SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 26
Baixar para ler offline
"JOE"
Juliana Adorna Cremonesi
Adaptação literária de "Joe, A Morte dos Sonhos"
End.: Rua Renato ópice, 90
Cidade: Araraquara, SP
País: Brasil
E-mail:
juliana.adorna@gmail.com
Cel.: +55(16)99623-01886
FADE IN
1. EXT. PRAÇA - NOITE
Praça deserta, tendas das barraquinhas vazias da feira
balançam com o vento.
Barulho do vento nas folhas das árvores.
Chão úmido, lixo espalhado pela praça, garrafas quebradas,
goiabas pisoteadas na calçada.
MULHER (O.S.)
Você tem horas?
Joe, olhando para o chão, está sentado à deriva numa
mureta que delimita um jardim. Ele ergue a cabeça, encara
a mulher e estende o braço do relógio para que ela mesma
veja.
Começam a chegar caminhões de frutas, um deles estaciona
perto da calçada onde Joe está sentado.
O caminhão despeja as frutas, soterrando-o com goiabas.
--ESTRONDO-
PRETO
JOE (V.O.)
(em eco de trás para frente)
A vida acaba.
Ao mesmo tempo surge --JOE- em branco centralizado no
fundo preto.
FADE IN
2. INT. HOSPITAL - DIA
#1
Senta-se na cama,coloca os pés no chão e leva um tombo,
desmaia. O sangue começa a sair de seu nariz e escorrer
pelo chão.
#2
As rodas da cadeira circulam por um corredor, médicos e
enfermeiros andam apressados.
#3
Com o nariz enfaixado passeando pela SALA DE LEITURA do
hospital, gira a cadeira de rodas desordenado apertando os
botões.
Se engana de comando e tromba com uma estante derrubando
alguns livros. Ignora e continua a perambular pelos
arredores da sala.
2.
3. INT. AÇOUGUE - DIA
Um táxi estaciona num calçadão, Joe desce com a ajuda do
taxista. Vai até o açougue, observa as carnes penduradas e
um açougueiro com uniforme branco sujo, há uma fila para
ser atendido. Todos olham para ele e o deixam passar na
frente.
CORTA PARA
4. EXT. RUA - DIA
Joe sai com uma sacola, vê um CÃO vira-lata deitado na
calçada, se aproxima e joga um pedaço de carne. O cão
devora.
4. INT. QUARTO - NOITE
Um pote de ração do lado da cômoda.
Joe põe a coleira no cão da rua, faz umas manobras e senta
na cama. Pega um remédio em cima do criado-mudo, toma-os,
deita-se e fecha os olhos.
5. EXT. TERRAÇO - NOITE
Carne assando na churrasqueira.
Joe abocanha um pedaço da carne, mastiga devagar,
deliciando-se.
Gira a cadeira, observa o local, não há ninguém.
Vai até a beira da piscina.
Acende um cigarro e, de repente, é puxado para trás.
Vira-se e vê uma velha segurando o empurrador de sua
cadeira de rodas; ela sorri.
VELHA
Tenha cuidado, meu jovem.
JOE
(sorrindo sem graça)
Obrigado.
6. EXT. RUA - DIA
Joe sai pelo portão de seu prédio e circula pela calçada
com seu cão acompanhando.
Várias pessoas caminham apressadas.
Faz ziguezagues com a cadeira de rodas.
7. EXT. LOJA - RUA - DIA
#1
Joe lê um papel, olha para cima com mão no queixo,
resmungando pensativo. Pega três vidros de remédio da
prateleira.
2#
3.
Joe cola discretamente o explosivo improvisado (com os
componentes comprados na farmácia e na livraria) sob a
coleira do cão. Escreve em seu dorso com tinta preta
--JOE-
#3
Sai de uma loja de calçados vestindo um chapéu marrom.
Olha-se no espelho de uma vitrine.
Na frente de seu prédio chega um táxi.
#4
Joe abraça o cão, tira um isqueiro do bolso e acende a
bomba que está colada nele. Entra no táxi.
#5
O cão explode.
#6
O sangue escorre pela vitrine atrás de Joe.
#7
O carro anda, Joe com o olhar fixo para frente. Respira
fundo e resmunga algo.
TAXISTA
(olhando pelo retrovisor)
Disse alguma coisa, senhor?
JOE
(apontando para frente)
Vou para o Centro.
#7
Pedaço do cão onde está escrito --JOE- no meio da poça de
sangue na sarjeta.
FADE OUT
8. EXT. RUA - DIA
Joe se depara com um rapaz vendendo goiabas.
GOIABEIRO
Ei senhor, vamos levar umas
goiabas? Estão fresquinhas!
Joe o encara em silêncio.
O goiabeiro olha na espera de uma resposta.
JOE
Quanto?
GOIABEIRO
Das vermelhas ou das brancas?
JOE
Das podres...
4.
GOIABEIRO
Ahn, podres não tenho não,
senhor. Se alguma estiver pode
voltar aqui e reclamar que te dou
outra.
JOE
Por que não tem podres?
GOIABEIRO
Ora... Porque não como vermes!
JOE
Comporta-se como um.
GOIABEIRO
(coçando a cabeça e olhando
para baixo)
Olha meu senhor, só tô fazendo
meu trabalho honestante... se não
quer comprar me deixa em paz
aqui. Algo mais?
JOE
O senhor sabe me dizer qual o
sentido da vida?
GOIABEIRO
Ahn... Vender goiabas.
JOE
Me refiro ao sentido da vida como
um todo...
GOIABEIRO
Sei... Bem, então comprar as
minhas goiabas.
JOE
Estou diante do centro do
universo então...?
GOIABEIRO
(soltando risinhos)
Isso, se quer goiabas, sim...
JOE
Boa resposta... Gostei, me vê uma
dúzia.
GOIABEIRO
Das brancas ou das vermelhas?
CORTA PARA
5.
9. INT. CASA DE JOE - DIA
Da cama Joe observa as rodas de sua cadeira. Um cão começa
a latir, assusta-se e bate na mesa irritado.
#1
A porta de entrada da casa se abre, Joe entra vestindo
chapéu e segurando uma sacola.
Coloca a sacola na mesa.
Acende um cigarro.
Tira da sacola um pacote e um pote de veneno, desembrulha
o pacote, lá tem um punhado de carne.
#2 Senta na cadeira da cozinha fumando. Em TIME-LAPSE, da
janela se vê anoitecer entre a fumaça do cigarro.
#3
Sai do portão do prédio carregando a carne embrulhada.
10. EXT. RUA - NOITE
Circula pela calçada e para em frente ao portão da casa do
vizinho.
Olha para o cão aos latidos.
Tem um FLASHBACK do sangue do seu cão espirrando na
vitrine.
Joga a carne, o cão se aproxima e come.
Joe lança um cuspe no chão e vai embora.
FADE OUT
11. INT. - CASA DE JOE/SACADA - NOITE
Música calma. Ouve o cão uivar e as luzes da casa se
acenderem. Fecha os olhos, se inclina para trás, esboça um
sorriso. A música continua com maior evidência.
FADE OUT
12. INT. CASA DE JOE/BANHEIRO - DIA
Joe está de frente para o espelho aparando sua barba.
O espelho o reflete (até o peito) envolto em ESCAMAS. Ele
se encara.
JOE (V.O.)
Hoje é meu aniversário...
Começam a cair as escamas.
JOE (V.O.)
Engraçado... em dias de
aniversário parece que é acionada
uma percepção que faz a gente
olhar pra esse passar do tempo...
como se nos outros dias esse
6.
JOE (V.O.)
tempo estivesse imóvel.
Eu gosto dessa sensação... essa
sensação de.. de fluir pro nada
de uma vez só... de ficar cada
vez mais nu imerso nessa
atmosfera ácida em decomposição.
A escama cai toda e sua pele começa a ser corroída,
aparece a derme.
Joga água no rosto.
FADE OUT
13 - INT. BIBLIOTECA - DIA
Joe circula pelas prateleiras com um pacote de castanhas
na mão, e vai comendo-as.
Um bibliotecário se aproxima.
BIBLIOTECÁRIO
Posso ajudar?
Joe olha para seu crachá e imagina estar escrito: O
SENTIDO DA VIDA É DAR MEIA VOLTA E SUMIR.
JOE
Sim, Obrigado.
Dá-lhe as costas e continua a circular pelas prateleiras.
Pega três livros e os apoia na mesa da sala de leitura.
Abre-os, começa a ler.
Arranca algumas páginas e continua a ler.
Algumas pessoas próximas olham de esgueio, um garoto com
aparelho nos dentes vira-se para ele.
GAROTO
Ei, por que você tá rasgando o
livro?
JOE
Esse blablablá introdutório
seperestimado desses clássicos...
é patético... deixa o livro com
excesso de gordura e... e... E
que é que você tem a ver com
isso, pivete?
GAROTO
Olha, eu vou contar aos
bibliotecários que você...
JOE
(se aproximando do rosto do
menino, sussurra)
Faz isso faz, seu merdinha...
arranco teu cérebro daí de dentro
7.
JOE
e você também vai ficar bem
levinho.
Tira discretamente um canivete de seu bolso, mostrando-o
ao garoto.
O garoto se assusta, pega seus livros e sai da sala
ligeiramente.
Joe bota um chiclete na boca e mastiga devagar,
acompanhando-o com olhar.
Volta à leitura.
14. INT. BOTECO - NOITE
Entra no boteco, uma espelunca, poucas pessoas.
Vai até o balcão. Não há ninguém.
Olha para o lado: cinco homens jogando sinuca.
JOE
Hey! Alguem aqui pode me atender?
ATENDENTE
Oh sim, só um minutinho, já tô
indo, segura ai!
Joe entorta a cara e respira fundo. Acende um cigarro,
olha o atendente entretido e fica impaciente.
Pega um taco, vai ate a mesa onde jogam, empurra a bola
branca e a encaçapa. Todos olham quietos. Joe bate o taco
no chão e dá um "sorriso amarelo".
15. EXT. RUA - DIA
Saindo do bar, leva um tombo da cadeira, havia um pequeno
degrau entre o bar e calçada. Uns velhinhos numa mesa
próxima o ajudam a levantar. Joe começa a esbravejar e
segue resmungando.
Um mendigo se aproxima.
MENDIGO
Uma esmolinha, senhor?
Joe levanta a cabeça, olha pra ele rapidamente e continua
a resmungar de modo ininteligível.
O mendigo o segue, encara-o e aproxima seu ouvido dele.
Abre a boca querendo dizer algo, mas desiste.
Para de andar e o segue só com o olhar, coça a cabeça
desentendido.
16. INT. CASA DE JOE - NOITE
Joe abre a porta de entrada.
VIZINHOS
(em uníssono)
Feliz aniversário, Joe!
8.
Todos os vizinhos reunidos em sua sala enfeitada com
bexigas.
A vizinha velha aparece segurando um bolo confeitado,
sorri e cumprimenta-o.
Outros aproximam-se e lhe dão abraços, Joe recebe-os
passivamente e agradece. Observa sua sala cheia de
pessoas.
JOE
Vou buscar uma bebida pra nós. Já
volto.
17. EXT. RUA - TERRENO - NOITE
Saindo do mercadinho, tira a garrafa de vodca.
Abre a garrafa, dá um gole bem longo e derrama um vidro
todo de sonífero dentro.
Entra num terreno baldio e faz xixi dentro da garrafa,
chacoalha.
18. INT. CASA DE JOE - NOITE
As pessoas brindam alegres, Joe com um copo de coca-cola
na mão.
VIZINHO
(entusiasmado falando mole)
Toma aqui esse meu caro Joe! -
estendendo um copo com a bebida.
JOE
Poxa, eu não posso beber... tô
tomando antibiótico, sabe como
é... esse clima meio frio e seco
tá foda.
VIZINHO
Ahhhh deixa de caretice! Hoje é
um dia especial, meu jovem! Dá só
uns golinhos aqui, oras!
ESPOSA DO VIZINHO
(chega oferecendo um prato
de bolo)
Come isso, querido, tá uma
delícia, foi a DORA que fez!
Abaixa a cabeça e olha para Joe.
ESPOSA DO VIZINHO
Ah oi! Meus parabéns, viu! Que
você seja sempre essa pessoa
batalhadora que superou tantas
dificuldades, né? Imagino que não
seja nada fácil adaptar sua vida
sem poder andar mais, é preciso
ter muita fé e coragem mesmo. Te
9.
ESPOSA DO VIZINHO
admiro muito por isso, que deus
continue te abençoando viu,
ahn...
VIZINHO
(sussurrando no ouvido da
esposa)
Joe...
ESPOSA DO VIZINHO
(continua, sorri
constrangida)
Joe! Isso... Ahn, bom, vou pegar
um pedaço de bolo pra você
também, okay? Já volto!
Anda em direção oposta.
ESPOSA DO VIZINHO
(gritando)
Junior, já falei pra parar com
essa correria!
Joe solta um grunhido discreto e se afasta.
Olha seu relógio de pulso, o ponteiro começa a derreter.
19. INT. CASA DE JOE - QUASE 1H DEPOIS
Burburinhos baixos. Os vizinhos, com olhos caídos e
bocejando, começam a ir embora.
Joe fecha a porta para o último, dá um suspiro esboçando
um sorriso.
20. INT. CASA DE JOE - DIA
Deitado. Senta na cama, puxa a cadeira de rodas e sobe
nela. Vai até a cozinha: um pequeno embrulho com fita e um
cartão em cima da mesa.
Pega-o, joga na privada e dá descarga.
#1
Maritacas fazem barulho, da varanda Joe as observa
empoleiradas no fio de um poste de luz.
#2
Vai até o quarto, pega sua espingarda de pressão no
guarda-roupas.
#3
Volta para a varanda.
Atira.
Uma se estatela no chão, as outras levantam vôo e vão
embora.
Abaixa a espingarda e apoia na parede da varanda.
10.
21. INT. CASA DE JOE - HORAS DEPOIS
Tique-taque do relógio ecoando.
Levanta da cama, vai até o banheiro, faz xixi, escova os
dentes, toma seu café, acende um cigarro, olha o horizonte
pela varanda e suspira aborrecido.
Põe a mão no bolso da calça, tira um cartão.
Dá meia volta e vai até a escrivaninha no seu quarto.
Liga o notebook.
Tela do computador: site de uma universidade.
Clica em --FILOSOFIA/CORPO DOCENTE-.
Pega o telefone e disca.
JOE
(no telefone)
Bom dia...
CORTA PARA
22. INT. UNIVERSIDADE - PRAÇA DE ALIMENTAÇÃO - DIA
Circula pelos corredores.
Para em frente a uma porta por uns segundos, vê um
professor velho franzino e carrancudo dando aula.
#1
Chega na praça de alimentação, para próximo a uma mesa.
Observa o tumulto.
Compra uma coca-cola.
Despeja um vidro de purgante.
#2
O mesmo professor que viu dando aula há pouco se aproxima
passando pelo tumulto. Cumprimenta-o apertando a mão.
Joe oferece a bebida.
PROFESSOR
(dando um gole)
Obrigado. Então, em que posso
ajudar?
JOE
Bem... eu tinha uma questão, mas
acabo de encontrar a resposta num
livro que li agora na biblioteca
enquanto esperava o senhor.
PROFESSOR
Hum, é mesmo? Certo... e... bem,
o que ia me perguntar?
JOE
Sobre o sentido da vida.
PROFESSOR
Hum, questão complicada... e o
que o senhor descobriu sobre?
11.
JOE
Bem, o sentido da vida está numa
goiaba... descobri isso devido a
um cão que morava perto de
casa...
Professor começa a se mexer e respirar mais ofegante.
JOE (O.S.)
Hoje sou adepto da corrente
náuseo-catarrística de
pensamento, segundo o qual todos
são cuspidos na existência e
secam lentamente na sarjeta do
mundo.
O professor inquieto, pálido. Respira fundo.
PROFESSOR
Veja bem, meu rapaz, tenho 78
anos, sou aposentado e continuo
dando aula porque amo o exercício
do conhecimento. Você deve
imaginar que minha disposição
para brincadeiras é bem pequena,
sou um velho ocupado e não tenho
tempo a perder com gente
desinteressada. Com licença.
O professor levanta-se e sai apressadamente tentando não
cambalear.
Joe acompanha-o com o olhar e esboça um sorriso.
Com o rosto suado, o professor abre a porta do banheiro e
se depara com uma fila de homens.
23. INT. UNIVERSIDADE - SALA DE AULA - DIA
Som de pessoas conversando.
Entra Joe.
JOE
(aos gritos)
SILÊNCIO!
Todos se assustam. Silêncio.
JOE
(cochichos de fundo)
Sou o professor Joe Hans Einza,
Azurita passou mal agora no
intervalo e pediu pra eu dar essa
aula. Sou doutor em Filosofia da
Náusea.
12.
JOE
(apontando para um aluno que
ria no fundo da sala)
Você aí! Qual o tema da aula de
hoje?
ALUNO
O professor Azurita ia começar a
falar sobre ética.
JOE
(abre um pacote de castanhas
e começa a comer)
Hum, okay...
JOE
(de boca cheia)
E o que vocês me dizem sobre,
ahn, ética?
Todos em silêncio, com olhar sonolento.
Foco no rosto de Joe mastigando,
O plano se abre, o fundo da sala fica preto e um foco de
luz se instaura sobre Joe.
#1
Desenha no ar com o dedo a letra A ligando em pontilhados
com a letra B.
JOE
(seguindo com o dedo do
ponto A ao B)
O ponto A é o nascimento e o
ponto B é a morte.
Acende um cigarro, dá uma tragada longa e esbafora uma
densa fumaça em cima do desenho apagando-o.
JOE
Ética serve para percorrer esse
trajeto sem ser preso. Se alguém
aqui tiver cérebro não deve haver
dúvida até agora.
Bem, de acordo com a Filosofia da
Náusea, a ética tem uma função
sócio-higiênica bem clara e
específica. Vejamos...
Joga a bituca do cigarro no chão e continua.
Vamos supor que a existência seja
uma goiaba, que o homem seja o
verme da goiaba do ser.
Temos a goiaba em si e a
representação subjetiva dessa
mesma goiaba, uma realidade
criada por nós, vermes.
13.
Aparece a imagem de uma goiaba centralizada. Nos
aproximamos dela até “entrar”. Dentro há um homem nu
comendo as “paredes”/polpa da goiaba.
O plano se abre e vemos que de sua bunda sai um excremento
que vai direto grudar nessa parede da goiaba. O homem
rasteja e come esta “parede”/polpa.
JOE (V.O.)
Para transcender a realidade
subjetiva dos fenômenos, a
ciência nos ensinou a olhar pra
trás: com isso, vemos um rastro
de excrementos concretos, a
história de nossas vidas - aquilo
que chamo de sentido-esgoto,
ligando os pontos A e B.
O excremento que sai da bunda do homem se liga nos pontos
de A a B do desenho.
JOE (V.O.)
Então, a vida constitui-se
enquanto um movimento de
transmutação, convertendo a
essência do ser-goiaba em
essência fecal, um fenômeno
concretamente cagado. Aqui entra
a ética como ferramenta de
controle intestinal. Imaginem se
todos pudessem defecar
livremente, em qualquer canto,
sem qualquer critério. Tudo
descambaria numa grande
incontinência intestinal.
Então, a ética é para evitar que
o excremento-para-si se converta
em excremento-para-o-outro. Quem
não conseguir se segurar, quem
borrar as calças, vai preso.
Outros homens aparecem dentro dessa goiaba, cada um com um
tipo de sonda da bunda para a própria boca.
#2
Foco no rosto de Joe. Plano se abre lentamente.
JOE
A ética, então, é aquilo que
recicla e restringe o alcance de
nossos resíduos intestinais,
trazendo-os para nós novamente,
para que assim a vida em
sociedade seja possível sem que
os vermes defequem uns nos outros
o tempo todo.
14.
Volta a ser uma sala de aula
Todos da sala estão olhando-o fixamente. Uma aluna se
levanta e sai da sala.
JOE
(acompanhando com o olhar a
aluna sair)
Que falta de classe, não? Mas já
acabou mesmo...
Bem, por hoje isso é tudo. Para a
próxima aula quero que escrevam
uma dissertação respondendo a
seguinte questão
ético-intestinal: Por que se
segurar?
CORTA PARA
24. INT. UNIVERSIDADE - LANCHONETE - DIA
JOE
(apontando para o cardápio)
Quero isto.
#1
Através do vidro Joe vê o cozinheiro sovando a massa: um
homem muito gordo usando regata branca suja, braços e
costas peludas, careca e rosto oleosos e bigodes
ensebados.
O braço do cozinheiro começa a se misturar com a massa que
está sovando.
Aos poucos ele vai sendo engolido por essa massa.
Ao engolir o cozinheiro totalmente, a massa o cospe para
dentro da fornalha, a portinhola se fecha, ele fica preso
ali dentro.
Pelo vidro da portinhola vemos o cozinheiro expressar um
grito enquanto o fogo o toma.
#2
Foco no rosto de Joe: está absorto na imaginação.
GARÇONETE
(interrompendo seus
pensamentos)
Senhor? SENHOR?!
Joe “desperta” e a olha.
GARÇONETE
(entregando o lanche
embrulhado)
Aqui está seu lanche...
Joe dá meia volta e sai.
15.
GARÇONETE
(gritando)
Hey!
25. INT. CASA DE JOE - DIA
#1
Acorda num susto.
Dá um tiro numa maritacas.
O tiro acerta, ela começa a cair morta do fio
De repente [música] está caindo num túnel escuro que não
se vê o fim.
O pássaro se transforma em Joe que vai caindo até
desaparecer “engolido pelo vácuo”.
PRETO. Grito abafando ecoando
#2
O plano se abre saindo do umbigo de Joe.
Vemos Joe deitado no chão da sala, olhos arregalados para
o teto. Seus braços começam a movimentarem-se como
ponteiros de relógio. Dentro disso se forma um relógio
real, intercalado com imagens dos pés de uma multidão
alvoraçada pelas ruas com som e marcha.
Joe com um sino de igreja enfiado na cabeça sendo
martelado e emitindo o ruído forte junto com o som da
marcha.
O sino se transforma numa gaiola com a cabeça de Joe
dentro.
MATCH CUT
26. INT. - PETSHOP - DIA
Joe externo à gaiola observando os ratos dentro dela.
Coloca o dedo e espera um lhe morder.
JOE
(virando-se para o vendedor)
Vou levar este aqui.
O plano abre e fica possível ver o local com diversos cães
em gaiolas, Joe lança um olhar para um dos cães.
27. INT. CASA DE JOE - DIA
Olha para o cão com cara de carente.
Coloca um disco na vitrola.
Pega um faca e um saco de lixo.
Leva o cão até o banheiro, agarra-o num abraço, afaga sua
cabeça e quebra seu pescoço com esforço estremecendo até
dar o estralo.
Segura firme o cão enquanto convulsiona.
Ao parar, coloca-o no saco de lixo e posiciona o corpo com
a cabeça pendurada na banheira.
Joe de avental branco pega o cutelo, dá o primeiro corte
no pescoço, espirra sangue em seu rosto.
16.
Fecha o saco e coloca o corpo dentro do bidê separando-o
da cabeça.
De costas, vemos ele manipular a cabeça com outra faca.
Sangue por todo o azulejo do banheiro branco e facas no
chão enfileiradas.
28. INT. CASA DE JOE - QUARTO - HORAS DEPOIS
Um crânio em cima de sua escrivaninha.
Coloca um enchimento de travesseiro dentro, mergulha um
pincel num pote de tinta preta e escreve na "testa" do
crânio: NIHIL.
Coloca o rato lá dentro. Joe esboça um sorriso.
29. INT. CASA DE JOE - DIA
#1
A campainha toca. Joe abre. Um rapaz bem alto segurando
uma planta e uma maleta grande.
Olha para frente, ninguém. Abaixa a cabeça, vê Joe, abre
um sorriso.
AMBIENTALISTA
Senhor Joe? Olá! Vim plantar a
goiabeira que o senhor
encomendou.
JOE
Certo, me acompanhe.
Joe leva-o até sua varanda e aponta para um canteiro de
terra com algumas plantas.
JOE
Divirta-se.
Joe se afasta e vai para sala.
#2
Dá farelos de bolo ao rato e observa as formigas rodeando
sua gaiola, pegando as migalhas e levando ao formigueiro.
JOE (V.O.)
Pra que tanto esforço? Sabia que
depois daquela árvore não tem
nenhum formigueiro só pra você
como te disseram, não tem nada!
Joe pega a formiga na mão, aproxima-se bem para olhar de
perto e a esmaga com os dedos.
#3
AMBIENTALISTA
(grita empolgado)
Terminei sr. Joe, venha ver!
17.
Joe se aproxima e observa... balança a cabeça num gesto de
aprovação.
JOE
Que benção! Agora posso me sentir
completo e grato pelo milagre da
nossa mãe natureza, que
felicidade!
AMBIENTALISTA
Que lindo, senhor... ahh como o
mundo seria melhor se todos
pensassem e agissem assim. Posso
ver nos seus olhos que és um
homem de coragem, que passou por
dificuldades e superou
bravamente. Admiro quem tem essa
força e...
JOE
(olhando seu relógio de
pulso)
Nossa, já tá quase na hora da
missa. Quanto ficou o serviço?
AMBIENTALISTA
Ah sim, bom, é oitenta reais com
a goiabeira, mas como o senhor é
um homem bondoso e diferenciado
faço por setenta.
JOE
(arrancando o dinheiro da
carteira apressado)
Ótimo, tá aqui. Grato pela
visita.
AMBIENTALISTA
Foi uma honra, precisando
conte com a gente. Fique com
deus!
O rapaz sai e Joe bate a porta, fecha o olho, levanta a
cabeça pra cima.
JOE
(resmungando)
Pro inferno, criatura estúpida de
merda.
Respira fundo, acende um cigarro e vai até o banheiro.
#4
Pega o saco de lixo com as vísceras do cão e leva até o
canteiro.
Arranca a muda abrindo o buraco da goiabeira e ali joga o
cão. Coloca a planta de volta e com uma pá ajeita a terra.
18.
FADE OUT
Joe esta na sala escrevendo num bloco de notas. Alguém
bate na porta, ele abre a gaveta da escrivaninha, pega um
fio e conecta na maçaneta e na tomada.
JOE
(gritando)
Pode entrar!
Ouve-se um gemido e a pessoa ser eletrocutada.
Continua sua anotações.
Em TIME-LAPSE
JOE (V.O.)
Que grande merda...
Sai de sua cadeira de rolas se apoiando no sofá, senta
nele.
JOE (V.O.)
...Mas nasci, fazer o quê?
Acende um cigarro e mostra a língua com cara de nojo.
JOE (V.O.)
Ah não, comprei mentolado, que
porra! Bom, melhor que não
fumar... preciso fazer a
manutenção de um possível câncer,
não posso bobear.
Na varanda olhando os pássaros no poste.
Olha para o rato na gaiola rodeado de formigas.
JOE (V.O.)
Rato cretino, condenado a ser
ainda mais miserável por conta do
dono achá-lo interessante...
Olha-se no espelho e arregala os olhos, gesticula um
revolver apontada para seu reflexo e o “dispara” abaixando
o dedão como um gatilho.
JOE (V.O.)
... Com sua cabeça oca, que vive
dentro de outra cabeça oca e
sendo observado por outra cabeça
oca, a minha... três cabeças ocas
concatenadas pra uma só idiotice.
Alimenta o rato.
Joga água na goiabeira.
19.
JOE (V.O.)
E essa árvore? Outra miserável,
crescem raízes sobre um defunto
canino sem cabeça... seu destino
é ainda mais cruel, adubada pela
morte, nascida pra abrigar seus
frutos numa sociedade de vermes
que rastejam imersos na própria
merda... um dia vai murchar de
desgosto. Assim como eu, mas
antes quero vê-la dar goiabas
bichadas.
JOE (V.O.)
(olhando o horizonte pela
varanda)
Tudo é sempre mais simples que
belo. Fumo... medito nicotina e
exalo tédio. Sempre fumei
muito... gosto... fumar é como...
esquecer. O cigarro esconde a
merda... me acompanha nesse
absurdo de viver.
Abre a torneira do chuveiro, entra embaixo d'água vestido
e com sua cadeira
JOE (V.O.)
E eu vivo... vivo a morte dos
meus sonhos.
A água cai sobre sua cabeça abaixada.
FADE OUT
31. INT. CASA DE JOE - SAGUÃO - DIA
Abre um pacote de castanhas, come e dá algumas para o
rato. Vai até as caixas de cartas do prédio, as recolhe.
Volta, coloca as cartas na mesa, foco em um envelope. Pega
pega-o e abre. Está escrito:
COMPARECER COM URÊNCIA À RUA MERSAULT, 0. OBRIGADO.
Olha o envelope virando-o, não tem nada escrito que
identifique o remetente.
32. INT. CASA DE JOE - HORAS DEPOIS
O telefone toca, Joe atende.
DORA (V.O.)
Senhor Joe? Bom dia! Aqui é Dora,
a síndica. Como vai?
20.
JOE
Ahn, bem.
DORALICE (V.O.)
Ligo para te avisar que hoje à
noite farão uma festa de boa
vizinhança no terraço e gostaria
que o senhor comparecesse.
JOE
Hum, okay...
DORALICE (V.O.)
Bem, esperamos você. Tenha um bom
dia.
FLASHBACK da festa surpresa no momento em que Joe abre a
porta de sua casa e os vizinhos lhe gritam "parabéns".
33. EXT. TERRAÇO - DIA
Vai até o terraço. Pega os carvões da churrasqueira,
pulveriza-os e joga fertilizante.
JOE
Vocês gostam de ser vítimas,
então tá aqui minha
contribuição... uma boa ação...
Uma boa ação.
34. INT. CASA DE JOE - VARANDA - HORAS DEPOIS
O sol está se pondo, céu alaranjado.
Da varanda Joe avista uma jabuticabeira num terreno do
outro lado da rua.
CORTA PARA
35. TERRENO - MINUTOS DEPOIS
#1
Ao passo em que se aproxima da jabuticabeira ouve mais
nitidamente um som de piano. Olha para cima e avista a
silhueta de uma mulher pela janela empoeirada. Ela quem
está tocando o piano.
#2
Mãos repletas de jabuticabas e mais algumas no seu colo.
Recosta em sua cadeira, fecha os olhos enquanto a música
ressoa, come as jabuticabas.
#3
A música é interrompida, tudo se silencia repentinamente.
Joe abre os olhos, olha para o punhado de cascas de
jabuticaba em sua mão.
21.
36. INT. CASA DE JOE - NOITE
Entra em sua casa, agitado, bate a porta agressivamente.
JOE
(sussurros sobrepostos)
A vida acaba, a vida acaba, a
vida acaba...
Ofegante, seu corpo treme e escorre suor pelo rosto,
engole seco. Começa a circular ofegante suando, bate com a
cabeça na parede.
Olha para o veneno do cão. Estende os braços e o vê
inteiro tomado por formigas.
Apressa-se até o banheiro, vomita, cai da cadeira e,
jogado no chão, apoia-se no vaso sanitário. Fica ali de
bruços.
Arrasta-se até a banheira, abre a torneira.
Dentro da banheira, afunda-se de olhos abertos.
FADE OUT
37. EXT. SANATÓRIO - DIA
Olha a carta de comparececimento à Rua Mersault. Toca a
campainha.
ATENDENTE (V.O.)
(do interfone)
Pois não?
JOE
Recebi uma carta pedindo para eu
vir até aqui.
ATENDENTE (V.O.)
Entre e aguarde na sala de
espera, por favor.
Um portão antigo de ferro muito alto se abre. É uma
mansão.
Joe entra devagar observando ao redor.
38. INT. SALA DE ESPERA - DIA
Sala limpa, organizada, móveis antigos de madeira bem
conservados, estante cheia de livros, um quadro e um
carpete.
Entra um senhor alto de terno. Olha-o e sorri.
CORTA PARA
22.
39. INT. SANATÓRIO - DIA
#1
Joe acorda. Está numa cama, num QUARTO DE HOSPITAL. Olha
ao redor, sem entender, vê sua cadeira ao lado da cama,
alcança e senta-se nela.
#2
Circula pelo corredor.
Esbarra em dois serviçais, um deles agarra sua cadeira e o
leva de volta. Joe começa a se debater e gritar, colocam-o
na cama e injetam sedativo. Joe entra num túnel de luzes.
MATCH CUT
40. SONHO DE JOE - DIA
Caminha por um bosque Avista uma macieira, arranca uma
maçã e dá uma mordida.
Se depara com uma bela jovem com um vestido branco
semi-transparente e aproxima-se dela.
A jovem pega sua mão e o leva até outras belas jovens.
Outra delas, nua, se aproxima de Joe (que também está nu),
olha nos olhos, passa a mão no seu peito e aproxima bem
seu rosto do dele.
#1
Sugestão de sexo com as jovensns intercalando com passos
de Joe subindo uma escadaria.
#2
Chega num local muito iluminado.
Um homem, barba e cabelos longos brancos. Está sentado num
trono enrolando a barba no dedo.
JOE
Então é assim? Viver é essa porra
de arrastão de tédio que
desemboca nesse antro que cheira
patchouli?
DEUS
Ei, acalme-se meu jovem, tudo
será revelado no seu tempo.
JOE
Ah é? E agora faço o que aqui?
Lixo suas unhas e chupo seu pau?
DEUS
Sei que você gosta de brincar de
deus, meu caro Joe. Não pode
negar que botar um rato na gaiola
e controlar aquela vida preenche
um pouco desse vazio ateu aí.
23.
JOE
Então tinha uma quarta cabeça oca
concatenada observando tudo, foi
um salto mortal quádruplo! Porra!
Foi o senhor que inventou essa
merda de existência sórdida e
inútil, esse emaranhado
indecifrável de mitos. Me fez
nascer naquele mundo estúpido e
logo agora que achei num cantinho
aconchegante apareço aqui nesse
antro de carolas mal comidas? Ah,
tenha dó!
DEUS
Isso era a sua missão.
JOE
Ah vai se foder, o senhor nem
sabe do que tá falando, inventou
essa merda de sentido existencial
por pura falta de criatividade,
me poupe dessa história sem
graça!
DEUS
Tudo vai ser revelado na sua
devida hora.
JOE
Já morri, e agora? Puxo seu saco?
DEUS
Isso mesmo
JOE
Mas nem morto
DEUS
Você já está morto, filho.
JOE
Pois me mate de novo.
DEUS
E eu, como fico?
JOE
Ora, esse problema é seu...
compre um barbeador e vá para o
inferno, seu velho decrépito!
DEUS
Já estamos nele, o inferno é a
eternidade.
24.
JOE
E esse céu serve pra que? Terapia
ocupacional de idiotas
desencarnados?
DEUS
Criei o mundo para me distrair, e
de que isso serviu? Agora tudo o
que tenho é essa humanidade
inteira rezando para eu salvá-la
disto e daquilo, como se o tédio
de ser eterno já não bastasse.
JOE
Ah para com esse mimimi, seu
beato ignorante. Como
administrador você nunca serviu
pra merda nenhuma. É um inútil
até para si mesmo, não sabe
sequer criar ratos interessantes.
Sua eternidade é como uma burrice
que amaldiçoou a si própria. Quer
um conselho? Crie um cérebro e
use-o.
#4
Joe se vira e começa a descer as escadas
Um barulho de explosão: som grave e abafado.
Joe imagina deus explodindo, seus miolos escorrendo pelo
firmamento.
O chão se abre num abismo.
Joe começa a cair cada vez mais rápido.De repente um
clarão.
Acorda.
41. SANATÓRIO - QUARTO - NOITE
Pega seu bloco de notas no armário. Na capa o título:
MORTE DOS MEUS SONHOS.
Folheia, olha as páginas. Fecha-o.
Pega um estilete no estofado de sua cadeira e recorta o
bloco fazendo um buraco no meio.
Abre um armário, pega três vidrinhos.
42. SANATÓRIO - SALA DO DIRETOR - DIA
O médico dá um papel para Joe, ele assina.
Olha para o bloco de notas.
43. CASA DE JOE - DIA
Abre a porta.
Avista seu rato morto rodeado de formigas e a goiabeira
quebrada.
Pega o rato e o enterra na goiabeira, despeja ali um saco
inteiro de sal.
25.
44. TERRAÇO - DIA
Na beira da piscina do terraço fuma, olha o seu reflexo na
água trêmula.
Começa a chover, continua imóvel.
MULHER (V.O.)
Hey! Você tem horas?
Joe levanta o olhar.
45. CASA DE JOE - NOITE
Som do telejornal ecoando do vizinho. Ouvimos a voz de um
jornalista da TV dando uma notícia sobre futebol.
Joe dosa as substâncias dentro de uma seringa.
Procura uma veia no braço.
Empurra o êmbolo.
Acende um cigarro. A notícia se interrompe e começa um
comercial de inseticida. Joe se aproxima do espelho do
banheiro, está completamente coberto por escamas.
O plano vai se abrindo e “saindo” pela janela.
Um ruído começa a surgir se misturando ao som da TV.
À medida que o plano vai se abrindo e se distanciando de
Joe o ruído se sobressai até desaparecer o som da tv.
Ruído afinando e sumindo. Ao mesmo tempo, à distância e
pela janela, vemos por trás (do ombro para cima) a cabeça
de Joe cair para o lado na cadeira de rodas.
Ruído some.
Silêncio.
PRETO
FIM

Mais conteúdo relacionado

Destaque (8)

Hernia umbilical
Hernia umbilicalHernia umbilical
Hernia umbilical
 
Igreja inclusiva 4
Igreja inclusiva  4Igreja inclusiva  4
Igreja inclusiva 4
 
GolfBoard Book - Mar 2016
GolfBoard Book - Mar 2016GolfBoard Book - Mar 2016
GolfBoard Book - Mar 2016
 
Resume-Ankit Garg
Resume-Ankit GargResume-Ankit Garg
Resume-Ankit Garg
 
RFP - Claremont HS Fitness Equipment
RFP - Claremont HS Fitness EquipmentRFP - Claremont HS Fitness Equipment
RFP - Claremont HS Fitness Equipment
 
MGT321-Report on Partex Group
MGT321-Report on Partex GroupMGT321-Report on Partex Group
MGT321-Report on Partex Group
 
Reforms & District Development [Autosaved]
Reforms & District Development [Autosaved]Reforms & District Development [Autosaved]
Reforms & District Development [Autosaved]
 
Mosquito Joe Report Final 6
Mosquito Joe Report Final 6Mosquito Joe Report Final 6
Mosquito Joe Report Final 6
 

JOE

  • 1. "JOE" Juliana Adorna Cremonesi Adaptação literária de "Joe, A Morte dos Sonhos" End.: Rua Renato ópice, 90 Cidade: Araraquara, SP País: Brasil E-mail: juliana.adorna@gmail.com Cel.: +55(16)99623-01886
  • 2. FADE IN 1. EXT. PRAÇA - NOITE Praça deserta, tendas das barraquinhas vazias da feira balançam com o vento. Barulho do vento nas folhas das árvores. Chão úmido, lixo espalhado pela praça, garrafas quebradas, goiabas pisoteadas na calçada. MULHER (O.S.) Você tem horas? Joe, olhando para o chão, está sentado à deriva numa mureta que delimita um jardim. Ele ergue a cabeça, encara a mulher e estende o braço do relógio para que ela mesma veja. Começam a chegar caminhões de frutas, um deles estaciona perto da calçada onde Joe está sentado. O caminhão despeja as frutas, soterrando-o com goiabas. --ESTRONDO- PRETO JOE (V.O.) (em eco de trás para frente) A vida acaba. Ao mesmo tempo surge --JOE- em branco centralizado no fundo preto. FADE IN 2. INT. HOSPITAL - DIA #1 Senta-se na cama,coloca os pés no chão e leva um tombo, desmaia. O sangue começa a sair de seu nariz e escorrer pelo chão. #2 As rodas da cadeira circulam por um corredor, médicos e enfermeiros andam apressados. #3 Com o nariz enfaixado passeando pela SALA DE LEITURA do hospital, gira a cadeira de rodas desordenado apertando os botões. Se engana de comando e tromba com uma estante derrubando alguns livros. Ignora e continua a perambular pelos arredores da sala.
  • 3. 2. 3. INT. AÇOUGUE - DIA Um táxi estaciona num calçadão, Joe desce com a ajuda do taxista. Vai até o açougue, observa as carnes penduradas e um açougueiro com uniforme branco sujo, há uma fila para ser atendido. Todos olham para ele e o deixam passar na frente. CORTA PARA 4. EXT. RUA - DIA Joe sai com uma sacola, vê um CÃO vira-lata deitado na calçada, se aproxima e joga um pedaço de carne. O cão devora. 4. INT. QUARTO - NOITE Um pote de ração do lado da cômoda. Joe põe a coleira no cão da rua, faz umas manobras e senta na cama. Pega um remédio em cima do criado-mudo, toma-os, deita-se e fecha os olhos. 5. EXT. TERRAÇO - NOITE Carne assando na churrasqueira. Joe abocanha um pedaço da carne, mastiga devagar, deliciando-se. Gira a cadeira, observa o local, não há ninguém. Vai até a beira da piscina. Acende um cigarro e, de repente, é puxado para trás. Vira-se e vê uma velha segurando o empurrador de sua cadeira de rodas; ela sorri. VELHA Tenha cuidado, meu jovem. JOE (sorrindo sem graça) Obrigado. 6. EXT. RUA - DIA Joe sai pelo portão de seu prédio e circula pela calçada com seu cão acompanhando. Várias pessoas caminham apressadas. Faz ziguezagues com a cadeira de rodas. 7. EXT. LOJA - RUA - DIA #1 Joe lê um papel, olha para cima com mão no queixo, resmungando pensativo. Pega três vidros de remédio da prateleira. 2#
  • 4. 3. Joe cola discretamente o explosivo improvisado (com os componentes comprados na farmácia e na livraria) sob a coleira do cão. Escreve em seu dorso com tinta preta --JOE- #3 Sai de uma loja de calçados vestindo um chapéu marrom. Olha-se no espelho de uma vitrine. Na frente de seu prédio chega um táxi. #4 Joe abraça o cão, tira um isqueiro do bolso e acende a bomba que está colada nele. Entra no táxi. #5 O cão explode. #6 O sangue escorre pela vitrine atrás de Joe. #7 O carro anda, Joe com o olhar fixo para frente. Respira fundo e resmunga algo. TAXISTA (olhando pelo retrovisor) Disse alguma coisa, senhor? JOE (apontando para frente) Vou para o Centro. #7 Pedaço do cão onde está escrito --JOE- no meio da poça de sangue na sarjeta. FADE OUT 8. EXT. RUA - DIA Joe se depara com um rapaz vendendo goiabas. GOIABEIRO Ei senhor, vamos levar umas goiabas? Estão fresquinhas! Joe o encara em silêncio. O goiabeiro olha na espera de uma resposta. JOE Quanto? GOIABEIRO Das vermelhas ou das brancas? JOE Das podres...
  • 5. 4. GOIABEIRO Ahn, podres não tenho não, senhor. Se alguma estiver pode voltar aqui e reclamar que te dou outra. JOE Por que não tem podres? GOIABEIRO Ora... Porque não como vermes! JOE Comporta-se como um. GOIABEIRO (coçando a cabeça e olhando para baixo) Olha meu senhor, só tô fazendo meu trabalho honestante... se não quer comprar me deixa em paz aqui. Algo mais? JOE O senhor sabe me dizer qual o sentido da vida? GOIABEIRO Ahn... Vender goiabas. JOE Me refiro ao sentido da vida como um todo... GOIABEIRO Sei... Bem, então comprar as minhas goiabas. JOE Estou diante do centro do universo então...? GOIABEIRO (soltando risinhos) Isso, se quer goiabas, sim... JOE Boa resposta... Gostei, me vê uma dúzia. GOIABEIRO Das brancas ou das vermelhas? CORTA PARA
  • 6. 5. 9. INT. CASA DE JOE - DIA Da cama Joe observa as rodas de sua cadeira. Um cão começa a latir, assusta-se e bate na mesa irritado. #1 A porta de entrada da casa se abre, Joe entra vestindo chapéu e segurando uma sacola. Coloca a sacola na mesa. Acende um cigarro. Tira da sacola um pacote e um pote de veneno, desembrulha o pacote, lá tem um punhado de carne. #2 Senta na cadeira da cozinha fumando. Em TIME-LAPSE, da janela se vê anoitecer entre a fumaça do cigarro. #3 Sai do portão do prédio carregando a carne embrulhada. 10. EXT. RUA - NOITE Circula pela calçada e para em frente ao portão da casa do vizinho. Olha para o cão aos latidos. Tem um FLASHBACK do sangue do seu cão espirrando na vitrine. Joga a carne, o cão se aproxima e come. Joe lança um cuspe no chão e vai embora. FADE OUT 11. INT. - CASA DE JOE/SACADA - NOITE Música calma. Ouve o cão uivar e as luzes da casa se acenderem. Fecha os olhos, se inclina para trás, esboça um sorriso. A música continua com maior evidência. FADE OUT 12. INT. CASA DE JOE/BANHEIRO - DIA Joe está de frente para o espelho aparando sua barba. O espelho o reflete (até o peito) envolto em ESCAMAS. Ele se encara. JOE (V.O.) Hoje é meu aniversário... Começam a cair as escamas. JOE (V.O.) Engraçado... em dias de aniversário parece que é acionada uma percepção que faz a gente olhar pra esse passar do tempo... como se nos outros dias esse
  • 7. 6. JOE (V.O.) tempo estivesse imóvel. Eu gosto dessa sensação... essa sensação de.. de fluir pro nada de uma vez só... de ficar cada vez mais nu imerso nessa atmosfera ácida em decomposição. A escama cai toda e sua pele começa a ser corroída, aparece a derme. Joga água no rosto. FADE OUT 13 - INT. BIBLIOTECA - DIA Joe circula pelas prateleiras com um pacote de castanhas na mão, e vai comendo-as. Um bibliotecário se aproxima. BIBLIOTECÁRIO Posso ajudar? Joe olha para seu crachá e imagina estar escrito: O SENTIDO DA VIDA É DAR MEIA VOLTA E SUMIR. JOE Sim, Obrigado. Dá-lhe as costas e continua a circular pelas prateleiras. Pega três livros e os apoia na mesa da sala de leitura. Abre-os, começa a ler. Arranca algumas páginas e continua a ler. Algumas pessoas próximas olham de esgueio, um garoto com aparelho nos dentes vira-se para ele. GAROTO Ei, por que você tá rasgando o livro? JOE Esse blablablá introdutório seperestimado desses clássicos... é patético... deixa o livro com excesso de gordura e... e... E que é que você tem a ver com isso, pivete? GAROTO Olha, eu vou contar aos bibliotecários que você... JOE (se aproximando do rosto do menino, sussurra) Faz isso faz, seu merdinha... arranco teu cérebro daí de dentro
  • 8. 7. JOE e você também vai ficar bem levinho. Tira discretamente um canivete de seu bolso, mostrando-o ao garoto. O garoto se assusta, pega seus livros e sai da sala ligeiramente. Joe bota um chiclete na boca e mastiga devagar, acompanhando-o com olhar. Volta à leitura. 14. INT. BOTECO - NOITE Entra no boteco, uma espelunca, poucas pessoas. Vai até o balcão. Não há ninguém. Olha para o lado: cinco homens jogando sinuca. JOE Hey! Alguem aqui pode me atender? ATENDENTE Oh sim, só um minutinho, já tô indo, segura ai! Joe entorta a cara e respira fundo. Acende um cigarro, olha o atendente entretido e fica impaciente. Pega um taco, vai ate a mesa onde jogam, empurra a bola branca e a encaçapa. Todos olham quietos. Joe bate o taco no chão e dá um "sorriso amarelo". 15. EXT. RUA - DIA Saindo do bar, leva um tombo da cadeira, havia um pequeno degrau entre o bar e calçada. Uns velhinhos numa mesa próxima o ajudam a levantar. Joe começa a esbravejar e segue resmungando. Um mendigo se aproxima. MENDIGO Uma esmolinha, senhor? Joe levanta a cabeça, olha pra ele rapidamente e continua a resmungar de modo ininteligível. O mendigo o segue, encara-o e aproxima seu ouvido dele. Abre a boca querendo dizer algo, mas desiste. Para de andar e o segue só com o olhar, coça a cabeça desentendido. 16. INT. CASA DE JOE - NOITE Joe abre a porta de entrada. VIZINHOS (em uníssono) Feliz aniversário, Joe!
  • 9. 8. Todos os vizinhos reunidos em sua sala enfeitada com bexigas. A vizinha velha aparece segurando um bolo confeitado, sorri e cumprimenta-o. Outros aproximam-se e lhe dão abraços, Joe recebe-os passivamente e agradece. Observa sua sala cheia de pessoas. JOE Vou buscar uma bebida pra nós. Já volto. 17. EXT. RUA - TERRENO - NOITE Saindo do mercadinho, tira a garrafa de vodca. Abre a garrafa, dá um gole bem longo e derrama um vidro todo de sonífero dentro. Entra num terreno baldio e faz xixi dentro da garrafa, chacoalha. 18. INT. CASA DE JOE - NOITE As pessoas brindam alegres, Joe com um copo de coca-cola na mão. VIZINHO (entusiasmado falando mole) Toma aqui esse meu caro Joe! - estendendo um copo com a bebida. JOE Poxa, eu não posso beber... tô tomando antibiótico, sabe como é... esse clima meio frio e seco tá foda. VIZINHO Ahhhh deixa de caretice! Hoje é um dia especial, meu jovem! Dá só uns golinhos aqui, oras! ESPOSA DO VIZINHO (chega oferecendo um prato de bolo) Come isso, querido, tá uma delícia, foi a DORA que fez! Abaixa a cabeça e olha para Joe. ESPOSA DO VIZINHO Ah oi! Meus parabéns, viu! Que você seja sempre essa pessoa batalhadora que superou tantas dificuldades, né? Imagino que não seja nada fácil adaptar sua vida sem poder andar mais, é preciso ter muita fé e coragem mesmo. Te
  • 10. 9. ESPOSA DO VIZINHO admiro muito por isso, que deus continue te abençoando viu, ahn... VIZINHO (sussurrando no ouvido da esposa) Joe... ESPOSA DO VIZINHO (continua, sorri constrangida) Joe! Isso... Ahn, bom, vou pegar um pedaço de bolo pra você também, okay? Já volto! Anda em direção oposta. ESPOSA DO VIZINHO (gritando) Junior, já falei pra parar com essa correria! Joe solta um grunhido discreto e se afasta. Olha seu relógio de pulso, o ponteiro começa a derreter. 19. INT. CASA DE JOE - QUASE 1H DEPOIS Burburinhos baixos. Os vizinhos, com olhos caídos e bocejando, começam a ir embora. Joe fecha a porta para o último, dá um suspiro esboçando um sorriso. 20. INT. CASA DE JOE - DIA Deitado. Senta na cama, puxa a cadeira de rodas e sobe nela. Vai até a cozinha: um pequeno embrulho com fita e um cartão em cima da mesa. Pega-o, joga na privada e dá descarga. #1 Maritacas fazem barulho, da varanda Joe as observa empoleiradas no fio de um poste de luz. #2 Vai até o quarto, pega sua espingarda de pressão no guarda-roupas. #3 Volta para a varanda. Atira. Uma se estatela no chão, as outras levantam vôo e vão embora. Abaixa a espingarda e apoia na parede da varanda.
  • 11. 10. 21. INT. CASA DE JOE - HORAS DEPOIS Tique-taque do relógio ecoando. Levanta da cama, vai até o banheiro, faz xixi, escova os dentes, toma seu café, acende um cigarro, olha o horizonte pela varanda e suspira aborrecido. Põe a mão no bolso da calça, tira um cartão. Dá meia volta e vai até a escrivaninha no seu quarto. Liga o notebook. Tela do computador: site de uma universidade. Clica em --FILOSOFIA/CORPO DOCENTE-. Pega o telefone e disca. JOE (no telefone) Bom dia... CORTA PARA 22. INT. UNIVERSIDADE - PRAÇA DE ALIMENTAÇÃO - DIA Circula pelos corredores. Para em frente a uma porta por uns segundos, vê um professor velho franzino e carrancudo dando aula. #1 Chega na praça de alimentação, para próximo a uma mesa. Observa o tumulto. Compra uma coca-cola. Despeja um vidro de purgante. #2 O mesmo professor que viu dando aula há pouco se aproxima passando pelo tumulto. Cumprimenta-o apertando a mão. Joe oferece a bebida. PROFESSOR (dando um gole) Obrigado. Então, em que posso ajudar? JOE Bem... eu tinha uma questão, mas acabo de encontrar a resposta num livro que li agora na biblioteca enquanto esperava o senhor. PROFESSOR Hum, é mesmo? Certo... e... bem, o que ia me perguntar? JOE Sobre o sentido da vida. PROFESSOR Hum, questão complicada... e o que o senhor descobriu sobre?
  • 12. 11. JOE Bem, o sentido da vida está numa goiaba... descobri isso devido a um cão que morava perto de casa... Professor começa a se mexer e respirar mais ofegante. JOE (O.S.) Hoje sou adepto da corrente náuseo-catarrística de pensamento, segundo o qual todos são cuspidos na existência e secam lentamente na sarjeta do mundo. O professor inquieto, pálido. Respira fundo. PROFESSOR Veja bem, meu rapaz, tenho 78 anos, sou aposentado e continuo dando aula porque amo o exercício do conhecimento. Você deve imaginar que minha disposição para brincadeiras é bem pequena, sou um velho ocupado e não tenho tempo a perder com gente desinteressada. Com licença. O professor levanta-se e sai apressadamente tentando não cambalear. Joe acompanha-o com o olhar e esboça um sorriso. Com o rosto suado, o professor abre a porta do banheiro e se depara com uma fila de homens. 23. INT. UNIVERSIDADE - SALA DE AULA - DIA Som de pessoas conversando. Entra Joe. JOE (aos gritos) SILÊNCIO! Todos se assustam. Silêncio. JOE (cochichos de fundo) Sou o professor Joe Hans Einza, Azurita passou mal agora no intervalo e pediu pra eu dar essa aula. Sou doutor em Filosofia da Náusea.
  • 13. 12. JOE (apontando para um aluno que ria no fundo da sala) Você aí! Qual o tema da aula de hoje? ALUNO O professor Azurita ia começar a falar sobre ética. JOE (abre um pacote de castanhas e começa a comer) Hum, okay... JOE (de boca cheia) E o que vocês me dizem sobre, ahn, ética? Todos em silêncio, com olhar sonolento. Foco no rosto de Joe mastigando, O plano se abre, o fundo da sala fica preto e um foco de luz se instaura sobre Joe. #1 Desenha no ar com o dedo a letra A ligando em pontilhados com a letra B. JOE (seguindo com o dedo do ponto A ao B) O ponto A é o nascimento e o ponto B é a morte. Acende um cigarro, dá uma tragada longa e esbafora uma densa fumaça em cima do desenho apagando-o. JOE Ética serve para percorrer esse trajeto sem ser preso. Se alguém aqui tiver cérebro não deve haver dúvida até agora. Bem, de acordo com a Filosofia da Náusea, a ética tem uma função sócio-higiênica bem clara e específica. Vejamos... Joga a bituca do cigarro no chão e continua. Vamos supor que a existência seja uma goiaba, que o homem seja o verme da goiaba do ser. Temos a goiaba em si e a representação subjetiva dessa mesma goiaba, uma realidade criada por nós, vermes.
  • 14. 13. Aparece a imagem de uma goiaba centralizada. Nos aproximamos dela até “entrar”. Dentro há um homem nu comendo as “paredes”/polpa da goiaba. O plano se abre e vemos que de sua bunda sai um excremento que vai direto grudar nessa parede da goiaba. O homem rasteja e come esta “parede”/polpa. JOE (V.O.) Para transcender a realidade subjetiva dos fenômenos, a ciência nos ensinou a olhar pra trás: com isso, vemos um rastro de excrementos concretos, a história de nossas vidas - aquilo que chamo de sentido-esgoto, ligando os pontos A e B. O excremento que sai da bunda do homem se liga nos pontos de A a B do desenho. JOE (V.O.) Então, a vida constitui-se enquanto um movimento de transmutação, convertendo a essência do ser-goiaba em essência fecal, um fenômeno concretamente cagado. Aqui entra a ética como ferramenta de controle intestinal. Imaginem se todos pudessem defecar livremente, em qualquer canto, sem qualquer critério. Tudo descambaria numa grande incontinência intestinal. Então, a ética é para evitar que o excremento-para-si se converta em excremento-para-o-outro. Quem não conseguir se segurar, quem borrar as calças, vai preso. Outros homens aparecem dentro dessa goiaba, cada um com um tipo de sonda da bunda para a própria boca. #2 Foco no rosto de Joe. Plano se abre lentamente. JOE A ética, então, é aquilo que recicla e restringe o alcance de nossos resíduos intestinais, trazendo-os para nós novamente, para que assim a vida em sociedade seja possível sem que os vermes defequem uns nos outros o tempo todo.
  • 15. 14. Volta a ser uma sala de aula Todos da sala estão olhando-o fixamente. Uma aluna se levanta e sai da sala. JOE (acompanhando com o olhar a aluna sair) Que falta de classe, não? Mas já acabou mesmo... Bem, por hoje isso é tudo. Para a próxima aula quero que escrevam uma dissertação respondendo a seguinte questão ético-intestinal: Por que se segurar? CORTA PARA 24. INT. UNIVERSIDADE - LANCHONETE - DIA JOE (apontando para o cardápio) Quero isto. #1 Através do vidro Joe vê o cozinheiro sovando a massa: um homem muito gordo usando regata branca suja, braços e costas peludas, careca e rosto oleosos e bigodes ensebados. O braço do cozinheiro começa a se misturar com a massa que está sovando. Aos poucos ele vai sendo engolido por essa massa. Ao engolir o cozinheiro totalmente, a massa o cospe para dentro da fornalha, a portinhola se fecha, ele fica preso ali dentro. Pelo vidro da portinhola vemos o cozinheiro expressar um grito enquanto o fogo o toma. #2 Foco no rosto de Joe: está absorto na imaginação. GARÇONETE (interrompendo seus pensamentos) Senhor? SENHOR?! Joe “desperta” e a olha. GARÇONETE (entregando o lanche embrulhado) Aqui está seu lanche... Joe dá meia volta e sai.
  • 16. 15. GARÇONETE (gritando) Hey! 25. INT. CASA DE JOE - DIA #1 Acorda num susto. Dá um tiro numa maritacas. O tiro acerta, ela começa a cair morta do fio De repente [música] está caindo num túnel escuro que não se vê o fim. O pássaro se transforma em Joe que vai caindo até desaparecer “engolido pelo vácuo”. PRETO. Grito abafando ecoando #2 O plano se abre saindo do umbigo de Joe. Vemos Joe deitado no chão da sala, olhos arregalados para o teto. Seus braços começam a movimentarem-se como ponteiros de relógio. Dentro disso se forma um relógio real, intercalado com imagens dos pés de uma multidão alvoraçada pelas ruas com som e marcha. Joe com um sino de igreja enfiado na cabeça sendo martelado e emitindo o ruído forte junto com o som da marcha. O sino se transforma numa gaiola com a cabeça de Joe dentro. MATCH CUT 26. INT. - PETSHOP - DIA Joe externo à gaiola observando os ratos dentro dela. Coloca o dedo e espera um lhe morder. JOE (virando-se para o vendedor) Vou levar este aqui. O plano abre e fica possível ver o local com diversos cães em gaiolas, Joe lança um olhar para um dos cães. 27. INT. CASA DE JOE - DIA Olha para o cão com cara de carente. Coloca um disco na vitrola. Pega um faca e um saco de lixo. Leva o cão até o banheiro, agarra-o num abraço, afaga sua cabeça e quebra seu pescoço com esforço estremecendo até dar o estralo. Segura firme o cão enquanto convulsiona. Ao parar, coloca-o no saco de lixo e posiciona o corpo com a cabeça pendurada na banheira. Joe de avental branco pega o cutelo, dá o primeiro corte no pescoço, espirra sangue em seu rosto.
  • 17. 16. Fecha o saco e coloca o corpo dentro do bidê separando-o da cabeça. De costas, vemos ele manipular a cabeça com outra faca. Sangue por todo o azulejo do banheiro branco e facas no chão enfileiradas. 28. INT. CASA DE JOE - QUARTO - HORAS DEPOIS Um crânio em cima de sua escrivaninha. Coloca um enchimento de travesseiro dentro, mergulha um pincel num pote de tinta preta e escreve na "testa" do crânio: NIHIL. Coloca o rato lá dentro. Joe esboça um sorriso. 29. INT. CASA DE JOE - DIA #1 A campainha toca. Joe abre. Um rapaz bem alto segurando uma planta e uma maleta grande. Olha para frente, ninguém. Abaixa a cabeça, vê Joe, abre um sorriso. AMBIENTALISTA Senhor Joe? Olá! Vim plantar a goiabeira que o senhor encomendou. JOE Certo, me acompanhe. Joe leva-o até sua varanda e aponta para um canteiro de terra com algumas plantas. JOE Divirta-se. Joe se afasta e vai para sala. #2 Dá farelos de bolo ao rato e observa as formigas rodeando sua gaiola, pegando as migalhas e levando ao formigueiro. JOE (V.O.) Pra que tanto esforço? Sabia que depois daquela árvore não tem nenhum formigueiro só pra você como te disseram, não tem nada! Joe pega a formiga na mão, aproxima-se bem para olhar de perto e a esmaga com os dedos. #3 AMBIENTALISTA (grita empolgado) Terminei sr. Joe, venha ver!
  • 18. 17. Joe se aproxima e observa... balança a cabeça num gesto de aprovação. JOE Que benção! Agora posso me sentir completo e grato pelo milagre da nossa mãe natureza, que felicidade! AMBIENTALISTA Que lindo, senhor... ahh como o mundo seria melhor se todos pensassem e agissem assim. Posso ver nos seus olhos que és um homem de coragem, que passou por dificuldades e superou bravamente. Admiro quem tem essa força e... JOE (olhando seu relógio de pulso) Nossa, já tá quase na hora da missa. Quanto ficou o serviço? AMBIENTALISTA Ah sim, bom, é oitenta reais com a goiabeira, mas como o senhor é um homem bondoso e diferenciado faço por setenta. JOE (arrancando o dinheiro da carteira apressado) Ótimo, tá aqui. Grato pela visita. AMBIENTALISTA Foi uma honra, precisando conte com a gente. Fique com deus! O rapaz sai e Joe bate a porta, fecha o olho, levanta a cabeça pra cima. JOE (resmungando) Pro inferno, criatura estúpida de merda. Respira fundo, acende um cigarro e vai até o banheiro. #4 Pega o saco de lixo com as vísceras do cão e leva até o canteiro. Arranca a muda abrindo o buraco da goiabeira e ali joga o cão. Coloca a planta de volta e com uma pá ajeita a terra.
  • 19. 18. FADE OUT Joe esta na sala escrevendo num bloco de notas. Alguém bate na porta, ele abre a gaveta da escrivaninha, pega um fio e conecta na maçaneta e na tomada. JOE (gritando) Pode entrar! Ouve-se um gemido e a pessoa ser eletrocutada. Continua sua anotações. Em TIME-LAPSE JOE (V.O.) Que grande merda... Sai de sua cadeira de rolas se apoiando no sofá, senta nele. JOE (V.O.) ...Mas nasci, fazer o quê? Acende um cigarro e mostra a língua com cara de nojo. JOE (V.O.) Ah não, comprei mentolado, que porra! Bom, melhor que não fumar... preciso fazer a manutenção de um possível câncer, não posso bobear. Na varanda olhando os pássaros no poste. Olha para o rato na gaiola rodeado de formigas. JOE (V.O.) Rato cretino, condenado a ser ainda mais miserável por conta do dono achá-lo interessante... Olha-se no espelho e arregala os olhos, gesticula um revolver apontada para seu reflexo e o “dispara” abaixando o dedão como um gatilho. JOE (V.O.) ... Com sua cabeça oca, que vive dentro de outra cabeça oca e sendo observado por outra cabeça oca, a minha... três cabeças ocas concatenadas pra uma só idiotice. Alimenta o rato. Joga água na goiabeira.
  • 20. 19. JOE (V.O.) E essa árvore? Outra miserável, crescem raízes sobre um defunto canino sem cabeça... seu destino é ainda mais cruel, adubada pela morte, nascida pra abrigar seus frutos numa sociedade de vermes que rastejam imersos na própria merda... um dia vai murchar de desgosto. Assim como eu, mas antes quero vê-la dar goiabas bichadas. JOE (V.O.) (olhando o horizonte pela varanda) Tudo é sempre mais simples que belo. Fumo... medito nicotina e exalo tédio. Sempre fumei muito... gosto... fumar é como... esquecer. O cigarro esconde a merda... me acompanha nesse absurdo de viver. Abre a torneira do chuveiro, entra embaixo d'água vestido e com sua cadeira JOE (V.O.) E eu vivo... vivo a morte dos meus sonhos. A água cai sobre sua cabeça abaixada. FADE OUT 31. INT. CASA DE JOE - SAGUÃO - DIA Abre um pacote de castanhas, come e dá algumas para o rato. Vai até as caixas de cartas do prédio, as recolhe. Volta, coloca as cartas na mesa, foco em um envelope. Pega pega-o e abre. Está escrito: COMPARECER COM URÊNCIA À RUA MERSAULT, 0. OBRIGADO. Olha o envelope virando-o, não tem nada escrito que identifique o remetente. 32. INT. CASA DE JOE - HORAS DEPOIS O telefone toca, Joe atende. DORA (V.O.) Senhor Joe? Bom dia! Aqui é Dora, a síndica. Como vai?
  • 21. 20. JOE Ahn, bem. DORALICE (V.O.) Ligo para te avisar que hoje à noite farão uma festa de boa vizinhança no terraço e gostaria que o senhor comparecesse. JOE Hum, okay... DORALICE (V.O.) Bem, esperamos você. Tenha um bom dia. FLASHBACK da festa surpresa no momento em que Joe abre a porta de sua casa e os vizinhos lhe gritam "parabéns". 33. EXT. TERRAÇO - DIA Vai até o terraço. Pega os carvões da churrasqueira, pulveriza-os e joga fertilizante. JOE Vocês gostam de ser vítimas, então tá aqui minha contribuição... uma boa ação... Uma boa ação. 34. INT. CASA DE JOE - VARANDA - HORAS DEPOIS O sol está se pondo, céu alaranjado. Da varanda Joe avista uma jabuticabeira num terreno do outro lado da rua. CORTA PARA 35. TERRENO - MINUTOS DEPOIS #1 Ao passo em que se aproxima da jabuticabeira ouve mais nitidamente um som de piano. Olha para cima e avista a silhueta de uma mulher pela janela empoeirada. Ela quem está tocando o piano. #2 Mãos repletas de jabuticabas e mais algumas no seu colo. Recosta em sua cadeira, fecha os olhos enquanto a música ressoa, come as jabuticabas. #3 A música é interrompida, tudo se silencia repentinamente. Joe abre os olhos, olha para o punhado de cascas de jabuticaba em sua mão.
  • 22. 21. 36. INT. CASA DE JOE - NOITE Entra em sua casa, agitado, bate a porta agressivamente. JOE (sussurros sobrepostos) A vida acaba, a vida acaba, a vida acaba... Ofegante, seu corpo treme e escorre suor pelo rosto, engole seco. Começa a circular ofegante suando, bate com a cabeça na parede. Olha para o veneno do cão. Estende os braços e o vê inteiro tomado por formigas. Apressa-se até o banheiro, vomita, cai da cadeira e, jogado no chão, apoia-se no vaso sanitário. Fica ali de bruços. Arrasta-se até a banheira, abre a torneira. Dentro da banheira, afunda-se de olhos abertos. FADE OUT 37. EXT. SANATÓRIO - DIA Olha a carta de comparececimento à Rua Mersault. Toca a campainha. ATENDENTE (V.O.) (do interfone) Pois não? JOE Recebi uma carta pedindo para eu vir até aqui. ATENDENTE (V.O.) Entre e aguarde na sala de espera, por favor. Um portão antigo de ferro muito alto se abre. É uma mansão. Joe entra devagar observando ao redor. 38. INT. SALA DE ESPERA - DIA Sala limpa, organizada, móveis antigos de madeira bem conservados, estante cheia de livros, um quadro e um carpete. Entra um senhor alto de terno. Olha-o e sorri. CORTA PARA
  • 23. 22. 39. INT. SANATÓRIO - DIA #1 Joe acorda. Está numa cama, num QUARTO DE HOSPITAL. Olha ao redor, sem entender, vê sua cadeira ao lado da cama, alcança e senta-se nela. #2 Circula pelo corredor. Esbarra em dois serviçais, um deles agarra sua cadeira e o leva de volta. Joe começa a se debater e gritar, colocam-o na cama e injetam sedativo. Joe entra num túnel de luzes. MATCH CUT 40. SONHO DE JOE - DIA Caminha por um bosque Avista uma macieira, arranca uma maçã e dá uma mordida. Se depara com uma bela jovem com um vestido branco semi-transparente e aproxima-se dela. A jovem pega sua mão e o leva até outras belas jovens. Outra delas, nua, se aproxima de Joe (que também está nu), olha nos olhos, passa a mão no seu peito e aproxima bem seu rosto do dele. #1 Sugestão de sexo com as jovensns intercalando com passos de Joe subindo uma escadaria. #2 Chega num local muito iluminado. Um homem, barba e cabelos longos brancos. Está sentado num trono enrolando a barba no dedo. JOE Então é assim? Viver é essa porra de arrastão de tédio que desemboca nesse antro que cheira patchouli? DEUS Ei, acalme-se meu jovem, tudo será revelado no seu tempo. JOE Ah é? E agora faço o que aqui? Lixo suas unhas e chupo seu pau? DEUS Sei que você gosta de brincar de deus, meu caro Joe. Não pode negar que botar um rato na gaiola e controlar aquela vida preenche um pouco desse vazio ateu aí.
  • 24. 23. JOE Então tinha uma quarta cabeça oca concatenada observando tudo, foi um salto mortal quádruplo! Porra! Foi o senhor que inventou essa merda de existência sórdida e inútil, esse emaranhado indecifrável de mitos. Me fez nascer naquele mundo estúpido e logo agora que achei num cantinho aconchegante apareço aqui nesse antro de carolas mal comidas? Ah, tenha dó! DEUS Isso era a sua missão. JOE Ah vai se foder, o senhor nem sabe do que tá falando, inventou essa merda de sentido existencial por pura falta de criatividade, me poupe dessa história sem graça! DEUS Tudo vai ser revelado na sua devida hora. JOE Já morri, e agora? Puxo seu saco? DEUS Isso mesmo JOE Mas nem morto DEUS Você já está morto, filho. JOE Pois me mate de novo. DEUS E eu, como fico? JOE Ora, esse problema é seu... compre um barbeador e vá para o inferno, seu velho decrépito! DEUS Já estamos nele, o inferno é a eternidade.
  • 25. 24. JOE E esse céu serve pra que? Terapia ocupacional de idiotas desencarnados? DEUS Criei o mundo para me distrair, e de que isso serviu? Agora tudo o que tenho é essa humanidade inteira rezando para eu salvá-la disto e daquilo, como se o tédio de ser eterno já não bastasse. JOE Ah para com esse mimimi, seu beato ignorante. Como administrador você nunca serviu pra merda nenhuma. É um inútil até para si mesmo, não sabe sequer criar ratos interessantes. Sua eternidade é como uma burrice que amaldiçoou a si própria. Quer um conselho? Crie um cérebro e use-o. #4 Joe se vira e começa a descer as escadas Um barulho de explosão: som grave e abafado. Joe imagina deus explodindo, seus miolos escorrendo pelo firmamento. O chão se abre num abismo. Joe começa a cair cada vez mais rápido.De repente um clarão. Acorda. 41. SANATÓRIO - QUARTO - NOITE Pega seu bloco de notas no armário. Na capa o título: MORTE DOS MEUS SONHOS. Folheia, olha as páginas. Fecha-o. Pega um estilete no estofado de sua cadeira e recorta o bloco fazendo um buraco no meio. Abre um armário, pega três vidrinhos. 42. SANATÓRIO - SALA DO DIRETOR - DIA O médico dá um papel para Joe, ele assina. Olha para o bloco de notas. 43. CASA DE JOE - DIA Abre a porta. Avista seu rato morto rodeado de formigas e a goiabeira quebrada. Pega o rato e o enterra na goiabeira, despeja ali um saco inteiro de sal.
  • 26. 25. 44. TERRAÇO - DIA Na beira da piscina do terraço fuma, olha o seu reflexo na água trêmula. Começa a chover, continua imóvel. MULHER (V.O.) Hey! Você tem horas? Joe levanta o olhar. 45. CASA DE JOE - NOITE Som do telejornal ecoando do vizinho. Ouvimos a voz de um jornalista da TV dando uma notícia sobre futebol. Joe dosa as substâncias dentro de uma seringa. Procura uma veia no braço. Empurra o êmbolo. Acende um cigarro. A notícia se interrompe e começa um comercial de inseticida. Joe se aproxima do espelho do banheiro, está completamente coberto por escamas. O plano vai se abrindo e “saindo” pela janela. Um ruído começa a surgir se misturando ao som da TV. À medida que o plano vai se abrindo e se distanciando de Joe o ruído se sobressai até desaparecer o som da tv. Ruído afinando e sumindo. Ao mesmo tempo, à distância e pela janela, vemos por trás (do ombro para cima) a cabeça de Joe cair para o lado na cadeira de rodas. Ruído some. Silêncio. PRETO FIM