Cerca de 310 mil pessoas tiveram de se deslocar internamente na Ucrânia devido aos confrontos entre o exército e rebeldes separatistas. Muitos fugiram para a capital Kiev para escapar da violência e temem as represálias e o rigoroso inverno. Alguns refugiados encontram abrigo temporário em locais improvisados como fábricas abandonadas, enquanto organizações tentam fornecer ajuda humanitária.
Grecia atividade a luta por direitos - hq mauricio de sousa
Kiev_art
1. ab Sábado, 20 dE SEtEmbro dE 2014 H H H mundo 2 7
Thomás s. selisTre
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM KIEV
Após a sua anexação pela
Rússianoúltimomêsdemar-
ço, a região da Crimeia, até
então parte da Ucrânia, aca-
bou servindo como estopim
para uma onda de manifes-
tações nacionalistas nos ter-
ritórios do leste do país.
Prédiospúblicosforamin-
vadidos por insurgentes que
pediam um referendo de in-
dependência e, com o apoio
dissimulado da nação vizi-
nha,desafiavammilitarmen-
te o governo ucraniano.
Cidadesantespacíficasvi-
rarampalcodeguerra,eaes-
caladadaviolêncianaregião
de Donbas, que inclui Do-
netskeLugansk,fezcomque
milhares de civis deixassem
suas casas.
MikhailYahorenko,35,usa
um nome fictício, por medo
derepresálias.Eledizquetra-
balhava para a polícia de Lu-
ganskeestavanasededoga-
binete de segurança da cida-
de quando manifestantes,
compedrasebarrasdeferro,
cercaram o edifício.
“Acabeinohospital”,con-
tou à Folha, enquanto espe-
rava a sua vez de ser atendi-
do em um centro de doações
em Kiev. “Sobrevivi porque
estavavestidoàpaisanaeme
deixarampassar.”Mostrano
celularumafotoemqueapa-
rececomacabeçaenfaixada.
Diz haver sido tirada logo
após o incidente e recorda a
reação,naquelemomento,de
sua mulher.
Para a segurança de am-
bos, decidiram então ir em-
bora com o filho, e a melhor
opçãopararecomeçaravida,
segundoeles,foiestabelecer-
se na capital.
Antes da guerra, Mikhail
eraresponsávelporperseguir
colaboradores dos rebeldes,
ou “terroristas”, como cha-
ma. Despediu-se de Lugansk
hápoucomaisdeummês,se-
manas antes que seus pais
tambémdeixassemacidade.
Segundo Mikhail, sua
maior preocupação era a de
receber cobertores para en-
frentar o duro inverno do
país, que pode chegar aos 30
graus negativos. Ele afirma
estar desempregado e que
suas economias não dão pa-
ra muito tempo.
Após quase seis meses de
conflito, é difícil dizer com
exatidãoonúmerodevítimas
dashostilidadesnaregiãoou
até mesmo se os enfrenta-
mentos armados um dia irão
ter fim. Na Ucrânia, nota-se
que o pessimismo e o medo
imperam nas conversas.
Segundo a Organização
das Nações Unidas, já são ao
menos3.000mortes.Especu-
la-sequeonúmerodevítimas
civisnaregiãodeDonetskse-
jasuperioramil,easituação
tende a piorar nas próximas
semanas caso não se abram
corredores humanitários e
cessem definitivamente as
hostilidades.
DeacordocomONGscomo
os Médicos Sem Fronteiras,
trabalhar na região é extre-
mamente arriscado, e os re-
cursos começam a acabar.
Inúmeros hospitais foram
bombardeados nos últimos
meses e falta material médi-
co para tratar em torno de
6.200 feridos.
ABRIGO EM FÁBRICA
Devido à violência fora de
controle em Donbas, Sergei
Makarenki, 45, vive hoje em
uma fábrica abandonada
dentrodeKievcomoutras190
pessoas.
AssimqueoExércitoucra-
niano expulsou os rebeldes
da cidade vizinha de Slo-
viansk, no início dos enfren-
tamentos,elecontaqueseviu
obrigadoafugir,deixandofa-
miliares e amigos.
Sergei diz ter muita ener-
gia e que, apesar das pernas
amputadas,nãohesitaemse
sacrificarparadarsegurança
ao filho pequeno e à mulher,
grávida de uma menina. No
abrigo,dormemembeliches,
num espaço apertado e úmi-
do dividido do corredor por
uma cortina.
Longe de casa, a solução
foivivertemporariamenteno
abrigo,deonde,prevê,deve-
rá ir embora antes que nasça
o bebê, em novembro.
“Nestasemana,soubeque
haviam assassinado o meu
tioporque,segundoosrebel-
des, ele havia roubado. Meu
tio não era ladrão. Julgaram
ele ali, no meio da rua.”
Mesmo com o cessar-fogo
assinado no dia 5 de setem-
bro em Minsk, na Bielorrús-
sia,Sergei,quemantémcon-
tato quase diário com Do-
netsk, afirma que no leste,
hoje, o caos impera. “Os re-
beldes fazem o que querem.
Matam,roubam,sequestram.
Não existe lei.”
MILÍCIA GOVERNISTA
As tropas pró-Rússia, en-
tretanto, não são as únicas a
aterrorizar a população, se-
gundo a Anistia Internacio-
nal, que denuncia voluntá-
rios como o Batalhão Aidar,
um dos 30 grupos que lutam
ao lado do governo.
ForadahierarquiadoExér-
cito, esses combatentes co-
metercrimescomoextorsões
e execuções sumárias.
Até abril, cerca de 4 mi-
lhões de habitantes viviam
nas áreas atualmente dispu-
tadas entre as tropas do pre-
sidentePetroPoroshenkoeo
exército rebelde.
De acordo com a Agência
daONUparaRefugiados(Ac-
nur), contando com aqueles
que viviam na Crimeia, em
torno de 1 milhão de pessoas
abandonaram o lar, número
que vem disparando nos úl-
timos meses.
Dentro do país —sem con-
siderar os refugiados em na-
ções vizinhas como Moldá-
via, Romênia e, principal-
mente, Rússia— são mais de
310 mil deslocados oficial-
mente cadastrados.
Muitos,noentanto,nãose
registram e, por isso, não fa-
zem parte dos números. Ou-
tros, com a retomada de ter-
ritórios pelo Exército nacio-
nal,retornamparacasa,mas
permanecemnasestatísticas.
Aqueles que não tiveram
tantasortedependemdaaju-
da da sociedade civil.
Viktoria Grushenko, 31,
deixou a localidade de Hor-
livka, 43 km ao norte Do-
netsk, após receber a notícia
dequeasituaçãohaviasede-
teriorado. Em lágrimas, rela-
ta que luta para prosseguir
com o tratamento de seus
dois filhos, com deficiência
nas pernas.
“Estou desesperada, mas
não voltamos para casa por-
que os rebeldes estão obri-
gando os homens a comba-
ter”, conta. “Como se não
bastasse, meu irmão foi se-
questradoaoladodeumami-
go. Por sorte, ele conseguiu
fugir, mas o amigo acabou
morto.”
Cerca de 310 mil
pessoas tiveram de
se deslocar por causa
dos confrontos entre
exército e rebeldes
Civis deslocados por conflito com separatistas temem represálias e inverno rigoroso do país
Ucranianosbuscamacapital,Kiev,
paraescaparderegiõesemguerra
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM KIEV
Das cerca de 1 milhão de
pessoas que migraram inter-
namente na Ucrânia por mo-
tivosdesegurança,ahistória
de Boris Danichev, 51 anos,
destaca-se por um detalhe.
Com a anexação da Cri-
meia pelos russos, na região
do Mar Negro, Boris fugiu da
cidade de Sebastopol com a
família. Embora sem ter on-
dedormirinicialmente,dere-
pente se viu abrigado dentro
daquela que foi, até o início
deste ano, residência do ex-
presidente do país Viktor Ya-
nukovich,emNoviPetrivitsi,
ao norte de Kiev.
No dia 22 de fevereiro de
2014, a falta de apoio popu-
larobrigouYanukovichadei-
xar o país às escondidas —
conta-se, na capital, que le-
vouconsigoosseguranças,a
amante e maletas com mi-
lhões de dólares.
Uma semana depois, sol-
dadosrussosdesembarcaram
na Crimeia, controlando edi-
fícios públicos com apoio de
grande parte da população,
identificada historicamente
com o país vizinho
Umreferendofoirealizado
pouco mais de 15 dias após a
invasão,e,aindaqueoresul-
tado seja controverso, 97%
dos eleitores legitimaram a
anexação à Rússia.
BorisDanichevédeorigem
tártara crimeana. É muçul-
manosunita,razãopelaqual
temia ser perseguido por na-
cionalistas ortodoxos russos
e pela qual decidiu se mudar
paraKievcomesposaefilhos.
Aochegarnacidade,Boris
encontrouajudanaEuromai-
dan, conjunto de manifesta-
ções sociais que tiveram iní-
cio durante o último inverno
echegouareunir800milpes-
soasnapraçaIndependência
da capital. “Vi um cartaz nu-
ma barraca que dizia ‘SOS
Crimeia’”, conta. “Conversei
comeles,emeofereceramca-
sa e trabalho”.
INVERNO
Hoje,seusdoisfilhosmaio-
res podem novamente fre-
quentar a escola e, para ele,
aocontráriodetantosoutros
deslocados internos, a apro-
ximação do inverno já não
causa preocupações.
Boris recebe ajudas finan-
ceirasdogovernoedaAcnur
(agência da ONU para refu-
giados) para famílias nume-
rosas e trabalha como jardi-
neironamesmapropriedade,
quetemaotodo140hectares.
Atualmente administrada
por participantes da Euro-
maidan, além de servir abri-
goparaosmaisnecessitados,
apropriedadeéparadadetu-
ristas interessados na histó-
ria recente do país.
Boris conta que não paga
aluguel, mas que sonha um
dia voltar a exercer sua anti-
ga profissão, a carpintaria.
Vive, é certo, em um aloja-
mentonaentradadoterreno.
A mansão do ex-presidente
viroumuseu.Entretanto,ape-
sardosustoinicial,elesesen-
te privilegiado.
“Li na imprensa que, na
Crimeia, estão invadindo
apartamentos de muçulma-
nos atrás de provas para in-
criminá-los.EmKiev,porém,
não noto nenhuma discrimi-
nação”, afirma.
“Aqui nunca tivemos pro-
blemas.Porlá,háanosqueo
nacionalismo alimenta dis-
cursos políticos, gerando
ódioeafastandoaspessoas.”
SITUAÇÃO VULNERÁVEL
O caso de Boris, contudo,
é uma exceção.
Muitosdeslocadosnãotêm
a mesma sorte e, apenas na
capital,sãoaproximadamen-
te 37 mil pessoas oficialmen-
teregistradasemsituaçãode
vulnerabilidade, incluindo
crianças, mulheres grávidas
e idosos.
Sãopessoas,emsuamaio-
ria,queperderamsuascasas,
parentes, ou cujos maridos e
filhosestãocombatendo.(TSS)
Refugiadotoma
contadejardim
deex-presidente
Abrigo em fábrica
abandonada na capital
ucraniana, Kiev, onde
moram 190 pessoas
sergei makarenki, 45, que fugiu da região de Donbas
Doações para civis ucranianos deslocados pelo conflito
FotosThomásS.Selistre/Folhapress