O documento descreve a obra fotográfica e de colagem de Flávia Junqueira intitulada "A Casa em Festa". Sua obra usa objetos do cotidiano dispostos de forma a criar uma atmosfera estranha e a refletir sobre nossas relações com os objetos e a nostalgia da infância.
8. Confortavelmente entorpecido1
Um conjunto de imagens que parece nos apontar, diretamente, para o acúmulo é o que
nos aguarda e nos acolhe na proposição de Flávia Junqueira, em A Casa em festa. De ime-
diato, temos a possibilidade de percepção do confronto entre os objetos do cotidiano e os
elementos mimetizados: a composição das imagens a partir do acúmulo, e da justaposição
destes objetos – nas fotografias – bem como de imagens de objetos – nas colagens – poten-
cializam a sensação de estranhamento, de algo que apesar de parecer, não é o que parece.
O processo de mimetização, deliberado, é utilizado, na construção das imagens, como
forma de escamotear a relação habitual e cotidiana com o espaço, e com os objetos,
propondo-se a, pela repetição, acúmulo ou mesmo pelo excesso nos cativar e envolver na
atmosfera frequentemente aconchegante e convidativa, da casa e, em particular, da festa:
momento de comemoração, de alegria e de felicidade. Este sentimento generalizado,
Hello, em relação ao lugar e ao momento específico – o da festa – é reforçado pela presença
Is there anybody in there? dos objetos que estão presentes no dia-a-dia de cada um de nós, e que habitam nossas
Just nod if you can hear me memórias infantis, quando nos referimos aos balões, aos brinquedos, aos objetos, à
Is there anyone at home? decoração, à indumentária e, principalmente, ao ‘clima festivo’ que elas evocam.
(…) Desde a série de imagens intituladas Na companhia dos objetos há algo presente e
When I was a child que deve ser pensado como interesse nas discussões de Flávia Junqueira: os acúmulos e
I caught a fleeting glimpse amontoamentos, manifestos pelos empilhamentos, pelas justaposições e sobreposições,
Out of the corner of my eye de objetos lúdicos, e de referência explícita ao universo e ao imaginário infantil. Em
I turned to look but it was gone suas distintas séries ela indaga e nos propõe refletir sobre os sentidos da memória e
I cannot put my finger on it now alguns elementos deste imaginário, assim, a melancolia da infância, a imaginação como
The child is grown fonte geradora da realidade do absurdo, o realismo fantasioso são, entre outros, pontos
The dream is gone relevantes para a construção de suas imagens fotográficas.
And I have become As construções, e as relações por elas propostas, acentuam-se – agora ainda mais identi-
Comfortably numb.2 ficadas como excesso - em A Casa em festa, ainda que, nas séries mencionadas, não se
trata de, simplesmente, operar no sentido de exaltar ou referenciar a ideia de coleção, seja
David Jon Gilmour e Roger Waters ela da perspectiva de um colecionador apaixonado, ou de um ‘documentador’ da produção
material de um determinado momento, Ao contrário disto, trata-se de insinuar, ou melhor,
de apontar a relação sentimental que estabelecemos, individualmente, com os objetos, e
que estão – frequentemente - dominadas pelo sentimento da posse e que são exploradas,
por Flávia, para além da existência física deles e de suas características morfológicas, ou de
uso, criando uma atmosfera de deslocamento, e de permanente estranhamento.
Silenciosamente – e, ainda que aparentemente contraditório, este silêncio é outro deno-
minador comum das imagens - os objetos são articulados e manipulados para criar
cenários, em meio a um espaço conhecido, o da casa, e com isto permitir encenações, uma
vez que não se trata de documentação dos espaços físicos e habituais de uma possível
casa, ou lugar habitual de moradia, mas sim de possibilidades, nestas configurações
apresentadas pelas imagens, para a reflexão proposta, acerca do desejo de explorar e
9. buscar compreender nossas relações com os objetos e sua posse, algo que pode se tornar,
até mesmo doentio.
Temos assim, o uso dos objetos de forma a acentuar uma carga que a eles pode ser
atribuída, algo que os insere em uma categoria deslocada de funcionalidades específicas,
ou pelo uso e, no caso de A Casa em Festa, ter que pensá-los, também, como o resto,
como a sobra, como o detrito a indicar seu estado de existência anterior.
A casa é o espaço escolhido e recortado de um universo mais amplo, ela é o lugar do
“residir”, não mais apenas definido pela relação com o espaço físico a que se atribui o
sentido de moradia, de lar e de residência, para constituir-se em um estado, para abrir-se
e “achar-se”, em uma condição e, em “consistir” em algo, portanto, deve-se pensar em
um sentido mais amplo, para ela: o de possibilidade. 1. A partir do título da canção
No início a casa era vista e trabalhada como o ambiente doméstico, mantidas suas Comfortably Numb, do álbum
características originais e a distinção entre as primeiras imagens, nas quais os objetos The Wall, Pink Floyd, de 1979.
estavam na casa e são a memória desta, integram o ambiente e constituem-se no que
havia na casa, o que representavam, mesmo que deslocados e ‘acumulados’ em um 2. Livre tradução:
articulação distinta de sua ordem natural na organização da vida cotidiana e a articulação Olá?
proposta nas imagens de A Casa em festa, ou a casa como resultado do sonho, e do Tem alguém aí?
desejo, agora como que a buscar uma memória distinta, uma referência, na qual, a festa é Apenas acene se puder me ouvir
forma de vestir, de decorar, é um artifício para a construção de uma nova casa, à partir de Tem alguém em casa?
(...)
uma memória imaginada, de uma memória forjada para a realização desta relação com
Quando eu era criança
o espaço. Nesta nova ‘memória’ da casa é a imaginação quem domina e a festa é uma
tive uma visão fugaz
forma de alterar, de transformar; mas a festa acaba e os sinais são mais do que simples
Pelo canto do olho
indícios: o confete pisado espalhado e amontoado pelo chão, o boneco que já foi algo
Eu virei para olhar mas tinha sumido
além de uma simples roupa, as bexigas murchas, a vela apagada, tudo dura pouco e se
Eu não pude tocar na ferida
acaba, tudo na festa acaba rápido.
A criança cresceu
Todos os elementos constitutivos da imagem acentuam a relação de perda - dos objetos, O sonho se foi
das relações, dos sentimentos, das situações – e, mais do que o sentimento de nostalgia E eu me tornei
que poderia advir desta perda, parecem apontar para um estado de melancolia, constante, Confortavelmente entorpecido
insuperável e do qual podemos tentar escapar, mas nem sempre conseguiremos fugir.
As imagens – fotografias e colagens – propõem que reflitamos sobre esta condição, e Marcos Moraes
o processo necessário à sua produção se mantém presente – parte da ironia inerente julho 2010
ao trabalho – por intermédio da instalação que integra a exposição, para a qual que
será necessário realizar uma manutenção constante, garantindo-lhe uma sobrevida, um
prolongamento, na verdade, de seu ‘estado de vida’. Neste sentido seus elementos irão,
pouco a pouco, se desfazendo, como uma maquiagem depois do espetáculo, que revela
a melancolia do ator que viveu, momentaneamente, o personagem, mas que, como todo
‘espetáculo’, incluindo o da vida, deve continuar e, para isto, uma condição deve ser criada
- e a festa representa, mas não é – essa possibilidade.
10.
11.
12.
13. Comfortably numb1
A set of images that seems to directly point out to us its wholeness, is what awaits us and embraces us in Flavia Junqueira´s
proposition of A casa em festa. At sudden point, we are able to perceive the conflict between daily objects and mimicked
elements: the composition of accumulated images, and the juxtapositioning of these objects – in photographs – as in
images of the objects – in collages – potentialize a feeling of strangeness, of something that although may appear to be,
it is not what it seems.
The mimicry process is deliberately used in the construction of images as a mean to obscure the daily and usual relationship
between objects and space, proposing, through repetition, accumulation, or even excess, to captivate us and involve us in an
usually comforting and inviting atmosphere of the house and, in particular, of the party: a moment of commemoration, of joy
and happiness. This generalized feeling, in relation to the place and to the specific moment – that of the party – is reinforced
by the presence of objects that are present in our everyday lives, and that inhabit our childhood memories, when we refer
to the balloons, the toys, the objects, the decoration, the apparel and, above all, the “festive mood” which these evoke.
From the series of images entitled Na companhia dos objetos there is something present which is of interest in the dicussions
of Flávia Junqueira: the accumulation and assembling, manifested by the piling up, by the juxtapositions and overlapping
of lucid objects, and of explicit reference to the child universe and the imaginary. In her distinct series she searches for,
and proposes us to reflect upon the sense of memory and upon some elements of the imaginary, and thus, the childhood
melancholy, the imagination as a generating source of the reality of the absurd, and the fantacious realism are, among
others, relevant points for the construction of her photographic images.
The constructions, and the relations proposed by them, are accented – now even more identified as excess – in A casa em
festa, despite that in the mentioned series it is not simply about operating in the sense of exalting or referencing the idea of
a collection, be it from a passionate collector´s perspective, or of a “documentator”of the material production of a determinate
moment. On the contrary, it is about insinuating, or better yet, pointing out, the sentimental relationship we establish,
individually, with the objects, and that are frequently dominated by a feeling of possession. This is explored by Flávia, beyond
the physical existence and the morphological characteristics of these objects, or of their use, creating an atmosphere of
displacement and permanent unfamiliarity.
Silently – and, although apparently contradictory, this silence is another common denominator of the images – the objects
are articulated and manipulated to create scenarios, in midst of a familiar space, that of the house, and thus permitting
simulations. It is not a documentation of the physical and habitual space of a possible house or place of living, but of
possibilities in these configurations presented by images, for a proposed reflection upon the desire to explore and to seek
an understanding of our relationship to objects and their possession, something that can become, even, sickening.
We thus have a use of objects accentuating a load that can be attributed to them, something that inserts them in a category
dislocated of specific functionalities or by use and, in the case of A casa em festa, have them thought of as, also, as the rest,
the remainder, as debris, indicating their previous state of existence.
The house is the chosen space, cut out of a more ample universe, it is a place for “residing”, no longer defined only by the
relationship with the physical space to which is attributed the sense of inhabitance, of home and of residence, to constitute
itself in a state, to open itself up and find itself in a condition and, in consisting of something, therefore, it must be thought
of in a broader sense, to her: That of possibility.
At the beginning the house was seen as and worked as the domestic environment, mainitaining its original characteristics
and the distinction between the first images, in which the objects were in the house and are its memories, they integrate
the environment and consist of what was in it, what they represent, even if dislocated and accumulated in a distinct
articulation of its natural order in the organization of daily life and the articulation proposed in the images of A casa em
festa, or the house as a result of a dream, and of the desire, now as if in search of a distinct memory, a reference, in
which the party is a way of dressing, of decorating, it is an artifice for the construction of a new house, stemming from an
imaginated memory, from a memory forged in order to accomplish this relationship with the space. In this new “memory”
of the house it is the imagination which dominates and the party is a way to alter, to transform; but the party ends and the
signs are more than mere indications: the stepped on, spread out and piled up confetti on the floor, the doll that was once
something more than just rags, the popped balloons, the blown out candle, everything lasts so little and ends, everything
at the party ends quickly.
All of the image´s constitutive elements accentuate a connection to loss – of the objects, of the relationships, of the feeling,
of the situations – and, more than the feeling of homesickness this loss, seems to point to a constant and unbearable state
of melancholy, of the kind that we may try to escape from, but will not always be able to.
The images - photographs and collages - propose us to reflect upon this condition, and the process necessary for its
production remains present - part of the irony inherent in the work - through the installation that integrates the exhibition,
one which it will be necessary to undergo constant maintenance, guaranteeing its survival, its prolongation, really, its “state
of life”. In this sense, its elements will, bit by bit, unweave themselves, like the make-up after a spectacle, that reveals the
melancholy of an actor who, for a moment, lived the character, but like every “spectacle”, including the spectacle of life,
must go on and, for that, a condition must be created – and the party represents, but it is not – this possibility.
Original Text by Marcos Moraes
Translated by Nathalie Hlebanja Beltran
July 2010
1. From the song entitled Comfortably Numb, of the album The Wall, Pink Floyd, 1979.
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