamentalismo religioso – palavra enganosa que sempre
parece se referir ao Outro – se expande em diferentes regiões do globo justamente
por oferecer respostas seguras (já que oferece uma completa mappa vitae como
argumenta Zygmunt Bauman37
) a perguntas realizadas desde um cenário repleto
de dúvidas e incertezas quanto à concretização do contrato social moderno e seus
desdobramentos como os direitos humanos. Como diz Boaventura de Sousa Santos
(2013) sobre este cenário, “a grande maioria da população mundial não é sujeito de
direitos humanos; é objeto de discursos de direitos humanos” (p. 15). Nesse aspecto,
deve-se atentar para a indecibilidade do texto fundamentalista que, (re)conectado
ao pré-texto da frustração moderna, abre-se para outras possibilidades de sentido
ao redor dos desejos e expectativas de sua audiência.
Curiosamente, em uma reviravolta interpretativa, o desejo de reconhecimento e
de redistribuição de poder – no interior da profana sacralidade – revela-se como o
sentido diferido/adiado do fundamentalismo e sua usual ‘teologia da prosperidade’.
Efetivamente, a expectativa de transformação da dura condição existencial, espe-
cialmente das mulheres, é levada em consideração pelo fundamentalismo, ainda que
36
Confira Maria José Rosado-Nunes. “Gênero: uma questão incômoda para as religiões”. In: Sandra Du-
arte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizadoras). Estudos feministas e Religião: tendências e
debates. Curitiba: Prismas, 2014, p.129-132.
37
O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.229.
42
de maneira limitada e controladora em sua sacralização dos papéis (complementa-
res) de gênero. Não por acaso é possível afirmar que “os inimigos mais temidos e
vigorosamente atacados pelo fundamentalismo são o feminismo e a emancipação
das mulheres” (SILVA, 2006, p. 18). A crítica laica e pública das religiões precisa mov-
imentar-se exatamente nesse espaço de tensão do sentido (entre a resposta funda-
mentalista e a pergunta emancipatória das mulheres) para que amplie o leque de
representações de gênero, ao invés de rapidamente homogeneizar e estereotipar
expressões religiosas contemporâneas como simples explosão de irracionalidade
pré-moderna patriarcal.
Observemos, portanto, que o problema sumamente laico da crítica de gênero não
está em contradição – como argumentam os conservadores – com a Constituição e a
defesa da liberdade religiosa. Bem da verdade, o tipo fundamentalista de religião é
que cotidianamente ataca os valores republicanos com sua forma sectária, legalista e
dogmática de representação38
. Por isso é imprescindível, na crítica laica aos discursos
religiosos, avaliar as representações de gênero em conflito no interior dos mais di-
versos grupos religiosos. Apenas após a descrição deste conflito poderemos gestar
novos critérios teológicos que repensem o problema de gênero e religião no bojo da
tarefa de reconstrução e reinvenção do público.
Note-se, portanto, que traçamos uma estratégia unitária acerca do problema de
gênero nos discursos religiosos. Não procuraremos investigar como cada religião
representa e sacraliza as relações de gênero do cotidiano. Até porque cada religião
precisa ser avaliada em sua multiplicidade interna quanto ao assunto, para além das
fáceis representações oficiais e institucionais. Portanto, em se tratando de represen-
tações e relações de gênero, o problema central da religião é: como os diferentes gru-
pos religiosos – em tensão mesmo dentro de uma mesma denominação – concebem
sua intervenção religiosa na organização social e política da sociedade? Seguindo a
estratégia unitária, vejamos alguns grupos religiosos que promovem representações
religiosas conservadoras quanto aos papeis de gênero na sociedade para, logo em
seguida, apresentar representações favoráveis à redistribuição de poder.
38
Veja Ricardo Quadros Gouvêa. “A condição da mulher no fundamentalismo: reflexões transdisciplin-
ares sobre a relação entre o fundamentalismo religioso e as questões de gênero”, Mandrágora, São
Bernardo do Campo, Metodista, n.14, 2008, p.14-19.
43
Representações religiosas conservadoras
De forma categórica, a recente publicação do Relatório Final da Comissão Nacional
da Verdade encaminha nosso debate para a localização das representações religio-
sas na esfera pública. Segundo o Relatório, no que tange a violações de direitos hu-
manos nas igrejas cristãs no período da ditadura brasileira,
o anticomunismo e a subserviência aos chefes no pod-
er estão entre as razões para as atitudes de silêncio,
omissão e colaboração explícita com o regime, tanto na
reprodução da propaganda ideológica de respaldo ao es-
tado de exceção quanto com denúncias e delações contra
membros de seu próprio corpo (BRASIL, 2014, p. 153).
Alémdisso,odestacadonúmerodemulheres,vítimasdeviolaçõesnomeiodasigrejas
cristãs, “ressalta a dimensão de gênero também vivenciada nesse segmento” (BAR-
ROS, 2008, p. 153). Esses resultados apontam para a primazia teórico-metodológica
de avaliar (caso a caso) a conotação política dos discursos religiosos, sobretudo, em
representações fundamentalistas – sempre tão bem associadas a partidos e políticas
de extrema direita. Vejamos, por agora, a característica conservadora de alguns gru-
pos religiosos frente aos desafios lançados pela categoria de gênero em três eixos
corporais e cotidianos: (i) na violência contra as mulheres, (ii) na manutenção da mas-
culinidade hegemônica e (ii) na naturalização da heteronormatividade.
A priorização do fundamentalismo cristão no recorte de grupos religiosos parece
ser importante para nosso contexto brasileiro contemporâneo. Como veremos, a as-
censão conservadora no Brasil que prejudica as lutas públicas feministas apóia-se,
em grande medida, em discursos fundamentalmente bíblicos, em uma linguagem
cristã transnacional e interdenominacional que aponta para as questões de gênero
como ponto de encontro de setores religiosos em oposição em outras esferas. Além
disso, seguindo ainda a sugestão da Comissão Nacional da Verdade, as igrejas cris-
tãs possuem um papel destacado “como componente histórico, social e político da
realidade brasileira.” (BRASIL, 2014, p. 152). Ao que parece, tal papel destacado no
mosaico religioso brasileiro guarda, em si, o próprio motivo de se estudar com mais
afinco as estratégias das igrejas cristãs para a conservação do poder masculino, em
particular, sua pedagogia autoritária e hierárquica ao redor da Bíblia e de suas ima-
gens de Deus.
44
1. Violência contra as mulheres
O recurso da pedagogia bíblica é crucial para a criação de representações que subju-
gam a mulher. Efetivamente, não há como negar a natureza primeiramente patriarcal
da Bíblia, o que a disponibiliza como fonte para justificar e manter a posição subal-
terna das mulheres na esfera social, política, econômica e religiosa. Não deve nos
espantar, pois, que uma das bases do fundamentalismo cristão seja o apego à ‘Pala-
vra de Deus’. Lido como linear, coerente e harmônico, o texto bíblico é utilizado para
comprovar dogmas e doutrinas que legitimam o status inferior da mulher e, logo, sua
vulnerabilidade diante os mais diversos tipos de violência (física, sexual, psicológica).
A começar pelo próprio relato da Criação e a culpabilização de Eva, a relação de gêne-
ro desenhada pelo texto bíblico é sumamente assimétrica: “teu desejo te impelirá ao
teu marido e ele te dominará” (Gênesis 3,16). Na coerência patriarcal fundamentalis-
ta, a mulher precisa ser dominada e possuída, afinal, “o homem não foi criado para a
mulher, mas a mulher para o homem” (1Coríntios 11,9). Curiosamente, é na retórica
do amor e do cuidado que se esconde essa subalternização da mulher, afinal, se as
mulheres devem estar sujeitas aos seus maridos (porque sempre serão Evas em po-
tencial?), “os maridos devem amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios
corpos” (Efésios 5,28). E de que modo os maridos demonstram tal amor? A retórica
bíblica manejada pelos fundamentalismos cristãos não chega a esconder a violência,
sobretudo, por impor às mulheres um papel social de passividade e resignação cul-
pabilizante:
Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes,
se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem
objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; mas que
se ornem, ao contrário, com boas obras, como convém a
mulheres que se professam piedosas. Durante a instrução
a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não
permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que
ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi forma-
do Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido,
mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. En-
tretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que,
com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade
(1Timóteo 2,9-15).
45
Textos como este são fundamentais para as representações religiosas conservado-
ras no que se refere às relações de gênero. São como que a base de sustentação
para posições políticas contemporâneas. E, por isso mesmo, é importante demon-
strar a atualidade dessa pedagogia bíblica que inculca relações de dominação entre
os sexos. Radicalmente oposto aos movimentos pelas causas das mulheres, o avanço
do fundamentalismo cristão no Brasil possui suas próprias estratégias para atualizar
a mensagem bíblica de submissão feminina, mesmo em casos de violência explícita.
Com ampla publicidade de discurso, dado o recurso midiático, vejamos o caso Sarah
Sheeva e o culto das princesas como um exemplo significativo de representação reli-
giosa conservadora sobre a compreensão do lugar da mulher na sociedade39
.
Contando com um ministério próprio, Sarah Sheeva divulga sua mensagem por todo
o Brasil como missionária. Ao articular a base teológica da Batalha Espiritual (que
entende as dificuldades materiais da vida como problemas espirituais) à da Teolo-
gia da Cura Interior (que prevê a cura de “traumas do passado”), a missionária faz
uma ligação exemplar entre as expectativas de melhoria concreta no cotidiano de
mulheres e a resposta fundamentalista de santificação a partir do controle do cor-
po feminino objetivando, por fim, o casamento com o ‘príncipe’ – o homem ideal,
cuidador e protetor da ‘princesa’. À semelhança do texto de 1Timóteo, Sarah Sheeva
promove uma pedagogia de obediência e passividade para as mulheres:
A moda agora é legging com blusa curta, desse jeito
querida você está nua pintada de preto. É assim que os
homens pensam e não podemos mudar, quando você põe
esse tipo de coisa eles te olham e dizem: nua pintada de
preto. Agora, quando você coloca um lacinho, uma florz-
inha, eles gostam porque eles gostam de coisas frágeis e
as mulheres são frágeis. Eles gostam de brincar de Barbie
e a Barbie é você! Eles não vão falar isso pra você e nem
nós diremos que já sabemos (risos).
39
Esse caso encontra-se descrito em Magali do Nascimento Cunha. “Gênero, religião e cultura: um olhar
sobre a investida neoconservadora dos evangélicos nas mídias do Brasil”. In: Sandra Duarte de Souza e
Naira Pinheiro dos Santos (organizadoras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates. Curiti-
ba: Prismas, 2014, p.109-117. Todas as citações diretas do caso encontram-se neste ensaio que contem-
pla trechos etnográficos do trabalho de conclusão de curso em Teologia de Thaina Assis (Gênero, corpo
e teologia: uma abordagem pastoral pela superação da violência simbólica. São Bernardo do Campo:
Metodista, 2013).
46
Além da mensagem para as ‘princesas’, Sarah Sheeva também deixa entrever, em seus
cultos, o papel das mulheres casadas. Aqui, a atitude de tolerância e autopunição do
‘sexo frágil’ frente a situações de violência é ainda mais contundente:
Palavras para solteiras e casadas é totalmente diferente;
para solteiras eu digo que não tolere maus tratos, para
casadas eu digo, vai pro joelho porque agora é de Deus.
Não dá pra aplicar o que eu digo pras solteiras com as
casadas. Se você tivesse esperado em Deus, não estaria
passando por essa situação. Agora que casou, tem que
continuar, aconteça o que acontecer. A Bíblia não permite
o divórcio, se divorciar está debaixo de maldição.
A fundamentação bíblica para a completa submissão do corpo feminino é bastante
evidente. Trata-se de uma representação perigosa, em primeiro lugar, por sacralizar
a dominação masculina e, assim, reforçar e legitimar simbolicamente a opressão
cotidiana das mulheres. Além disso, tal representação – estrategicamente feminina
– dá sustentação para a atuação de grupos conservadores na esfera pública. Não por
acaso Sarah Sheeva recebe “apoio e espaço das lideranças das diferentes igrejas que
identificam nos movimentos por direitos sexuais grande ameaça à família brasileira”
(CUNHA, 2014, p. 116).
2. Manutenção da masculinidade hegemônica
Estudar relações de gênero implica compreender a construção social dos papéis
não apenas femininos, mas também masculinos. Hoje percebemos melhor que as
representações acerca do corpo feminino foram fundamentais para a manutenção
do poder entre os homens. Diferentemente da fragilidade e passividade atribuídas
às mulheres, o masculino foi definido pela força, domínio, autocontrole e violência.
Mesmo homens que não atendem a esse ideal, no interior da representação conser-
vadora, renunciam ao masculino hegemônico. Nesta construção do masculino reside,
em grande medida, a própria razão da dominação das mulheres e da homofobia: ser
homem é não ser mulher, nem homossexual.
Esta masculinidade hegemônica, para ser assegurada no cotidiano, também é alvo de
investimentos simbólicos e religiosos: “as imagens antropomórficas de Deus associa-
das a guerra, sangue, sacrifício, assassinato de inimigos religiosos, espancamentos,
47
coação e perseguição religiosa são um convite à divinização da violência e do homem
violento.” (SCHULTZ, 2006, p. 49). De fato, a Bíblia e a Teologia podem ser matrizes
para a construção social normatizante da experiência masculina.
Como aponta Marcelo Augusto Veloso, particularmente quanto à Igreja Católica
Apostólica Romana, o gênero da religião cristã é masculino: “as mãos que tecem a
teia religiosa são mãos masculinas”(2005, p.78). Nesse sentido, não deveríamos est-
ranhar a hegemonia pedagógica masculina da Igreja: Deus é Pai; o messias é homem;
os discípulos também o são. Por isso qualquer possibilidade de subversão da frágil
coerência da masculinidade bíblico-teológica é prontamente rechaçada por meio de
um discurso sobre a virilidade que se apropria das imagens e símbolos religiosos.
Nesse aspecto, como aponta David Morgan (1999), por exemplo, valeria a pena notar
o processo de masculinização de Cristo, evitando-se retratos efeminados do mesmo
na história do cristianismo ao longo do século XX.
3. Naturalização da heteronormatividade
O imperativo heterossexual, por meio de forçosa reiteração, “possibilita certas iden-
tificações sexuadas e impede ou nega outras identificações” (BUTLER, 2010, p. 155).
Ao sustentar até mesmo as relações de gênero abordadas acima, a heteronormativ-
idade revela-se como um dispositivo para manter uma concepção única de família,
bem como barrar avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos em geral.
Mais uma vez, o fundamentalismo cristão encontra-se em dívida para com suas Es-
crituras e Tradição, ao interpretar literalmente textos como o de Gênesis 1,28 que
ordena ao homem e mulher recém-criados, “sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a
terra e submetei-a”. Verdadeiramente, é preciso admitir que alguns textos da Bíblia
acabam por negar qualquer outra forma de sexualidade.
Para além da sutileza heteronormativa na literatura bíblica, o rechaço de experiências
alternativas é contundente e, nada surpreendentemente, se baseia na própria assi-
metria das relações de gênero. Levítico 18,22 reza: “Não te deitarás com um homem
como se deita com uma mulher. É uma abominação.” Já Romanos 1,26-27 reitera a
mensagem que delimita os espaços possíveis de se exercer a sexualidade:
Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mul-
heres mudaram as relações naturais por relações contra
a natureza; igualmente os homens, deixando a relação
natural com a mulher, arderam em desejo uns para com
48
outros, praticando torpezas homens com homens e rece-
bendo em si mesmos a paga da sua aberração.
Textos como estes são performáticos e, lidos em perspectiva fundamentalista, fun-
cionam para acirrar o conservadorismo político nos debates contemporâneos sobre
as sexualidades. Um exemplo claro desse ponto, no Brasil, é o recente ataque da
aliança entre diferentes lideranças religiosas e políticas ao Projeto de Lei 122 que
prevê a criminalização da homofobia, bem como ao projeto “Escola sem homofobia”,
vulgarizado como ‘kit gay’. Um dos argumentos centrais do Pastor Silas Malafaia,
nesse caso, envolve justamente a liberdade religiosa e de expressão para prosseguir
professando sua condenação bíblica à homossexualidade.
Representações religiosas progressistas
O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, além de localizar representações
e grupos religiosos que colaboraram com o regime militar, também apontou para “os
membros das igrejas cristãs perseguidos pelo sistema repressivo do Estado (...) fruto
da compreensão religiosa que os impulsionava a relacionar sua fé a ações concretas
pela justiça e pelos direitos humanos” (2014, p. 153). Esse resultado igualmente deve
nos motivar a buscar representações religiosas libertadoras no que tange ao gênero
e à sexualidade e, mesmo, à laicidade.
É verdade que, por vezes, essa busca poderia ser mais fácil se explorássemos religiosi-
dades subalternas, tais como as religiões de matriz africana40
. Contudo, nem mesmo
nessas expressões religiosas, aparentemente mais inclusivas, o conflito entre visões
conservadoras e progressistas deixaria de existir41
. Portanto, para encaminhar mel-
hor a estratégia unitária da crítica, proponho que continuemos a pensar em repre-
sentações cristãs que, ao contrário das fundamentalistas, mostrem-se ocupadas em
(i) denunciar a violência contra a mulher, (ii) construir masculinidades alternativas e
40
“O Candomblé assume a homossexualidade de forma transparente e tenta compreendê-la dentro
da sacralidade do mundo, através de uma linguagem também religiosa” (Wilson Caetano de Sousa
Júnior. “Monocó, Adé, Mona e Folhas: a homossexualidade nos terreiros do Candomblé”, Mandrágora,
n.5, 1999, p.65.
41
Veja, por exemplo, Nilza Menezes. A violência de gênero nas religiões afro-brasileiras. João Pessoa:
Editora da UFPB, 2012 e Eduardo M. de A. Maranhão Filho. “A aniquilação de uma mulher transexual no
candomblé através do Facebook”. In: Sandra Duarte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizado-
ras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates, p.269-285.
49
(iii) desnaturalizar a heteronormatividade. Tais representações progressistas encon-
tram-se espraiadas em igrejas tradicionais, em novas denominações explicitamente
inclusivas, em organizações não-governamentais e na própria teologia. Vejamos.
1. Denúncias da violência contra a mulher
Diferentemente da representação fundamentalista cristã de sociedade, feministas
procuram tecer um discurso religioso de resistência, em particular, ao denunciar as
consequências desastrosas de doutrinas religiosas na vida das mulheres. Para além
da efetiva desconstrução de textos bíblicos patriarcais que legitimam a violência sim-
bólica contra a mulher, análises teológicas demonstram a posição de vulnerabilidade
de mulheres diante de discursos religiosos que perpetuam a ordem sexual vigente: “a
violência contra a mulher está relacionada com o discurso da religião cristã, visto que
esta expressão religiosa tem apoiado a subordinação da mulher a partir de doutrinas
que legitimam e sacralizam o sacrifício e o sofrimento” (GEBARA, 2000, p. 125).
Valéria Vilhena (2009) apontou criticamente para a ligação entre a representação
da fragilidade feminina e a violência doméstica. Ao contrário de Sarah Sheeva e seu
apoio ‘teológico’ ao sistema de dominação de mulheres, o trabalho de Vilhena suge-
re que, sobretudo em práticas pastorais evangélicas, mulheres que sofrem violência
doméstica são aconselhadas a compreender a violência de maneira conjuntural, sen-
do doutrinadas em uma conduta de obediência e submissão:
a violência do agressor é combatida pelo ‘poder’ da
oração. As ‘fraquezas’ de seus maridos são entendidas
como ‘investidas do demônio’, então a denúncia de seus
companheiros agressores as leva a sentir culpa por, no
seu modo de entender, estarem traindo seu pastor, sua
igreja e o próprio Deus (VILHENA, 2009, p. 94).
No campo católico, Católicas pelo Direito de Decidir, sobretudo, está à frente de uma
pedagogia pioneira em romper o silêncio acerca da violência contra mulheres. Pri-
orizando os direitos das mulheres, ao invés da estrutura masculina da Igreja, Regi-
na Soares Jurkewicz (2005) desvelou-nos a violência interna da própria instituição,
com os recorrentes casos de abafamento do abuso sexual de mulheres por padres
no Brasil. A hierarquia de gênero, nesses casos, funciona para retirar a responsabi-
lidade masculina da agressão, ao culpabilizar as mulheres. Diante da imunidade da
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  • 6. Ficha Catalográfica Elaborada por Sibele Meneghel Bittencourt - CRB 14/244 E73 Especialização em gênero e diversidade na escola : Livro II, Módulo II / Miriam Pillar Grossi, Olga Regina Zigelli Garcia, Pedro Rosas Magrini (coord.). - - Tubarão : Ed. Copiart, 2016. 143 p. : il. color. ; 28 cm. - (Livros didáticos do GDE/ UFSC) ISBN 978.85.8388.056.1 1. Sexo - Diferenças (Educação). 2. Identidade de gênero na educação. 3. Prática de ensino. I. Grossi, Miriam Pillar, coord. II. Garcia, Olga Regina Zigelli, coord. III. Magrini, Pedro Rosas, coord. CDD (22. ed.) 306.43
  • 7. 2015 Copyright@2015. Universidade Federal de Santa Catarina / Instituto de Estudos de Gênero. Nenhuma parte desse material poderá ser reproduzida, transmitida e gra- vada, por qualquer meio eletrônico, fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, das/os autoras/es. CAPA: Rochelle dos Santos e William Carvalho (UFSC) PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: William de Carvalho (UFSC) GROSSI, Miriam Pillar; GARCIA, Olga Regina Z.; MAGRINI, Pedro Rosas (org.). Livro 2 – Módulo II- Gênero, diversidade sexual e religião; As diferenças de gênero no espaço escolar. Florianópolis: Instituto de Estudos de Gênero / / Centro de Filosofia e Ciências Humanas / UFSC, 2015. 141p. Livro didático. Inclui bibliografia Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola, modalidade a Distância. 1. Gênero. 2. Diversidade. 3. Sexualidades. 4. Religião. 5. Escola.
  • 8. Dilma Vana Roussef PRESIDENTA DA REPÚBLICA Eleonora Menicucci MINISTRA DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SPM/PR Renato Janine Ribeiro MINISTRO DA EDUCAÇÃO Adriano Almeida Dani (Substituto) SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E IN- CLUSÃO – SECADI / MEC Nilma Lino Gomes SECRETÁRIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL – SEPPIR/MEC Roselane Neckel REITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC Joana Maria Pedro PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATA- RINA – PROPG/UFSC Mara Coelho de Sousa Lago Miriam Pillar Grossi Zahidé Lupinacci Muzart COORDENADORAS DO INSTITUTO DE ESTUDOS DE GÊNERO – IEG/UFSC
  • 9. Equipe do Curso de Especialização Gênero e Diversidade na Escola – IEG/UFSC – Edição 2015 Coordenação do Projeto GDE Especialização Miriam Pillar Grossi e Olga Regina Zigelli Garcia – Coordenação Geral Marie-Anne Stival Pereira e Leal Lozano – Coordenação de Ambiente de Ensino Vir- tual (AVEA) Pedro Rosas Magrini – Coordenação Editorial Carmem Vera Ramos – Coordenação Financeira Jonatan Pereira - Secretário do GDE UFSC Quadro Docente do Curso GDE UFSC Professoras/es doutoras/es Adriano Henrique Nuernberg (Departamento de Psicolo- gia UFSC), Amurabi Pereira de Oliveira (Departamento de Sociologia Política UFSC), Antonela Maria Imperatriz Tassinari (Departamento de Antropologia UFSC), Carmem Silvia Rial (Departamento de Antropologia UFSC), Claudia Lima Costa (Departamento de Letras e Literatura Vernáculas UFSC), Cristina Scheibe Wolff (Departamento de História UFSC), Fernando Cândido da Silva (Departamento de História UFSC), Janine Gomes da Silva (Departamento de História UFSC), Jair Zandoná (Departamento de Língua e Literatura Vernáculas , Leandro Castro Oltramari (Departamento de Psico- logia UFSC), Luciana Patricia Zucco (Departamento de Serviço Social UFSC), Luzinete Simões Minella (Departamento de Sociologia Política UFSC), Mara Coelho de Souza Lago (Departamento de Psicologia), Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC), Marivete Gess- er (Departamento de Psicologia UFSC), Miriam Pillar Grossi (Departamento de Antro- pologia UFSC), Olga Regina Zigelli Garcia (Departamento de Enfermagem UFSC), Re- gina Ingrid Bragagnolo (Núcleo do Desenvolvimento Infantil UFSC), Rodrigo Moretti (Departamento de Saúde Pública UFSC), Tania Welter (Pós-doutoranda PPGAS), Teo- philos Rifiotis (Departamento de Antropologia Social UFSC); Tereza Kleba Lisboa (De- partamento de Serviço Social UFSC). Revisão de Conteúdo Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini
  • 10. NOTA / GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA - GDE Gênero e Diversidade na Escola é um projeto destinado à formação de profission- ais da área de educação que também permite a participação de representantes de Organizações Não Governamentais (ONGs) e de movimentos populares, buscan- do a transversalidade nas temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual e relações étnico-raciais. A concepção do projeto é da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/PR) e do British Council, em parceria com a Secretaria de Ed- ucação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI/PR), Secretaria de Ensino a Distância (SEED-MEC), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR) e o Centro-Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). PÓLOS PRESENCIAIS – GDE ESPECIALIZAÇÃO 2015 CONCÓRDIA PREFEITO – João Girardi COORDENADORA DO PÓLO – Leonita Cousseau ENDEREÇO – Travessa Irmã Leopoldina. Nº: 136. Centro. Concórdia – SC. CEP: 89700-000 Tel: (49) 3482-6029. FLORIANÓPOLIS PREFEITO – Cesar Souza Júnior COORDENADORA DO PÓLO – Fabiana Gonçalves ENDEREÇO – Rua Ferreira Lima, nº82. Centro. Florianópolis – SC. CEP: 88015-420 Tel: (48) 2106-5910 / 2106-5900 ITAPEMA PREFEITO – Rodrigo Costa COORDENADORA DO PÓLO – Soeli Uga Pacheco ENDEREÇO – Rua 402-B. Morretes. Prédio Escola Bento Elóis Garcia. Itapema – SC. CEP: 88220-000. Tel: (47) 3368-2267 / 3267-1450 LAGUNA PREFEITO – Everaldo dos Santos
  • 11. COORDENADORA DO PÓLO – Maria de Lourdes Correia ENDEREÇO – Rua Vereador Rui Medeiros. Portinho. Laguna – SC. CEP: 88790-000. Tel: (48) 3647-2808 PRAIA GRANDE PREFEITO – Valcir Daros COORDENADORA DO PÓLO – Sílvia Regina Teixeira Christovão ENDEREÇO – Rua Alberto Santos. Nº: 652. Centro. Praia Grande – SC. CEP: 88990-970 Tel: (48) 3532-1011
  • 12. SUMÁRIO Apresentação........................................................................................................... 13 Miriam Pillar Grossi, Olga Regina Zigelli Garcia e Pedro Rosas Magrini I. Disciplina 4 Gênero, diversidade sexual e religião 1. Ensino, religião e educação.................................................................................. 15 Tânia Welter 2. Educação laica e ensino brasileiro...................................................................... 29 Tânia Welter 3. Representações e relações de gênero em diferentes grupos religiosos......... 40 Fernando Candido da Silva 4. Direitos reprodutivos e religião: ensinando a transgredir................................ 57 Isabel Aparecida Felix II. Disciplina 5 As diferenças de gênero no espaço escolar 1. Políticas públicas de gênero no campo da educação......................................... 71 Mareli Eliane Graupe Lúcia Aulete Búrigo de Sousa 2. Gênero e educação............................................................................................. 111 Mareli Eliane Graupe Lúcia Aulete Búrigo de Sousa 3. Diversidade como princípio pedagógico inclusivo........................................... 121 Regina Ingrid Bragagnolo Raquel Barbosa
  • 13. 12 Apresentação É com imensa satisfação que apresentamos o segundo volume da Coleção Editorial de Livros Didáticos da Especialização à distância em Gênero e Diversidade na Escola (GDE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), referente ao módulo II do curso. A primeira disciplina deste segundo módulo, Gênero, diversidade sexual e religião, está dividida em quatro capítulos. No primeiro, Ensino, Religião e Educação, Tânia Welter procura demonstrar a força da denúncia profética de agentes e discursos re- ligiosos que impossibilitam a construção de um mundo de justiça e diversidade. No segundo capítulo, Educação laica e ensino Brasileiro, a mesma autora discorre sobre as relações entre educação e religião, em especial, a relação entre ensino religioso e o Estado laico. No terceiro capítulo, Representações e relações de gênero em dif- erentes grupos religiosos, Fernando Cândido da Silva reflete que a articulação entre gênero e religião não implica, necessariamente, na simples eliminação do religioso, mas antes sugere, uma revisita – laica e democrática – aos temas do sagrado. Por úl- timo, o capítulo Direitos reprodutivos e religião de Isabel Aparecida Felix, apresenta uma reflexão sobre o imprescindível engajamento pedagógico em prol da conscien- tização em torno dos direitos reprodutivos. A segunda disciplina, As diferenças de gênero no espaço escolar, está dividida em dois capítulos. O primeiro, assinado por Mareli Graupe e Lúcia Aulete Búrigo de Sou- sa, apresenta a discussão das políticas públicas de gênero no campo da educação e da formação de professoras/es. O segundo, também escrito pelas duas autoras, aborda o conceito de gênero e a importância da articulação entre gênero e educação. O ter- ceiro capítulo, de Regina Ingrid Bragagnolo e Raquel Barbosa, trata da temática das relações de gênero no cotidiano escolar, estereótipos sexuais, violências de gênero e a luta contra as desigualdades de gênero. As quatro autoras buscam, através do texto, estimular a/o cursista a iniciar ou dar continuidade aos seus estudos em gêne- ro no campo da educação, especialmente através do desenvolvimento de atitudes e práticas reflexivas no cotidiano escolar.
  • 14. 13 Ressaltamos que temos consciência que este livro didático é uma obra inacabada, uma vez que estas temáticas estão em constante construção e transformação, mas acreditamos que ele tenha potencial para a provocação do exercício da ação-reflex- ão-ação nas práticas pedagógicas. Boa leitura! Profa Dra Miriam Pillar Grossi (Departamento de Antropologia UFSC) Profa Dra Olga Regina Zigelli Garcia (Departamento de Enfermagem UFSC) Pós-doutorando Pedro Rosas Magrini (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS/UFSC) Editoras da Coleção Livros Didáticos do GDE UFSC
  • 15.
  • 16. 15 Ensino, religião e educação Tânia Welter Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar (Nel- son Mandela). Inspirada nessa epígrafe do líder sul africano Nelson Mandela, proponho refletirmos sobre ensino numa interface com religião e diversidade sexual, tendo como person- agens principais homens e mulheres, meninos e meninas, jovens e adultos, que sabe- mos têm históricos, corpos e desejos diferenciados. São sujeitos sociais em constan- tes e dinâmicos “jogos sérios” com outros sujeitos1 . Falar sobre educação escolar implica reco¬nhecer: (a) as diferenças sócio-históricas das/os sujeitos que compõem a escola – estudantes e educadoras/es2 ; (b) que seus corpos são genereificados, sexualizados, racializados, marcados por especificações sociais de gênero, orientação sexual, raça, etnia, religião, classe social e outras; e (c) dessemelhanças nas nomeações, representações e identidades que dizem respeito a estilos de vida, preferências estéticas, imagens corporais, acesso a bens materi- ais, entre outras. A partir disso, é possível formular uma primeira constatação: assim como na sociedade, a diversidade está presente no espaço escolar. 1 A categoria “sujeitos sociais” está sendo apropriada aqui na perspectiva de Shery Ortner (2007, p. 74), ou seja, como agentes inseridos em teias de relações de afeto, solidariedade, poder e rivalidade. Não são agentes totalmente livres, nem para formular e atingir suas metas, nem para controlar suas relações, e atuam dentro de teias de relações que compõem seus mundos sociais. Essa categoria parece adequada para entender os sujeitos-agentes da escola, que sabemos que possuem desejos, intenções, objetivos e projetos em constantes e dinâmicas disputas com outros sujeitos: estudantes, educadoras/es, pais e legislações. 2 Por entender sua ação direta na formação de estudantes, estou utilizando o termo educador para definir o conjunto de profissionais que atua na escola: professoras/es, técnicos em assuntos educacio- nais, especialistas em educação, agentes de serviços gerais, de vigilância, de segurança e de cozinha, bibliotecária/o, entre outras.
  • 17. 16 Escola, escolas A escola, desde sua criação, distinguiu e separou sujeitos: distinguia quem tinha e quem não tinha acesso a ela e, nela separava adultos de crianças, católicos de prot- estantes, negros de brancos, ricos de pobres, meninos de meninas (LOURO, 1997). Importante ressaltar que houve um tempo em que esta distinção era ainda mais seg- regadora e tinha respaldo na legislação, uma vez que havia, por exemplo, leis que proibiam que escravos, africanos libertos e mulheres frequentassem as escolas. (SANTA CATARINA, 2014). Neste cenário, crianças com deficiências ou com diferenças comportamentais e emo- cionais foram, por muito tempo, excluídas do convívio com outras crianças. Grupos étnicos foram proibidos do uso de suas línguas maternas, como nos casos dos indíge- nas, dos descendentes de africanos ou dos imigrantes de europeus e asiáticos. Além disto, grande parte dos conteúdos da escola e livros didáticos pautava-se por uma visão etnocêntrica, masculina e burguesa na qual a liberdade religiosa era restrita aos praticantes do segmento religioso dominante – cristão. A transformação nesse modelo não impediu muitas instituições escolares de promov- erem distinções e desigualdades entre sujeitos sociais, especialmente estudantes3 , mas também educadoras/es, tendo como base: classe social, sexo, gênero, religião, cor de pele, orientação sexual ou outros atributos. Neste contexto, a escola se apre- senta muitas vezes como espaço para experiências e relações assimétricas, estímulo para valores hegemônicos, repressões e opressões sobre padrões não hegemônic- os, exercícios de poder, promoção de desigualdades, conflitos e violências (macro e micro)4 , as quais nem sempre são penalizadas, e, dessa forma, promoveu e promove também uma invisibilidade dos conteúdos da diversidade servindo como uma das estratégias de sua homogeneização. A escola, portanto, é um espaço contraditório, ao mesmo tempo que é reconhecida como espaço para produção e socialização de conhecimentos (MENDONÇA, 2011), servindo para encontros e produções de diferenças, distinções e desigualdades. Poderia ser ela, um espaço para formação, reflexão, desconstrução e desnatural- ização das violências e desigualdades? 3 Essa discussão pode ser encontrada em Guacira Louro (1997), Marília Carvalho (2008), Sérgio Carrara et al. (2009). 4 Ideia inspirada em Miriam Abramovay (2003).
  • 18. 17 O direito à liberdade religiosa e sexual O direito à liberdade de culto está previsto na legislação nacional desde a consti- tuição de 1824, mesmo reconhecendo a Igreja Católica como a religião oficial5 . Na prática, o Brasil é um país multicultural e plurireligioso desde antes do período da colonização europeia. As múltiplas formas de religiosidade (mesmo no contexto do cristianismo) trazidas da Europa pelos conquistadores conviveram e misturaram-se a crenças e práticas dos povos tradicionais e das múltiplas religiosidades africanas trazidas por meio do tráfico para o Brasil (MUSSKOPF, 2013; WELTER, 2007; SERPA, 1997). Essa relação nunca foi harmoniosa e respeitosa, mas repleta de disputas, conflitos e perseguições às religiões e religiosidades minoritárias. As perseguições ocorridas, inclusive no interior dos próprios grupos, foram realizadas por instituições religiosas e escolares, muitas vezes disfarçando-se de afirmação da ortodoxia e prática verda- deira, e “[...] não raro aparelharam o Estado para a efetivação de suas concepções e práticas na esfera pública.” (MUSSKOPF, 2013, p. 160). Segundo Emerson Giumbelli (2005), cada religião tem suas dinâmicas que dialogam não apenas entre si, mas com forças do campo social mais amplo. Às vezes, a rigidez em uma dimensão é contrabalançada pela porosidade de outra. E nenhuma delas, isoladamente, pode resumir a totalidade de uma religião; ao contrário, cada uma dessas dimensões é plural, embora essa pluralidade frequentemente fique ocultada sob visões e pronun- ciamentos mais peremptórios. (GIUMBELLI, 2005, p. 12). A afirmativa deste antropólogo sugere ser necessário romper com a ideia monolíti- ca de religião e esforçar-se para pensar amplamente em perspectivas religiosas ou religiosidades. Religiosidade6 como uma experiência eminentemente subjetiva, in- efável e composta pelo conjunto de disposições referentes ao sagrado transcenden- 5 Para uma análise da complexa e conflituosa relação entre legislação e igreja confessional, ver André Musskopf (2013).
  • 19. 18 6 Religiosidade como o “[...] conjunto socialmente difuso de sentimentos, crenças e práticas referentes ao sagrado que podem ou não institucionalizar-se em sistemas e organizações religiosas [...]. Cabem neste campo tanto as formas religiosas institucionalizadas quanto as expressões do sagrado não estru- turadas, inclusive aquelas que não se reconhecem a si como propriamente religiosas” (OLIVEIRA, 1999, p. 1). 7 O sagrado é tomado aqui como aquilo que possui um caráter divino, religioso, e, ao adquirí-lo, não pode ser tocado, violado ou infringido. 8 Forma de descrever populações “não heterossexuais” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009). te7 (OLIVEIRA, 1999). Apesar de ser subjetiva e individualizada, a identidade religiosa é constituída a partir das relações sociais e do contato dos sujeitos com princípios, valores, práticas, símbolos e rituais religiosos que são coletivos. A partir desse conta- to é que o sujeito pode ou não sentir desejo de ter acesso ao sagrado transcendente. Esse processo pode ocorrer de forma gradual a partir das relações familiares e comu- nitárias ou diretamente em perspectivas religiosas, institucionalizadas ou não. A perspectiva religiosa é um modo de ver, aprender e compreender, uma forma par- ticular de olhar a vida, uma maneira particular de construir o mundo (GEERTZ, 1978). Ela difere do senso comum, porque se move além das realidades da vida cotidiana e da científica, porque questiona as realidades da vida cotidiana e da estética e porque se preocupa com o fato. No que tange a liberdade sexual, podemos afirmar que a relação com a diversidade sexual8 também nunca foi tranquila, nem tampouco sua vivência garantida pela leg- islação. Cunhado no contexto conhecido como medicalização das relações homoafe- tivas no século XIX, o termo “homossexualismo” representava as diversas teorias explicativas sobre orientação sexual e identidade de gênero (termos e conceitos re- centes) desviantes da heterossexualidade, desenvolvidos com o objetivo de descrim- inalizar as pessoas, suas identidades e práticas (MUSSKOPF, 2013). Os discursos médicos sobre a homossexualidade promoveram consequências nefas- tas sobre indivíduos, mas também fomentaram o surgimento de organizações por direitos civis homossexuais nos anos cinquenta do século vinte. A substituição do termo “homossexualismo” (associado a algum tipo de patologia) por “homossexuali- dade” refletiu uma mudança significativa nas décadas de 1960-70, com a organização de movimentos sociais e a configuração de uma área de produção conhecida como Estudos Gays e Lésbicos. Com o aprofundamento das pesquisas acadêmicas sobre gênero e sexualidade, o desenvolvimento dos estudos queer e a multiplicação das siglas – GLS, GLBT, LGBT, LGBTTT, LGBTI –, o tema da homossexualidade foi desloca-
  • 20. 19 do para uma perspectiva da diversidade sexual, na qual se enquadram as expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” (MUSSKOPF, 2013). Os movimentos sociais têm reivindicado leis e políticas públicas visando à proteção e respeito da população LGBT e à criação de instrumentos de combate à intolerân- cia, comumente chamada de homofobia, mas também lesbo e transfobia9 , sexis- mo, heterossexismo10 , machismo. No Brasil, “a homofobia é um conceito que liga os movimentos LGBTTT com os Estudos de Gênero e feminismos, bem como com out- ros movimentos sociais, como, e.g., os movimentos negro ou ambientalista.” (FER- NANDES, 2011, p. 67). Ela se configurou como “[...] uma categoria capaz de responder a interpretações sobre as violências individuais e coletivas, materiais e simbólicas, que orientam as práticas que estão à margem dos padrões hegemônicos de sexuali- dade.” (FERNANDES, 2011, p. 67-68). Pedagogias, estratégias e exclusões Embora existam legislações (gerais e específicas), orientações e formações, obser- va-se, nas escolas brasileiras, o uso recorrente de pedagogias excludentes por parte de estudantes e educadoras/es diante de expressões de gênero, sexuais ou religio- sas não normativas. Alguns estudos aprofundaram essas questões. Na pesquisa de Stela Caputo (2012), por exemplo, a autora acompanhou e entrevistou crianças e jo- vens iniciadas/os e praticantes do Candomblé durante 20 anos. As/os informantes relataram que foram discriminados por seu pertencimento religioso por suas/seus professoras/es e sofreram retaliações e exclusões por parte de colegas. Um menino de quatro anos contou que foi chamado de “filho do diabo” por sua professora e uma menina de sete anos contou que na escola “só gostam de alunos crentes” e, por isso, deseja se tornar crente. Para se protegerem das agressões sofridas, muitos dessas/ es estudantes contaram que utilizaram estratégias para se tornarem invisíveis na es- cola, como: esconder seu pertencimento religioso; afirmar ser católico; participar de 9 Para Daniel Borrilo, a homofobia é um termo que indica atitude de hostilidade, rejeição irracional ou mesmo ódio para com os homossexuais. Ela “[...] é uma manifestação arbitrária que consiste em quali- ficar o outro como contrário, inferior ou anormal.” (BORRILO, 2009, p. 15). 10 Heterossexismo é a atitude de discriminação, negação, estigmatização ou ódio contra toda sexual- idade não heterossexual. Essa atitude está fundamentada na noção de que a heterossexualidade é superior e mais desejável às demais formas de orientação sexual (BORILLO, 2009).
  • 21. 20 rituais de iniciação católica; não utilizar colares e guias; esconder “curas”; inventar doenças para justificar a cabeça raspada “para o santo”, entre outras. Além dos relatos das/os estudantes, a pesquisadora realizou também entrevistas com as professoras sobre a religiosidade dessas crianças e jovens. A partir das res- postas, concluiu que elas “não são vistas”, “não existem” ou, “quando existem”, são encaradas pelas/os professoras/es como um problema, mas “que pode ser resolvi- do”. Assim, para Stela Caputo, mais do que sincretismo religioso, estas são ações discriminatórias, formas de silenciamento da diversidade religiosa na escola e ten- tativas de invisibilização das singularidades praticadas por estudantes, mas também de educadoras/es. Em outra pesquisa realizada com mais de 50 mil diretoras/es de escolas no Brasil (questionário respondido à Prova Brasil, 2011), constatou-se que 51% delas cultivam o hábito de cantar músicas religiosas ou fazer orações na entrada ou saída da sala de aula e 22% possuem objetos, imagens, frases ou símbolos religiosos expostos em ambientes públicos das escolas (SALLA, 2013). Para Luiz Cunha e Ana Maria Mendes de Miranda11 e Roseli Fischmann (POLATO, 2009), ações como estas desrespeitam o princípio constitucional da laicidade de Estado12 e são formas discriminatórias contra religiosidades não hegemônicas. Como sua escola se relaciona com a diversidade religiosa? Luiz Lopes (2008) afirma que a escola é uma das principais agências de (re)produção e organização de identidades sociais de forma generificada, sexualizada e racializa- 11 Durante sua participação no programa conexão futura, da TV cultura, exibido em 19 de abril de 2013, cujo tema era religião na escola. A gravação do programa está disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=xik6bczluqo. 12 A laicidade é um dispositivo político que organiza as instituições básicas e públicas do Estado (como cortes, hospitais, escolas) e regula seus funcionamentos quanto à separação entre a ordem secular e os valores religiosos. Nesse modelo, não há religião oficial e as liberdades de consciência e de crença são garantias constitucionais, “[...] o que protege o direito de expressão tanto de crentes religiosos quando de agnósticos. Não é permitido ao Estado estabelecer vínculos com grupos religiosos, uma exigên- cia que estimula a neutralidade, a igualdade e a não discriminação no funcionamento das instituições básicas” (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010, p. 12-13). O dispositivo jurídico da laicidade está presente no ordenamento constitucional do Brasil, além de ser periodicamente reafirmado pelos acordos interna- cionais dos quais o Brasil é signatário. (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010).
  • 22. 21 da e defesa de uma lógica monocultural. Para tanto, recorre, entre outras estraté- gias, àquela que Rogério Junqueira (2009) denominou de “pedagogia do insulto”, constituída por piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações e expressões des- qualificantes diante daquelas/es que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem, mas minorias sociais, como negras/ os, indígenas, mulheres, seguidoras/es de religiões não hegemônica, camponesas/ es e outros grupos. As práticas discriminatórias são pautadas e repetidas incansavel- mente no espaço escolar, ora através de mensagens normatizadoras, ora através do silêncio e do consen¬timento da violência. Por meio da “pedagogia do insulto”, estu- dantes e educadoras/es aprendem a ser hostis à estes grupos, servindo como poder- oso mecanismo de silenciamento e dominação simbólica. Agindo dessa forma, a escola reproduz padrões sociais, perpetua concepções, va- lores e clivagens sociais, participa ou compactua com a normatização de corpos e identidades13 , legitima relações de poder, hierarquias e processos de acumulação, estimula a internalização do heterossexismo, misoginia14 , negação, autoculpabili- zação, autoaversão de jovens e adultos com identidades e desejos sexuais não hege- mônicos. Muitas vezes, isso ocorre com a participação ou a omissão da família15 , da comunidade escolar, da sociedade em geral e do Estado. Ao defender a lógica monocultural, a escola apóia a homogeneização e não contribui para o reconhecimento e respeito às diferenças existentes (heterogeneização) e nem para a problematização das desigualdades (LOPES, 2008). Durante a realização de pesquisas sobre a disciplina de Ensino Religioso e sobre as representações de iniciação sexual e homossexualidade em escolas públicas de San- ta Catarina16 , verificou-se o uso recorrente da “pedagogia do insulto” e de discursos sexistas, homofóbicos, heteronormativos e machistas, muitas vezes, pautados por argumentos teológicos. A heterossexualidade como “única forma de chegar a Deus” e o matrimônio heterossexual como “o verdadeiro par” foram utilizados, por exem- plo, em uma peça teatral numa escola em Santa Catarina. Constatou-se também um esforço de invisibilização e/ou uso da “pedagogia do armário” por muitos gays, lésbi- 13 Noção inspirada especialmente em Michel Foucault (LOURO, 1997). 14 Sentimento de repulsa ou aversão às mulheres, recorrentemente confundido com machismo. 15 Sobre homofobia familiar, consultar Sarah Schulman (2010). 16 Miriam Grossi, Felipe Fernandes e Fernanda Cardozo (2014) e Miriam Grossi, Maria Amélia Dickie e Tânia Welter (2014).
  • 23. 22 cas, trans e iniciados em religiões minoritárias (não hegemônicas) como alternativas para fugir da “pedagogia do insulto”. As pesquisas apontam que toda forma de discriminação interfere nas expectativas de sucesso e rendimento escolar; produz intimidação, insegurança, estigmatização, segregação, isolamento; estimula a simulação para ocultar a diferença; gera desinter- esse pela escola; produz abandono e evasão, tumultua o processo de configuração e expressão identitária, levando inclusive a tentativa de suicídio17 . Rogério Junqueira (2009) afirma também que tais dificuldades tendem a ser ainda maiores, se pessoas homoeróticas, com identidade ou expressão de gênero “fora do padrão convencio- nal”, forem pobres, iletrados, negros, indígenas, soropositivos, tiverem deficiência física ou mental e não puderem (ou não quiserem) “[...] manter um estilo de vida sintonizado com a celebração hedonista do ‘ser jovem’ e ter um ‘corpo sarado’” (JUN- QUEIRA, 2009, p. 25)18 . Costumeiramente, a escola afirma que estudantes evadem da escola. Berenice Ben- to (2011) se contrapõe a essa ideia afirmando que estudantes que são submetidos à “pedagogia do insulto” não evadem da escola, mas sim são “expulsos”. Essa análise indica que a escola tem responsabilidade sobre essas práticas e como agente impor- tante na constituição de sujeitos, deve estar à frente, problematizar a naturalização da vida social, os ideais de normalidade, não contribuir com a homogeneização de corpos, culturas e discursos (LOPES, 2008). Para tanto, a escola pode e deve ser espaço para reflexões, desnaturalizações, formações, resistência e inovações, apesar de estar permeada por conflitos e con- tradições, ser recorrentemente espaço para experiências e relações assimétricas, estímulo para valores hegemônicos, realização ou conivência com repressões e opressões sobre padrões não hegemônicos, tornando-se palco para inúmeras violên- cias que promovem graves consequências pessoais a estudantes e educadoras/es. 17 Ver especialmente os estudos de Marilia Carvalho (2008), Sérgio Carrara et al. (2009), Fernando Teix- eira-Filho, Carina Rondini e Juliana Bessa (2011). 18 Kimberly Crenshaw (2002) sugere o uso do conceito de interseccionalidade, a fim de capturar os aspectos estruturais e dinâmicos da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A partir desse uso, pode-se pensar como o racismo, sexismo e homofobia criam desigualdades que posicionam social e politicamente alguns grupos.
  • 24. 23 Por uma cultura de direitos humanos Nas últimas décadas, segmentos e movimentos sociais têm demandado, para o Es- tado brasileiro e seus órgãos federativos, a necessidade de estabelecimento de políticas públicas, das quais o campo da educação se destaca. Na recente atualização da Proposta Curricular de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2014), afirma-se a im- portância na formação de crianças e jovens na representação das identidades plurais no currículo e cotidiano escolar, o respeito aos marcos históricos e civilizatórios, o reconhecimento dos processos históricos e sociais diferenciados e o questionamen- to da ausência de suas especificidades nos currículos oficiais. Tendo em vista o preconceito e discriminação vivenciada por grupos minoritários, que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) afirma ser obrigatório o ensino de conteúdos históricos sobre populações afro-brasileiras e indígenas nas escolas19 , o direito à educação e à acessibilidade para indígenas, qui- lombolas, sujeitos do campo e sujeitos da educação especial; da mesma forma, para aqueles que se reconstroem em seus direitos, em suas identidades, nos movimentos de direitos humanos, nas relações de gênero e na diversidade sexual20 . É, no entanto, necessário intensificar ações de combate a violências e discriminações, fortalecer e ampliar pactos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos com medidas e políticas que acelerem a construção de “uma cultura de direitos” em que se reconheçam as diferentes identidades e sejam garantidos processo de inclusão de grupos socialmente vulneráveis. As ações e propósitos firmados no documento (estatal) de Santa Catarina estão rel- acionados, nas últimas décadas, às lutas históricas, provocações e articulações en- tre movimentos sociais, seja ele os feministas, LGBTIs, negros, entre outros, e a ac- ademia brasileira (LOPES, 2008; GROSSI, 2014). Estes movimentos e conhecimentos acadêmicos demandaram ao Estado brasileiro mudanças nas legislações e criação de políticas públicas. Com apoio estatal, foram realizadas conferências (municipais, estaduais e federais) para que a sociedade civil “fosse ouvida” nas demandas e nas propostas. A partir deste conjunto de fatores e tendo como foco questões de gêne- 19 Referindo-se à Lei n.º 10.639/2003 e Lei nº 11.645/2008. 20 Referindo-se, entre outras, às políticas de ações afirmativas (conhecidas por políticas de cotas) e ao uso do nome social.
  • 25. 24 ro, sexualidade e étnico raciais, observou-se no Brasil, a partir de 2003, a criação de secretarias especiais em nível federal, como as: •Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM); •Secretaria de Educação Continuada e Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI); e •Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR). Além de inúmeras políticas públicas, algumas bastante progressistas, ações afirmati- vas (políticas de cotas para negros, escola pública e por renda familiar), leis de com- bate às violências raciais e sexistas, leis para garantir direitos ao casamento e filiação de pessoas do mesmo sexo, foram criados programas nacionais de formação contin- uada para educadoras/es em gênero e diversidade sexual e étnico-racial como é o caso do GDE. Programas anti-homofobia, como o Programa de Combate à Violência e à Discriminação Contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual chama- do “Brasil sem Homofobia, entre outras iniciativas como a criação do concurso de redações “Igualdade de Gênero”, criação de universidades, centros e institutos fed- erais, cursos de graduação e pós-graduação especiais para educadoras/es (GROSSI, 2014; FERNANDES, 2011). Diferentemente de outros contextos nacionais, no Brasil, o Estado incentivou a ação de movimentos sociais, propôs e financiou políticas públicas em torno das questões de gênero, sexualidade, étnico-racial, religião, entre outras (FERNANDES, 2011). Essa estrutura estatal possibilitou a realização e financiamento de projetos visando o questionamento de práticas discriminatórias nas escolas e fora dela, investimen- to na formação de estudantes e educadoras/es e no fortalecimento de uma cultura para os direitos humanos. É o que observamos, por exemplo, em projetos como Papo Sério21 , Projeto Antropologia, Educação e Diversidade - Iniciação Científica no Ensino 21 Projeto de extensão realizado desde 2007 pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina. Com objetivo de problematizar as representações de gênero e sexualidade com estudantes, professoras(es) e outros profissionais de escolas públicas da Grande Florianópolis, o projeto Papo Sério possui três subprojetos: Oficinas Papo Sério, Concurso de Cartazes sobre Homo-Lesbo-Transfobia e Heterossexismo nas Escolas e Iniciação Científica Júnior (PIBIC EM). Desde seu início, esses projetos envolveram e impactaram milhares de estudantes e educadores(as). Reflexões sobre esse projeto podem ser encontradas em Mareli Graupe et al. (2011), Ariana Sala e Mir- iam Grossi (2013). Informações sobre o NIGS e outros projetos podem ser encontradas em www.nigs. ufsc.br.
  • 26. 25 22 Este projeto foi financiado pelo Programa Institucional de bolsas de iniciação científica no ensino médio (PIBIC EM/CNPq) e foi desenvolvido na Universidade Federal da Fronteira Sul entre 2013 e 2014. Com objetivo de fortalecer o processo de disseminação das informações e conhecimentos científicos e tecnológicos básicos, bem como desenvolver as atitudes, habilidades e valores necessários à educação científica e tecnológica, esse projeto envolveu estudantes do ensino médio de escolas públicas da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina, município de Chapecó (SC), além de estudantes e professoras da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó.. 23 O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) é financiado com recursos da Coor- denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério da Educação (Brasil) e tem como objetivos oportunizar e estimular a iniciação à docência de licenciandos(as), aproximar o ensino superior da Educação Básica, criar e fortalecer projetos que visem a melhoria da educação públi- ca. O PIBID de Ciências Sociais foi realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS, Chapecó) entre 2012 e 2014, envolveu estudantes e professora da UFFS e professor da Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina, município de Chapecó (SC). Dados sobre este projeto, ver pibidsociologiachapeco. blogspot.com.br. Médio (PIBIC EM)22 , PIBID Ciências Sociais23 e curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE)24 realizados na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis) e na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS, Chapecó). Estes projetos têm con- tribuído na formação de inúmeros estudantes e educadoras/es, para problematizar a naturalização da vida social, na desmistificação das injustiças e desigualdades, na promoção de uma educação e uma sociedade equitativa e na constituição de uma cultura para direitos humanos. Por fim, percebo que “[...] educar para a diversidade não significa apenas reconhecer as diferenças, mas refletir sobre as relações e os direitos individuais e coletivos”. (GRAUPE; GROSSI, 2014, p. 29). Considero fundamental “Que a escola seja um lugar de (re)criar e politizar a vida social, de compreender a necessidade de não separar cognição e corpo, de se livrar de discursos binários aprisionadores, de se questionar ininterruptamente e de se preocupar com justiça social e ética!” (LOPES, 2008, p. 144). Desejo que a escola seja o espaço para aprender a superar as representações negativas sobre os corpos, as religiosidades, os desejos (HOOKS, 2003) e que ela invista mais na promoção da equidade e do respeito às diferenças do que na sua dis- criminação.
  • 27. 26 Referências Bibliográficas ABRAMOVAY, Miriam. Violências no cotidiano das escolas. In: ______. (Org.). Escola e violência. 2. ed. Brasília: UNESCO/UCB, 2003. BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Fem- inistas, Florianópolis, n. 19, v. 2, p. 549-559, maio/ago. 2011. BORRILO, Daniel. A homofobia. In: LIONÇO, T.; DINIZ, D. (Org.). Homofobia e educação: um desafio ao silêncio. Brasília: Letras Livres, 2009. p. 15-46. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. CARRARA, Sérgio et al. (Org.). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, orientação sexual e relações étnico-raciais. Livro de Conteúdo. Versão 2009. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM, 2009. CARVALHO, Marília Pinto. Gênero na sala de aula: a questão do desempenho escolar. In: MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria (Org.). Multiculturalismo: dif- erenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 90-124. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para encontro de especialistas em aspectos da discrim- inação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Bra- sil. Brasília: Letras Livres, 2010. FERNANDES, Felipe Bruno Martins. A agenda anti-homofobia na educação brasileira (2003-2010). 2011. 422 p. Tese (Doutorado em Ciências Humanas)–Programa de Pós-Gradu- ação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Flori- anópolis 2011. GARCIA, Olga. Zigelli.; GROSSI, Miriam Pilar.; GRAUPE, Mareli (Org.). Gênero e diversi- dade na escola: desafios da formação em gênero, sexualidades e diversidades étnico-raciais em Santa Catarina. Tubarão: Copiart, 2014. GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GIUMBELLI, Emerson. Apresentação. In: ______. (Org.). Religião e sexualidade: convicções e responsabilidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 7-15. GRAUPE, Mareli; GROSSI, Miriam Pilar. Superando obstáculos: a implementação do GDE em Santa Catarina. In: GARCIA, Olga Zigelli; GROSSI, Miriam Pilar; GRAUPE, Mareli (Org.). Gênero e diversidade na escola: desafios da formação em gênero, sexualidades e diversidades étnico-raciais em Santa Catarina. Tubarão: Copiart, 2014. p. 13-31.
  • 28. 27 GRAUPE, Mareli; GROSSI, Miriam Pilar ; SOUZA, Kathilça Lopes de ; AMORIM, Alexandre de Souza . Projeto de Extensão Papo Sério: realização de oficinas sobre Gênero, Sexualidade e Homofobia com Jovens das Escolas Públicas da Grande Florianópolis. V SEMINÁRIO COR- PO, GÊNERO E SEXUALIDADE, 2011, Rio Grande. p. 1522-1525. GROSSI, Miriam Pilar; DICKIE, Maria Amélia Schmidt; WELTER, Tânia. (Org.). Ensino re- ligioso e gênero em Santa Catarina. Florianópolis: Mulheres, 2014. No prelo. GROSSI; Miriam Pilar; FERNANDES, Felipe Bruno Martins; CARDOZO, Fernanda (Org.). Sexualidades, juventude e práticas docentes: uma etnografia da educação básica em escolas públicas de Santa Catarina. Florianópolis: Mulheres, 2014. No prelo. HOOKS, Bell. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo ed- ucado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p.113-126. JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas escolas: um problema de todos. In: ______. (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diver- sidade, UNESCO, 2009. p. 13-51. LOPES, Luis Paulo Moita. Sexualidades em sala da aula: discurso, desejo e teoria queer. In: MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. (Org.). Multiculturalismo: dif- erenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 125-148. LOURO, Guacira L. A emergência do gênero. In: ______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 14-36. ______. Pedagogias da sexualidade. In: ______. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 7-34. MENDONÇA, Sueli Guadelupe de Lima. A crise de sentidos e significados na escola: a con- tribuição do olhar sociológico. Caderno CEDES, Campinas, v. 31, n. 85, p. 341-357, 2011. MINELLA, Luzinete Simões; CABRAL, Carla Giovana (Orgs.). Práticas Pedagógicas e Emancipação: Gênero e Diversidade na Escola. Florianópolis: Mulheres, 2009. MUSSKOPF, André S. A relação entre diversidade religiosa e diversidade sexual: um desafio para os direitos humanos e o Estado laico. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 27, n. 1, p. 157-176, jan.-jun. 2013. NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Nós acolhemos os homossexuais: homo- fobia pastoral e regulação da sexualidade. TOMO, São Cristóvão, n. 14, p. 203-227, jan./jun. 2009. OLIVEIRA, P. A. R. Religiosidade: conceito para as ciências do social. In: JORNADAS SO- BRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, 9., 1999, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1999.
  • 29. 28 ORTNER, Sherry. Poder e Projeto: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam Pilar. ECK- ERT, Cornelia. FRY, Peter (orgs.). Conferências e Diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova Letra, 2007. p.45-80. POLATO, Roseli Fischmann: “Escola pública não é lugar de religião”. GESTÃO ESCOLAR, edição 04, 2009. Disponível em: http://gestaoescolar.abril.com.br/politicas-publicas/acordo-en- sino-religioso-504521.shtml SALA, Arianna; GROSSI, Miriam Pilar. Batendo um “papo serio”: desconstruindo gênero e sexo nas escolas de Santa Catarina. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES, 3., 2013, Salvador. Anais.... Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2013. Não paginado. SALLA, Fernanda. Ensino Religioso e escola pública: uma relação delicada. NOVA ESCOLA, edição 262, maio 2013. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br SANTA CATARINA. Proposta curricular de Santa Catarina: formação integral na edu- cação básica. [S.l.]: [S.n.], 2014. Disponível em www.propostacurricular.sed.sc.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2014. SERPA, Elio Cantalicio. Igreja e poder em Santa Catarina. Florianópolis: EdUFSC, 1997. TEIXEIRA-FILHO, Fernando Silva; RONDINI, Carina Alexandra ; BESSA, Juliana Cristina.. Reflexões sobre homofobia e educação em escolas do interior paulista. Educação e Pesquisa [online]. vol.37, n.4,p. 725-741, 2011. WELTER, Tânia. “O profeta São João Maria continua encantando no meio do povo”: um estudo sobre os discursos contemporâneos a respeito de João Maria em Santa Catarina. 2007. 338 p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropolo- gia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
  • 30. 29 24 Gênero e Diversidade na Escola (GDE) é um programa pioneiro de formação de profissionais da ed- ucação básica da rede pública de ensino do Brasil financiado pelo Ministério da Educação (MEC). Fo- cado nas temáticas de gênero, orientação sexual e relações étnico-raciais, esse curso é oferecido nas modalidades de educação presencial e a distância e visa capacitar essas(es) profissionais para atuarem na educação formal promovendo a igualdade e equidade. Segundo Graupe e Grossi (2014, p. 14), essa formação integra a orientação do governo brasileiro, que, a partir de 2003, criou secretarias e políticas educacionais “[...] voltadas para o reconhecimento da diversidade cultural, a promoção da igualdade de todos e todas e o enfrentamento do preconceito e de todas as formas de discriminação.” Em Santa Catarina foram realizadas duas edições deste curso. Sobre a primeira edição do GDE em Santa Catari- na, ver Luzinete Minella e Carla Cabral (2009). Sobre a segunda edição, ver Olga Garcia, Miriam Grossi e Mareli Graupe (2014). 25 Para visualizar os vídeos e a repercussão do caso, visitar www.paulopes.com.br. Acesso em dezembro 2014. 26 Durante o programa Conexão Futura, da TV Cultura, exibido em 19 de abril de 2013, cujo tema foi religião na escola. O vídeo está disponível em www.youtube.com/watch?v=xik6bczluqo. Educação laica e ensino brasileiro Tânia Welter Maciel Vieira, 17 anos, estudante de uma escola pública da cidade de Miraí/MG, pro- duziu e socializou um vídeo na internet, em abril de 2012, como forma de protesto contra a ação pedagógica da professora de Geografia de sua escola, que iniciava suas aulas com a oração cristã “Pai Nosso”. Buscou também denunciar ato discriminatório praticado por colegas de classe e questionar a postura de gestoras/es da Secretaria da Educação e da direção da escola diante da sua denúncia25 . Questionado, o estu- dante explicou26 que não participava da oração porque era ateu e que só decidiu reagir e denunciar a ação da professora, quando essa o criticou diante de toda classe afirmando que “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida” e colegas de classe (supostamente com a aquiescência da professora) que acrescen- taram seu nome à frase “livrai-nos do mal”. Contou também que se surpreendeu com o desconhecimento da professora e das/os gestoras/es (direção e Secretaria da Ed- ucação) a respeito da legislação nacional (Constituição Federal e Lei de Diretrizes e Bases da Educação), especialmente do princípio da laicidade.
  • 31. 30 Para a professora Ana Maria Mendes de Miranda27 , a história deste estudante (que se expôs sozinho) é semelhante a outras ocorridas em escolas estaduais do Rio de Janeiro. Discentes buscam orientação em secretarias da educação ou direções de escola, por se sentirem prejudicados por ações pedagógicas proselitistas nas esco- las onde estudam. Grande parte não obtém respostas satisfatórias, orientações ou ações eficazes de combate a essas pedagogias28 . Esses fatos explicitam, para essa pesquisadora, uma desqualificação das/os profissionais diante de um direito previsto por lei. Ela observou que as ações de denúncia e combate da intolerância religiosa no estado do Rio de Janeiro têm ocorrido a partir de grupos e organizações não gover- namentais, e isso ocorre porque faltam mecanismos estatais eficazes que garantam a liberdade de expressão religiosa. Este breve relato e reflexão nos indica que a educação brasileira é marcada por con- flitos entre legislação, perspectivas pessoais e ações teórico-metodológicas. A re- ligião, a religiosidade, os modos ou perspectivas religiosas, mobilizam ou são mo- bilizados por “sujeitos sociais” (ORTNER, 2007) na defesa de interesses pessoais ou institucionais. A partir disso, pontuamos algumas questões: os discursos e pedago- gias proselitistas são utilizados na sua escola? Quais são os impactos destes na vida de estudantes e educadoras/es? É possível eliminar esses discursos e pedagogias? Em que medida esses discursos e ações comprometem o princípio constitucional da laicidade? O que, na sua opinião, caracteriza uma educação laica? Estado laico, laicidade e secularização As reflexões acadêmicas sobre o princípio da laicidade no Brasil são necessárias na ponderação sobre os conflitos observados nas escolas, especialmente públicas, mas também em outros espaços, como o Congresso e Senado Federal. Também aqui, a perspectiva religiosa (progressista ou conservadora) orienta a visão de mundo de representantes do povo. 27 Opinião emitida durante sua participação no programa conexão futura, da TV Cultura, que foi ao ar em 19 de abril de 2013. Para assisti-la, acessar http://www.youtube.com/watch?v=xik6bczluqo. 28 Essa informação está respaldada em uma pesquisa sobre a disciplina de ensino religioso em escolas públicas do Rio de Janeiro, realizada pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF) da Universidade Federal Fluminense.
  • 32. 31 Para exemplificar, transcrevo discursos significativos desse debate reunidos no cur- ta-documentário “Estado laico?”29 . O deputado federal Paulo Rubem (PDT/PE) de- fende que o Estado brasileiro é um estado laico, que não tem religião, e, por isso, as políticas públicas devem ser construídas independentes de credo religioso, de “opções sexuais individuais, de origem, de faixa etária, de nível de renda”. Ele afir- mou ainda estar preocupado com as/os parlamentares que tentam impor, à maioria da sociedade, determinadas concepções que considera discriminatórias, preconcei- tuosas e que tentam intervir na vida privada das/os cidadãs/ãos. O que não cabe ao Estado em hipótese alguma. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) afirma que, desde a Proclamação da República (1889), Estado e Igreja se separaram. Mesmo assim, desde lá, as igrejas institucionais vêm renovando suas estratégias para influenciarem o Estado em suas decisões. Ele percebe que a influência da Igreja Católica Apostólica Romana é inte- grada e ocupa o espaço do Congresso Nacional realizando missas: “Agora as igrejas evangélicas realizam cultos e os deputados vão à tribuna dizer que estão a serviço de Jesus”. Essa postura estaria desrespeitando pessoas de outras religiões e pessoas que não têm religião. O surpreendente, segundo ele, é que isso ocorre num país que é multicultural, plurireligioso e com uma formação cultural e religiosa diversa. O deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ) afirma que leva em conta a “palavra de Deus” para decidir seu voto. Já o deputado João Campos (PSDB/GO) afirma que a primeira carta de direitos humanos, do ponto de vista universal, é a Bíblia Sagrada. Ele tam- bém aciona o discurso “oficial”, ao afirmar que o Brasil é um Estado laico, que não tem uma religião oficial, não financia ou estimula religião institucional específica, mas garante, assegura e respeita todas. Para este, o estado brasileiro respeita inclu- sive o cidadão que não tem religião30 . Vemos aqui os diversos aspectos observados na literatura sobre laicidade no Brasil: o relato histórico (oficial) reafirmando e defendendo o princípio constitucional do Estado Laico, as dificuldades e os conflitos gerados pelo desrespeito a esse princípio, 29 Curta-documentário produzido, em 2012, pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) em parceria com as Loucas de Pedra Lilás, para a campanha “Quanto Vale seu Voto?”. Vídeo disponível no endereço eletrônico do Observatório da Laicidade na Educação: www.edulaica.net.br. 30 Tanto o deputado Jair Bolsonaro, quanto o deputado João Campos, fazem parte da Frente Parlamen- tar Evangélica. Segundo o curta-documentário Estado Laico?, esta frente é formada por 79 deputados federais e 03 senadores (mandato 2010-2014).
  • 33. 32 e a religiosidade orientando escolhas pessoais e institucionais. A afirmação provoca- dora do filósofo Olavo de Carvalho – “O Estado é laico, a sociedade não”31 – teria uma relação com isso? O que a escola pública tem a ver com isso? O antropólogo Ari Oro diferencia os termos laicidade (ou laicização) de secularização. Este é um fenômeno que “abrange ao mesmo tempo a sociedade e as suas formas de crer”, enquanto aquela “designa a maneira pela qual o Estado se emancipa de toda referência religiosa” (ORO, 2008, p. 83), ou seja, “secularização expressa a ideia de exclusão das religiões do campo social, que se encontra, então, ‘secularizado’, as normas religiosas interferindo cada vez menos nos comportamentos cotidianos, na maneira de compreender a vida e de se representar a morte” (ORO, 2008, p. 83). Na laicidade, não há uma eliminação total da religião na sociedade e diz respeito, so- bretudo ao Estado. Em sua opinião, o Brasil seria um país secularizado? No Brasil, desde a edição do decreto 119-A (1890), de provável autoria de Rui Bar- bosa, o Estado incorporou noções ligadas ao princípio da laicidade e também es- tabeleceu igualdade de tratamento entre as religiões. Com a Constituição de 1891, institui-se a separação entre Igreja e o Estado, em que este não mais reconhece ou financia uma religião oficial (que até então era a católica), mas assume, de forma de- finitiva, as rédeas da educação (LUI, 2011). Segundo Giumbelli (2004), a laicidade, concebida como um valor comum necessário passa por três princípios, que a garantem e limitam. O primeiro, princípio da sepa- ração, “assegura que as opções espirituais ou religiosas não envolvam o Estado e que este não se envolva com aquelas” (2004, p. 50). Ele demanda também que o Estado assegure a expressão religiosa, “assim como postula a renúncia, por parte das re- ligiões, à sua dimensão política.” (2004, p. 50). A laicidade exige de cada religião um esforço de adaptação e conciliação dos dogmas com as leis que regem a sociedade. O segundo princípio é o da igualdade, que comanda um tratamento isonômico por parte do Estado, “mas exige das religiões que não façam demandas particularistas” (2004, p. 50). O terceiro princípio, o da liberdade de consciência, “funda o direito à livre expressão religiosa no espaço e no debate público” (2004, p. 50) e “ impele o Estado a proteger o indivíduo contra toda imposição religiosa” (2004, p. 50). O fato de a escola expor objetos sagrados no espaço público ou oferecer a disciplina de Ensino Religioso fere o princípio estatal da laicidade. 31 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8HQMZ-ekNfo. Acesso: dezembro 2014.
  • 34. 33 Do direito à diferença na legislação brasileira Observando a legislação brasileira, constatam-se garantias jurídicas de respeito à liberdade religiosa e sexual desde a Constituição Federal até legislações específicas, assim como controvérsias. Embora mantendo o catolicismo romano como religião oficial, a Constituição brasileira de 1824 reconhecia o direito à liberdade religiosa (MUSSKOPF, 2013). Mesmo com o reconhecimento da laicidade pela constituição de 1891, havia um projeto modernizador para a sociedade brasileira, que utilizava o dis- curso sobre liberdade de culto e a separação entre Igreja e Estado, para promover re- ligiosidades supostamente afinadas com esse projeto. Uma prova dos limites desse projeto era a constante perseguição a religiões de matriz africana e indígena, que eram acusadas de primitivas e selvagens (MUSSKOPF, 2013). A Constituição Federal de 1988 reafirmou a liberdade religiosa e o princípio da laici- dade32 , embora orientasse a oferta (obrigatória) da disciplina de Ensino Religioso em escolas públicas. De uma forma geral, essa constituição ecoou e concordou com o estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que, em seu arti- go XVIII, afirma que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, incluindo liberdade de mudar de religião ou crença e de manifestá-la pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em pú- blico ou em particular. O tema da religião e sua relação com o Estado consta também no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), na “Diretriz 10 – Garantia da igualdade na diversi- dade”, em seu “Objetivo estratégico VI: Respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado.” (BRASIL, 2013, p. 19). As ações programáti- cas são: instituir mecanismos para assegurar o livre exercício das práticas religiosas, coibir manifestações de intolerância religiosa, estimular o respeito à diversidade reli- giosa, disseminar a cultura da paz, estabelecer o ensino da diversidade e história das religiões na rede pública de ensino (com ênfase no reconhecimento das diferenças culturais, na promoção da tolerância e na afirmação da laicidade do Estado) e apre- sentar dados de pesquisas sobre práticas religiosas33 . 32 Artigo quinto do capítulo “Dos direitos e deveres individuais e coletivos” do título “Dos direitos e garantias fundamentais”. 33 Seguindo as indicações do PNDH-3, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da Repúbli- ca editou a cartilha “Diversidade religiosa e direitos humanos” (STHÖHER, 2013) reafirmando o com- promisso do Estado brasileiro “[...] com o direito constitucional à liberdade religiosa e à condenação de atos de intolerância com base na religião ou na convicção” (STHÖHER, 2013, p. 5).
  • 35. 34 A questão central desses documentos é que o direito à liberdade religiosa implica, necessaria- mente, o reconhecimento da pluralidade. Dessa forma, o direito à liberdade religiosa e a separação entre Igreja e Estado têm sido invocados por grupos religiosos e não religiosos (ateus e agnósticos) minoritários em nome de seu direito à crença/não crença e contra a influência de grupos religiosos em matérias de Estado e de políticas públicas, ou então, aparentemente contraditório, por grupos majoritários para garantir seu poder de influência em questões de Estado e não ter limitada sua prerrogati- va de discurso e prática quando parecem contradizer out- ros direitos assegurados aos cidadãos. (MUSSKOPF, 2013, p. 163). Para esse pesquisador, A discussão em torno do direito à liberdade religiosa e o respeito à pluralidade religiosa no contexto de documen- tos e órgãos governamentais não está em oposição ao princípio da laicidade do Estado. Ao contrário, a liberdade e o respeito à diversidade (de crença e não crença) são entendidos como manifestação legítima em um Estado laico, como um direito a ser garantido por ele mesmo no contexto da promoção dos direitos humanos e da cidada- nia, tanto que, no PNDH-3, o respeito às diferentes cren- ças e à liberdade de culto são colocados ao lado da garan- tia da laicidade do Estado. (MUSSKOPF, 2013, p. 166). De forma semelhante à liberdade religiosa, a livre orientação sexual e a identidade de gênero colocam-se na pauta política e social como uma questão de direitos hu- manos e constitucionais (MUSSKOPF, 2013). Como afirmado anteriormente, diferentemente de outros contextos nacionais, no Brasil, o Estado incentivou a ação de movimentos sociais, propôs e financiou políti- cas públicas e uma “agenda anti-homofobia” a partir de programas como o “Brasil sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação Contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual”, lançado em 200434 . 34 A agenda estatal anti-homofobia foi criada no governo Lula, a partir de 2003 (FERNANDES, 2011).
  • 36. 35 Além disso, o governo brasileiro propôs a inclusão de identidade de gênero e ori- entação sexual na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como um posi- cionamento claro sobre a temática. “Ao longo dos últimos anos, diversas formas de garantia de direitos foram conquistadas no Brasil, em termos de políticas públicas e ações governamentais (as mais recentes e importantes no âmbito do poder judi- ciário).” (MUSSKOPF, 2013, p. 165). Disputas e Educação Laica As supostas incompatibilidades entre o princípio constitucional da laicidade, a ideia moderna da secularização e a noção de liberdade religiosa e sexual mobilizaram in- úmeras reflexões acadêmicas. São recorrentes também embates entre laicistas e grupos religiosos (RANQUETAT JÚNIOR, 2012). No campo da sexualidade, o confron- to ocorre geralmente em torno da homossexualidade, dos direitos reprodutivos e da educação sexual nas escolas. Já no campo da educação, são recorrentes discussões acaloradas sobre a oferta da disciplina de Ensino Religioso nas escolas públicas e o uso de objetos e símbolos religiosos em espaços públicos. O ensino da religião foi instituído pela Constituição Brasileira de 1988, tendo rece- bido o nome de “Ensino Religioso” através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.3941996) e deveria ser implantado como disciplina em todos os es- tados brasileiros, sobretudo a partir da modificação de seu artigo 33 em 1997 (Lei 9.4751997). A partir desta legislação, a disciplina passou a ser atribuição do Estado, de oferta obrigatória nas escolas públicas e privadas, facultativa para estudantes, devendo as- segurar o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil e vedando quaisquer for- mas de proselitismos. Como cabe aos sistemas de ensino regulamentar sua oferta, é possível encontrar inúmeros modelos: desde a perspectiva inter-religiosa prevista em lei, até a perspectiva confessional. O Decreto Legislativo no 698/2009 em seu artigo 11, que trata diretamente da disci- plina de Ensino Religioso, embora argumente sobre liberdade religiosa e diversidade cultural traz à tona questões sobre o princípio da laicidade do Estado, especialmente porque afirma que o ensino religioso será “católico e de outras confissões religio- sas”. Para Soares (2011), esse artigo distorce o espírito do art. 33 da LDB e indica o caráter confessional da disciplina de Ensino Religioso. Por outro lado, o Projeto de Lei da Câmara 160/2009 afirma que “é uma reivindicação de denominações reli-
  • 37. 36 giosas, especialmente as evangélicas, para garantir isonomia com a Igreja Católica.” (BRASIL, 2014). “O texto também prevê o ensino religioso, de matrícula facultativa, como disciplina do ensino fundamental, respeitando a diversidade cultural religiosa.” (BRASIL, 2014). Como visto, a oferta da disciplina de ensino religioso nas escolas brasileiras tem mo- bilizado reações por parte de pessoas e organizações. Muitos defendem que a laici- dade do Estado é precondição para a liberdade e igualdade, que é o caráter de laico ou um Estado que tenha na base a diversidade e liberdade que garantirá os direitos individuais (FISCHMANN, 2012). Recorrentemente se observa que a religião ou o reli- gioso se submete a instrumentalização legal com a finalidade de assumir um lugar na esfera pública (DICKIE E LUI, 2007). No caso da educação pública, muitos defendem que a disciplina de Ensino Religioso e os símbolos religiosos expostos em espaços públicos são uma afronta ao princípio da laicidade. É a posição da equipe do observatório da laicidade na educação35 , que concebe a ed- ucação publica laica entendendo que: a) a religião não é disciplina, nem é um conteúdo coadjuvante de outras, ou seja, não existe a disciplina de Ensino Religioso, nem mesmo em caráter facultativo e a religião não pode ser “referência para sustentação de valores, visões de mundo, comporta- mentos ou atitudes”; b) “o ensino é pautado pela atitude crítica diante do conhecimento, ou seja, não há conhecimento sagrado ou inquestionável”. Todo conhecimento é produzido histori- camente e, portanto, pode ser questionado; c) não objetiva “pôr as crianças nos trilhos”, de cujo traçado prefixado jamais sairão; d) considera e respeita as escolhas religiosas dos discentes e suas famílias, “sem se prender a critérios estatísticos das religiões dominantes”; e) não pode incorporar homofobia de origem religiosa; f) “não abandona práticas nem conteúdos próprios da cultura escolar nem da cultura popular porque os adeptos deste ou daquele culto podem ficar melindrados”; e g) não há lugar para o integrismo ou totalitarismo. 35 Dados sobre este observatório e o texto a seguir disponíveis em: http://www.edulaica.net.br/. Acesso em dezembro de 2014.
  • 38. 37 Esta mesma equipe conclui que “não basta suprimir os elementos mais ostensivos da presença religiosa na escola pública para que ela seja efetivamente laica”. Mes- mo sem esses elementos, a escola pode estar preparando indivíduos não críticos. Para que ela seja laica é necessário investir na formação de professoras/es e outras/ os profissionais da educação para que tenham “uma atenta consciência pedagógica e ética”. É necessário também dotar as escolas de “recursos materiais adequados como bibliotecas, laboratórios de ciências e espaços de expressão de artes e lazer”. Considerações finais É possível afirmar que, do ponto de vista da discussão dos direitos humanos, não há aparente contradição entre o direito à liberdade re- ligiosa e o direito à livre orientação sexual e identidade de gênero. Ainda assim, como os próprios objetivos do PNDH-3 indicam, seja na diversidade religiosa, seja na diversidade sexual, existem questões que precisam ser enfrentadas para que essas liberdades sejam garantidas, principalmente quando a questão da diversidade sexual é contraposta à questão religiosa, um dos grandes (senão o maior) empecilho ao reconhecimento e à efetivação dess- es direitos. (MUSSKOPF, 2013, p. 166) Retomando os relatos sobre a ação pedagógica da professora de Geografia de Miraí/ MG, a postura das/os colegas de classe, das/os gestoras/es estaduais diante da denún- cia do estudante Maciel e os discursos e ações discriminatórias dos deputados fede- rais conservadores do Congresso Nacional, é possível perceber que o marco jurídico não garante às/aos cidadãs/ãos o direito à liberdade religiosa e sexual e que temos muito a avançar se quisermos contribuir na construção de uma sociedade igualitária, uma escola democrática e uma educação critica e emancipatória.
  • 39. 38 Referências Bibliográficas BRASIL. Agência Senado. Lei Geral das Religiões segue sem definição. 2014. Disponível em: www12.senado.gov.br/noticias/. Acesso em dezembro 2014. CARON. Lurdes. Políticas e Práticas Curriculares: Formação de Professores do Ensino Reli- gioso. Tese (Educação), 2007, Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universi- dade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo, 2007. CUNHA, Luiz A. A Educação na Concordata Brasil-Vaticano. Educação & Sociedade, vol. 30, n. 106, jan./abr. 2009. Campinas: UNICAMP – CEDES. Pp. 263-280. Disponível em: http:// www.cedes.unicamp.br. Acesso em dezembro 2014. DICKIE, Maria Amélia S. & LUI, Janayna A. O Ensino Religioso e a interpretação da lei. Hor- izontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 27, p. 237-252, jan./jun. 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832007000100011 DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Bra- sil. Brasília: Letras Livres, 2010. FERNANDES, Felipe B. M. A agenda anti-homofobia na educação brasileira (2003-2010). 2011. 422 p. Tese (Doutorado em Ciências Humanas)–Programa de Pós-Graduação Interdisci- plinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis 2011. FISCHMANN, Roseli. Estado laico, educação, tolerância e cidadania: para uma análise da concordata Brasil-Santa Sé. São Paulo: Factash, 2012. FISCHMANN, Roseli. Escolas públicas e ensino religioso: subsídios para a reflexão sobre o Estado laico, a escola pública e a proteção do direito à liberdade de crença e de culto. Com ciência – n. 56, julho de 2004. GIUMBELLI, Emerson. Apresentação. In: GIUMBELLI, Emerson (org.). Religião e Sexuali- dade: convicções e responsabilidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. P. 7-15. __________. Religião, estado, modernidade: notas a propósito de fatos provisórios. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 47-62, set./dez. 2004. GIUMBELLI, Emerson. (Coord.) Relatório Projeto Mapeamento do ensino religioso no Bra- sil: definições normativas e conteúdos curriculares. 2007/2008. Disponível em http://www.iser. org.br/exibe_noticias.php?mat_id=129. GROSSI, Miriam P.; DICKIE, Maria Amélia S.; WELTER, Tânia (Org.). Ensino religioso e gênero em Santa Catarina. Florianópolis: Mulheres, 2014. No prelo. JUNQUEIRA, Sérgio & WAGNER, Raul (orgs). O Ensino Religioso no Brasil. 2ed ver.e ampl. Curitiba: Champagnat, 2011. LUI, Janayna de A. Educação, laicidade, religião: controvérsias sobre a implementação do ensino religioso em escolas públicas. 2011. 270 p. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) –
  • 40. 39 Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. _____. “Em nome de Deus”: um estudo sobre a implementação do ensino religioso nas escolas públicas de São Paulo. 2006. Dissertação (Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. MUSSKOPF, André S. A relação entre diversidade religiosa e diversidade sexual: um desafio para os direitos humanos e o Estado laico. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 27, n. 1, p. 157-176, jan.-jun. 2013. OLIVEIRA, Lilian B. et al. (Orgs.). Formação de Docentes e Ensino Religioso no Brasil: Tempos, Espaços, Lugares. Blumenau: EdFURB, 2008. ORO, Ari P. A laicidade na América Latina: uma apreciação antropológica. In: LOREA, R. A. Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.81-96. ORTNER, Sherry. Poder e Projeto: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam Pilar. ECK- ERT, Cornelia. FRY, Peter (orgs.). Conferências e Diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova Letra, 2007. p.45-80. RANQUETAT JÚNIOR, Cesar A. Laicidade à brasileira: um estudo sobre a controvérsia em torno da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. 2012. 321 p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. __________. A implantação do novo modelo de ensino religioso nas escolas públicas do estado do Rio Grande do Sul. 2007. Dissertação (Ciências Sociais), Programa de Pós-Grad- uação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Porto Alegre, 2007. SOARES, A. M. L. Educação e religião na escola pública: direito do educando e do educa- dor. 2011. Disponível em www.gper.com.br/biblioteca. STHÖHER, Marga. J. (Org.). Diversidade religiosa e direitos humanos. 2. ed. Brasília: Secre- taria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013.
  • 41. 40 Representações e relações de gênero em diferentes grupos religiosos Fernando Candido da Silva Gênero e Religião: pensando o problema O que é gênero? Como a aproximação desta categoria ao fenômeno religioso pode gerar um problema? Como (re)pensar a religião a partir do gênero? Segundo Bila Sorj (1992), a categoria de gênero possui duas dimensões problema- tizadoras centrais: em primeiro lugar, “o gênero é um produto social, aprendido, rep- resentado, institucionalizado e transmitido ao longo de gerações” (p. 15-16). E, em segundo lugar, ainda no que tange ao conceito, “o poder é distribuído de maneira desigual entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na organi- zação da vida social” (p. 16). Se assim for, pois, a categoria de gênero apresenta, no mínimo, dois desafios básicos às religiões e seus discursos antropológicos, a saber: (i) como as religiões produzem representações de gênero e (ii) como estas embasam a distribuição do poder de modo desigual entre os sexos? Como se vê, trata-se de um problema que exige, de saída, uma tomada de posição clara quanto às formas hierárquicas de se representar os gêneros nas mais diferentes tradições religiosas. Assim sendo, diferentemente de alguns estudos das religiões que perpetuam o sta- tus transcendental das Tradições, a categoria de gênero faz com que o Verbo se torne Carne literalmente. Essa ruptura metodológica implica, forçosamente, na tarefa de se compreender os diferentes discursos religiosos no contexto da corporeidade e da cotidianidade. Isso quer dizer que símbolos, mitos, ritos e seus textos sagrados não estão separados do mundo profano que os engendrou. Por tornar, assim, a Tran- scendência acessível e pública, precisamos situar a agenda pedagógica acerca das relações de gênero em diferentes grupos religiosos neste mundo. Porque esse pro- cedimento laico é fundamental? Para localizar a importância da análise crítica e pública das religiões no que se refere às relações de gênero, uma rápida avaliação da discussão em torno do Plano Nacion- al de Educação pode ser salutar.36 Sancionado pela Presidenta Dilma Rousseff em 25 de junho deste ano (2014), o Plano – com diretrizes e metas para a educação até 2020 – passou por uma série de revisões e alterações. Entre elas, a proposta de “super-
  • 42. 41 ação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” foi substituída pela genérica e abstrata (quer dizer, não corporificada) “superação das desigualdades educacionais, com ên- fase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Tal alteração é bastante significativa para nossa discussão, em especial, porque foi fomentada, sobretudo, por grupos religiosos conservadores a partir da condenação do que chamam de “ideologia de gênero”. Trata-se, pois, de um episódio ilustrativo bastante revelador de como representações religiosas de gênero – supostamente sagradas e imutáveis – intervém para perpetuar a assimetria profana das relações de gênero. Por meio do conturbado debate do Plano Nacional da Educação podemos entrever a urgência da crítica laica aos discursos religiosos. Como desenvolvê-la em perspectiva genuinamente republicana e democrática? Esta é uma questão metodológica que certamente transcende, em nossos tempos globais, os limites nacionais. Para além deste ou daquele grupo religioso, o princípio laico moderno encontra barreiras por todo o mundo nas mais diferentes tradições religiosas, sobretudo porque se engessou em sua resolução ocidental de privatizar assuntos religiosos. O fundamentalismo religioso – palavra enganosa que sempre parece se referir ao Outro – se expande em diferentes regiões do globo justamente por oferecer respostas seguras (já que oferece uma completa mappa vitae como argumenta Zygmunt Bauman37 ) a perguntas realizadas desde um cenário repleto de dúvidas e incertezas quanto à concretização do contrato social moderno e seus desdobramentos como os direitos humanos. Como diz Boaventura de Sousa Santos (2013) sobre este cenário, “a grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos; é objeto de discursos de direitos humanos” (p. 15). Nesse aspecto, deve-se atentar para a indecibilidade do texto fundamentalista que, (re)conectado ao pré-texto da frustração moderna, abre-se para outras possibilidades de sentido ao redor dos desejos e expectativas de sua audiência. Curiosamente, em uma reviravolta interpretativa, o desejo de reconhecimento e de redistribuição de poder – no interior da profana sacralidade – revela-se como o sentido diferido/adiado do fundamentalismo e sua usual ‘teologia da prosperidade’. Efetivamente, a expectativa de transformação da dura condição existencial, espe- cialmente das mulheres, é levada em consideração pelo fundamentalismo, ainda que 36 Confira Maria José Rosado-Nunes. “Gênero: uma questão incômoda para as religiões”. In: Sandra Du- arte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizadoras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates. Curitiba: Prismas, 2014, p.129-132. 37 O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.229.
  • 43. 42 de maneira limitada e controladora em sua sacralização dos papéis (complementa- res) de gênero. Não por acaso é possível afirmar que “os inimigos mais temidos e vigorosamente atacados pelo fundamentalismo são o feminismo e a emancipação das mulheres” (SILVA, 2006, p. 18). A crítica laica e pública das religiões precisa mov- imentar-se exatamente nesse espaço de tensão do sentido (entre a resposta funda- mentalista e a pergunta emancipatória das mulheres) para que amplie o leque de representações de gênero, ao invés de rapidamente homogeneizar e estereotipar expressões religiosas contemporâneas como simples explosão de irracionalidade pré-moderna patriarcal. Observemos, portanto, que o problema sumamente laico da crítica de gênero não está em contradição – como argumentam os conservadores – com a Constituição e a defesa da liberdade religiosa. Bem da verdade, o tipo fundamentalista de religião é que cotidianamente ataca os valores republicanos com sua forma sectária, legalista e dogmática de representação38 . Por isso é imprescindível, na crítica laica aos discursos religiosos, avaliar as representações de gênero em conflito no interior dos mais di- versos grupos religiosos. Apenas após a descrição deste conflito poderemos gestar novos critérios teológicos que repensem o problema de gênero e religião no bojo da tarefa de reconstrução e reinvenção do público. Note-se, portanto, que traçamos uma estratégia unitária acerca do problema de gênero nos discursos religiosos. Não procuraremos investigar como cada religião representa e sacraliza as relações de gênero do cotidiano. Até porque cada religião precisa ser avaliada em sua multiplicidade interna quanto ao assunto, para além das fáceis representações oficiais e institucionais. Portanto, em se tratando de represen- tações e relações de gênero, o problema central da religião é: como os diferentes gru- pos religiosos – em tensão mesmo dentro de uma mesma denominação – concebem sua intervenção religiosa na organização social e política da sociedade? Seguindo a estratégia unitária, vejamos alguns grupos religiosos que promovem representações religiosas conservadoras quanto aos papeis de gênero na sociedade para, logo em seguida, apresentar representações favoráveis à redistribuição de poder. 38 Veja Ricardo Quadros Gouvêa. “A condição da mulher no fundamentalismo: reflexões transdisciplin- ares sobre a relação entre o fundamentalismo religioso e as questões de gênero”, Mandrágora, São Bernardo do Campo, Metodista, n.14, 2008, p.14-19.
  • 44. 43 Representações religiosas conservadoras De forma categórica, a recente publicação do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade encaminha nosso debate para a localização das representações religio- sas na esfera pública. Segundo o Relatório, no que tange a violações de direitos hu- manos nas igrejas cristãs no período da ditadura brasileira, o anticomunismo e a subserviência aos chefes no pod- er estão entre as razões para as atitudes de silêncio, omissão e colaboração explícita com o regime, tanto na reprodução da propaganda ideológica de respaldo ao es- tado de exceção quanto com denúncias e delações contra membros de seu próprio corpo (BRASIL, 2014, p. 153). Alémdisso,odestacadonúmerodemulheres,vítimasdeviolaçõesnomeiodasigrejas cristãs, “ressalta a dimensão de gênero também vivenciada nesse segmento” (BAR- ROS, 2008, p. 153). Esses resultados apontam para a primazia teórico-metodológica de avaliar (caso a caso) a conotação política dos discursos religiosos, sobretudo, em representações fundamentalistas – sempre tão bem associadas a partidos e políticas de extrema direita. Vejamos, por agora, a característica conservadora de alguns gru- pos religiosos frente aos desafios lançados pela categoria de gênero em três eixos corporais e cotidianos: (i) na violência contra as mulheres, (ii) na manutenção da mas- culinidade hegemônica e (ii) na naturalização da heteronormatividade. A priorização do fundamentalismo cristão no recorte de grupos religiosos parece ser importante para nosso contexto brasileiro contemporâneo. Como veremos, a as- censão conservadora no Brasil que prejudica as lutas públicas feministas apóia-se, em grande medida, em discursos fundamentalmente bíblicos, em uma linguagem cristã transnacional e interdenominacional que aponta para as questões de gênero como ponto de encontro de setores religiosos em oposição em outras esferas. Além disso, seguindo ainda a sugestão da Comissão Nacional da Verdade, as igrejas cris- tãs possuem um papel destacado “como componente histórico, social e político da realidade brasileira.” (BRASIL, 2014, p. 152). Ao que parece, tal papel destacado no mosaico religioso brasileiro guarda, em si, o próprio motivo de se estudar com mais afinco as estratégias das igrejas cristãs para a conservação do poder masculino, em particular, sua pedagogia autoritária e hierárquica ao redor da Bíblia e de suas ima- gens de Deus.
  • 45. 44 1. Violência contra as mulheres O recurso da pedagogia bíblica é crucial para a criação de representações que subju- gam a mulher. Efetivamente, não há como negar a natureza primeiramente patriarcal da Bíblia, o que a disponibiliza como fonte para justificar e manter a posição subal- terna das mulheres na esfera social, política, econômica e religiosa. Não deve nos espantar, pois, que uma das bases do fundamentalismo cristão seja o apego à ‘Pala- vra de Deus’. Lido como linear, coerente e harmônico, o texto bíblico é utilizado para comprovar dogmas e doutrinas que legitimam o status inferior da mulher e, logo, sua vulnerabilidade diante os mais diversos tipos de violência (física, sexual, psicológica). A começar pelo próprio relato da Criação e a culpabilização de Eva, a relação de gêne- ro desenhada pelo texto bíblico é sumamente assimétrica: “teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” (Gênesis 3,16). Na coerência patriarcal fundamentalis- ta, a mulher precisa ser dominada e possuída, afinal, “o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem” (1Coríntios 11,9). Curiosamente, é na retórica do amor e do cuidado que se esconde essa subalternização da mulher, afinal, se as mulheres devem estar sujeitas aos seus maridos (porque sempre serão Evas em po- tencial?), “os maridos devem amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos” (Efésios 5,28). E de que modo os maridos demonstram tal amor? A retórica bíblica manejada pelos fundamentalismos cristãos não chega a esconder a violência, sobretudo, por impor às mulheres um papel social de passividade e resignação cul- pabilizante: Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, como convém a mulheres que se professam piedosas. Durante a instrução a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi forma- do Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. En- tretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade (1Timóteo 2,9-15).
  • 46. 45 Textos como este são fundamentais para as representações religiosas conservado- ras no que se refere às relações de gênero. São como que a base de sustentação para posições políticas contemporâneas. E, por isso mesmo, é importante demon- strar a atualidade dessa pedagogia bíblica que inculca relações de dominação entre os sexos. Radicalmente oposto aos movimentos pelas causas das mulheres, o avanço do fundamentalismo cristão no Brasil possui suas próprias estratégias para atualizar a mensagem bíblica de submissão feminina, mesmo em casos de violência explícita. Com ampla publicidade de discurso, dado o recurso midiático, vejamos o caso Sarah Sheeva e o culto das princesas como um exemplo significativo de representação reli- giosa conservadora sobre a compreensão do lugar da mulher na sociedade39 . Contando com um ministério próprio, Sarah Sheeva divulga sua mensagem por todo o Brasil como missionária. Ao articular a base teológica da Batalha Espiritual (que entende as dificuldades materiais da vida como problemas espirituais) à da Teolo- gia da Cura Interior (que prevê a cura de “traumas do passado”), a missionária faz uma ligação exemplar entre as expectativas de melhoria concreta no cotidiano de mulheres e a resposta fundamentalista de santificação a partir do controle do cor- po feminino objetivando, por fim, o casamento com o ‘príncipe’ – o homem ideal, cuidador e protetor da ‘princesa’. À semelhança do texto de 1Timóteo, Sarah Sheeva promove uma pedagogia de obediência e passividade para as mulheres: A moda agora é legging com blusa curta, desse jeito querida você está nua pintada de preto. É assim que os homens pensam e não podemos mudar, quando você põe esse tipo de coisa eles te olham e dizem: nua pintada de preto. Agora, quando você coloca um lacinho, uma florz- inha, eles gostam porque eles gostam de coisas frágeis e as mulheres são frágeis. Eles gostam de brincar de Barbie e a Barbie é você! Eles não vão falar isso pra você e nem nós diremos que já sabemos (risos). 39 Esse caso encontra-se descrito em Magali do Nascimento Cunha. “Gênero, religião e cultura: um olhar sobre a investida neoconservadora dos evangélicos nas mídias do Brasil”. In: Sandra Duarte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizadoras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates. Curiti- ba: Prismas, 2014, p.109-117. Todas as citações diretas do caso encontram-se neste ensaio que contem- pla trechos etnográficos do trabalho de conclusão de curso em Teologia de Thaina Assis (Gênero, corpo e teologia: uma abordagem pastoral pela superação da violência simbólica. São Bernardo do Campo: Metodista, 2013).
  • 47. 46 Além da mensagem para as ‘princesas’, Sarah Sheeva também deixa entrever, em seus cultos, o papel das mulheres casadas. Aqui, a atitude de tolerância e autopunição do ‘sexo frágil’ frente a situações de violência é ainda mais contundente: Palavras para solteiras e casadas é totalmente diferente; para solteiras eu digo que não tolere maus tratos, para casadas eu digo, vai pro joelho porque agora é de Deus. Não dá pra aplicar o que eu digo pras solteiras com as casadas. Se você tivesse esperado em Deus, não estaria passando por essa situação. Agora que casou, tem que continuar, aconteça o que acontecer. A Bíblia não permite o divórcio, se divorciar está debaixo de maldição. A fundamentação bíblica para a completa submissão do corpo feminino é bastante evidente. Trata-se de uma representação perigosa, em primeiro lugar, por sacralizar a dominação masculina e, assim, reforçar e legitimar simbolicamente a opressão cotidiana das mulheres. Além disso, tal representação – estrategicamente feminina – dá sustentação para a atuação de grupos conservadores na esfera pública. Não por acaso Sarah Sheeva recebe “apoio e espaço das lideranças das diferentes igrejas que identificam nos movimentos por direitos sexuais grande ameaça à família brasileira” (CUNHA, 2014, p. 116). 2. Manutenção da masculinidade hegemônica Estudar relações de gênero implica compreender a construção social dos papéis não apenas femininos, mas também masculinos. Hoje percebemos melhor que as representações acerca do corpo feminino foram fundamentais para a manutenção do poder entre os homens. Diferentemente da fragilidade e passividade atribuídas às mulheres, o masculino foi definido pela força, domínio, autocontrole e violência. Mesmo homens que não atendem a esse ideal, no interior da representação conser- vadora, renunciam ao masculino hegemônico. Nesta construção do masculino reside, em grande medida, a própria razão da dominação das mulheres e da homofobia: ser homem é não ser mulher, nem homossexual. Esta masculinidade hegemônica, para ser assegurada no cotidiano, também é alvo de investimentos simbólicos e religiosos: “as imagens antropomórficas de Deus associa- das a guerra, sangue, sacrifício, assassinato de inimigos religiosos, espancamentos,
  • 48. 47 coação e perseguição religiosa são um convite à divinização da violência e do homem violento.” (SCHULTZ, 2006, p. 49). De fato, a Bíblia e a Teologia podem ser matrizes para a construção social normatizante da experiência masculina. Como aponta Marcelo Augusto Veloso, particularmente quanto à Igreja Católica Apostólica Romana, o gênero da religião cristã é masculino: “as mãos que tecem a teia religiosa são mãos masculinas”(2005, p.78). Nesse sentido, não deveríamos est- ranhar a hegemonia pedagógica masculina da Igreja: Deus é Pai; o messias é homem; os discípulos também o são. Por isso qualquer possibilidade de subversão da frágil coerência da masculinidade bíblico-teológica é prontamente rechaçada por meio de um discurso sobre a virilidade que se apropria das imagens e símbolos religiosos. Nesse aspecto, como aponta David Morgan (1999), por exemplo, valeria a pena notar o processo de masculinização de Cristo, evitando-se retratos efeminados do mesmo na história do cristianismo ao longo do século XX. 3. Naturalização da heteronormatividade O imperativo heterossexual, por meio de forçosa reiteração, “possibilita certas iden- tificações sexuadas e impede ou nega outras identificações” (BUTLER, 2010, p. 155). Ao sustentar até mesmo as relações de gênero abordadas acima, a heteronormativ- idade revela-se como um dispositivo para manter uma concepção única de família, bem como barrar avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos em geral. Mais uma vez, o fundamentalismo cristão encontra-se em dívida para com suas Es- crituras e Tradição, ao interpretar literalmente textos como o de Gênesis 1,28 que ordena ao homem e mulher recém-criados, “sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”. Verdadeiramente, é preciso admitir que alguns textos da Bíblia acabam por negar qualquer outra forma de sexualidade. Para além da sutileza heteronormativa na literatura bíblica, o rechaço de experiências alternativas é contundente e, nada surpreendentemente, se baseia na própria assi- metria das relações de gênero. Levítico 18,22 reza: “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação.” Já Romanos 1,26-27 reitera a mensagem que delimita os espaços possíveis de se exercer a sexualidade: Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mul- heres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com
  • 49. 48 outros, praticando torpezas homens com homens e rece- bendo em si mesmos a paga da sua aberração. Textos como estes são performáticos e, lidos em perspectiva fundamentalista, fun- cionam para acirrar o conservadorismo político nos debates contemporâneos sobre as sexualidades. Um exemplo claro desse ponto, no Brasil, é o recente ataque da aliança entre diferentes lideranças religiosas e políticas ao Projeto de Lei 122 que prevê a criminalização da homofobia, bem como ao projeto “Escola sem homofobia”, vulgarizado como ‘kit gay’. Um dos argumentos centrais do Pastor Silas Malafaia, nesse caso, envolve justamente a liberdade religiosa e de expressão para prosseguir professando sua condenação bíblica à homossexualidade. Representações religiosas progressistas O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, além de localizar representações e grupos religiosos que colaboraram com o regime militar, também apontou para “os membros das igrejas cristãs perseguidos pelo sistema repressivo do Estado (...) fruto da compreensão religiosa que os impulsionava a relacionar sua fé a ações concretas pela justiça e pelos direitos humanos” (2014, p. 153). Esse resultado igualmente deve nos motivar a buscar representações religiosas libertadoras no que tange ao gênero e à sexualidade e, mesmo, à laicidade. É verdade que, por vezes, essa busca poderia ser mais fácil se explorássemos religiosi- dades subalternas, tais como as religiões de matriz africana40 . Contudo, nem mesmo nessas expressões religiosas, aparentemente mais inclusivas, o conflito entre visões conservadoras e progressistas deixaria de existir41 . Portanto, para encaminhar mel- hor a estratégia unitária da crítica, proponho que continuemos a pensar em repre- sentações cristãs que, ao contrário das fundamentalistas, mostrem-se ocupadas em (i) denunciar a violência contra a mulher, (ii) construir masculinidades alternativas e 40 “O Candomblé assume a homossexualidade de forma transparente e tenta compreendê-la dentro da sacralidade do mundo, através de uma linguagem também religiosa” (Wilson Caetano de Sousa Júnior. “Monocó, Adé, Mona e Folhas: a homossexualidade nos terreiros do Candomblé”, Mandrágora, n.5, 1999, p.65. 41 Veja, por exemplo, Nilza Menezes. A violência de gênero nas religiões afro-brasileiras. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012 e Eduardo M. de A. Maranhão Filho. “A aniquilação de uma mulher transexual no candomblé através do Facebook”. In: Sandra Duarte de Souza e Naira Pinheiro dos Santos (organizado- ras). Estudos feministas e Religião: tendências e debates, p.269-285.
  • 50. 49 (iii) desnaturalizar a heteronormatividade. Tais representações progressistas encon- tram-se espraiadas em igrejas tradicionais, em novas denominações explicitamente inclusivas, em organizações não-governamentais e na própria teologia. Vejamos. 1. Denúncias da violência contra a mulher Diferentemente da representação fundamentalista cristã de sociedade, feministas procuram tecer um discurso religioso de resistência, em particular, ao denunciar as consequências desastrosas de doutrinas religiosas na vida das mulheres. Para além da efetiva desconstrução de textos bíblicos patriarcais que legitimam a violência sim- bólica contra a mulher, análises teológicas demonstram a posição de vulnerabilidade de mulheres diante de discursos religiosos que perpetuam a ordem sexual vigente: “a violência contra a mulher está relacionada com o discurso da religião cristã, visto que esta expressão religiosa tem apoiado a subordinação da mulher a partir de doutrinas que legitimam e sacralizam o sacrifício e o sofrimento” (GEBARA, 2000, p. 125). Valéria Vilhena (2009) apontou criticamente para a ligação entre a representação da fragilidade feminina e a violência doméstica. Ao contrário de Sarah Sheeva e seu apoio ‘teológico’ ao sistema de dominação de mulheres, o trabalho de Vilhena suge- re que, sobretudo em práticas pastorais evangélicas, mulheres que sofrem violência doméstica são aconselhadas a compreender a violência de maneira conjuntural, sen- do doutrinadas em uma conduta de obediência e submissão: a violência do agressor é combatida pelo ‘poder’ da oração. As ‘fraquezas’ de seus maridos são entendidas como ‘investidas do demônio’, então a denúncia de seus companheiros agressores as leva a sentir culpa por, no seu modo de entender, estarem traindo seu pastor, sua igreja e o próprio Deus (VILHENA, 2009, p. 94). No campo católico, Católicas pelo Direito de Decidir, sobretudo, está à frente de uma pedagogia pioneira em romper o silêncio acerca da violência contra mulheres. Pri- orizando os direitos das mulheres, ao invés da estrutura masculina da Igreja, Regi- na Soares Jurkewicz (2005) desvelou-nos a violência interna da própria instituição, com os recorrentes casos de abafamento do abuso sexual de mulheres por padres no Brasil. A hierarquia de gênero, nesses casos, funciona para retirar a responsabi- lidade masculina da agressão, ao culpabilizar as mulheres. Diante da imunidade da