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david grachat
“A MINHA VIDA
DEU UM FILME” 372 7 N O V E M B R O 2 0 1 136 2 7 N O V E M B R O 2 0 1 1
Éumdosmelhoresatletasportuguesesdaactualidade,maspoucossabemoseunome.DavidGrachat,
de24anos,énadadorparalímpicoeprepara-searduamenteparaosseussegundosJogosParalímpicos.
Foi essa preparação que esteve no centro das filmagens de um documentário, que era para ser apenas um
trabalho académico, mas que alcançou dimensão acima do esperado
TEXTO R U I J O R G E T R O M B I N H A S FOTOGRAFIAS L U Í S M A N U E L N E V E S / G L O B A L I M A G E N SREPORTAGEM
Foi Felippe Gonçalves, na altura es-
tudante de Cinema na Universidade da
Beira Interior, quem se lembrou de Da-
vid Grachat, um nadador português que
nasceu sem a mão esquerda, fruto de
uma malformação. O caminho de am-
bos ainda não se tinha cruzado. Não se
conheciam e, caso o cineasta brasileiro
tivesse pensado em fazer qualquer ou-
tra coisa para o seu trabalho de final de
curso, provavelmente nunca se conhe-
ceriam. O destino quis que assim fosse.
O realizador do documentário ‘S9-David
Grachat’ explica como tudo começou.
“Quando decidi fazer um documentá-
rio, não tinha o David em mente. Since-
ramente, não houve nada em específico
que me tenha feito decidir por este tema
da natação adaptada, foi uma combi-
nação de acontecimentos... Segui pela
área da natação, talvez por já ter pratica-
do quando criança e por sempre ter tido
uma admiração pelo desporto e pelo ele-
mento da água, que acreditava poder ter
um impacto interessante no filme... A es-
colha de trabalhar mais especificamente
a natação adaptada aconteceu por achar
que os atletas paralímpicos em Portugal
são pouco reconhecidos, ao contrário por
exemplo de outros países como o Brasil
onde temos vários atletas paralímpicos
reconhecidos a nível nacional. Sinto que
há ainda algo por fazer neste sentido em
Portugal, tirar a ideia da sociedade de
que estes atletas são “coitadinhos” e vis-
tos de forma diferente por muitos. Tentei
com o “S9-David Grachat” caminhar nes-
te sentido e tentar contribuir um pou-
co para esta mudança de mentalidade.
Analisei vários atletas e no final escolhi
abordar o David por ser um atleta jovem,
mas com bastante ‘bagagem’, pela dispo-
nibilidade dele desde o início, pela sim-
patia, por já ter estado nuns Jogos Pa-
ralímpicos e poder dar este testemunho,
por uma série de factores que tinha em
mente e achava importante transmitir
com o filme.”
UM “SE”
MUITO GRANDE
Com uma prestação tão positiva no mundo
da natação adaptada é natural que David se
questione sobre até onde conseguiria chegar,
caso não tivesse a deficiência na mão esquerda.
Afinal, o seu recorde nacional nos 100 metros
(57’55’’) está muito perto do recorde absoluto
de Alexandre Agostinho (49’50’’). “Claro que me
questiono. Às vezes, em treino, nado ao lado de
colegas sem deficiência e consigo acompanhá-
los e dou por mim a pensar que se tivesse as duas
mãos poderia ficar à frente deles. Mas isto é um
se muito grande. Se calhar se tivesse as duas
mãos nem estaria a fazer natação...”
REPORTAGEM38 2 7 N O V E M B R O 2 0 1 1 392 7 N O V E M B R O 2 0 1 1
Do lado de David a abordagem não po-
dia ter causado maior surpresa. O primei-
ro contacto foi há sensivelmente um ano
e a resposta foi imediata. “Aceitei de ime-
diato, logo após ter ouvido as ideias dele.
A natação adaptada não é muito vista e
não era normal que alguém se lembras-
se de fazer um documentário sobre um
atleta desta modalidade.” Os meses que
se seguiram a esta apresentação mútua
foram de acompanhamento intenso. A
equipa de filmagens seguiu o nadador em
campeonatos, treinos e estágios e Grachat
passou a ser o centro de todas as aten-
ções. “Numa primeira fase não foi fácil.
Não estava habituado às câmaras e na al-
tura tinha uma sempre apontada a mim.
Mas com o passar do tempo fui deixando
de estranhar e passou a ser tudo natural.
Nunca me senti actor, fui sempre atleta.
Nunca fingi, mostrei-me como sou e acho
que era esse o objectivo, ver como eram
os meus treinos. Foi muito bom, este
são os meus minutos de fama. A
minha vida deu um filme...”
Ao todo foram 29 dias em comum com 25
horas de material bruto que produziram,
no final, um documentário de quarenta e
seis minutos. Para Felippe não foi fácil cap-
tar a história do David: “não teve que ver
com ele, essa é uma mentalidade minha.
Tento sempre fugir daquilo que é demasia-
do fácil. Gosto de trabalhar na fronteira en-
tre a ambição e a ilusão. A história do Da-
vid é uma história de muito trabalho, muito
treino e dedicação à modalidade, que nós,
eu e o meu assistente e sonoplasta Cristia-
no Guerreiro vimos e ficámos admirados
durante as três semanas em que acompa-
nhámos o dia-a-dia de treinos do David.”
O resultado final agradou e a ambição de
ambos é agora alta. O realizador pretende
divulgar o trabalho em alguns festivais de
cinema pois considera que será importan-
te receber críticas do meio cinematográfico.
Já Grachat pensa mais alto... “Talvez um dia
possa passar numa televisão portuguesa!”
Londres como
maior objectivo
O ponto central destas filmagens foi a
preparação de David para os Jogos Pa-
ralímpicos de 2012, que se realizam em
Londres. Será a segunda participação do
nadador da GesLoures, que em 2008 este-
ve em Pequim com resultados interessan-
tes, nomeadamente o sexto lugar
na final dos 100 metros livres,
um lugar que na altura soube
a ouro, segundo as palavras
do próprio. Para o próximo
ano o objectivo é, para já,
modesto. “Não vou colo-
car expectativas eleva-
FUTURO TREINADOR?
A alta competição não é eterna e, por isso, David já prepara o futuro. Estuda
Ciências do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana, e espera usar esses
ensinamentos no futuro. “Para já, a natação é o meu trabalho. Em 2010 retomei
os estudos, mas no início de 2012 vou congelar a matrícula para me dedicar a
100 por cento à preparação dos Jogos de Londres. Mas o objectivo é terminar o
curso, claro. Gostava de ser treinador no futuro, para ficar ligado a este desporto
durante muito tempo.”
“NUMA
PRIMEIRA FASE
NÃO FOI FÁCIL.
NÃO ESTAVA
HABITUADO
ÀS CÂMARAS
E TINHA UMA
SEMPRE APONTADA
A MIM. MAS COM O
TEMPO PASSOU A
SER TUDO NATURAL”,
EXPLICA DAVID
das. Em 2008 tinha-as bem lá em cima
para os 50 metros livres e acabei por ficar
em nono lugar. Fiquei frustrado. Agora só
prometo bater os meus recordes e atingir
as finais. É claro que tudo farei para atin-
gir as medalhas e se vierem serão muito
bem-vindas.” Estar no maior even-
to desportivo do mundo é um
sonho para qualquer atleta de
alta competição e David não é
excepção, especialmente desde
Atenas. “Falhar o apuramento para os Jo-
gos de 2004 foi o meu ponto de viragem.
Tinha 16 anos e fiquei de fora pois só atingi
os mínimos duas semanas depois da data
limite. A partir dessa altura decidi empe-
nhar-me ainda mais na minha actividade
de forma a poder estar presente nos cam-
peonatos seguintes.”
A praticar natação desde os dois anos,
na altura por recomendação médica,
Grachat iniciou a competição aos 10,
um pouco cedo, na sua opinião. A ver-
dade é que o empenho deu resultados
e em 2009 bateu os recordes europeus
nos 50 e 100 metros livres. No
palmarés tem uma me-
dalha de prata nos 400
metros livres e uma de
bronze nos 100 me-
tros livres, ambas no
Campeonato da Eu-
ropa em 2009. Quem
sabe se 2012 traz o
sabor olímpico... de
verdade!
AGRADECIMENTOS
GESLOURES
O realizador
Felippe Gonçalves
com David Grachat

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A vida de David deu um filme

  • 1. david grachat “A MINHA VIDA DEU UM FILME” 372 7 N O V E M B R O 2 0 1 136 2 7 N O V E M B R O 2 0 1 1 Éumdosmelhoresatletasportuguesesdaactualidade,maspoucossabemoseunome.DavidGrachat, de24anos,énadadorparalímpicoeprepara-searduamenteparaosseussegundosJogosParalímpicos. Foi essa preparação que esteve no centro das filmagens de um documentário, que era para ser apenas um trabalho académico, mas que alcançou dimensão acima do esperado TEXTO R U I J O R G E T R O M B I N H A S FOTOGRAFIAS L U Í S M A N U E L N E V E S / G L O B A L I M A G E N SREPORTAGEM Foi Felippe Gonçalves, na altura es- tudante de Cinema na Universidade da Beira Interior, quem se lembrou de Da- vid Grachat, um nadador português que nasceu sem a mão esquerda, fruto de uma malformação. O caminho de am- bos ainda não se tinha cruzado. Não se conheciam e, caso o cineasta brasileiro tivesse pensado em fazer qualquer ou- tra coisa para o seu trabalho de final de curso, provavelmente nunca se conhe- ceriam. O destino quis que assim fosse. O realizador do documentário ‘S9-David Grachat’ explica como tudo começou. “Quando decidi fazer um documentá- rio, não tinha o David em mente. Since- ramente, não houve nada em específico que me tenha feito decidir por este tema da natação adaptada, foi uma combi- nação de acontecimentos... Segui pela área da natação, talvez por já ter pratica- do quando criança e por sempre ter tido uma admiração pelo desporto e pelo ele- mento da água, que acreditava poder ter um impacto interessante no filme... A es- colha de trabalhar mais especificamente a natação adaptada aconteceu por achar que os atletas paralímpicos em Portugal são pouco reconhecidos, ao contrário por exemplo de outros países como o Brasil onde temos vários atletas paralímpicos reconhecidos a nível nacional. Sinto que há ainda algo por fazer neste sentido em Portugal, tirar a ideia da sociedade de que estes atletas são “coitadinhos” e vis- tos de forma diferente por muitos. Tentei com o “S9-David Grachat” caminhar nes- te sentido e tentar contribuir um pou- co para esta mudança de mentalidade. Analisei vários atletas e no final escolhi abordar o David por ser um atleta jovem, mas com bastante ‘bagagem’, pela dispo- nibilidade dele desde o início, pela sim- patia, por já ter estado nuns Jogos Pa- ralímpicos e poder dar este testemunho, por uma série de factores que tinha em mente e achava importante transmitir com o filme.”
  • 2. UM “SE” MUITO GRANDE Com uma prestação tão positiva no mundo da natação adaptada é natural que David se questione sobre até onde conseguiria chegar, caso não tivesse a deficiência na mão esquerda. Afinal, o seu recorde nacional nos 100 metros (57’55’’) está muito perto do recorde absoluto de Alexandre Agostinho (49’50’’). “Claro que me questiono. Às vezes, em treino, nado ao lado de colegas sem deficiência e consigo acompanhá- los e dou por mim a pensar que se tivesse as duas mãos poderia ficar à frente deles. Mas isto é um se muito grande. Se calhar se tivesse as duas mãos nem estaria a fazer natação...” REPORTAGEM38 2 7 N O V E M B R O 2 0 1 1 392 7 N O V E M B R O 2 0 1 1 Do lado de David a abordagem não po- dia ter causado maior surpresa. O primei- ro contacto foi há sensivelmente um ano e a resposta foi imediata. “Aceitei de ime- diato, logo após ter ouvido as ideias dele. A natação adaptada não é muito vista e não era normal que alguém se lembras- se de fazer um documentário sobre um atleta desta modalidade.” Os meses que se seguiram a esta apresentação mútua foram de acompanhamento intenso. A equipa de filmagens seguiu o nadador em campeonatos, treinos e estágios e Grachat passou a ser o centro de todas as aten- ções. “Numa primeira fase não foi fácil. Não estava habituado às câmaras e na al- tura tinha uma sempre apontada a mim. Mas com o passar do tempo fui deixando de estranhar e passou a ser tudo natural. Nunca me senti actor, fui sempre atleta. Nunca fingi, mostrei-me como sou e acho que era esse o objectivo, ver como eram os meus treinos. Foi muito bom, este são os meus minutos de fama. A minha vida deu um filme...” Ao todo foram 29 dias em comum com 25 horas de material bruto que produziram, no final, um documentário de quarenta e seis minutos. Para Felippe não foi fácil cap- tar a história do David: “não teve que ver com ele, essa é uma mentalidade minha. Tento sempre fugir daquilo que é demasia- do fácil. Gosto de trabalhar na fronteira en- tre a ambição e a ilusão. A história do Da- vid é uma história de muito trabalho, muito treino e dedicação à modalidade, que nós, eu e o meu assistente e sonoplasta Cristia- no Guerreiro vimos e ficámos admirados durante as três semanas em que acompa- nhámos o dia-a-dia de treinos do David.” O resultado final agradou e a ambição de ambos é agora alta. O realizador pretende divulgar o trabalho em alguns festivais de cinema pois considera que será importan- te receber críticas do meio cinematográfico. Já Grachat pensa mais alto... “Talvez um dia possa passar numa televisão portuguesa!” Londres como maior objectivo O ponto central destas filmagens foi a preparação de David para os Jogos Pa- ralímpicos de 2012, que se realizam em Londres. Será a segunda participação do nadador da GesLoures, que em 2008 este- ve em Pequim com resultados interessan- tes, nomeadamente o sexto lugar na final dos 100 metros livres, um lugar que na altura soube a ouro, segundo as palavras do próprio. Para o próximo ano o objectivo é, para já, modesto. “Não vou colo- car expectativas eleva- FUTURO TREINADOR? A alta competição não é eterna e, por isso, David já prepara o futuro. Estuda Ciências do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana, e espera usar esses ensinamentos no futuro. “Para já, a natação é o meu trabalho. Em 2010 retomei os estudos, mas no início de 2012 vou congelar a matrícula para me dedicar a 100 por cento à preparação dos Jogos de Londres. Mas o objectivo é terminar o curso, claro. Gostava de ser treinador no futuro, para ficar ligado a este desporto durante muito tempo.” “NUMA PRIMEIRA FASE NÃO FOI FÁCIL. NÃO ESTAVA HABITUADO ÀS CÂMARAS E TINHA UMA SEMPRE APONTADA A MIM. MAS COM O TEMPO PASSOU A SER TUDO NATURAL”, EXPLICA DAVID das. Em 2008 tinha-as bem lá em cima para os 50 metros livres e acabei por ficar em nono lugar. Fiquei frustrado. Agora só prometo bater os meus recordes e atingir as finais. É claro que tudo farei para atin- gir as medalhas e se vierem serão muito bem-vindas.” Estar no maior even- to desportivo do mundo é um sonho para qualquer atleta de alta competição e David não é excepção, especialmente desde Atenas. “Falhar o apuramento para os Jo- gos de 2004 foi o meu ponto de viragem. Tinha 16 anos e fiquei de fora pois só atingi os mínimos duas semanas depois da data limite. A partir dessa altura decidi empe- nhar-me ainda mais na minha actividade de forma a poder estar presente nos cam- peonatos seguintes.” A praticar natação desde os dois anos, na altura por recomendação médica, Grachat iniciou a competição aos 10, um pouco cedo, na sua opinião. A ver- dade é que o empenho deu resultados e em 2009 bateu os recordes europeus nos 50 e 100 metros livres. No palmarés tem uma me- dalha de prata nos 400 metros livres e uma de bronze nos 100 me- tros livres, ambas no Campeonato da Eu- ropa em 2009. Quem sabe se 2012 traz o sabor olímpico... de verdade! AGRADECIMENTOS GESLOURES O realizador Felippe Gonçalves com David Grachat