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                              DoAvesso
                              Camila Appel




                                             D oAv e s s o
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                              ossevAoD



         Camila Appel




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                          DoAvesso



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         Camila Appel




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                          CARTA DE BOAS-VINDAS




                               Isto que se lê é meu próprio ser. Eu, preso nas entrelinhas.
                          O olhar no canto da página, o dedo indicador no título, o co-
                          ração nos espaços duplos, porque a batida dele afasta uma
                          linha da outra. Os pontos finais poderiam ser pintas, mas não,
                          já que não tenho pele explícita. Os ponto e vírgulas são idéias
                          não ditas, se juntarem todos, provável que formem um código
                          Morse que dá acesso a uma parte de mim já morta. Os pará-
                          grafos são meu sangue, e as letras, os átomos. As moléculas
                          são frases, nada mais do que simples química. Os elementos
                          expostos numa tentativa de combustão. O livro pode se fundir
                          em si mesmo, a experiência sair do avesso.
                               O que me estimula é o desafio. Várias são as razões. Em
                          primeiro lugar, me incomodo com esses seres estranhos, os ma-
                          yanos, que fazem o mundo funcionar, mas gritam no escuro.
                          Vim, assim, oferecer um espaço a este grito, minha própria
                          alma encadernada. Apesar de ter nascido em Maya e ser con-
                          siderado um mayano competente, tenho admiração pelos hu-
                          manos que vivem no DoAvesso.
                               Em segundo lugar, não pude me manter apático à ela, à
                          Profecia, que fala sobre o extermínio do mundo DoAvesso, o
                          mundo que você enxerga quando acorda, que transpira sem
                          perceber. A Profecia é dura, é iminente, estado de calamidade.
                          Ela avisa, procura uma transformação na mente das pessoas
                          e, como não consegue ser compreendida, ameaça. Promete der-



                                                                                        D oAv e s s o
                                                                                           a




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                     reter tudo, o solo, o vento, os ossos. Assustadora, não haverá
                     onde se esconder. A Profecia Maya diz que a humanidade
                     chegará a um ponto de inflexão em que ou evolui ou se auto-
                     destrói. A natureza mostrará seu descontentamento, o degelo
                     polar provocará enchentes, ondas gigantes matarão milhares
                     de pessoas, furacões varrerão cidades. Começará a era da es-
                     tagnação. Este é um momento crucial. Chegará o momento de
                     os homens decidirem seu destino. Morrem ou evoluem.
                              A morte da Mensageira indica o início da Profecia. A
                     Construtora de Maya, aquela que vive no Oráculo, me avisou
                     que a Mensageira acaba de morrer e, desesperada, me pediu
                     ajuda. Ao seu apelo é impossível a apatia e a inércia. Resolvi
                     agir.
                              O filho da Mensageira deverá substituí-la para cumprir
                     a missão, antes determinada para ela: mudar o rumo das coi-
                     sas. Sei que não será fácil e me disponho a ajudar. É com ele
                     que inicio. Encontro você nas entrelinhas.


                                                               Boa viagem em mim,
                                                                         Predicado.




         Camila Appel




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                              Forças poderão se juntar para
                          impedir que o processo continue caso ele
                                        seja iniciado.
                          Novas idéias podem salvar, fonte criadora
                                    deve ser encontrada.


                              O mensageiro que alterna duas cores
                                        há de chegar.




                                                                    D oAv e s s o
                                                                       a




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                              : PRIMEIRA :
                                 PARTE




         Camila Appel




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                          : PRIMEIRA :
                             PARTE




                                         D oAv e s s o
                                            a




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                     :1:
                     ANDIROBA
                     ABORIDNA
                           :1:




                                     É dia de Natal. Samadhi Aipim está acordado an-
                               tes da hora. Sentado na cama, fone de ouvido plantado
                               nas orelhas, monta um jogo de quebra-cabeças. Seu
                               jogo preferido, já que não sabe lidar com amigos. Junta
                               as peças, que encaixam perfeitas. Mente para si que é a
                               primeira vez que joga e se surpreende com o rápido re-
                               sultado das combinações. Irrita-se ao perceber que falta
                               uma peça. A do centro, a mais importante, a que faz
                               uma metade da imagem encaixar-se na outra. Samadhi
                               procura debaixo da cama, do tapete, levanta o traves-
                               seiro, os lençóis, e nada da peça que falta. Bagunça o
                               quarto, essa peça sumindo é vista como ofensa pessoal
                               ao menino. Bate no colchão de raiva, na mesma hora em
                               que toca o despertador interrompendo a busca. Anima-
                               se ao ver que, até que enfim, é a hora certa de acordar.
                                     Coloca o jogo no armário e deita na cama, aguar-
                               dando o banquete do café da manhã com pequenos
                               presentes natalinos estendidos na mesa, abraçados em
                               chocolate, doce de leite e pão de mel. Espera um pouco
                               mais, os pais devem vir acordá-lo. Ansiedade gostosa,
                               cancelando o mal estar anterior. Tenta fingir que dorme,
                               entra debaixo da coberta, muda o lugar dos pés com o
                               da cabeça. Não vê sinal dos pais e sente-se abafado pelos
                               lençóis. Tenta um novo esconderijo. Vai para debaixo da


         Camila Appel




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                          cama e manda o boneco grande no seu lugar, arquitetando um susto
                          na mãe quando ela chegar, carinhosa, oferecendo presentes feitos só
                          para ele. Nenhum sinal dos pais. Pensa que dessa vez devem estar pre-
                          parando um surpresa grande, do tamanho da demora. Trim metálico
                          e toca a campanhia.
                                — Meu presente! Grita Samadhi ao sair debaixo da cama com
                          euforia.
                                A porta abre rangendo dor. O pai de Samadhi entra com ex-
                          pressão de rancor. Senta na cama do filho com ombros baixos e lágri-
                          mas sem palavras. Samadhi passa pelo pai, que não consegue olhá-lo
                          nos olhos, e chega à sala. Um homem mais velho, que nada se parece
                          com Papai Noel, está ao telefone.
                                — Hum, hum, pode trazer. Diz, sem perceber que o menino escuta.
                                Uma esperança para compensar toda a angústia da espera. Atraí-
                          do pelo ruído externo, Samadhi tateia com a ponta dos pés em direção
                          à janela. Acha que pode passar despercebido. Focinho apertado no vi-
                          dro, observa o movimento lá fora.
                                Que trenó estranho, pensa Samadhi, que imaginava um trenó
                          típico de Papai Noel, com gazelas voadoras amarradas à carruagem,
                          amontoado de presentes, anões simpáticos dançando sem ritmo,
                          seguidos do ho-ho-ho suado do Papai Noel, que morre de calor
                          com aquele uniforme norte-americano em pleno verão de um país
                          tropical.
                                A imaginação de Samadhi é assim mesmo, doida. Ele vive no
                          mundo da fantasia, adora contos e fábulas. Muitas vezes, já teve dificul-
                          dade de separar o real do imaginário e se surpreende como as pessoas
                          conseguem fazê-lo com tanta naturalidade. Acha que Papai Noel é um
                          velhinho muito simpático, tem admiração pelo personagem. Já até de-
                          senhou um novo visual para o Papai-Noel-verão, havaianas, macacão
                          sem mangas, todo florido, barba branca de trancinhas para liberar
                          a garganta, rabo de cavalo no alto da cabeça. Não é desta vez que
                          a sugestão chegará ao suposto mensageiro da felicidade. O verão


                                                                                              D oAv e s s o
                                                                                                 a




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                     parece ter tirado férias neste dia de frio fora de estação, e em vez
                     do trenó, vem um carro branco, luz vermelha piscando, sem som.
                     Ambulância sem emergência. Homens de branco saem do trenó.
                     Na cena silenciosa, só respirares. Vizinhos se aproximam à procura
                     do rosto na janela. Samadhi encontra os olhos de alguns, mas não os
                     reconhece.
                               — Por que me olham desse jeito? O que foi que eu fiz? Vê ex-
                     pressões de piedade ao se afastar da janela.
                               Andiroba, apesar de ser considerada uma cidade grande e ur-
                     bana, tem seus jeitos de fazer o boca-a-boca funcionar. E antes de Sa-
                     madhi saber da notícia, ela já voou pelos cantos, walk-talk, celular,
                     e-mail, mensagem de texto e website. Ele, logo ele, é o último a saber.
                               O pai chega, abraça Samadhi e chora. Sente amor incondicional
                     pelo filho, quase extravagante, como uma justificativa da falta de amor
                     a si mesmo. Não esperava que algo assim, tão fora do seu controle,
                     acontecesse. De um mau gosto de Deus. Considera vulgar uma tacada
                     tão baixa, tão covarde e certeira, de nocautear qualquer um e pior
                     ainda por afetar o menino, seu tesouro, que até então não sabia
                     o que é sofrer. Olha para Samadhi com lágrimas nos olhos. O filho
                     não costuma ver muita água saindo do pai, no máximo xixi ou suor,
                     lágrimas nos olhos não, que se lembre. O menino solta um ihhhhh ao
                     torcer a cabeça para o lado, já vendo que coisa boa não é.
                               A mãe de Samadhi desce as escadas vestida para presente, pre-
                     sente para a natureza. Samadhi vira o rosto de desgosto. O pai vem
                     mansinho, medindo as palavras que saem finas como violino.
                               — Dê adeus para sua mãe, filhinho. Ela foi chamada para o outro
                     mundo, foi ver Deus. Diz o pai, ao acariciar com as mãos frágeis os
                     cabelos pretos do menino.
                               Samadhi cerra os olhos, prende a respiração e fecha os punhos.
                     A boca treme de mansinho, contida, até explodir em tosse que
                     espalha lágrimas a cada baforada. A tosse escondendo as lágrimas,
                     ou as lágrimas escondendo a tosse. Como já é esperado da maioria dos


         Camila Appel




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                          seres humanos que presenciam a morte da mãe, ele chora.
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                          nada de outro mundo. Deus...Ê, pai...viajou?
                                Samadhi senta num canto, pernas cruzadas, costas no pé da ca-
                          deira de madeira dos tempos coloniais que há décadas habita aquela
                          casa, pela qual já passaram tantas bundas de tantos tipos e por tantos
                          motivos. A maioria suada pelo calor tropical. Ele não olha mais na cara
                          do pai, que entende o momento e sai. Sente a raiva, a indignação natu-
                          ral de momentos como esses. Tristeza irrequieta controla sua imagi-
                          nação. Desfoca o olhar de tanta dor e começa a alucinar, como fazem
                          pacientes drogados em anestesia. Vê a cadeira olhar para ele e dizer:
                                — Vai ficar tudo bem...
                                Vê escorrer uma lágrima nas curvas do braço dela. Assusta-se
                          com a própria imaginação e pensa que cadeira falando não é algo que
                          se vê todos os dias e que morte na casa não é desculpa suficiente para
                          objetos tomarem vida. Será? O apelo da ficção para tirar o peso da
                          verdade. Olha para a cadeira de novo e baixinho pergunta cutucando
                          a madeira:
                                — Oi, você está me escutando?


                                Se a cadeira falar, claramente alucinaram os dois, Samadhi
                          Aipim e você por acreditar.


                                A cadeira não responde e Samadhi olha para os lados com ver-
                          gonha da tentativa. Diz para si mesmo:
                                — Calma Samadhi, calma. É a dor que alucina. Calma...
                                Enquanto pessoas entram e saem para cuidar dos preparativos,
                          haja coisa para se resolver numa hora dessas, Samadhi relembra os
                          últimos dias da mãe.
                                Os médicos chamavam a doença de grave, gravíssima, se bem
                          que nunca explicaram o que era. É bem provável que não soubessem
                          mesmo. Morte não estava na previsão, no máximo mais uns dias de


                                                                                             D oAv e s s o
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                     cama. Há outras pessoas em estado bem pior, com testamento as-
                     sinado, já na caixa de saída do correio, carimbado e timbrado. Um
                     tio-avô até caixão já encomendou para um senhor lá do nordeste que
                     faz caixões especiais, personalizados. A mãe de Samadhi não tinha
                     testamento ou caixão. Com a linha da vida comprida que só ela, não
                     era esperada sua partida. Samadhi sente raiva e confusão. Como um
                     hulk-mirim, e não verde, sai correndo atrás do trenó branco sem som.
                     Os vizinhos demonstram sofrimento, mas estão felizes em não serem
                     eles os prejudicados.
                               Samadhi pára de correr e caminha pelas ruas frias do inverno fora
                     de estação. Anda por horas, cabeça baixa, braços moles, estômago desis-
                     tido da fome. Deita na calçada e, sem perceber, coloca o dedo na boca.


                               É aí que eu percebo a oportunidade e falo: Samadhi, é
                     hora, você sabe para onde ir. Ele escuta minha voz, levanta a
                     cabeça mas não me vê e ninguém está à sua volta.


                               — Estranho...hora de quê? Que coisa mais batida. Sei para onde
                     ir...Deita-se de novo na calçada.
                               Fica com frio e passa as mãos no braço, aquecendo-o. É aí que
                     sente algo novo e molhado. Sua pele está grudenda. Torce o cotovelo
                     para ver o que é e a encontra pela primeira vez. A ferida. Olha para
                     aquele machucado, aquele buraco no braço e cutuca um pouquinho.
                     Isso incomoda a ferida e ela sangra. A parte exposta é grande, em carne
                     viva. Samadhi sente-se pelado e fraco. Respira fundo, não há o que
                     fazer, a ferida está aí e ele não sente a menor vontade de cuidar dela,
                     passar mertiolate ou ir ao pronto-socorro, quer deixá-la como está,
                     completamente exposta. Samadhi pára de cutucar e olha para cima,
                     observando o céu.
                               A árvore balança forte cruzando a imagem azul que ele vê,
                     balança tanto que parece viva. Sente a calçada esquentar embaixo de
                     suas costas e ao se virar, dá de cara com formiguinhas. Elas não dizem


         Camila Appel




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                          de onde vêm nem para onde vão. Samadhi imagina como devem viver
                          as formigas, se sofrem quando a mãe morre pisoteada, ou amputada,
                          ou se não sentem dor alguma. Bloqueia a passagem delas com o dedo
                          indicador e imagina o que será que faz a vida dessas formigas funcionar,
                          o modo como carregam a comida, a fila indiana, a construção de suas
                          casas, enfim, vida e morte. É nesse momento que o pai o encontra.
                                — Filho, acorda! O que está fazendo deitado na calçada? Procurei
                          você por toda parte! Apóia a cabeça de Samadhi nas mãos e continua.
                                — Eu também estou muito triste. Vou sentir falta da sua mãe,
                          da mulher da minha vida. Queria poder dizer alguma coisa impor-
                          tante, ou bonita, mas não faço idéia de nada. Sei que vai passar filho,
                          vai passar. Estou aqui para tudo que precisar, viu? Vamos para casa.
                                Samadhi dá às mãos ao pai e caminham juntos. Em casa, a irmã
                          chora num canto. Pernas dobradas, envolvidas por braços que lem-
                          bram galhos de final de outono. Com a cabeça enfiada nas mãos, res-
                          munga bem fininho, um leve suspiro.
                                — Ah, onde se meteu? Todo mundo procurando você. Até neste
                          momento querendo ser o centro das atenções? Vê se pára quieto.
                                Missori Aipim é menina linda. Aparenta uns quinze anos e os
                          têm, dois a mais que o irmão. É daquelas que de tão bela parece burra.
                          Já acostumada com os elogios, quer sempre mais. A eterna insatisfeita.
                          Tem a atenção de todos e não se conforma em não ter a do próprio pai.
                          Quando se arruma, pergunta ao pai se está bonita, que fisgado pelo
                          jornal, prefere chamar Samadhi para compartilhar e discutir. Segun-
                          do ela, injusto. Esse irmão esquisito não era para nascer ali. Acredita
                          que algum problema aconteceu no Céu para ela ter um irmão desses.
                          Quando era pequena, achava que houve um erro de percurso, a ce-
                          gonha, mordida por uma pomba, tinha deixado cair o bebê na casa
                          errada. Justo na dela. Ele veio amaldiçoado pela raiva das pombas más,
                          impuras e doentes. Quem sabe até não foi por elas criado no esgoto do
                          caminho, com os restos deixados pelos humanos. A menina ainda acha
                          que ele não morreu por sorte. Sobreviveu para atrapalhar sua vida.


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                               — Bem porcamente, aliás. Missori fita Samadhi com desprezo.
                               A tia entra chamando todos para o enterro, acostumada a liderar
                     os encontros de família. Fumaça preta segue os passos pesados des-
                     sa figura pálida. Tum, tum, tum. Sempre que a vê, Samadhi imagina
                     uma hipopótama rosa, de olhos grandes, dançando música clássica
                     com outras da mesma espécie, de saia rodada de tule do filme “Fanta-
                     sia”. A tia, chamada de Hipopótama pela família, apelido considerado
                     carinhoso, era o exato oposto da cunhada, a mãe de Samadhi Aipim e
                     Missori. Elas se identificavam pelo oposto. O que uma gostava a outra
                     não gostava, o que uma queria, a outra não queria. Assim conviviam,
                     a identificação da negação. E agora, sem o não, o que seria dela? Ner-
                     vosa pelo vazio, pela ida do inimigo mais adorado, vê-se perdida e dis-
                     posta a arrumar outro significado na vida: Samadhi, que agora ocupará
                     o lugar da mãe como seu oposto.
                               O caminho até o cemitério foi sem registro para Samadhi Aipim.
                     Imaginou formas estranhas surgindo do desenho das nuvens, uma ca-
                     deira, uma mesa, um lápis, teclado de computador, mouse, monitor,
                     afinal, até as nuvens estão se adaptando ao mundo high-tech. Distrai-
                     se ao pensar em como as coisas são instituídas na natureza.
                               A nuvem é feita de quê? O sol nasce como, toca despertador e
                     ele aparece? Pensa Samadhi sentado no banco de trás do carro da tia
                     que não pára de falar sobre alguma coisa que ele não presta atenção.
                               Este é o primeiro dia que a mãe não vê, o primeiro pôr-do-sol
                     que ela não admira, o primeiro vento que ela não respira. Tudo que
                     ele vê e sente, a mãe, pela primeira vez na sua vida, não vê e não sente.
                     O olhar de Samadhi perde-se no natural, no dia-a-dia que passa des-
                     percebido por ocorrer todos os dias, inclusive até no dia em que a mãe
                     não está.
                               O que faz tudo isso acontecer? Pensa Samadhi justo no momen-
                     to em que a tia estaciona o carro e diz que estão atrasados.
                               A família se reúne na bancada principal. O corpo na frente, sem
                     vida, coberto por renda branca. O ventilador ligado está voltado para


         Camila Appel




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                          o corpo. As pessoas passam, uma a uma pelo caixão. Como detalhe
                          romântico na cena, sentem vento no rosto e nos cabelos. O véu sobre
                          Viviane também se agita, mas ela não sente. Sentir o toque do ar é
                          privilégio dos vivos.
                                Estão numa capela sem cruz e ninguém se dá conta da falta do
                          artefato. Flores e estátuas decoram o ambiente, algumas fotos da famí-
                          lia e cochichos pelos cantos.
                                — Dançava como ninguém. O dono da padaria do bairro.
                                — Cantava divinamente. O cabeleireiro, lembrando os dias de
                          emoção no salão.
                                — O marido era muito ciumento. Uma amiga de infância.
                                — Já sabem o que aconteceu? Alguém no banco de trás.
                                — Ninguém sabe, ninguém viu. Quase em coro evangélico,
                          baixinho para que não percebam que um grupo comenta.
                                Mudança brusca na narrativa, a porta se abre, vento corta a sala,
                          bagunça cortinas. Sob os batentes, passa um homem montando um
                          alazão sem freios nem ferraduras. Um grupo os acompanha e fazem si-
                          nal de reverência, de respeito cigano. Não cruzam olhar com os que ali
                          estão. O líder, com seus longos e sujos cabelos pretos, é o único a fazer
                          contato, encara Samadhi de modo penetrante. O momento descon-
                          gela ao seu sinal, ele dá meia volta com o cavalo e lidera o grupo rumo
                          ao caminho sem dono.
                                — O que eles estão fazendo aqui? Que desrespeito! Vieram
                          amaldiçoar a morta e sua família? Comenta a fofoqueira da cidade,
                          angustiada com uma cena que não compreende. Para ela, ciganos são
                          seres do mal, exploradores que arrancam a sorte das linhas da mão de
                          mulheres curiosas com seu destino, elaboram macumbas pagãs para
                          atrair homens, dinheiro e fama.
                                A tia também se surpreende, porque estava com a cabeça em
                          outro lugar, lá na livraria que era gerenciada pela irmã e que agora ela
                          terá a sorte de comandar. Os livros já devem ter começado a fugir das
                          prateleiras. Tia Hipopótama sempre achou a cunhada muito estranha


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                     e com ela até combina um grupo lendário como esse. Surpreendeu-se
                     porque achou que com essa morte, as coisas deveriam ficar mais nor-
                     mais, se Samadhi for colocado nos eixos. Tia Hipo fica sem reação e
                     aproveitando o vazio deixado, toma a liderança.
                               — Vamos para casa já! Isso aqui está muito do esquisito. Falei
                     para meu irmão não se casar com aquela bunda-mole, e ainda dar à
                     luz dois bunda-molinhos. Missori até que se saiu melhor. Mas você,
                     Samadhi, onde já se viu! Um olho de cada cor! Uma aberração. Já para
                     casa!
                               É verdade, Samadhi tem um olho castanho e o outro verde. Sob
                     a luz, dá para perceber a diferença das cores. Na escola, é chamado
                     de Frankenstein pelo colega mais espevitado, que conta a todos sua
                     versão incrível da fábula, dizendo que o médico maluco enfiou o dedo,
                     sem querer, num dos olhos do bebê. Por culpa, colocou outro olho
                     seu no lugar, só que era verde, e deu no que deu. Há outros colegas
                     de maior criatividade que espalham por aí que Samadhi é bruxo e sua
                     inibição atual esconde uma surpresa terrível para toda a humanidade.
                     Outro alega ser Samadhi uma mutação e a prova de que os X-men são
                     reais. O fato é que Samadhi morre de vergonha e sente alívio por estar
                     em férias escolares.
                               Mesmo em casa, não encontra refúgio para essa perseguição
                     baseada na incompreensão e na falta de sensibilidade das crianças que
                     só conseguem aceitação social massacrando outras. Quando fica ner-
                     voso, pisca um olho de cada vez, compulsivo, incentivando ainda mais
                     os comentários.
                               O caminho de volta para casa também é sem registro. Sama-
                     dhi sente o carro deslizando pela paisagem urbana, como se estivesse
                     voando. Quando chegam, cada um entra em seu respectivo quarto e
                     faz da dor a própria solidão, com medo de compartilhá-la e assim di-
                     minuir esse sentimento, que no momento parece essencial.
                               Samadhi, deitado de bruços no chão, não consegue dormir. Pas-
                     sam imagens rápidas por sua mente, incomodando o sono, o olhar do
                     cigano, a mãe toda coberta no caixão, a tia que o chama de bunda-

         Camila Appel




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                          molinho. Imagens ruins se intercalam com outras boas, o sorriso da
                          mãe, a textura de seus cabelos, a mão suave que acaricia e ao mesmo
                          tempo aperta, brava. Sente angústia e chora enfiado no travesseiro.
                          Seu coração prova que tem vida própria, aperta sem o dono mandar e
                          não pára quando ele pede para soltar.
                                 Uma voz passa entre o vento, chamando Samadhi. Por acaso é a
                          minha voz, com um tom mais rouco do que ela é, mas ele não sabe.


                                Samadhi Aipim, é hora, você sabe para onde ir.


                                Samadhi levanta a cabeça, enxuga as lágrimas e olha em volta.
                          Ninguém por perto. Segura a ferida do braço com força, pois ela está
                          pulsando o suficiente para corroer o braço inteiro e fazê-lo cair no chão.
                          Ele se deixa levar, repete a voz do vento, segue a dança dos ares pelos
                          cantos e quartos, esbarra na querida luneta e não a coloca de volta no
                          lugar, sinal de quase insanidade levando-se em consideração a paixão
                          do menino por estrelas. Desce correndo a escada, passa pela cozinha,
                          as panelas penduradas tocando-se umas nas outras num leve tim-
                          brado. Na sala, derruba um abajur, pisa num caco de vidro, não liga,
                          continua andando, correndo, rodopiando, perdido na própria casa. É
                          puxado para um lado, para outro, para frente, para trás, até parar, de
                          pé no meio da sala. Um ouvido escuta o ronco do pai, alto, que mais se
                          parece com choro. Como é que ele não acorda com o próprio ronco?
                          Pensa Samadhi ao se inclinar em direção à escada. O outro ouvido
                          escuta a chuva e os trovões de tempestade. Por um momento, tem
                          dúvidas se esses trovões são reais ou não. Vai até a janela para atestar a
                          loucura, ou o sonho, passando pela cadeira chorona de hoje cedo, que
                          não mais aparenta vida. Abre a cortina que confirma, é real.
                                Pela abertura, entra um relâmpago à procura de um esconderijo.
                          Ilumina a sala levando os olhos do menino a um corredor branco que
                          tem como decoração apenas um tapete pendurado na vertical. Não se
                          lembra de ter visto aquela coisa ali, muito menos nessa posição inco-
                          mum. Vaga memória, ele criança pequena, quase bebê, brincando nas

                                                                                                D oAv e s s o
                                                                                                   a




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                     franjinhas do tapete enquanto espera pela mãe.
                               Samadhi vai até o tapete e, com os dedos, balança a franja, hoje
                     bem mais velha, e vai apertando o tecido fazendo rugas que demoram
                     para se desfazer depois de soltas. Quando cai, de trás do tapete, uma
                     carta. O menino passa as mãos no envelope, reconhecendo a calig-
                     rafia da mãe. Uma lágrima mancha seu nome escrito na frente, ela é
                     endereçada a ele. Senta-se e abre a carta devagar, não sabe se sente
                     angústia ou felicidade. Começa a ler, ouvindo a voz da mãe ditando as
                     palavras, que tocam seu corpo conforme são lidas.




         Camila Appel




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                                Filho,
                                Se você encontrou esta carta é porque foi chamado para vir até
                          aqui. E isso significa que precisa me substituir, e que eu não estou mais
                          por perto. Escrevo sabendo da minha partida. Não fique bravo comigo,
                          meu amor por você transcende mundos e levo esse sentimento junto.
                          Há muito que você ainda precisa saber. Sua passagem pelo Portal é
                          o início dado pelo meu fim. Ele está atrás deste tapete. É um Portal
                          para Maya, minha terra. Deixei meu mundo para poder me casar com
                          seu pai, um DoAvesso. Peço que passe pelo Portal e vá à Maya. Agora,
                          você é mais necessário lá do aqui. Maya é tudo para mim, entranhas,
                          origem e, assim, também é para você. Deixe que a curiosidade o mo-
                          tive, mas não se deixe cegar. Maya é um mundo que encanta e oferece
                          perigos. Fique atento para aqueles que o procurarem, é possível que
                          já esperem por você, pois preciso ser substituída com urgência. Filho,
                          por favor, peço que tenha discernimento. Sua chegada não é bem vinda
                          para aquele que quis a minha partida. Temo por sua vida e me dói ter
                          que pedir para seguir. Não há alternativa.
                                Dentro deste envelope tem um amuleto. É uma corrente que você
                          vai reconhecer, ela estava no meu pescoço desde a primeira vez que
                          mamou em meus seios, brincando com ela e me fazendo rir. Use-a, por
                          favor, com ela não terão coragem de expulsá-lo de Maya, apesar de
                          você ter nascido aqui, no DoAvesso. Para sua tarefa terá que provar
                          que merece meu posto, só espero que encontre as pessoas certas. É isso,
                          Samadhi Aipim, meu filho. Eu amo você e a morte não apaga esse sen-
                          timento, fortalece-o.
                                          Um beijo, um abraço, um qualquer coisa desesperado.
                                                                                Um carinho meu,
                                                                                         Sua mãe




                                                                                              D oAv e s s o
                                                                                                 a




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                               Samadhi dobra a carta e coloca-a no envelope, confuso. Nunca
                     ouviu a mãe mencionar que nasceu em outro mundo, muito menos
                     que esse mundo se chama Maya. Será que sou mesmo um E.T? Pensa
                     Samadhi. A motivação de buscar suas próprias origens traz certa força,
                     somada à ansiedade de tornar-se, de uma hora para outra, tão impor-
                     tante.
                               Tira do envelope a corrente que leva uma ampola pendurada.
                     Dentro da ampola, uma minúscula rosa vermelha. Reconhece o colar
                     que a mãe sempre usava. Coloca-o em seu pescoço, com orgulho. Le-
                     vanta-se e contempla o tapete. Não quer ver o que há atrás dele. Afas-
                     ta-se. As palavras da mãe trazem medo ao menino. Escuta uma porta
                     abrir e o pigarro da Tia Hipo a caminho do banheiro, o que é suficiente
                     para fazê-lo voltar ao tapete. O medo chega como um sentimento que
                     alivia, um remédio para a dor, a ponto de sufocar a angústia. Cabeça
                     erguida, afasta a lateral do tapete, procurando o Portal mencionado.
                               Assusta-se ao encontrar um espelho, mas diverte-se com a es-
                     tranheza dele. O reflexo, em vez de mostrá-lo de frente, mostra suas
                     costas. Vê sua bunda e não o umbigo; os cabelos despenteados, e não o
                     rosto assustado. Samadhi se mexe para brincar com seu avesso. Pensa
                     que suas costas são maiores do que imaginava e sente a imagem deva-
                     gar, dedo a dedo, vai tocando piano no próprio reflexo. A superfície do
                     espelho aos poucos se derrete puxando mão e braço e traz o corpo para
                     dentro. Despenca.


                               Vai,Samadhi.




         Camila Appel




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                          :2:
                          A PASSAGEM
                          MEGASSAP A
                                  :2:




                                        Estatelado no chão, de bruços, com a cabeça en-
                                 fiada na grama, ele cheira a terra. Passa a mão pelo cor-
                                 po para tirar a poeira e sente de novo a ferida. Ela agora
                                 está empanada pela poeira da passagem. Samadhi gira o
                                 pescoço e, com um gemido de dor, abre os olhos. O sol
                                 é forte e o faz piscar. Ele senta meio torto, onde está?
                                 Não sabe ainda. O que vê parece um jardim com grama,
                                 terra, árvores com frutas e cores, muitas delas. Cores tão
                                 vivas que poderia jurar estar em um desenho animado.
                                 Samadhi anda um pouco, procurando qualquer coisa.
                                 Incrível, a terra se mexe quando ele a pisa. Será que ela
                                 está viva? Pensa Samadhi, ao forçar a ponta do pé para
                                 dentro da terra.
                                        Ele vai até uma das árvores e acha-as muito
                                 baixinhas para serem mesmo árvores. Pega um fruto
                                 azul turquesa e morde com força. Sente um gosto dife-
                                 rente, que no começo é doce e depois vai amargando
                                 até ficar salgado e intragável. Cospe o resto na terra de
                                 onde, para seu espanto, brotam outras cinco árvores,
                                 iguaizinhas, com os mesmos frutos azuis turquesa. En-
                                 quanto elas crescem, Samadhi as toca e sente uma es-
                                 pécie de gosma gelatinosa na ponta do dedo. Levanta o
                                 dedo na altura dos olhos, analisando a gosma, até seu ol-
                                 har desfocar e se perder no azul cintilante do céu. Quan-


                                                                                       D oAv e s s o
                                                                                          a




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         Camila Appel




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                               do abaixa os olhos, encontra uma menina parada e instigada. É
                               ela quem inicia a conversa.
                                     — Por que você tem um olho de cada cor? A menina
                               balança a cabeça, parecendo estar confusa entre qual dos
                               olhos focar, o castanho ou o verde. Ele pensa em não responder,
                               se irrita com a única pergunta capaz de mudar seu humor de
                               médio para péssimo.
                                     — Hã? Quem é você? Pergunta Samadhi com desdém,
                               limpando os últimos grãos de terra dos olhos.
                                     — Meu nome é Chakra, prazer. Ela responde com a fir-
                               meza de quem gosta do nome que tem, abaixando a cabeça em
                               tom de apresentação.
                                     — É...Samadhi, Samadhi Aipim, esse é o meu nome.
                               Responde tentando não olhar para os olhos da menina, que o
                               intimidam. Chakra, que nome esquisito, até mais do que o meu,
                               de onde você surgiu?
                                     — Daqui mesmo, de Maya. Quem surgiu foi você. Chakra
                               aponta o dedo indicador para ele.
                                     Samadhi não quer contar da carta da mãe, teme não poder
                               confiar na menina. Ela entende o silêncio como falta de enten-
                               dimento dele e continua.
                                     — Você está em Maya, que é o mundo que faz o seu mun-
                               do funcionar, o DoAvesso.
                                     — DoAvesso? Nós somos o DoAvesso?
                                     — Claro. Você nunca se questionou de como as coisas
                               acontecem?
                                     — Já. Não faço outra coisa.
                                     — Então, achou a resposta! Só que não é tão simples as-
                               sim, e não sei como veio parar aqui e nem o porquê. Aliás en-
                               contrei você por acaso. Sabe, não era para eu estar aqui, fugi do
                               trabalho para tomar ar fresco e encontrei você, caído no chão. Só
                               que nada por aqui acontece por acaso, se bem que ultimamente


                                                                                            D oAv e s s o
                                                                                               a




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                     as coisas andam muito esquisitas. Deve ter um motivo para sua vinda.
                     Vem comigo que eu vou ajudar você.
                               — Eu não preciso de ajuda...
                               — Precisa sim. Ou você já sabe em que vai trabalhar?
                               — Trabalhar? Não...
                               — Está vendo? Aqui todo mundo trabalha, senão é expulso. So-
                     mos os mayanos das funções, responsáveis pelo andamento do mundo
                     DoAvesso. Se você não trabalhar, não poderá ficar aqui. Precisa arran-
                     jar emprego já, entendeu?
                               — Ah, e você quer me arrumar um? Samadhi começa a duvidar
                     da menina, está solícita demais e lembra das palavras da mãe.
                               — Sim. Ou você prefere ficar perdido procurando sozinho?
                               Ele olha em volta com medo daquele ambiente e faz que não
                     com a cabeça. Decide aceitar a sugestão e não contar sobre a carta,
                     ainda não sabe se pode confiar.
                               — Então, vamos lá. Qual é o seu talento?
                               — Sei lá. Acho que não tenho talento nenhum. Diz Samadhi
                     desanimado, enquanto arrasta os pés no chão para ver se ele é feito de
                     terra mesmo.
                               — Claro que tem, todos têm, mesmo os DoAvesso, como você.
                     Vamos, me segue.
                               Samadhi Aipim não tem muita opção. Segue Chakra e até gosta
                     da idéia de trabalhar, de repente é isso que a mãe queria, que ele viesse
                     trabalhar em Maya. Ela vai na frente, não se preocupa se ele a acom-
                     panha ou não. Apressa o passo para testar a atenção do menino, clara-
                     mente perturbada.
                               Chakra tem pele morena escura, lisa de veludo, cabelos ondu-
                     lados bem compridos que vão até a cintura. Usa pulseiras no braço,
                     que acompanham a pintura do corpo. A tinta é azul e contorna suas
                     dobras, bem aparentes. Samadhi acha que ela parece uma guerreira
                     da Amazônia. Chakra anda a passos firmes, salta pedras jogando os
                     cabelos para cima, para distrair ainda mais Samadhi. Ela se vira para
                     trás com a dureza de um olhar descomovido.

         Camila Appel




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                                Numa definição mais simples, Chakra é uma senhora-
                          moça. Moça por fora e senhora por dentro. Sente-se respon-
                          sável pelos outros, responsabilidade que assumiu sem ninguém
                          mandar. Encontrou Samadhi Aipim ao acaso, mas sente que
                          deve ser por um bom motivo e, assim, já se acha responsável
                          por esse menino. Não por compaixão e sim pela necessidade
                          de manter as coisas em ordem, estáveis por serem funcionais
                          e previsíveis.


                                Chakra pára no topo de uma montanha, afasta uma perna da
                          outra e uiva, como um lobo. Samadhi, que ainda está na metade do
                          caminho, se assusta com o berro e escorrega. Ofegante e cansado,
                          passa as mãos pelo braço e ao sentir a ferida, solta um gemido de dor.
                          Chakra desce correndo em direção a Samadhi e estende uma das mãos.
                          Ele receia, mas acaba se apoiando nela e se levanta aos poucos. Um
                          arrepio quando percebe que está de pé, pronto para continuar, procu-
                          rar por sinais da mãe, de alguém que esteja esperando por ele, como
                          ela mencionou na carta, buscar suas raízes e merecer substituir a mãe
                          numa missão que ele nem imagina qual seja. A ferida do braço remói
                          a pele e a carne viva lateja.




                                                                                             D oAv e s s o
                                                                                                a




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                      :3:
                     MAYA – O MUNDO DAS FUNÇÕES
                     SEÕÇNUF SAD ODNUM O – AYAM
                                             :3:




                                     Samadhi e Chakra andam pelas ruazinhas de terra
                               batida de Maya. Chakra está decidida a encontrar um
                               trabalho para o menino, que ousa afirmar não ter
                               talento algum. Ele está meio abestalhado, encantado
                               com as novidades. Esperava encontrar pedras redondas
                               na beira da estrada. Ao invés disso, se depara com pedras
                               de formatos geométricos. Umas são triangulares, outras
                               quadradas, pentágonas, hexágonas, meias-luas, estrelas
                               e retângulos. Apesar da esquisitice, Samadhi sente paz.
                               Ele vê as cores do céu mudando, rápidas, invertendo
                               posições, como degraus de um arco-íris, numa onda
                               constante que desce e sobe. Chakra comenta:
                                     — Olha só... O Pintor hoje está inspirado. Você
                               sabe pintar?
                                     — Não! Sou péssimo nisso. Desenho pior ainda.
                               Nem pergunta quem é esse tal Pintor, mas se anima ao
                               pensar que pode ser quem espera por ele.
                                     — Vamos ver se o Pintor gosta de você. Se gostar, é
                               porque tem talento para pintar e ainda não sabe. Se não
                               gostar, não é seu talento.
                                     Chegam à casa do Pintor, que está bravo à procura
                               de tintas que sumiram do balde, misturando o céu com
                               cores confusas. É um homem baixo, cabelos curtos gri-
                               salhos e mãos ágeis, tão rápidas que mal se pode vê-las.


         Camila Appel




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                          Velhinho na aparência e olhos de criança.


                               O Pintor tem uma função fundamental, faz algo que
                          aqueles DoAvesso vêem sempre, mas não entendem como
                          acontece. Pinta o céu para que o sol faça seu show diário. Sem
                          as cores, o sol não dá as caras e nem se despede. Seu nome,
                          como a função diz, é Pintor porque é o único dessa espécie, não
                          precisa de distinção. Em Maya, todos têm uma função que faz
                          o mundo DoAvesso funcionar. Os de espécie única, que são
                          raros, levam o nome da própria atividade que desempenham.
                          As que requerem uma família, ou seja, mais de um envolvido
                          na mesma função, recebem nome próprio, para distinção.


                               Chakra tenta uma aproximação.
                               — Senhor Pintor, estou procurando emprego para esse menino,
                          Samadhi Aipim. É um DoAvesso e acha que não tem talen...
                               O Pintor está sentado numa cadeira de balanço que paira no ar,
                          presa na árvore que tem uma cabaninha, sua casa. Ele puxa a corda até
                          descer o balanço à altura de Chakra para interrompê-la:
                               — Estou muito ocupado, não está vendo? Preciso achar a tinta
                          vermelha. O Pintor vai levantar a cadeira de novo quando repara no
                          colar do menino.
                               — Onde você conseguiu isso?
                               — Por quê?
                               — Porque isso quer dizer que começou... Ai, preciso ir. O Pintor
                          acena um tchau ao puxar a cadeira para cima.
                               — Começou o que? Espere, você me reconheceu? É você quem
                          espera por mim? O Pintor já está longe. Chakra pergunta o que ele
                          quer dizer, mas Samadhi não se sente seguro para dar informações.
                               Sem êxito os dois continuam a caminhada. Chakra aponta para
                          um arbusto, indicando o caminho. Samadhi atravessa o amontoado de
                          folhas, reparando que elas têm expressões faciais. Uma com um largo


                                                                                            D oAv e s s o
                                                                                               a




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                     sorriso, outra com a boca torta e um dos olhos semi-fechados, outra
                     com a boca aberta de susto, outra sem boca e com olhos arregalados,
                     outra com olhar romântico, de sedução. Samadhi adorou essa última
                     e fica olhando para ela, retribuindo. É o que chamam de smile face no
                     DoAvesso. : ] : > ; ) : o. Tenta chamar Chakra que, já adiantada, reclama
                     de sua lerdeza. Ele corre para alcançá-la.
                               — Chakra, essas folhas falam!
                               Ela agacha, as pernas dobradas como animal. Cheira uma folha
                     caída no chão e responde:
                               — Não, seu bobo, elas não são falantes, são expressivas. As que
                     falam ficam na ala norte. Estamos no centro, veja. Indica várias setas
                     que apontam para um buraco.
                               — Olha aqui. Chakra aponta para o chão.
                               — Um relógio! Surpreende-se Samadhi ao olhar dentro do bu-
                     raco.
                               — Essa é a casa do Menino Tempo, quem sabe você não tem
                     talento para ajudar no correr das coisas, se bem que com essa lerdeza
                     acho difícil, mas vamos tentar. Explica Chakra acionando uma lavanca
                     dentro do buraco, como se estivesse cumprimentando alguém. O bu-
                     raco se abre na terra, em funil subterrâneo. Uma coisa vem voando lá
                     do fundo até chegar à superfície.
                               — O nome disso é Ponteiro Voador, porque parece com os pon-
                     teiros de um relógio e voa. Explica Chakra.
                               — Você não espera que eu suba aí, né?
                               — Samadhi, se quer que eu ache um emprego para você é bom
                     fazer o que eu mando, se não pode se preparar para ir embora.
                               — Não posso ir embora!
                               — Então sobe logo.
                               Chakra sobe em uma das hastes e Samadhi pula na outra, contrariado.
                               Cada um numa ponta do Ponteiro Voador, descem o funil com
                     velocidade. As hastes do Ponteiro giram como se estivessem dentro de
                     um relógio acelerado, deixando Samadhi tonto. Na descida, ele repara


         Camila Appel




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                          que as paredes são feitas de prateleiras cheias de relógios de todos os
                          tipos e formatos, cada um mostrando um horário diferente.
                                — São todos os horários que existem no mundo neste momento.
                          Explica Chakra apontando para os relógios nas prateleiras.
                                — Nossa, quanta hora diferente para o mesmo segundo. Encan-
                          ta-se Samadhi, sem saber se é ele quem gira ou os relógios.
                                Ela dá um meio sorriso, achando graça dos comentários do no-
                          vato. O Ponteiro Voador aterrissa num chão muito branco. Estão numa
                          sala quadrada, toda feita de mármore. Um barulho chama a atenção
                          de Samadhi, que não faz idéia do que esperar. São rodas deslizando
                          sobre o chão liso. Em cima dessas rodas, na cadeira, uma figura inco-
                          mum. Um moço que aparenta ter 18 anos, o Menino Tempo.
                                Menino Tempo é um sábio, chamado de menino por estar sem-
                          pre brincando com as pessoas. Faz piadas, usa a palavra e o próprio
                          tempo para fazer os outros darem risadas e se divertirem. É o palhaço
                          da turma, a caçoar dele mesmo para animar o ambiente. Sente-se só,
                          da sua espécie só tem ele, mas tenta não demonstrar a solidão que
                          o habita. Não tem uma das pernas. Quis que as coisas acontecessem
                          mais rápido do que o possível e sofreu um acidente. Logo ele. Prefere
                          cadeira de rodas à muleta, já que não quer perder tempo. De uns tem-
                          pos para cá, tem estado ranzinza, assim como outros moradores de
                          Maya. Ninguém sabe porque, ainda.


                                Esse Tempo é meio maluco, quando fica bravo, gira a
                          roda do tempo para frente ou para trás, dependendo do seu
                          humor. Se gira para frente para trás, o tempo acelera ou ret-
                          rocede em Maya e no DoAvesso. Só que os DoAvesso não per-
                          cebem, estão muito entretidos no seu dia-a-dia.


                                O Ponteiro Voador se acomoda num dos ombros do Menino Tem-
                          po, enquanto ele cumprimenta Chakra com frieza. Ela entende que hoje é
                          um dia de muito mau humor e vai direto ao assunto.


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                               — Estou procurando emprego para Samadhi Aipim, ele acha
                     que não tem talento. Precisa de ajudante?
                               Menino Tempo dá um soco na cadeira de rodas e ajeita os óculos
                     redondos. De tão redonda que é sua cabeça, as hastes estão tortas,
                     quase quebrando. São bem visíveis porque ele é careca, nem um pêlo
                     tem naquele cucuruco. Explode:
                               — Por que todos acham que preciso de ajuda? Não preciso de
                     ninguém! Ouviu? Ninguém! Giro a roda do tempo sozinho! Se é esse o
                     motivo da visita, podem ir embora. O Menino Tempo fixa os olhos no
                     colar de Samadhi.
                               — Você achou isso onde?
                               — Minha mãe me deu.
                               — Ai...ai. Começou...
                               — Começou o que? Pergunta Chakra.
                               — Não vai dar para explicar, porque não sei. Só sei que começou.
                     Adeus!
                               — Ok, ok. Vamos conseguir, Samadhi, se você apareceu aqui é
                     por um bom motivo. Chakra tenta parecer animada enquanto sobe
                     no Ponteiro Voador. Chegam ao topo com alívio. Samadhi acha ótimo
                     não ter comido nada até então, senão teria enjoado. A alavanca faz um
                     clique e fecha a grande abertura.
                               Seguem o rumo, até Samadhi interromper Chakra.
                               — Estou cansado. Isto não vai levar a lugar algum. E eu nunca
                     fui muito bom em nada, de repente não tenho talento. Alguém deveria
                     estar me esperando aqui...
                               — Como assim?
                               — Nada não. Lembra-se da carta da mãe, passa a mão no braço,
                     arde a ferida.
                               — Se você for esconder coisas de mim não vai dar para
                     continuar.
                               — Não estou escondendo nada, é que acabamos de nos con-
                     hecer, calma.


         Camila Appel




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                               — Sei. Vem cá, vamos sentar um pouco, entendo que você se
                          cansa rápido. Vou buscar umas frutas. Fala Chakra ao se afastar.
                          Volta em instantes e quando vai chamar Samadhi, percebe que ele
                          dormiu.


                               Puxa, justo agora que iriam encontrar meu velho
                          amigo...




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                     :4:
                     EM BUSCA DE UM TALENTO
                     OTNELAT MU ED ACSUB ME
                                         :4:




                                     Samadhi acorda sentindo-se renovado. Começa a
                               espreguiçar quando Chakra o cutuca:
                                     — Você dormiu demais! Não pode ficar mais um
                               minuto sem trabalho. É perigoso, Samadhi, vai ser ex-
                               pulso. Corre, me segue.
                                     Chakra faz curvas rápidas só para ver se ele está
                               acompanhando. Pára, de supetão, na frente de uma ár-
                               vore gigante, Samadhi não percebe a parada radical e
                               tromba na menina.
                                     — Desculpa, sou um pouquinho desastrado. Diz ao
                               levantar-se.
                                     — Quem sabe seu talento não seja derrubar os
                               outros. Sugere Chakra em tom de zombaria e levanta
                               apoiando-se em Samadhi.
                                     Ela olha para a árvore gigante e pronuncia umas
                               palavras estranhas. Zumguibudum atchim. A última sai
                               como um espirro gostoso. Galhos abrem o abraço, en-
                               tregando uma escada viva, que se deixa ser pisada pelos
                               dois. Ao final da escada e do corredor que vem depois
                               dela, um senhor de muita idade está de costas mistur-
                               ando substâncias, que parecem perigosas pelo barulho
                               que fazem e fumaças que soltam acariciando o ar com
                               cores e movimentos. Um cheiro de pum traz a vontade
                               de espirrar.


         Camila Appel




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                                — Argh, o que esse velho está fazendo? Sussurra Samadhi.
                                O senhor se vira de uma só vez, numa rapidez inesperada, e diz
                          como se estivesse recitando um poema.
                                — Quem é que mete o pé? Chakra eu reconheço, traz um me-
                          nino DoAvesso, olho de uma cor e outro de outra, que travessura. Fui
                          eu quem fiz, na tentativa de aprendiz? Ah, desculpas últimas.
                                — Não, senhor Alquimista, esse aqui é Samadhi Aipim, é um
                          DoAvesso mesmo e está procurando emprego, mas acha que não tem
                          talento.
                                — Sei... Uma flecha de guerreiro certeiro vai de presente para
                          o menino ausente. Fogo no coração ele tem. É assim que começa a
                          canção. Sai em chamas ciganas com a força de um alazão. Diz o Alqui-
                          mista enquanto despeja um líquido azul num recipiente.
                                Explode um vaso de vidro, fumaça e líquido pelos ares. Samadhi
                          recua, escondendo o rosto atrás de Chakra, e vê no fundo da sala um
                          papagaio cinza dormindo.
                                — Quem fez isso? O que deu nisso? Vão virar chouriço! Diz o
                          Alquimista enquanto pega a parte do líquido que sobrou e enfia num
                          buraco na terra, em forma de fechadura.
                                — Hum, interessante esse tum. Vai para o lado de lá já. Esqueci
                          para quem é, não importa o mané. Tum vai pelos ares e encontra seu
                          mestre campestre! O que fazendo estão vocês aqui outra vez?
                                — É... senhor Alquimista, vamos indo, obrigada pela atenção.
                          Fala Chakra ao empurrar Samadhi em direção à porta, mas ele a segura
                          e se vira para o Alquimista.
                                — Senhor Alquimista, por acaso sabe de alguém que esteja me
                          esperando?
                                — Hum, tem sim, alguém no aguardo de Aipim.
                                — Quem? Samadhi se anima.
                                — Não me lembro, guardei informação no relento. Bem, adeus
                          crianças cirandas! O Alquimista acena um tchau com a mão. Chakra
                          puxa Samadhi e saem da árvore.


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                               Meu amigo Alquimista é respeitado em Maya. Ninguém
                     afirma tê-lo visto menino. Até comentam que nasceu assim,
                     um senhor de aparência doida, apaixonado pela química e
                     pela transformação das coisas. Externa certa meiguice. Sem-
                     pre com um meio-sorriso no rosto. Sorriso misterioso. Sorriso
                     leve de quem sabe mais do que fala.


                               Samadhi e Chakra sobem a escada gigante, passo a passo, e saem
                     da árvore. Chakra explica que o Alquimista faz as poções dos senti-
                     mentos e as envia para o mundo DoAvesso.
                               — Samadhi, ele tem Alzheimer, tem que ter paciência. Mas não
                     o subestime, é muito inteligente, um verdadeiro mago. Diz Chakra
                     enquanto afasta um arbusto.
                               — Ele tem o que? Pergunta Samadhi repetindo a ação da me-
                     nina.
                               — Alll-zheii-merrr. Alzheimer. Meu pai disse que é uma doen-
                     ça, talvez moderna, contemporânea, mas não ousamos dizer isso ao
                     Alquimista. Com ela, as pessoas se esquecem das coisas e se confun-
                     dem. É uma coisa nova aqui em Maya, o Alquimista é o único assim,
                     por enquanto... mas por que deveria ter alguém esperando por você?
                               — Sonhei com isso, não deve ser nada.
                               Chakra vai insistir quando pega uma pena no ar. Ela cheira a
                     pena e diz com entusiasmo:
                               — Eba, o Carteiro está chegando!
                               — Quem? Pergunta Samadhi encompridando o eme.
                               — O Carteiro está chegando, repete Chakra, olhando para o céu.
                               Um berro corta o ar e a conversa. É mesmo o Carteiro que chega
                     entre os dois, desajeitado e com pressa. Dá para ver que ele não tem
                     muito equilíbrio no ar pelas penas que solta, extrovertidas, para todos
                     os lados e direções. Não é pássaro nem avião. Suas asas são feitas de
                     promessas. Palavras que se prendem umas nas outras e formam uma


         Camila Appel




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                          rede que se movimenta no ar, fazendo seu corpo flutuar. O rabo é for-
                          mado por palavras que fazem uma frase comprida. Dizem que é um
                          poema, ninguém nunca conseguiu ler, porque ele não pára quieto. Seu
                          corpo é coberto por várias estampas e selos, do mundo inteiro e até de
                          lugares desconhecidos.


                                Uns dizem que o Carteiro tem contato com extra-ter-
                          restres, mas fofoqueiro do jeito que é, dificilmente manteria
                          esse segredo. Ama as palavras e se diverte em misturá-las.
                          Sente depressão porque os DoAvesso não mandam mais car-
                          tas como antes, não mais usam as palavras com gosto. E sen-
                          te solidão, voando pelos ares, imaginando vida em outras ga-
                          láxias, onde as palavras devem ser arrumadas e arranjadas
                          de outra forma, uma que surpreenda.


                                — Olha a carta despencando aí pra baixo. Oxente, não pega nela
                          não, Chakra! Não é pra ocê não, guria. Fala o Carteiro ao pousar num
                          galho.
                                — Bom dia, senhor Carteiro, estou procurando um emprego
                          para o Samadhi Aipim, ele acha que não tem talento. Grita Chakra
                          para o Carteiro ouvir.
                                Samadhi sorri encantado com aquela figura voadora e estam-
                          pada. Mais ainda por sua resposta:
                                — Ah, ocê! Tem um telegrama falado para o garoto que usa a
                          ampola da rosa.
                                — Até que enfim!
                                O Carteiro pigarreia e começa:
                                — Samadhi, esperam por você na Montanha Iluminada. Vá logo
                          que o tempo é curto. Cuidado com o inimigo. Samadhi olha receoso
                          para Chakra.
                                O Carteiro vai antes que o menino pergunte mais alguma coisa.
                          Chakra faz careta. Samadhi nunca tinha imaginado isso. Incrível. Está


                                                                                            D oAv e s s o
                                                                                               a




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         Camila Appel




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                          excitado em descobrir sua origem mayana e encontrar alguém que ex-
                          plique o que está acontecendo.
                                — Chakra você sabe onde fica essa montanha?
                                — Não, meu trabalho é interno, dentro da Escola. Se bem que
                          eu gostaria de conhecer mais coisas. Não adianta encontrar montanha
                          alguma sem ter trabalho, senão será expulso.
                                Neste momento, aparece um coelho gigante, branco de pêlos
                          curtos e olhos vermelhos, interrompendo a menina.
                                — Olá crianças. Adeus crianças. Diz o coelho saltando com pu-
                          los enormes, usando o rabo de apoio no chão, que faz TÓIM, TÓIM,
                          TÓIM cada vez que se impulsiona. Tem vários objetos ao redor do
                          pescoço, presos em um colar, que tilitam com os saltos.
                                — Samadhi, esse é o chaveiro. Como tem mais de um dessa es-
                          pécie, ele tem nome, Penduricalho, é o mais importante dos chaveiros.
                          Ele pode ter um trabalho para você. Escute bem, é fundamental que
                          você consiga um emprego agora, para sua própria sobrevivência. Corra
                          atrás dele que eu preciso ir trabalhar. Anda!
                                Samadhi quer pedir para ela ficar, berrar um nããão me deeeixe,
                          mas sente vergonha. Estica as costas como alguém prestes a fazer um
                          grande feito.
                                — Senhor chaveiro! Senhor coelho! Coelhão! Penduricalho!
                          Preciso de emprego! Grita Samadhi ao correr atrás do coelho gigante.
                                Penduricalho pára e olha para ele.
                                — Interessante. Um de uma cor e o outro de outra. Hum. O
                          mensageiro que alterna duas cores há de chegar. Pensa o coelho.
                                — Está contratado! Siga-me. TÓIM, TÓIM, TÓIM.
                                — Não entendi! Berra Samadhi, ao correr atrás do TÓIM, TÓIM,
                          TÓIM.
                                Penduricalho se afasta cada vez mais e Samadhi pensa que é im-
                          possível correr atrás desse coelho, precisaria voar. Sente uma força irre-
                          conhecível, vento forte que o levanta do chão e se surpreende ao acom-
                          panhar os saltos e desvios do Penduricalho, até cair num buraco.


                                                                                                D oAv e s s o
                                                                                                   a




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                               É um orifício pequeno que dá entrada a uma casa gigante. Como
                     todo chaveiro, a casa é cheia de chaves penduradas no teto, por fios. De
                     todos os formatos, texturas e cheiros.
                               — Seu nome? Pergunta Penduricalho ao tocar as chaves como
                     que procurando uma específica, sem olhar diretamente para o menino.
                               — Samadhi Aipim.
                               — Por quê?
                               — Como assim? Por que você se chama Penduricalho?
                               — Não é óbvio? Penduricalho aponta para o colar cheio de
                     chaves penduradas e continua.
                               — Estou com pressa. Diz com ansiedade, arrancando uma chave
                     do fio que a prende no teto. Entrega-a a Samadhi. Ele hesita em aceitar
                     e pergunta:
                               — Onde fica a Montanha Iluminada?
                               Penduricalho se assusta:
                               — Ah! Cumpra sua primeira tarefa, que mostrarei o caminho.
                     Pegue esta chave e leve-a para a Ala dos Desaparecidos.
                               — Como é que eu vou achar isso? Pergunta Samadhi.
                               — Desaparecendo ué!




         Camila Appel




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                          :5:
                          A PRIMEIRA TAREFA
                          AFERAT ARIEMIRP A
                                         :5:




                                        Penduricalho mostra a saída: um cipó preso ao
                                  teto. Samadhi não faz idéia de como se sobe num cipó.
                                  Lembra de ter visto, na fazenda do avô, homens subindo
                                  nos coqueirais para catar coco e tenta fazer o mesmo.
                                        — Onde foi que me meti? Pensa em voz alta.
                                        Com esforço, e muita ralação de pés, chega ao
                                  topo. Recompõe-se da subida segurando a chave. Vê
                                  mulheres, homens, crianças e bichos indo de um lado
                                  ao outro. Não olham para ele em nenhum momento.
                                  São de cores bem vivas, dessas de desenho animado. São
                                  os mayanos. Levanta-se e vê uma mulher que leva um
                                  pote de aço contendo fogo. A chama está muito alta, em
                                  qualquer outra circunstância queimaria o rosto da mul-
                                  her, mas ela tem expressão de quem está sendo acari-
                                  ciada e não queimada. Samadhi tenta uma aproximação
                                  para perguntar onde é a ala dos desaparecidos.
                                        — Por favor, moça...
                                        Sem dar resposta, ela vai embora por uma ruela de
                                  terra batida. Samadhi repara que essas ruazinhas têm
                                  placas. E que numa delas está escrito: DESAPARECER,
                                  POR AQUI.
                                        — Ok, lá vamos nós.
                                        Antes do primeiro passo, olha de novo para a
                                  placa e faz cara de desgosto ao ver que ela gira conforme
                                  o vento. Inútil direção. Bate na placa, o alumínio que a

                                                                                       D oAv e s s o
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                     compõe dobra em ondas sonoras, que ressoam por Maya. Passa um
                     redemoinho girando qualquer coisa leve ao redor. Samadhi roda no ar
                     e cai de bruços.
                               — Ué, choveu? Está molhado. Surpreende-se ao tocar a terra.
                     Ele continua a chutar qualquer coisa no chão. Maya não parece fa-
                     miliar, não o aceita como parte integrante e funcional. Senta num
                     tronco de árvore caído e se distrai analisando as pedras geométricas.
                     Musgo verde se espalha entre os dedos conforme se apóia. Adoraria
                     colecionar as pedras se tivesse onde guardá-las. Junta a triangular com
                     a hexagonal, coloca o círculo em cima e vai montando um cenário.
                     Formigas sobem nas pedras como atores se apoderando do palco.


                               No meio do devaneio de Samadhi, Chakra reaparece,
                     ainda bem.


                          — Samadhi Aipim, o que aconteceu?
                          — Estou tentando encontrar a Ala dos Desaparecidos, é a
                     primeira tarefa que Penduricalho me deu.
                          — Como? Ele deve ter confiado muito na sua capacidade
                     para mandar você para lá. É muito difícil alguém voltar.
                          — Por quê?
                          — Porque lá é uma das terras do Estagna.
                          — Quem?
                          — O maior assassino do DoAvesso!
                          — Assassino?
                          — Sim, ele causa a morte antecipada nas pessoas.
                          — Minha mãe acabou de morrer.
                          — Foi acidente?
                          — Foi de repente, doença estranha, sem motivo.
                          — Ah... Foi o Estagna, com certeza.
                          — Então preciso encontrar esse desgraçado!
                          — Você não vai conseguir... Ah, esquece, precisa dormir,


         Camila Appel




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                          isso sim, vamos, meu pai deixou ficar lá em casa. Pelo menos ar-
                          ranjou um emprego.
                                 — Preciso voltar para a minha casa, meu pai e minha irmã
                          devem estar preocupados.
                                 — Fique tranquilo porque o tempo no DoAvesso é dife-
                          rente. Eles nem devem ter notado sua ausência.
                                 Olha Chakra com ar de decisão tomada e aceita o convite.
                          Os dois caminham pelas entranhas de Maya, esquisitice só. De-
                          ixam os porquês de lado.
                                 O Pintor voa de um lado ao outro, pintando o céu em noite
                          e lua. Dá uma mordida na lua e diz:
                                 — Pronto, minguante! E olha para baixo.
                                 — Vai dormir, menino dos olhos desajeitados!
                                 A árvore gigante do Alquimista solta folhas no ar. O
                          velhinho dá risada e canta:
                                 — É a hora do sono que acalma, sinta-o vindo da alma, um
                          bocejo anuncia a cantada da despedida. Já estou de saída, um
                          bocejo anuncia a cantada da despedida. Vai tum do sono pro-
                          fun... O Alquimista pára a cantiga no meio:
                                 — Como é mesmo a cantiga da despedida? Bocejo e
                          saída? Ihh, olhem, uma folha da gargalhada acordada, agora
                          não, desnaturada. Foi-se apressada, para o lado de lá. Uau.
                          Tudo bem, não dá para todo mundo ser igual. O que é mesmo
                          que eu preciso enviar agora? Está na hora? Gargalhada ou
                          sono? Ah, gargalhada, claro.
                                 O Alquimista manda folhas de gargalhada e de sono ao
                          mesmo tempo. No DoAvesso, uns riem feito doidos e outros
                          caem no sono profundo. Entra decidido o papagaio cinza do
                          Alquimista, pronto para salvar o dia.
                                 — É sono agora, não gargalhada. Sono, sono, sono. Fica
                          bravo o papagaio, já cansado de ver a mesma cena.
                                 — Bravo não precisa ficar, sono será! Diz o Alquimista.


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                                                                                          a




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                           Samadhi boceja, afinal, é um DoAvesso, e não consegue es-
                     capar à poção. Um bocão aberto, daqueles bem gostosos, muito
                     ar para dentro, barulho expira todo o ar para fora. Olhos entrea-
                     bertos, sua cabeça tomba e sente uma imensa vontade de dormir
                     ali mesmo, naquele exato momento. Dorme na grama.
                           Os olhos negros de Chakra encaram o menino roncando.
                     Como ela queria sentir tudo, saber de tudo. Isso ela nunca sa-
                     berá, nunca saberá como é sentir sono e, de certa forma, inveja o
                     menino desajeitado que a intriga tanto. Deixa Samadhi onde ele
                     está e, aos saltos, vai embora, felina.


                               Vejo Samadhi em sono, angústia e pesadelo. Do outro
                     lado da colina, Chakra corre, seus longos cabelos negros voam.
                     O Carteiro, na frente da lua, cumprimenta o Pintor com um
                     aceno e um poema. O Alquimista escuta Pink Floyd enquanto
                     seu papagaio cinza faz guitarra com o bico. Folhas expres-
                     sivas ficam todas calmas. : } Chakra reserva o momento para
                     escutar o barulho noturno da floresta, uma música singular.
                     Pássaros, riachos, cigarras, a imensidão da natureza. Maya
                     amansa, mas os sintomas da Profecia intensificam-se.




         Camila Appel




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                          :6:
                          O PODER DA ATRAÇÃO
                          OÃÇARTA AD REDOP O
                                          :6:




                                       AHHH, BUM!
                                       Samadhi acorda no momento em que o Pintor
                                 acaba de desenhar o nascer-do-sol. Chakra não está
                                 mais ao seu lado. Levanta-se do chão com dificuldade,
                                 como se um peso enorme estivesse grudado em sua
                                 bunda. Olha para trás e realmente vê um peso enorme
                                 grudado na bunda. Um ímã gigante, com dois olhos e
                                 uma boca.
                                       — Hehe, desculpas. Penduricalho me pediu para
                                 te chamar. E sabes como é, tudo que eu penso atraio
                                 direto e logo que pensei em ti, BUM. Agora me tira logo
                                 daqui, não vês que não tenho braço? Fala envergonhado
                                 o Menino Ímã.
                                       Samadhi se contorce para desgrudar o Menino Ímã,
                                 que agradece.
                                       — Ah, obrigado, que alívio. Pois é Samadhi
                                 Aipim... Ah, então é verdade, tens dois lados, vês de
                                 dois jeitos diferentes. Adorei, onde arranjaste? Per-
                                 gunta o Ímã fitando os olhos de Samadhi.
                                       Menino Ímã é o que parece ser. Um ímã grande,
                                 com seus um metro e vinte de altura e outros setenta
                                 centímetros de largura. Como tudo em Maya é esquisi-
                                 to, foi aceito pela comunidade, suas especificidades en-
                                 caradas como qualidades. Logo foi identificado como


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                                                                                        a




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         Camila Appel




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                          útil, tendo a capacidade de se locomover com força magnética. Tudo o
                          que ele pensa, atrai imediatamente. Pensou, grudou. Ele é o poder da
                          atração de Maya, de grande importância para o DoAvesso. Só que daí
                          vem também o problema que carrega. Muitas vezes não consegue con-
                          trolar seus pensamentos e antes que possa revertê-los, já se vê preso a
                          algo inesperado. Nunca vai se esquecer do dia em que pensou intensa-
                          mente naquela menina linda da sala de aula. Ela estava toda arrumada
                          no meio de uma ceia especial de família, quando foi puxada por uma
                          força incrível e grudou no Menino Ímã, do outro lado da comunidade.
                          E para explicar? Outro dia, ficou com raiva do Alquimista, que se es-
                          queceu da encomenda urgente feita por ele. A raiva trouxe o Alquimis-
                          ta e uma faca, que se não fosse pelo poder transformador desse senhor,
                          teria entrado de bico na garganta. Fez da faca, flor, o Alquimista. Ele
                          não lembrava da faca e da raiva e achou a oferenda um presente mara-
                          vilhoso do Menino Ímã. Dessa vez foi a sorte que o salvou.


                                Por isso, sente-se incapaz de esconder sentimentos e
                          prefere não tê-los, porque atrai tudo o que pensa e sente com
                          intensidade. Encontrou o caminho da neutralidade, a opção
                          foi esconder-se de si mesmo. No fundo, enxerga seu poder
                          como um dom, na esperança de que um dia vai aprender a
                          se controlar e mostrar a todos de Maya que seu desequilíbrio
                          guarda um grande encanto.


                                — Você atrai qualquer coisa que pensar? Pergunta Samadhi.
                                — Sim. Menino Ímã explica que os DoAvesso podem usar esse
                          poder, o da atração, para tudo que pensarem e sentirem com intensi-
                          dade, mas nem todos sabem disso.
                                — Eu sou um DoAvesso... então posso usar esse poder também?
                                — Aqui em Maya não, porque nós fornecemos os poderes que
                          serão usados do lá de lá, mas lembre-se disso quando voltar.
                                — Ah! Suspira Samadhi, questionando-se se um dia voltará.


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                                                                                                a




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"Do avesso" - livro de fantasia (publicado em 2007 pela editora Oficio das Palavras))
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  • 1. 1 DoAvesso Camila Appel D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 1 6/11/2007 21:43:45
  • 2. 2 ossevAoD Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 2 6/11/2007 21:43:51
  • 3. 3 DoAvesso D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 3 6/11/2007 21:43:52
  • 4. 4 Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 4 6/11/2007 21:43:52
  • 5. 5 CARTA DE BOAS-VINDAS Isto que se lê é meu próprio ser. Eu, preso nas entrelinhas. O olhar no canto da página, o dedo indicador no título, o co- ração nos espaços duplos, porque a batida dele afasta uma linha da outra. Os pontos finais poderiam ser pintas, mas não, já que não tenho pele explícita. Os ponto e vírgulas são idéias não ditas, se juntarem todos, provável que formem um código Morse que dá acesso a uma parte de mim já morta. Os pará- grafos são meu sangue, e as letras, os átomos. As moléculas são frases, nada mais do que simples química. Os elementos expostos numa tentativa de combustão. O livro pode se fundir em si mesmo, a experiência sair do avesso. O que me estimula é o desafio. Várias são as razões. Em primeiro lugar, me incomodo com esses seres estranhos, os ma- yanos, que fazem o mundo funcionar, mas gritam no escuro. Vim, assim, oferecer um espaço a este grito, minha própria alma encadernada. Apesar de ter nascido em Maya e ser con- siderado um mayano competente, tenho admiração pelos hu- manos que vivem no DoAvesso. Em segundo lugar, não pude me manter apático à ela, à Profecia, que fala sobre o extermínio do mundo DoAvesso, o mundo que você enxerga quando acorda, que transpira sem perceber. A Profecia é dura, é iminente, estado de calamidade. Ela avisa, procura uma transformação na mente das pessoas e, como não consegue ser compreendida, ameaça. Promete der- D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 5 6/11/2007 21:43:52
  • 6. 6 reter tudo, o solo, o vento, os ossos. Assustadora, não haverá onde se esconder. A Profecia Maya diz que a humanidade chegará a um ponto de inflexão em que ou evolui ou se auto- destrói. A natureza mostrará seu descontentamento, o degelo polar provocará enchentes, ondas gigantes matarão milhares de pessoas, furacões varrerão cidades. Começará a era da es- tagnação. Este é um momento crucial. Chegará o momento de os homens decidirem seu destino. Morrem ou evoluem. A morte da Mensageira indica o início da Profecia. A Construtora de Maya, aquela que vive no Oráculo, me avisou que a Mensageira acaba de morrer e, desesperada, me pediu ajuda. Ao seu apelo é impossível a apatia e a inércia. Resolvi agir. O filho da Mensageira deverá substituí-la para cumprir a missão, antes determinada para ela: mudar o rumo das coi- sas. Sei que não será fácil e me disponho a ajudar. É com ele que inicio. Encontro você nas entrelinhas. Boa viagem em mim, Predicado. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 6 6/11/2007 21:43:52
  • 7. 7 Forças poderão se juntar para impedir que o processo continue caso ele seja iniciado. Novas idéias podem salvar, fonte criadora deve ser encontrada. O mensageiro que alterna duas cores há de chegar. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 7 6/11/2007 21:43:52
  • 8. 8 : PRIMEIRA : PARTE Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 8 6/11/2007 21:43:52
  • 9. 9 : PRIMEIRA : PARTE D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 9 6/11/2007 21:43:52
  • 10. 10 :1: ANDIROBA ABORIDNA :1: É dia de Natal. Samadhi Aipim está acordado an- tes da hora. Sentado na cama, fone de ouvido plantado nas orelhas, monta um jogo de quebra-cabeças. Seu jogo preferido, já que não sabe lidar com amigos. Junta as peças, que encaixam perfeitas. Mente para si que é a primeira vez que joga e se surpreende com o rápido re- sultado das combinações. Irrita-se ao perceber que falta uma peça. A do centro, a mais importante, a que faz uma metade da imagem encaixar-se na outra. Samadhi procura debaixo da cama, do tapete, levanta o traves- seiro, os lençóis, e nada da peça que falta. Bagunça o quarto, essa peça sumindo é vista como ofensa pessoal ao menino. Bate no colchão de raiva, na mesma hora em que toca o despertador interrompendo a busca. Anima- se ao ver que, até que enfim, é a hora certa de acordar. Coloca o jogo no armário e deita na cama, aguar- dando o banquete do café da manhã com pequenos presentes natalinos estendidos na mesa, abraçados em chocolate, doce de leite e pão de mel. Espera um pouco mais, os pais devem vir acordá-lo. Ansiedade gostosa, cancelando o mal estar anterior. Tenta fingir que dorme, entra debaixo da coberta, muda o lugar dos pés com o da cabeça. Não vê sinal dos pais e sente-se abafado pelos lençóis. Tenta um novo esconderijo. Vai para debaixo da Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 10 6/11/2007 21:43:52
  • 11. 11 cama e manda o boneco grande no seu lugar, arquitetando um susto na mãe quando ela chegar, carinhosa, oferecendo presentes feitos só para ele. Nenhum sinal dos pais. Pensa que dessa vez devem estar pre- parando um surpresa grande, do tamanho da demora. Trim metálico e toca a campanhia. — Meu presente! Grita Samadhi ao sair debaixo da cama com euforia. A porta abre rangendo dor. O pai de Samadhi entra com ex- pressão de rancor. Senta na cama do filho com ombros baixos e lágri- mas sem palavras. Samadhi passa pelo pai, que não consegue olhá-lo nos olhos, e chega à sala. Um homem mais velho, que nada se parece com Papai Noel, está ao telefone. — Hum, hum, pode trazer. Diz, sem perceber que o menino escuta. Uma esperança para compensar toda a angústia da espera. Atraí- do pelo ruído externo, Samadhi tateia com a ponta dos pés em direção à janela. Acha que pode passar despercebido. Focinho apertado no vi- dro, observa o movimento lá fora. Que trenó estranho, pensa Samadhi, que imaginava um trenó típico de Papai Noel, com gazelas voadoras amarradas à carruagem, amontoado de presentes, anões simpáticos dançando sem ritmo, seguidos do ho-ho-ho suado do Papai Noel, que morre de calor com aquele uniforme norte-americano em pleno verão de um país tropical. A imaginação de Samadhi é assim mesmo, doida. Ele vive no mundo da fantasia, adora contos e fábulas. Muitas vezes, já teve dificul- dade de separar o real do imaginário e se surpreende como as pessoas conseguem fazê-lo com tanta naturalidade. Acha que Papai Noel é um velhinho muito simpático, tem admiração pelo personagem. Já até de- senhou um novo visual para o Papai-Noel-verão, havaianas, macacão sem mangas, todo florido, barba branca de trancinhas para liberar a garganta, rabo de cavalo no alto da cabeça. Não é desta vez que a sugestão chegará ao suposto mensageiro da felicidade. O verão D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 11 6/11/2007 21:43:52
  • 12. 12 parece ter tirado férias neste dia de frio fora de estação, e em vez do trenó, vem um carro branco, luz vermelha piscando, sem som. Ambulância sem emergência. Homens de branco saem do trenó. Na cena silenciosa, só respirares. Vizinhos se aproximam à procura do rosto na janela. Samadhi encontra os olhos de alguns, mas não os reconhece. — Por que me olham desse jeito? O que foi que eu fiz? Vê ex- pressões de piedade ao se afastar da janela. Andiroba, apesar de ser considerada uma cidade grande e ur- bana, tem seus jeitos de fazer o boca-a-boca funcionar. E antes de Sa- madhi saber da notícia, ela já voou pelos cantos, walk-talk, celular, e-mail, mensagem de texto e website. Ele, logo ele, é o último a saber. O pai chega, abraça Samadhi e chora. Sente amor incondicional pelo filho, quase extravagante, como uma justificativa da falta de amor a si mesmo. Não esperava que algo assim, tão fora do seu controle, acontecesse. De um mau gosto de Deus. Considera vulgar uma tacada tão baixa, tão covarde e certeira, de nocautear qualquer um e pior ainda por afetar o menino, seu tesouro, que até então não sabia o que é sofrer. Olha para Samadhi com lágrimas nos olhos. O filho não costuma ver muita água saindo do pai, no máximo xixi ou suor, lágrimas nos olhos não, que se lembre. O menino solta um ihhhhh ao torcer a cabeça para o lado, já vendo que coisa boa não é. A mãe de Samadhi desce as escadas vestida para presente, pre- sente para a natureza. Samadhi vira o rosto de desgosto. O pai vem mansinho, medindo as palavras que saem finas como violino. — Dê adeus para sua mãe, filhinho. Ela foi chamada para o outro mundo, foi ver Deus. Diz o pai, ao acariciar com as mãos frágeis os cabelos pretos do menino. Samadhi cerra os olhos, prende a respiração e fecha os punhos. A boca treme de mansinho, contida, até explodir em tosse que espalha lágrimas a cada baforada. A tosse escondendo as lágrimas, ou as lágrimas escondendo a tosse. Como já é esperado da maioria dos Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 12 6/11/2007 21:43:53
  • 13. 13 seres humanos que presenciam a morte da mãe, ele chora. — Que outro mundo, pai? Morte é morte e pronto. Não tem nada de outro mundo. Deus...Ê, pai...viajou? Samadhi senta num canto, pernas cruzadas, costas no pé da ca- deira de madeira dos tempos coloniais que há décadas habita aquela casa, pela qual já passaram tantas bundas de tantos tipos e por tantos motivos. A maioria suada pelo calor tropical. Ele não olha mais na cara do pai, que entende o momento e sai. Sente a raiva, a indignação natu- ral de momentos como esses. Tristeza irrequieta controla sua imagi- nação. Desfoca o olhar de tanta dor e começa a alucinar, como fazem pacientes drogados em anestesia. Vê a cadeira olhar para ele e dizer: — Vai ficar tudo bem... Vê escorrer uma lágrima nas curvas do braço dela. Assusta-se com a própria imaginação e pensa que cadeira falando não é algo que se vê todos os dias e que morte na casa não é desculpa suficiente para objetos tomarem vida. Será? O apelo da ficção para tirar o peso da verdade. Olha para a cadeira de novo e baixinho pergunta cutucando a madeira: — Oi, você está me escutando? Se a cadeira falar, claramente alucinaram os dois, Samadhi Aipim e você por acreditar. A cadeira não responde e Samadhi olha para os lados com ver- gonha da tentativa. Diz para si mesmo: — Calma Samadhi, calma. É a dor que alucina. Calma... Enquanto pessoas entram e saem para cuidar dos preparativos, haja coisa para se resolver numa hora dessas, Samadhi relembra os últimos dias da mãe. Os médicos chamavam a doença de grave, gravíssima, se bem que nunca explicaram o que era. É bem provável que não soubessem mesmo. Morte não estava na previsão, no máximo mais uns dias de D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 13 6/11/2007 21:43:53
  • 14. 14 cama. Há outras pessoas em estado bem pior, com testamento as- sinado, já na caixa de saída do correio, carimbado e timbrado. Um tio-avô até caixão já encomendou para um senhor lá do nordeste que faz caixões especiais, personalizados. A mãe de Samadhi não tinha testamento ou caixão. Com a linha da vida comprida que só ela, não era esperada sua partida. Samadhi sente raiva e confusão. Como um hulk-mirim, e não verde, sai correndo atrás do trenó branco sem som. Os vizinhos demonstram sofrimento, mas estão felizes em não serem eles os prejudicados. Samadhi pára de correr e caminha pelas ruas frias do inverno fora de estação. Anda por horas, cabeça baixa, braços moles, estômago desis- tido da fome. Deita na calçada e, sem perceber, coloca o dedo na boca. É aí que eu percebo a oportunidade e falo: Samadhi, é hora, você sabe para onde ir. Ele escuta minha voz, levanta a cabeça mas não me vê e ninguém está à sua volta. — Estranho...hora de quê? Que coisa mais batida. Sei para onde ir...Deita-se de novo na calçada. Fica com frio e passa as mãos no braço, aquecendo-o. É aí que sente algo novo e molhado. Sua pele está grudenda. Torce o cotovelo para ver o que é e a encontra pela primeira vez. A ferida. Olha para aquele machucado, aquele buraco no braço e cutuca um pouquinho. Isso incomoda a ferida e ela sangra. A parte exposta é grande, em carne viva. Samadhi sente-se pelado e fraco. Respira fundo, não há o que fazer, a ferida está aí e ele não sente a menor vontade de cuidar dela, passar mertiolate ou ir ao pronto-socorro, quer deixá-la como está, completamente exposta. Samadhi pára de cutucar e olha para cima, observando o céu. A árvore balança forte cruzando a imagem azul que ele vê, balança tanto que parece viva. Sente a calçada esquentar embaixo de suas costas e ao se virar, dá de cara com formiguinhas. Elas não dizem Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 14 6/11/2007 21:43:53
  • 15. 15 de onde vêm nem para onde vão. Samadhi imagina como devem viver as formigas, se sofrem quando a mãe morre pisoteada, ou amputada, ou se não sentem dor alguma. Bloqueia a passagem delas com o dedo indicador e imagina o que será que faz a vida dessas formigas funcionar, o modo como carregam a comida, a fila indiana, a construção de suas casas, enfim, vida e morte. É nesse momento que o pai o encontra. — Filho, acorda! O que está fazendo deitado na calçada? Procurei você por toda parte! Apóia a cabeça de Samadhi nas mãos e continua. — Eu também estou muito triste. Vou sentir falta da sua mãe, da mulher da minha vida. Queria poder dizer alguma coisa impor- tante, ou bonita, mas não faço idéia de nada. Sei que vai passar filho, vai passar. Estou aqui para tudo que precisar, viu? Vamos para casa. Samadhi dá às mãos ao pai e caminham juntos. Em casa, a irmã chora num canto. Pernas dobradas, envolvidas por braços que lem- bram galhos de final de outono. Com a cabeça enfiada nas mãos, res- munga bem fininho, um leve suspiro. — Ah, onde se meteu? Todo mundo procurando você. Até neste momento querendo ser o centro das atenções? Vê se pára quieto. Missori Aipim é menina linda. Aparenta uns quinze anos e os têm, dois a mais que o irmão. É daquelas que de tão bela parece burra. Já acostumada com os elogios, quer sempre mais. A eterna insatisfeita. Tem a atenção de todos e não se conforma em não ter a do próprio pai. Quando se arruma, pergunta ao pai se está bonita, que fisgado pelo jornal, prefere chamar Samadhi para compartilhar e discutir. Segun- do ela, injusto. Esse irmão esquisito não era para nascer ali. Acredita que algum problema aconteceu no Céu para ela ter um irmão desses. Quando era pequena, achava que houve um erro de percurso, a ce- gonha, mordida por uma pomba, tinha deixado cair o bebê na casa errada. Justo na dela. Ele veio amaldiçoado pela raiva das pombas más, impuras e doentes. Quem sabe até não foi por elas criado no esgoto do caminho, com os restos deixados pelos humanos. A menina ainda acha que ele não morreu por sorte. Sobreviveu para atrapalhar sua vida. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 15 6/11/2007 21:43:53
  • 16. 16 — Bem porcamente, aliás. Missori fita Samadhi com desprezo. A tia entra chamando todos para o enterro, acostumada a liderar os encontros de família. Fumaça preta segue os passos pesados des- sa figura pálida. Tum, tum, tum. Sempre que a vê, Samadhi imagina uma hipopótama rosa, de olhos grandes, dançando música clássica com outras da mesma espécie, de saia rodada de tule do filme “Fanta- sia”. A tia, chamada de Hipopótama pela família, apelido considerado carinhoso, era o exato oposto da cunhada, a mãe de Samadhi Aipim e Missori. Elas se identificavam pelo oposto. O que uma gostava a outra não gostava, o que uma queria, a outra não queria. Assim conviviam, a identificação da negação. E agora, sem o não, o que seria dela? Ner- vosa pelo vazio, pela ida do inimigo mais adorado, vê-se perdida e dis- posta a arrumar outro significado na vida: Samadhi, que agora ocupará o lugar da mãe como seu oposto. O caminho até o cemitério foi sem registro para Samadhi Aipim. Imaginou formas estranhas surgindo do desenho das nuvens, uma ca- deira, uma mesa, um lápis, teclado de computador, mouse, monitor, afinal, até as nuvens estão se adaptando ao mundo high-tech. Distrai- se ao pensar em como as coisas são instituídas na natureza. A nuvem é feita de quê? O sol nasce como, toca despertador e ele aparece? Pensa Samadhi sentado no banco de trás do carro da tia que não pára de falar sobre alguma coisa que ele não presta atenção. Este é o primeiro dia que a mãe não vê, o primeiro pôr-do-sol que ela não admira, o primeiro vento que ela não respira. Tudo que ele vê e sente, a mãe, pela primeira vez na sua vida, não vê e não sente. O olhar de Samadhi perde-se no natural, no dia-a-dia que passa des- percebido por ocorrer todos os dias, inclusive até no dia em que a mãe não está. O que faz tudo isso acontecer? Pensa Samadhi justo no momen- to em que a tia estaciona o carro e diz que estão atrasados. A família se reúne na bancada principal. O corpo na frente, sem vida, coberto por renda branca. O ventilador ligado está voltado para Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 16 6/11/2007 21:43:53
  • 17. 17 o corpo. As pessoas passam, uma a uma pelo caixão. Como detalhe romântico na cena, sentem vento no rosto e nos cabelos. O véu sobre Viviane também se agita, mas ela não sente. Sentir o toque do ar é privilégio dos vivos. Estão numa capela sem cruz e ninguém se dá conta da falta do artefato. Flores e estátuas decoram o ambiente, algumas fotos da famí- lia e cochichos pelos cantos. — Dançava como ninguém. O dono da padaria do bairro. — Cantava divinamente. O cabeleireiro, lembrando os dias de emoção no salão. — O marido era muito ciumento. Uma amiga de infância. — Já sabem o que aconteceu? Alguém no banco de trás. — Ninguém sabe, ninguém viu. Quase em coro evangélico, baixinho para que não percebam que um grupo comenta. Mudança brusca na narrativa, a porta se abre, vento corta a sala, bagunça cortinas. Sob os batentes, passa um homem montando um alazão sem freios nem ferraduras. Um grupo os acompanha e fazem si- nal de reverência, de respeito cigano. Não cruzam olhar com os que ali estão. O líder, com seus longos e sujos cabelos pretos, é o único a fazer contato, encara Samadhi de modo penetrante. O momento descon- gela ao seu sinal, ele dá meia volta com o cavalo e lidera o grupo rumo ao caminho sem dono. — O que eles estão fazendo aqui? Que desrespeito! Vieram amaldiçoar a morta e sua família? Comenta a fofoqueira da cidade, angustiada com uma cena que não compreende. Para ela, ciganos são seres do mal, exploradores que arrancam a sorte das linhas da mão de mulheres curiosas com seu destino, elaboram macumbas pagãs para atrair homens, dinheiro e fama. A tia também se surpreende, porque estava com a cabeça em outro lugar, lá na livraria que era gerenciada pela irmã e que agora ela terá a sorte de comandar. Os livros já devem ter começado a fugir das prateleiras. Tia Hipopótama sempre achou a cunhada muito estranha D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 17 6/11/2007 21:43:53
  • 18. 18 e com ela até combina um grupo lendário como esse. Surpreendeu-se porque achou que com essa morte, as coisas deveriam ficar mais nor- mais, se Samadhi for colocado nos eixos. Tia Hipo fica sem reação e aproveitando o vazio deixado, toma a liderança. — Vamos para casa já! Isso aqui está muito do esquisito. Falei para meu irmão não se casar com aquela bunda-mole, e ainda dar à luz dois bunda-molinhos. Missori até que se saiu melhor. Mas você, Samadhi, onde já se viu! Um olho de cada cor! Uma aberração. Já para casa! É verdade, Samadhi tem um olho castanho e o outro verde. Sob a luz, dá para perceber a diferença das cores. Na escola, é chamado de Frankenstein pelo colega mais espevitado, que conta a todos sua versão incrível da fábula, dizendo que o médico maluco enfiou o dedo, sem querer, num dos olhos do bebê. Por culpa, colocou outro olho seu no lugar, só que era verde, e deu no que deu. Há outros colegas de maior criatividade que espalham por aí que Samadhi é bruxo e sua inibição atual esconde uma surpresa terrível para toda a humanidade. Outro alega ser Samadhi uma mutação e a prova de que os X-men são reais. O fato é que Samadhi morre de vergonha e sente alívio por estar em férias escolares. Mesmo em casa, não encontra refúgio para essa perseguição baseada na incompreensão e na falta de sensibilidade das crianças que só conseguem aceitação social massacrando outras. Quando fica ner- voso, pisca um olho de cada vez, compulsivo, incentivando ainda mais os comentários. O caminho de volta para casa também é sem registro. Sama- dhi sente o carro deslizando pela paisagem urbana, como se estivesse voando. Quando chegam, cada um entra em seu respectivo quarto e faz da dor a própria solidão, com medo de compartilhá-la e assim di- minuir esse sentimento, que no momento parece essencial. Samadhi, deitado de bruços no chão, não consegue dormir. Pas- sam imagens rápidas por sua mente, incomodando o sono, o olhar do cigano, a mãe toda coberta no caixão, a tia que o chama de bunda- Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 18 6/11/2007 21:43:53
  • 19. 19 molinho. Imagens ruins se intercalam com outras boas, o sorriso da mãe, a textura de seus cabelos, a mão suave que acaricia e ao mesmo tempo aperta, brava. Sente angústia e chora enfiado no travesseiro. Seu coração prova que tem vida própria, aperta sem o dono mandar e não pára quando ele pede para soltar. Uma voz passa entre o vento, chamando Samadhi. Por acaso é a minha voz, com um tom mais rouco do que ela é, mas ele não sabe. Samadhi Aipim, é hora, você sabe para onde ir. Samadhi levanta a cabeça, enxuga as lágrimas e olha em volta. Ninguém por perto. Segura a ferida do braço com força, pois ela está pulsando o suficiente para corroer o braço inteiro e fazê-lo cair no chão. Ele se deixa levar, repete a voz do vento, segue a dança dos ares pelos cantos e quartos, esbarra na querida luneta e não a coloca de volta no lugar, sinal de quase insanidade levando-se em consideração a paixão do menino por estrelas. Desce correndo a escada, passa pela cozinha, as panelas penduradas tocando-se umas nas outras num leve tim- brado. Na sala, derruba um abajur, pisa num caco de vidro, não liga, continua andando, correndo, rodopiando, perdido na própria casa. É puxado para um lado, para outro, para frente, para trás, até parar, de pé no meio da sala. Um ouvido escuta o ronco do pai, alto, que mais se parece com choro. Como é que ele não acorda com o próprio ronco? Pensa Samadhi ao se inclinar em direção à escada. O outro ouvido escuta a chuva e os trovões de tempestade. Por um momento, tem dúvidas se esses trovões são reais ou não. Vai até a janela para atestar a loucura, ou o sonho, passando pela cadeira chorona de hoje cedo, que não mais aparenta vida. Abre a cortina que confirma, é real. Pela abertura, entra um relâmpago à procura de um esconderijo. Ilumina a sala levando os olhos do menino a um corredor branco que tem como decoração apenas um tapete pendurado na vertical. Não se lembra de ter visto aquela coisa ali, muito menos nessa posição inco- mum. Vaga memória, ele criança pequena, quase bebê, brincando nas D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 19 6/11/2007 21:43:53
  • 20. 20 franjinhas do tapete enquanto espera pela mãe. Samadhi vai até o tapete e, com os dedos, balança a franja, hoje bem mais velha, e vai apertando o tecido fazendo rugas que demoram para se desfazer depois de soltas. Quando cai, de trás do tapete, uma carta. O menino passa as mãos no envelope, reconhecendo a calig- rafia da mãe. Uma lágrima mancha seu nome escrito na frente, ela é endereçada a ele. Senta-se e abre a carta devagar, não sabe se sente angústia ou felicidade. Começa a ler, ouvindo a voz da mãe ditando as palavras, que tocam seu corpo conforme são lidas. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 20 6/11/2007 21:43:53
  • 21. 21 Filho, Se você encontrou esta carta é porque foi chamado para vir até aqui. E isso significa que precisa me substituir, e que eu não estou mais por perto. Escrevo sabendo da minha partida. Não fique bravo comigo, meu amor por você transcende mundos e levo esse sentimento junto. Há muito que você ainda precisa saber. Sua passagem pelo Portal é o início dado pelo meu fim. Ele está atrás deste tapete. É um Portal para Maya, minha terra. Deixei meu mundo para poder me casar com seu pai, um DoAvesso. Peço que passe pelo Portal e vá à Maya. Agora, você é mais necessário lá do aqui. Maya é tudo para mim, entranhas, origem e, assim, também é para você. Deixe que a curiosidade o mo- tive, mas não se deixe cegar. Maya é um mundo que encanta e oferece perigos. Fique atento para aqueles que o procurarem, é possível que já esperem por você, pois preciso ser substituída com urgência. Filho, por favor, peço que tenha discernimento. Sua chegada não é bem vinda para aquele que quis a minha partida. Temo por sua vida e me dói ter que pedir para seguir. Não há alternativa. Dentro deste envelope tem um amuleto. É uma corrente que você vai reconhecer, ela estava no meu pescoço desde a primeira vez que mamou em meus seios, brincando com ela e me fazendo rir. Use-a, por favor, com ela não terão coragem de expulsá-lo de Maya, apesar de você ter nascido aqui, no DoAvesso. Para sua tarefa terá que provar que merece meu posto, só espero que encontre as pessoas certas. É isso, Samadhi Aipim, meu filho. Eu amo você e a morte não apaga esse sen- timento, fortalece-o. Um beijo, um abraço, um qualquer coisa desesperado. Um carinho meu, Sua mãe D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 21 6/11/2007 21:43:53
  • 22. 22 Samadhi dobra a carta e coloca-a no envelope, confuso. Nunca ouviu a mãe mencionar que nasceu em outro mundo, muito menos que esse mundo se chama Maya. Será que sou mesmo um E.T? Pensa Samadhi. A motivação de buscar suas próprias origens traz certa força, somada à ansiedade de tornar-se, de uma hora para outra, tão impor- tante. Tira do envelope a corrente que leva uma ampola pendurada. Dentro da ampola, uma minúscula rosa vermelha. Reconhece o colar que a mãe sempre usava. Coloca-o em seu pescoço, com orgulho. Le- vanta-se e contempla o tapete. Não quer ver o que há atrás dele. Afas- ta-se. As palavras da mãe trazem medo ao menino. Escuta uma porta abrir e o pigarro da Tia Hipo a caminho do banheiro, o que é suficiente para fazê-lo voltar ao tapete. O medo chega como um sentimento que alivia, um remédio para a dor, a ponto de sufocar a angústia. Cabeça erguida, afasta a lateral do tapete, procurando o Portal mencionado. Assusta-se ao encontrar um espelho, mas diverte-se com a es- tranheza dele. O reflexo, em vez de mostrá-lo de frente, mostra suas costas. Vê sua bunda e não o umbigo; os cabelos despenteados, e não o rosto assustado. Samadhi se mexe para brincar com seu avesso. Pensa que suas costas são maiores do que imaginava e sente a imagem deva- gar, dedo a dedo, vai tocando piano no próprio reflexo. A superfície do espelho aos poucos se derrete puxando mão e braço e traz o corpo para dentro. Despenca. Vai,Samadhi. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 22 6/11/2007 21:43:53
  • 23. 23 :2: A PASSAGEM MEGASSAP A :2: Estatelado no chão, de bruços, com a cabeça en- fiada na grama, ele cheira a terra. Passa a mão pelo cor- po para tirar a poeira e sente de novo a ferida. Ela agora está empanada pela poeira da passagem. Samadhi gira o pescoço e, com um gemido de dor, abre os olhos. O sol é forte e o faz piscar. Ele senta meio torto, onde está? Não sabe ainda. O que vê parece um jardim com grama, terra, árvores com frutas e cores, muitas delas. Cores tão vivas que poderia jurar estar em um desenho animado. Samadhi anda um pouco, procurando qualquer coisa. Incrível, a terra se mexe quando ele a pisa. Será que ela está viva? Pensa Samadhi, ao forçar a ponta do pé para dentro da terra. Ele vai até uma das árvores e acha-as muito baixinhas para serem mesmo árvores. Pega um fruto azul turquesa e morde com força. Sente um gosto dife- rente, que no começo é doce e depois vai amargando até ficar salgado e intragável. Cospe o resto na terra de onde, para seu espanto, brotam outras cinco árvores, iguaizinhas, com os mesmos frutos azuis turquesa. En- quanto elas crescem, Samadhi as toca e sente uma es- pécie de gosma gelatinosa na ponta do dedo. Levanta o dedo na altura dos olhos, analisando a gosma, até seu ol- har desfocar e se perder no azul cintilante do céu. Quan- D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 23 6/11/2007 21:43:53
  • 24. 24 Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 24 6/11/2007 21:43:54
  • 25. 25 do abaixa os olhos, encontra uma menina parada e instigada. É ela quem inicia a conversa. — Por que você tem um olho de cada cor? A menina balança a cabeça, parecendo estar confusa entre qual dos olhos focar, o castanho ou o verde. Ele pensa em não responder, se irrita com a única pergunta capaz de mudar seu humor de médio para péssimo. — Hã? Quem é você? Pergunta Samadhi com desdém, limpando os últimos grãos de terra dos olhos. — Meu nome é Chakra, prazer. Ela responde com a fir- meza de quem gosta do nome que tem, abaixando a cabeça em tom de apresentação. — É...Samadhi, Samadhi Aipim, esse é o meu nome. Responde tentando não olhar para os olhos da menina, que o intimidam. Chakra, que nome esquisito, até mais do que o meu, de onde você surgiu? — Daqui mesmo, de Maya. Quem surgiu foi você. Chakra aponta o dedo indicador para ele. Samadhi não quer contar da carta da mãe, teme não poder confiar na menina. Ela entende o silêncio como falta de enten- dimento dele e continua. — Você está em Maya, que é o mundo que faz o seu mun- do funcionar, o DoAvesso. — DoAvesso? Nós somos o DoAvesso? — Claro. Você nunca se questionou de como as coisas acontecem? — Já. Não faço outra coisa. — Então, achou a resposta! Só que não é tão simples as- sim, e não sei como veio parar aqui e nem o porquê. Aliás en- contrei você por acaso. Sabe, não era para eu estar aqui, fugi do trabalho para tomar ar fresco e encontrei você, caído no chão. Só que nada por aqui acontece por acaso, se bem que ultimamente D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 25 6/11/2007 21:43:54
  • 26. 26 as coisas andam muito esquisitas. Deve ter um motivo para sua vinda. Vem comigo que eu vou ajudar você. — Eu não preciso de ajuda... — Precisa sim. Ou você já sabe em que vai trabalhar? — Trabalhar? Não... — Está vendo? Aqui todo mundo trabalha, senão é expulso. So- mos os mayanos das funções, responsáveis pelo andamento do mundo DoAvesso. Se você não trabalhar, não poderá ficar aqui. Precisa arran- jar emprego já, entendeu? — Ah, e você quer me arrumar um? Samadhi começa a duvidar da menina, está solícita demais e lembra das palavras da mãe. — Sim. Ou você prefere ficar perdido procurando sozinho? Ele olha em volta com medo daquele ambiente e faz que não com a cabeça. Decide aceitar a sugestão e não contar sobre a carta, ainda não sabe se pode confiar. — Então, vamos lá. Qual é o seu talento? — Sei lá. Acho que não tenho talento nenhum. Diz Samadhi desanimado, enquanto arrasta os pés no chão para ver se ele é feito de terra mesmo. — Claro que tem, todos têm, mesmo os DoAvesso, como você. Vamos, me segue. Samadhi Aipim não tem muita opção. Segue Chakra e até gosta da idéia de trabalhar, de repente é isso que a mãe queria, que ele viesse trabalhar em Maya. Ela vai na frente, não se preocupa se ele a acom- panha ou não. Apressa o passo para testar a atenção do menino, clara- mente perturbada. Chakra tem pele morena escura, lisa de veludo, cabelos ondu- lados bem compridos que vão até a cintura. Usa pulseiras no braço, que acompanham a pintura do corpo. A tinta é azul e contorna suas dobras, bem aparentes. Samadhi acha que ela parece uma guerreira da Amazônia. Chakra anda a passos firmes, salta pedras jogando os cabelos para cima, para distrair ainda mais Samadhi. Ela se vira para trás com a dureza de um olhar descomovido. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 26 6/11/2007 21:43:54
  • 27. 27 Numa definição mais simples, Chakra é uma senhora- moça. Moça por fora e senhora por dentro. Sente-se respon- sável pelos outros, responsabilidade que assumiu sem ninguém mandar. Encontrou Samadhi Aipim ao acaso, mas sente que deve ser por um bom motivo e, assim, já se acha responsável por esse menino. Não por compaixão e sim pela necessidade de manter as coisas em ordem, estáveis por serem funcionais e previsíveis. Chakra pára no topo de uma montanha, afasta uma perna da outra e uiva, como um lobo. Samadhi, que ainda está na metade do caminho, se assusta com o berro e escorrega. Ofegante e cansado, passa as mãos pelo braço e ao sentir a ferida, solta um gemido de dor. Chakra desce correndo em direção a Samadhi e estende uma das mãos. Ele receia, mas acaba se apoiando nela e se levanta aos poucos. Um arrepio quando percebe que está de pé, pronto para continuar, procu- rar por sinais da mãe, de alguém que esteja esperando por ele, como ela mencionou na carta, buscar suas raízes e merecer substituir a mãe numa missão que ele nem imagina qual seja. A ferida do braço remói a pele e a carne viva lateja. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 27 6/11/2007 21:43:54
  • 28. 28 :3: MAYA – O MUNDO DAS FUNÇÕES SEÕÇNUF SAD ODNUM O – AYAM :3: Samadhi e Chakra andam pelas ruazinhas de terra batida de Maya. Chakra está decidida a encontrar um trabalho para o menino, que ousa afirmar não ter talento algum. Ele está meio abestalhado, encantado com as novidades. Esperava encontrar pedras redondas na beira da estrada. Ao invés disso, se depara com pedras de formatos geométricos. Umas são triangulares, outras quadradas, pentágonas, hexágonas, meias-luas, estrelas e retângulos. Apesar da esquisitice, Samadhi sente paz. Ele vê as cores do céu mudando, rápidas, invertendo posições, como degraus de um arco-íris, numa onda constante que desce e sobe. Chakra comenta: — Olha só... O Pintor hoje está inspirado. Você sabe pintar? — Não! Sou péssimo nisso. Desenho pior ainda. Nem pergunta quem é esse tal Pintor, mas se anima ao pensar que pode ser quem espera por ele. — Vamos ver se o Pintor gosta de você. Se gostar, é porque tem talento para pintar e ainda não sabe. Se não gostar, não é seu talento. Chegam à casa do Pintor, que está bravo à procura de tintas que sumiram do balde, misturando o céu com cores confusas. É um homem baixo, cabelos curtos gri- salhos e mãos ágeis, tão rápidas que mal se pode vê-las. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 28 6/11/2007 21:43:54
  • 29. 29 Velhinho na aparência e olhos de criança. O Pintor tem uma função fundamental, faz algo que aqueles DoAvesso vêem sempre, mas não entendem como acontece. Pinta o céu para que o sol faça seu show diário. Sem as cores, o sol não dá as caras e nem se despede. Seu nome, como a função diz, é Pintor porque é o único dessa espécie, não precisa de distinção. Em Maya, todos têm uma função que faz o mundo DoAvesso funcionar. Os de espécie única, que são raros, levam o nome da própria atividade que desempenham. As que requerem uma família, ou seja, mais de um envolvido na mesma função, recebem nome próprio, para distinção. Chakra tenta uma aproximação. — Senhor Pintor, estou procurando emprego para esse menino, Samadhi Aipim. É um DoAvesso e acha que não tem talen... O Pintor está sentado numa cadeira de balanço que paira no ar, presa na árvore que tem uma cabaninha, sua casa. Ele puxa a corda até descer o balanço à altura de Chakra para interrompê-la: — Estou muito ocupado, não está vendo? Preciso achar a tinta vermelha. O Pintor vai levantar a cadeira de novo quando repara no colar do menino. — Onde você conseguiu isso? — Por quê? — Porque isso quer dizer que começou... Ai, preciso ir. O Pintor acena um tchau ao puxar a cadeira para cima. — Começou o que? Espere, você me reconheceu? É você quem espera por mim? O Pintor já está longe. Chakra pergunta o que ele quer dizer, mas Samadhi não se sente seguro para dar informações. Sem êxito os dois continuam a caminhada. Chakra aponta para um arbusto, indicando o caminho. Samadhi atravessa o amontoado de folhas, reparando que elas têm expressões faciais. Uma com um largo D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 29 6/11/2007 21:43:54
  • 30. 30 sorriso, outra com a boca torta e um dos olhos semi-fechados, outra com a boca aberta de susto, outra sem boca e com olhos arregalados, outra com olhar romântico, de sedução. Samadhi adorou essa última e fica olhando para ela, retribuindo. É o que chamam de smile face no DoAvesso. : ] : > ; ) : o. Tenta chamar Chakra que, já adiantada, reclama de sua lerdeza. Ele corre para alcançá-la. — Chakra, essas folhas falam! Ela agacha, as pernas dobradas como animal. Cheira uma folha caída no chão e responde: — Não, seu bobo, elas não são falantes, são expressivas. As que falam ficam na ala norte. Estamos no centro, veja. Indica várias setas que apontam para um buraco. — Olha aqui. Chakra aponta para o chão. — Um relógio! Surpreende-se Samadhi ao olhar dentro do bu- raco. — Essa é a casa do Menino Tempo, quem sabe você não tem talento para ajudar no correr das coisas, se bem que com essa lerdeza acho difícil, mas vamos tentar. Explica Chakra acionando uma lavanca dentro do buraco, como se estivesse cumprimentando alguém. O bu- raco se abre na terra, em funil subterrâneo. Uma coisa vem voando lá do fundo até chegar à superfície. — O nome disso é Ponteiro Voador, porque parece com os pon- teiros de um relógio e voa. Explica Chakra. — Você não espera que eu suba aí, né? — Samadhi, se quer que eu ache um emprego para você é bom fazer o que eu mando, se não pode se preparar para ir embora. — Não posso ir embora! — Então sobe logo. Chakra sobe em uma das hastes e Samadhi pula na outra, contrariado. Cada um numa ponta do Ponteiro Voador, descem o funil com velocidade. As hastes do Ponteiro giram como se estivessem dentro de um relógio acelerado, deixando Samadhi tonto. Na descida, ele repara Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 30 6/11/2007 21:43:55
  • 31. 31 que as paredes são feitas de prateleiras cheias de relógios de todos os tipos e formatos, cada um mostrando um horário diferente. — São todos os horários que existem no mundo neste momento. Explica Chakra apontando para os relógios nas prateleiras. — Nossa, quanta hora diferente para o mesmo segundo. Encan- ta-se Samadhi, sem saber se é ele quem gira ou os relógios. Ela dá um meio sorriso, achando graça dos comentários do no- vato. O Ponteiro Voador aterrissa num chão muito branco. Estão numa sala quadrada, toda feita de mármore. Um barulho chama a atenção de Samadhi, que não faz idéia do que esperar. São rodas deslizando sobre o chão liso. Em cima dessas rodas, na cadeira, uma figura inco- mum. Um moço que aparenta ter 18 anos, o Menino Tempo. Menino Tempo é um sábio, chamado de menino por estar sem- pre brincando com as pessoas. Faz piadas, usa a palavra e o próprio tempo para fazer os outros darem risadas e se divertirem. É o palhaço da turma, a caçoar dele mesmo para animar o ambiente. Sente-se só, da sua espécie só tem ele, mas tenta não demonstrar a solidão que o habita. Não tem uma das pernas. Quis que as coisas acontecessem mais rápido do que o possível e sofreu um acidente. Logo ele. Prefere cadeira de rodas à muleta, já que não quer perder tempo. De uns tem- pos para cá, tem estado ranzinza, assim como outros moradores de Maya. Ninguém sabe porque, ainda. Esse Tempo é meio maluco, quando fica bravo, gira a roda do tempo para frente ou para trás, dependendo do seu humor. Se gira para frente para trás, o tempo acelera ou ret- rocede em Maya e no DoAvesso. Só que os DoAvesso não per- cebem, estão muito entretidos no seu dia-a-dia. O Ponteiro Voador se acomoda num dos ombros do Menino Tem- po, enquanto ele cumprimenta Chakra com frieza. Ela entende que hoje é um dia de muito mau humor e vai direto ao assunto. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 31 6/11/2007 21:43:55
  • 32. 32 — Estou procurando emprego para Samadhi Aipim, ele acha que não tem talento. Precisa de ajudante? Menino Tempo dá um soco na cadeira de rodas e ajeita os óculos redondos. De tão redonda que é sua cabeça, as hastes estão tortas, quase quebrando. São bem visíveis porque ele é careca, nem um pêlo tem naquele cucuruco. Explode: — Por que todos acham que preciso de ajuda? Não preciso de ninguém! Ouviu? Ninguém! Giro a roda do tempo sozinho! Se é esse o motivo da visita, podem ir embora. O Menino Tempo fixa os olhos no colar de Samadhi. — Você achou isso onde? — Minha mãe me deu. — Ai...ai. Começou... — Começou o que? Pergunta Chakra. — Não vai dar para explicar, porque não sei. Só sei que começou. Adeus! — Ok, ok. Vamos conseguir, Samadhi, se você apareceu aqui é por um bom motivo. Chakra tenta parecer animada enquanto sobe no Ponteiro Voador. Chegam ao topo com alívio. Samadhi acha ótimo não ter comido nada até então, senão teria enjoado. A alavanca faz um clique e fecha a grande abertura. Seguem o rumo, até Samadhi interromper Chakra. — Estou cansado. Isto não vai levar a lugar algum. E eu nunca fui muito bom em nada, de repente não tenho talento. Alguém deveria estar me esperando aqui... — Como assim? — Nada não. Lembra-se da carta da mãe, passa a mão no braço, arde a ferida. — Se você for esconder coisas de mim não vai dar para continuar. — Não estou escondendo nada, é que acabamos de nos con- hecer, calma. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 32 6/11/2007 21:43:55
  • 33. 33 — Sei. Vem cá, vamos sentar um pouco, entendo que você se cansa rápido. Vou buscar umas frutas. Fala Chakra ao se afastar. Volta em instantes e quando vai chamar Samadhi, percebe que ele dormiu. Puxa, justo agora que iriam encontrar meu velho amigo... D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 33 6/11/2007 21:43:55
  • 34. 34 :4: EM BUSCA DE UM TALENTO OTNELAT MU ED ACSUB ME :4: Samadhi acorda sentindo-se renovado. Começa a espreguiçar quando Chakra o cutuca: — Você dormiu demais! Não pode ficar mais um minuto sem trabalho. É perigoso, Samadhi, vai ser ex- pulso. Corre, me segue. Chakra faz curvas rápidas só para ver se ele está acompanhando. Pára, de supetão, na frente de uma ár- vore gigante, Samadhi não percebe a parada radical e tromba na menina. — Desculpa, sou um pouquinho desastrado. Diz ao levantar-se. — Quem sabe seu talento não seja derrubar os outros. Sugere Chakra em tom de zombaria e levanta apoiando-se em Samadhi. Ela olha para a árvore gigante e pronuncia umas palavras estranhas. Zumguibudum atchim. A última sai como um espirro gostoso. Galhos abrem o abraço, en- tregando uma escada viva, que se deixa ser pisada pelos dois. Ao final da escada e do corredor que vem depois dela, um senhor de muita idade está de costas mistur- ando substâncias, que parecem perigosas pelo barulho que fazem e fumaças que soltam acariciando o ar com cores e movimentos. Um cheiro de pum traz a vontade de espirrar. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 34 6/11/2007 21:43:55
  • 35. 35 — Argh, o que esse velho está fazendo? Sussurra Samadhi. O senhor se vira de uma só vez, numa rapidez inesperada, e diz como se estivesse recitando um poema. — Quem é que mete o pé? Chakra eu reconheço, traz um me- nino DoAvesso, olho de uma cor e outro de outra, que travessura. Fui eu quem fiz, na tentativa de aprendiz? Ah, desculpas últimas. — Não, senhor Alquimista, esse aqui é Samadhi Aipim, é um DoAvesso mesmo e está procurando emprego, mas acha que não tem talento. — Sei... Uma flecha de guerreiro certeiro vai de presente para o menino ausente. Fogo no coração ele tem. É assim que começa a canção. Sai em chamas ciganas com a força de um alazão. Diz o Alqui- mista enquanto despeja um líquido azul num recipiente. Explode um vaso de vidro, fumaça e líquido pelos ares. Samadhi recua, escondendo o rosto atrás de Chakra, e vê no fundo da sala um papagaio cinza dormindo. — Quem fez isso? O que deu nisso? Vão virar chouriço! Diz o Alquimista enquanto pega a parte do líquido que sobrou e enfia num buraco na terra, em forma de fechadura. — Hum, interessante esse tum. Vai para o lado de lá já. Esqueci para quem é, não importa o mané. Tum vai pelos ares e encontra seu mestre campestre! O que fazendo estão vocês aqui outra vez? — É... senhor Alquimista, vamos indo, obrigada pela atenção. Fala Chakra ao empurrar Samadhi em direção à porta, mas ele a segura e se vira para o Alquimista. — Senhor Alquimista, por acaso sabe de alguém que esteja me esperando? — Hum, tem sim, alguém no aguardo de Aipim. — Quem? Samadhi se anima. — Não me lembro, guardei informação no relento. Bem, adeus crianças cirandas! O Alquimista acena um tchau com a mão. Chakra puxa Samadhi e saem da árvore. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 35 6/11/2007 21:43:55
  • 36. 36 Meu amigo Alquimista é respeitado em Maya. Ninguém afirma tê-lo visto menino. Até comentam que nasceu assim, um senhor de aparência doida, apaixonado pela química e pela transformação das coisas. Externa certa meiguice. Sem- pre com um meio-sorriso no rosto. Sorriso misterioso. Sorriso leve de quem sabe mais do que fala. Samadhi e Chakra sobem a escada gigante, passo a passo, e saem da árvore. Chakra explica que o Alquimista faz as poções dos senti- mentos e as envia para o mundo DoAvesso. — Samadhi, ele tem Alzheimer, tem que ter paciência. Mas não o subestime, é muito inteligente, um verdadeiro mago. Diz Chakra enquanto afasta um arbusto. — Ele tem o que? Pergunta Samadhi repetindo a ação da me- nina. — Alll-zheii-merrr. Alzheimer. Meu pai disse que é uma doen- ça, talvez moderna, contemporânea, mas não ousamos dizer isso ao Alquimista. Com ela, as pessoas se esquecem das coisas e se confun- dem. É uma coisa nova aqui em Maya, o Alquimista é o único assim, por enquanto... mas por que deveria ter alguém esperando por você? — Sonhei com isso, não deve ser nada. Chakra vai insistir quando pega uma pena no ar. Ela cheira a pena e diz com entusiasmo: — Eba, o Carteiro está chegando! — Quem? Pergunta Samadhi encompridando o eme. — O Carteiro está chegando, repete Chakra, olhando para o céu. Um berro corta o ar e a conversa. É mesmo o Carteiro que chega entre os dois, desajeitado e com pressa. Dá para ver que ele não tem muito equilíbrio no ar pelas penas que solta, extrovertidas, para todos os lados e direções. Não é pássaro nem avião. Suas asas são feitas de promessas. Palavras que se prendem umas nas outras e formam uma Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 36 6/11/2007 21:43:55
  • 37. 37 rede que se movimenta no ar, fazendo seu corpo flutuar. O rabo é for- mado por palavras que fazem uma frase comprida. Dizem que é um poema, ninguém nunca conseguiu ler, porque ele não pára quieto. Seu corpo é coberto por várias estampas e selos, do mundo inteiro e até de lugares desconhecidos. Uns dizem que o Carteiro tem contato com extra-ter- restres, mas fofoqueiro do jeito que é, dificilmente manteria esse segredo. Ama as palavras e se diverte em misturá-las. Sente depressão porque os DoAvesso não mandam mais car- tas como antes, não mais usam as palavras com gosto. E sen- te solidão, voando pelos ares, imaginando vida em outras ga- láxias, onde as palavras devem ser arrumadas e arranjadas de outra forma, uma que surpreenda. — Olha a carta despencando aí pra baixo. Oxente, não pega nela não, Chakra! Não é pra ocê não, guria. Fala o Carteiro ao pousar num galho. — Bom dia, senhor Carteiro, estou procurando um emprego para o Samadhi Aipim, ele acha que não tem talento. Grita Chakra para o Carteiro ouvir. Samadhi sorri encantado com aquela figura voadora e estam- pada. Mais ainda por sua resposta: — Ah, ocê! Tem um telegrama falado para o garoto que usa a ampola da rosa. — Até que enfim! O Carteiro pigarreia e começa: — Samadhi, esperam por você na Montanha Iluminada. Vá logo que o tempo é curto. Cuidado com o inimigo. Samadhi olha receoso para Chakra. O Carteiro vai antes que o menino pergunte mais alguma coisa. Chakra faz careta. Samadhi nunca tinha imaginado isso. Incrível. Está D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 37 6/11/2007 21:43:55
  • 38. 38 Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 38 6/11/2007 21:43:55
  • 39. 39 excitado em descobrir sua origem mayana e encontrar alguém que ex- plique o que está acontecendo. — Chakra você sabe onde fica essa montanha? — Não, meu trabalho é interno, dentro da Escola. Se bem que eu gostaria de conhecer mais coisas. Não adianta encontrar montanha alguma sem ter trabalho, senão será expulso. Neste momento, aparece um coelho gigante, branco de pêlos curtos e olhos vermelhos, interrompendo a menina. — Olá crianças. Adeus crianças. Diz o coelho saltando com pu- los enormes, usando o rabo de apoio no chão, que faz TÓIM, TÓIM, TÓIM cada vez que se impulsiona. Tem vários objetos ao redor do pescoço, presos em um colar, que tilitam com os saltos. — Samadhi, esse é o chaveiro. Como tem mais de um dessa es- pécie, ele tem nome, Penduricalho, é o mais importante dos chaveiros. Ele pode ter um trabalho para você. Escute bem, é fundamental que você consiga um emprego agora, para sua própria sobrevivência. Corra atrás dele que eu preciso ir trabalhar. Anda! Samadhi quer pedir para ela ficar, berrar um nããão me deeeixe, mas sente vergonha. Estica as costas como alguém prestes a fazer um grande feito. — Senhor chaveiro! Senhor coelho! Coelhão! Penduricalho! Preciso de emprego! Grita Samadhi ao correr atrás do coelho gigante. Penduricalho pára e olha para ele. — Interessante. Um de uma cor e o outro de outra. Hum. O mensageiro que alterna duas cores há de chegar. Pensa o coelho. — Está contratado! Siga-me. TÓIM, TÓIM, TÓIM. — Não entendi! Berra Samadhi, ao correr atrás do TÓIM, TÓIM, TÓIM. Penduricalho se afasta cada vez mais e Samadhi pensa que é im- possível correr atrás desse coelho, precisaria voar. Sente uma força irre- conhecível, vento forte que o levanta do chão e se surpreende ao acom- panhar os saltos e desvios do Penduricalho, até cair num buraco. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 39 6/11/2007 21:43:55
  • 40. 40 É um orifício pequeno que dá entrada a uma casa gigante. Como todo chaveiro, a casa é cheia de chaves penduradas no teto, por fios. De todos os formatos, texturas e cheiros. — Seu nome? Pergunta Penduricalho ao tocar as chaves como que procurando uma específica, sem olhar diretamente para o menino. — Samadhi Aipim. — Por quê? — Como assim? Por que você se chama Penduricalho? — Não é óbvio? Penduricalho aponta para o colar cheio de chaves penduradas e continua. — Estou com pressa. Diz com ansiedade, arrancando uma chave do fio que a prende no teto. Entrega-a a Samadhi. Ele hesita em aceitar e pergunta: — Onde fica a Montanha Iluminada? Penduricalho se assusta: — Ah! Cumpra sua primeira tarefa, que mostrarei o caminho. Pegue esta chave e leve-a para a Ala dos Desaparecidos. — Como é que eu vou achar isso? Pergunta Samadhi. — Desaparecendo ué! Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 40 6/11/2007 21:43:56
  • 41. 41 :5: A PRIMEIRA TAREFA AFERAT ARIEMIRP A :5: Penduricalho mostra a saída: um cipó preso ao teto. Samadhi não faz idéia de como se sobe num cipó. Lembra de ter visto, na fazenda do avô, homens subindo nos coqueirais para catar coco e tenta fazer o mesmo. — Onde foi que me meti? Pensa em voz alta. Com esforço, e muita ralação de pés, chega ao topo. Recompõe-se da subida segurando a chave. Vê mulheres, homens, crianças e bichos indo de um lado ao outro. Não olham para ele em nenhum momento. São de cores bem vivas, dessas de desenho animado. São os mayanos. Levanta-se e vê uma mulher que leva um pote de aço contendo fogo. A chama está muito alta, em qualquer outra circunstância queimaria o rosto da mul- her, mas ela tem expressão de quem está sendo acari- ciada e não queimada. Samadhi tenta uma aproximação para perguntar onde é a ala dos desaparecidos. — Por favor, moça... Sem dar resposta, ela vai embora por uma ruela de terra batida. Samadhi repara que essas ruazinhas têm placas. E que numa delas está escrito: DESAPARECER, POR AQUI. — Ok, lá vamos nós. Antes do primeiro passo, olha de novo para a placa e faz cara de desgosto ao ver que ela gira conforme o vento. Inútil direção. Bate na placa, o alumínio que a D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 41 6/11/2007 21:43:56
  • 42. 42 compõe dobra em ondas sonoras, que ressoam por Maya. Passa um redemoinho girando qualquer coisa leve ao redor. Samadhi roda no ar e cai de bruços. — Ué, choveu? Está molhado. Surpreende-se ao tocar a terra. Ele continua a chutar qualquer coisa no chão. Maya não parece fa- miliar, não o aceita como parte integrante e funcional. Senta num tronco de árvore caído e se distrai analisando as pedras geométricas. Musgo verde se espalha entre os dedos conforme se apóia. Adoraria colecionar as pedras se tivesse onde guardá-las. Junta a triangular com a hexagonal, coloca o círculo em cima e vai montando um cenário. Formigas sobem nas pedras como atores se apoderando do palco. No meio do devaneio de Samadhi, Chakra reaparece, ainda bem. — Samadhi Aipim, o que aconteceu? — Estou tentando encontrar a Ala dos Desaparecidos, é a primeira tarefa que Penduricalho me deu. — Como? Ele deve ter confiado muito na sua capacidade para mandar você para lá. É muito difícil alguém voltar. — Por quê? — Porque lá é uma das terras do Estagna. — Quem? — O maior assassino do DoAvesso! — Assassino? — Sim, ele causa a morte antecipada nas pessoas. — Minha mãe acabou de morrer. — Foi acidente? — Foi de repente, doença estranha, sem motivo. — Ah... Foi o Estagna, com certeza. — Então preciso encontrar esse desgraçado! — Você não vai conseguir... Ah, esquece, precisa dormir, Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 42 6/11/2007 21:43:56
  • 43. 43 isso sim, vamos, meu pai deixou ficar lá em casa. Pelo menos ar- ranjou um emprego. — Preciso voltar para a minha casa, meu pai e minha irmã devem estar preocupados. — Fique tranquilo porque o tempo no DoAvesso é dife- rente. Eles nem devem ter notado sua ausência. Olha Chakra com ar de decisão tomada e aceita o convite. Os dois caminham pelas entranhas de Maya, esquisitice só. De- ixam os porquês de lado. O Pintor voa de um lado ao outro, pintando o céu em noite e lua. Dá uma mordida na lua e diz: — Pronto, minguante! E olha para baixo. — Vai dormir, menino dos olhos desajeitados! A árvore gigante do Alquimista solta folhas no ar. O velhinho dá risada e canta: — É a hora do sono que acalma, sinta-o vindo da alma, um bocejo anuncia a cantada da despedida. Já estou de saída, um bocejo anuncia a cantada da despedida. Vai tum do sono pro- fun... O Alquimista pára a cantiga no meio: — Como é mesmo a cantiga da despedida? Bocejo e saída? Ihh, olhem, uma folha da gargalhada acordada, agora não, desnaturada. Foi-se apressada, para o lado de lá. Uau. Tudo bem, não dá para todo mundo ser igual. O que é mesmo que eu preciso enviar agora? Está na hora? Gargalhada ou sono? Ah, gargalhada, claro. O Alquimista manda folhas de gargalhada e de sono ao mesmo tempo. No DoAvesso, uns riem feito doidos e outros caem no sono profundo. Entra decidido o papagaio cinza do Alquimista, pronto para salvar o dia. — É sono agora, não gargalhada. Sono, sono, sono. Fica bravo o papagaio, já cansado de ver a mesma cena. — Bravo não precisa ficar, sono será! Diz o Alquimista. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 43 6/11/2007 21:43:56
  • 44. 44 Samadhi boceja, afinal, é um DoAvesso, e não consegue es- capar à poção. Um bocão aberto, daqueles bem gostosos, muito ar para dentro, barulho expira todo o ar para fora. Olhos entrea- bertos, sua cabeça tomba e sente uma imensa vontade de dormir ali mesmo, naquele exato momento. Dorme na grama. Os olhos negros de Chakra encaram o menino roncando. Como ela queria sentir tudo, saber de tudo. Isso ela nunca sa- berá, nunca saberá como é sentir sono e, de certa forma, inveja o menino desajeitado que a intriga tanto. Deixa Samadhi onde ele está e, aos saltos, vai embora, felina. Vejo Samadhi em sono, angústia e pesadelo. Do outro lado da colina, Chakra corre, seus longos cabelos negros voam. O Carteiro, na frente da lua, cumprimenta o Pintor com um aceno e um poema. O Alquimista escuta Pink Floyd enquanto seu papagaio cinza faz guitarra com o bico. Folhas expres- sivas ficam todas calmas. : } Chakra reserva o momento para escutar o barulho noturno da floresta, uma música singular. Pássaros, riachos, cigarras, a imensidão da natureza. Maya amansa, mas os sintomas da Profecia intensificam-se. Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 44 6/11/2007 21:43:56
  • 45. 45 :6: O PODER DA ATRAÇÃO OÃÇARTA AD REDOP O :6: AHHH, BUM! Samadhi acorda no momento em que o Pintor acaba de desenhar o nascer-do-sol. Chakra não está mais ao seu lado. Levanta-se do chão com dificuldade, como se um peso enorme estivesse grudado em sua bunda. Olha para trás e realmente vê um peso enorme grudado na bunda. Um ímã gigante, com dois olhos e uma boca. — Hehe, desculpas. Penduricalho me pediu para te chamar. E sabes como é, tudo que eu penso atraio direto e logo que pensei em ti, BUM. Agora me tira logo daqui, não vês que não tenho braço? Fala envergonhado o Menino Ímã. Samadhi se contorce para desgrudar o Menino Ímã, que agradece. — Ah, obrigado, que alívio. Pois é Samadhi Aipim... Ah, então é verdade, tens dois lados, vês de dois jeitos diferentes. Adorei, onde arranjaste? Per- gunta o Ímã fitando os olhos de Samadhi. Menino Ímã é o que parece ser. Um ímã grande, com seus um metro e vinte de altura e outros setenta centímetros de largura. Como tudo em Maya é esquisi- to, foi aceito pela comunidade, suas especificidades en- caradas como qualidades. Logo foi identificado como D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 45 6/11/2007 21:43:56
  • 46. 46 Camila Appel Do Avesso_big_31.10B.indd 46 6/11/2007 21:43:56
  • 47. 47 útil, tendo a capacidade de se locomover com força magnética. Tudo o que ele pensa, atrai imediatamente. Pensou, grudou. Ele é o poder da atração de Maya, de grande importância para o DoAvesso. Só que daí vem também o problema que carrega. Muitas vezes não consegue con- trolar seus pensamentos e antes que possa revertê-los, já se vê preso a algo inesperado. Nunca vai se esquecer do dia em que pensou intensa- mente naquela menina linda da sala de aula. Ela estava toda arrumada no meio de uma ceia especial de família, quando foi puxada por uma força incrível e grudou no Menino Ímã, do outro lado da comunidade. E para explicar? Outro dia, ficou com raiva do Alquimista, que se es- queceu da encomenda urgente feita por ele. A raiva trouxe o Alquimis- ta e uma faca, que se não fosse pelo poder transformador desse senhor, teria entrado de bico na garganta. Fez da faca, flor, o Alquimista. Ele não lembrava da faca e da raiva e achou a oferenda um presente mara- vilhoso do Menino Ímã. Dessa vez foi a sorte que o salvou. Por isso, sente-se incapaz de esconder sentimentos e prefere não tê-los, porque atrai tudo o que pensa e sente com intensidade. Encontrou o caminho da neutralidade, a opção foi esconder-se de si mesmo. No fundo, enxerga seu poder como um dom, na esperança de que um dia vai aprender a se controlar e mostrar a todos de Maya que seu desequilíbrio guarda um grande encanto. — Você atrai qualquer coisa que pensar? Pergunta Samadhi. — Sim. Menino Ímã explica que os DoAvesso podem usar esse poder, o da atração, para tudo que pensarem e sentirem com intensi- dade, mas nem todos sabem disso. — Eu sou um DoAvesso... então posso usar esse poder também? — Aqui em Maya não, porque nós fornecemos os poderes que serão usados do lá de lá, mas lembre-se disso quando voltar. — Ah! Suspira Samadhi, questionando-se se um dia voltará. D oAv e s s o a Do Avesso_big_31.10B.indd 47 6/11/2007 21:43:56