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ab Sábado, 20 dE SEtEmbro dE 2014 H H H mundo 2 7
Thomás s. selisTre
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM KIEV
Após a sua anexação pela
Rússianoúltimomêsdemar-
ço, a região da Crimeia, até
então parte da Ucrânia, aca-
bou servindo como estopim
para uma onda de manifes-
tações nacionalistas nos ter-
ritórios do leste do país.
Prédiospúblicosforamin-
vadidos por insurgentes que
pediam um referendo de in-
dependência e, com o apoio
dissimulado da nação vizi-
nha,desafiavammilitarmen-
te o governo ucraniano.
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rarampalcodeguerra,eaes-
caladadaviolêncianaregião
de Donbas, que inclui Do-
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MikhailYahorenko,35,usa
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de quando manifestantes,
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rava a sua vez de ser atendi-
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em Kiev. “Sobrevivi porque
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deixarampassar.”Mostrano
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reação,naquelemomento,de
sua mulher.
Para a segurança de am-
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bora com o filho, e a melhor
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se na capital.
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colaboradores dos rebeldes,
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manas antes que seus pais
tambémdeixassemacidade.
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frentar o duro inverno do
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Após quase seis meses de
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mamente arriscado, e os re-
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ABRIGO EM FÁBRICA
Devido à violência fora de
controle em Donbas, Sergei
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uma fábrica abandonada
dentrodeKievcomoutras190
pessoas.
AssimqueoExércitoucra-
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gia e que, apesar das pernas
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sacrificarparadarsegurança
ao filho pequeno e à mulher,
grávida de uma menina. No
abrigo,dormemembeliches,
num espaço apertado e úmi-
do dividido do corredor por
uma cortina.
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abrigo,deonde,prevê,deve-
rá ir embora antes que nasça
o bebê, em novembro.
“Nestasemana,soubeque
haviam assassinado o meu
tioporque,segundoosrebel-
des, ele havia roubado. Meu
tio não era ladrão. Julgaram
ele ali, no meio da rua.”
Mesmo com o cessar-fogo
assinado no dia 5 de setem-
bro em Minsk, na Bielorrús-
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netsk, afirma que no leste,
hoje, o caos impera. “Os re-
beldes fazem o que querem.
Matam,roubam,sequestram.
Não existe lei.”
MILÍCIA GOVERNISTA
As tropas pró-Rússia, en-
tretanto, não são as únicas a
aterrorizar a população, se-
gundo a Anistia Internacio-
nal, que denuncia voluntá-
rios como o Batalhão Aidar,
um dos 30 grupos que lutam
ao lado do governo.
ForadahierarquiadoExér-
cito, esses combatentes co-
metercrimescomoextorsões
e execuções sumárias.
Até abril, cerca de 4 mi-
lhões de habitantes viviam
nas áreas atualmente dispu-
tadas entre as tropas do pre-
sidentePetroPoroshenkoeo
exército rebelde.
De acordo com a Agência
daONUparaRefugiados(Ac-
nur), contando com aqueles
que viviam na Crimeia, em
torno de 1 milhão de pessoas
abandonaram o lar, número
que vem disparando nos úl-
timos meses.
Dentro do país —sem con-
siderar os refugiados em na-
ções vizinhas como Moldá-
via, Romênia e, principal-
mente, Rússia— são mais de
310 mil deslocados oficial-
mente cadastrados.
Muitos,noentanto,nãose
registram e, por isso, não fa-
zem parte dos números. Ou-
tros, com a retomada de ter-
ritórios pelo Exército nacio-
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permanecemnasestatísticas.
Aqueles que não tiveram
tantasortedependemdaaju-
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Viktoria Grushenko, 31,
deixou a localidade de Hor-
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netsk, após receber a notícia
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teriorado. Em lágrimas, rela-
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“Estou desesperada, mas
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Cerca de 310 mil
pessoas tiveram de
se deslocar por causa
dos confrontos entre
exército e rebeldes
Civis deslocados por conflito com separatistas temem represálias e inverno rigoroso do país
Ucranianosbuscamacapital,Kiev,
paraescaparderegiõesemguerra
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM KIEV
Das cerca de 1 milhão de
pessoas que migraram inter-
namente na Ucrânia por mo-
tivosdesegurança,ahistória
de Boris Danichev, 51 anos,
destaca-se por um detalhe.
Com a anexação da Cri-
meia pelos russos, na região
do Mar Negro, Boris fugiu da
cidade de Sebastopol com a
família. Embora sem ter on-
dedormirinicialmente,dere-
pente se viu abrigado dentro
daquela que foi, até o início
deste ano, residência do ex-
presidente do país Viktor Ya-
nukovich,emNoviPetrivitsi,
ao norte de Kiev.
No dia 22 de fevereiro de
2014, a falta de apoio popu-
larobrigouYanukovichadei-
xar o país às escondidas —
conta-se, na capital, que le-
vouconsigoosseguranças,a
amante e maletas com mi-
lhões de dólares.
Uma semana depois, sol-
dadosrussosdesembarcaram
na Crimeia, controlando edi-
fícios públicos com apoio de
grande parte da população,
identificada historicamente
com o país vizinho
Umreferendofoirealizado
pouco mais de 15 dias após a
invasão,e,aindaqueoresul-
tado seja controverso, 97%
dos eleitores legitimaram a
anexação à Rússia.
BorisDanichevédeorigem
tártara crimeana. É muçul-
manosunita,razãopelaqual
temia ser perseguido por na-
cionalistas ortodoxos russos
e pela qual decidiu se mudar
paraKievcomesposaefilhos.
Aochegarnacidade,Boris
encontrouajudanaEuromai-
dan, conjunto de manifesta-
ções sociais que tiveram iní-
cio durante o último inverno
echegouareunir800milpes-
soasnapraçaIndependência
da capital. “Vi um cartaz nu-
ma barraca que dizia ‘SOS
Crimeia’”, conta. “Conversei
comeles,emeofereceramca-
sa e trabalho”.
INVERNO
Hoje,seusdoisfilhosmaio-
res podem novamente fre-
quentar a escola e, para ele,
aocontráriodetantosoutros
deslocados internos, a apro-
ximação do inverno já não
causa preocupações.
Boris recebe ajudas finan-
ceirasdogovernoedaAcnur
(agência da ONU para refu-
giados) para famílias nume-
rosas e trabalha como jardi-
neironamesmapropriedade,
quetemaotodo140hectares.
Atualmente administrada
por participantes da Euro-
maidan, além de servir abri-
goparaosmaisnecessitados,
apropriedadeéparadadetu-
ristas interessados na histó-
ria recente do país.
Boris conta que não paga
aluguel, mas que sonha um
dia voltar a exercer sua anti-
ga profissão, a carpintaria.
Vive, é certo, em um aloja-
mentonaentradadoterreno.
A mansão do ex-presidente
viroumuseu.Entretanto,ape-
sardosustoinicial,elesesen-
te privilegiado.
“Li na imprensa que, na
Crimeia, estão invadindo
apartamentos de muçulma-
nos atrás de provas para in-
criminá-los.EmKiev,porém,
não noto nenhuma discrimi-
nação”, afirma.
“Aqui nunca tivemos pro-
blemas.Porlá,háanosqueo
nacionalismo alimenta dis-
cursos políticos, gerando
ódioeafastandoaspessoas.”
SITUAÇÃO VULNERÁVEL
O caso de Boris, contudo,
é uma exceção.
Muitosdeslocadosnãotêm
a mesma sorte e, apenas na
capital,sãoaproximadamen-
te 37 mil pessoas oficialmen-
teregistradasemsituaçãode
vulnerabilidade, incluindo
crianças, mulheres grávidas
e idosos.
Sãopessoas,emsuamaio-
ria,queperderamsuascasas,
parentes, ou cujos maridos e
filhosestãocombatendo.(TSS)
Refugiadotoma
contadejardim
deex-presidente
Abrigo em fábrica
abandonada na capital
ucraniana, Kiev, onde
moram 190 pessoas
sergei makarenki, 45, que fugiu da região de Donbas
Doações para civis ucranianos deslocados pelo conflito
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  • 1. ab Sábado, 20 dE SEtEmbro dE 2014 H H H mundo 2 7 Thomás s. selisTre COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM KIEV Após a sua anexação pela Rússianoúltimomêsdemar- ço, a região da Crimeia, até então parte da Ucrânia, aca- bou servindo como estopim para uma onda de manifes- tações nacionalistas nos ter- ritórios do leste do país. Prédiospúblicosforamin- vadidos por insurgentes que pediam um referendo de in- dependência e, com o apoio dissimulado da nação vizi- nha,desafiavammilitarmen- te o governo ucraniano. Cidadesantespacíficasvi- rarampalcodeguerra,eaes- caladadaviolêncianaregião de Donbas, que inclui Do- netskeLugansk,fezcomque milhares de civis deixassem suas casas. MikhailYahorenko,35,usa um nome fictício, por medo derepresálias.Eledizquetra- balhava para a polícia de Lu- ganskeestavanasededoga- binete de segurança da cida- de quando manifestantes, compedrasebarrasdeferro, cercaram o edifício. “Acabeinohospital”,con- tou à Folha, enquanto espe- rava a sua vez de ser atendi- do em um centro de doações em Kiev. “Sobrevivi porque estavavestidoàpaisanaeme deixarampassar.”Mostrano celularumafotoemqueapa- rececomacabeçaenfaixada. Diz haver sido tirada logo após o incidente e recorda a reação,naquelemomento,de sua mulher. Para a segurança de am- bos, decidiram então ir em- bora com o filho, e a melhor opçãopararecomeçaravida, segundoeles,foiestabelecer- se na capital. Antes da guerra, Mikhail eraresponsávelporperseguir colaboradores dos rebeldes, ou “terroristas”, como cha- ma. Despediu-se de Lugansk hápoucomaisdeummês,se- manas antes que seus pais tambémdeixassemacidade. Segundo Mikhail, sua maior preocupação era a de receber cobertores para en- frentar o duro inverno do país, que pode chegar aos 30 graus negativos. Ele afirma estar desempregado e que suas economias não dão pa- ra muito tempo. Após quase seis meses de conflito, é difícil dizer com exatidãoonúmerodevítimas dashostilidadesnaregiãoou até mesmo se os enfrenta- mentos armados um dia irão ter fim. Na Ucrânia, nota-se que o pessimismo e o medo imperam nas conversas. Segundo a Organização das Nações Unidas, já são ao menos3.000mortes.Especu- la-sequeonúmerodevítimas civisnaregiãodeDonetskse- jasuperioramil,easituação tende a piorar nas próximas semanas caso não se abram corredores humanitários e cessem definitivamente as hostilidades. DeacordocomONGscomo os Médicos Sem Fronteiras, trabalhar na região é extre- mamente arriscado, e os re- cursos começam a acabar. Inúmeros hospitais foram bombardeados nos últimos meses e falta material médi- co para tratar em torno de 6.200 feridos. ABRIGO EM FÁBRICA Devido à violência fora de controle em Donbas, Sergei Makarenki, 45, vive hoje em uma fábrica abandonada dentrodeKievcomoutras190 pessoas. AssimqueoExércitoucra- niano expulsou os rebeldes da cidade vizinha de Slo- viansk, no início dos enfren- tamentos,elecontaqueseviu obrigadoafugir,deixandofa- miliares e amigos. Sergei diz ter muita ener- gia e que, apesar das pernas amputadas,nãohesitaemse sacrificarparadarsegurança ao filho pequeno e à mulher, grávida de uma menina. No abrigo,dormemembeliches, num espaço apertado e úmi- do dividido do corredor por uma cortina. Longe de casa, a solução foivivertemporariamenteno abrigo,deonde,prevê,deve- rá ir embora antes que nasça o bebê, em novembro. “Nestasemana,soubeque haviam assassinado o meu tioporque,segundoosrebel- des, ele havia roubado. Meu tio não era ladrão. Julgaram ele ali, no meio da rua.” Mesmo com o cessar-fogo assinado no dia 5 de setem- bro em Minsk, na Bielorrús- sia,Sergei,quemantémcon- tato quase diário com Do- netsk, afirma que no leste, hoje, o caos impera. “Os re- beldes fazem o que querem. Matam,roubam,sequestram. Não existe lei.” MILÍCIA GOVERNISTA As tropas pró-Rússia, en- tretanto, não são as únicas a aterrorizar a população, se- gundo a Anistia Internacio- nal, que denuncia voluntá- rios como o Batalhão Aidar, um dos 30 grupos que lutam ao lado do governo. ForadahierarquiadoExér- cito, esses combatentes co- metercrimescomoextorsões e execuções sumárias. Até abril, cerca de 4 mi- lhões de habitantes viviam nas áreas atualmente dispu- tadas entre as tropas do pre- sidentePetroPoroshenkoeo exército rebelde. De acordo com a Agência daONUparaRefugiados(Ac- nur), contando com aqueles que viviam na Crimeia, em torno de 1 milhão de pessoas abandonaram o lar, número que vem disparando nos úl- timos meses. Dentro do país —sem con- siderar os refugiados em na- ções vizinhas como Moldá- via, Romênia e, principal- mente, Rússia— são mais de 310 mil deslocados oficial- mente cadastrados. Muitos,noentanto,nãose registram e, por isso, não fa- zem parte dos números. Ou- tros, com a retomada de ter- ritórios pelo Exército nacio- nal,retornamparacasa,mas permanecemnasestatísticas. Aqueles que não tiveram tantasortedependemdaaju- da da sociedade civil. Viktoria Grushenko, 31, deixou a localidade de Hor- livka, 43 km ao norte Do- netsk, após receber a notícia dequeasituaçãohaviasede- teriorado. Em lágrimas, rela- ta que luta para prosseguir com o tratamento de seus dois filhos, com deficiência nas pernas. “Estou desesperada, mas não voltamos para casa por- que os rebeldes estão obri- gando os homens a comba- ter”, conta. “Como se não bastasse, meu irmão foi se- questradoaoladodeumami- go. Por sorte, ele conseguiu fugir, mas o amigo acabou morto.” Cerca de 310 mil pessoas tiveram de se deslocar por causa dos confrontos entre exército e rebeldes Civis deslocados por conflito com separatistas temem represálias e inverno rigoroso do país Ucranianosbuscamacapital,Kiev, paraescaparderegiõesemguerra COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM KIEV Das cerca de 1 milhão de pessoas que migraram inter- namente na Ucrânia por mo- tivosdesegurança,ahistória de Boris Danichev, 51 anos, destaca-se por um detalhe. Com a anexação da Cri- meia pelos russos, na região do Mar Negro, Boris fugiu da cidade de Sebastopol com a família. Embora sem ter on- dedormirinicialmente,dere- pente se viu abrigado dentro daquela que foi, até o início deste ano, residência do ex- presidente do país Viktor Ya- nukovich,emNoviPetrivitsi, ao norte de Kiev. No dia 22 de fevereiro de 2014, a falta de apoio popu- larobrigouYanukovichadei- xar o país às escondidas — conta-se, na capital, que le- vouconsigoosseguranças,a amante e maletas com mi- lhões de dólares. Uma semana depois, sol- dadosrussosdesembarcaram na Crimeia, controlando edi- fícios públicos com apoio de grande parte da população, identificada historicamente com o país vizinho Umreferendofoirealizado pouco mais de 15 dias após a invasão,e,aindaqueoresul- tado seja controverso, 97% dos eleitores legitimaram a anexação à Rússia. BorisDanichevédeorigem tártara crimeana. É muçul- manosunita,razãopelaqual temia ser perseguido por na- cionalistas ortodoxos russos e pela qual decidiu se mudar paraKievcomesposaefilhos. Aochegarnacidade,Boris encontrouajudanaEuromai- dan, conjunto de manifesta- ções sociais que tiveram iní- cio durante o último inverno echegouareunir800milpes- soasnapraçaIndependência da capital. “Vi um cartaz nu- ma barraca que dizia ‘SOS Crimeia’”, conta. “Conversei comeles,emeofereceramca- sa e trabalho”. INVERNO Hoje,seusdoisfilhosmaio- res podem novamente fre- quentar a escola e, para ele, aocontráriodetantosoutros deslocados internos, a apro- ximação do inverno já não causa preocupações. Boris recebe ajudas finan- ceirasdogovernoedaAcnur (agência da ONU para refu- giados) para famílias nume- rosas e trabalha como jardi- neironamesmapropriedade, quetemaotodo140hectares. Atualmente administrada por participantes da Euro- maidan, além de servir abri- goparaosmaisnecessitados, apropriedadeéparadadetu- ristas interessados na histó- ria recente do país. Boris conta que não paga aluguel, mas que sonha um dia voltar a exercer sua anti- ga profissão, a carpintaria. Vive, é certo, em um aloja- mentonaentradadoterreno. A mansão do ex-presidente viroumuseu.Entretanto,ape- sardosustoinicial,elesesen- te privilegiado. “Li na imprensa que, na Crimeia, estão invadindo apartamentos de muçulma- nos atrás de provas para in- criminá-los.EmKiev,porém, não noto nenhuma discrimi- nação”, afirma. “Aqui nunca tivemos pro- blemas.Porlá,háanosqueo nacionalismo alimenta dis- cursos políticos, gerando ódioeafastandoaspessoas.” SITUAÇÃO VULNERÁVEL O caso de Boris, contudo, é uma exceção. Muitosdeslocadosnãotêm a mesma sorte e, apenas na capital,sãoaproximadamen- te 37 mil pessoas oficialmen- teregistradasemsituaçãode vulnerabilidade, incluindo crianças, mulheres grávidas e idosos. Sãopessoas,emsuamaio- ria,queperderamsuascasas, parentes, ou cujos maridos e filhosestãocombatendo.(TSS) Refugiadotoma contadejardim deex-presidente Abrigo em fábrica abandonada na capital ucraniana, Kiev, onde moram 190 pessoas sergei makarenki, 45, que fugiu da região de Donbas Doações para civis ucranianos deslocados pelo conflito FotosThomásS.Selistre/Folhapress