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17/10/2016 ­ 05:00
No Congo, o café mais perigoso do mundo
Por Alexandra Wexler
Aficionados de café artesanal de várias partes do mundo posicionam seus
narizes sobre xícaras e inalam profundamente. Logo, provam o café,
bochechando ou mastigando­o antes de cuspir as sobras e usar calculadoras
em seus smartphones para dar uma pontuação final a cada amostra do grão.
"Achei este ótimo. Bem encorpado", diz a principal jurada, a americana Beth
Ann Caspersen, em referência ao café que obteve a maior nota na primeira
rodada da competição, da qual só participavam grãos produzidos na
República Democrática do Congo, ou RDC. Era fácil esquecer que, lá fora,
seguranças com Kalashnikovs em punho circulavam protegendo os participantes.
A RDC, o maior dos dois países que levam o nome Congo, é uma das últimas fronteiras em uma corrida global em busca
do café com o melhor sabor do mundo. O aumento na demanda por cafés especiais, que responde hoje por uma em cada
duas xícaras vendidas nos Estados Unidos, tem incentivado exportadores, torrefadores e varejistas a ir para lugares onde
o potencial é enorme ­ assim como os riscos.
Nas províncias da RDC, ou Congo Oriental, cobertas de floresta e ricas em café, milícias ainda travam uma guerra que já
custou mais de cinco milhões de vidas nos últimos 20 anos. A frágil estabilidade do país foi ameaçada novamente por
confrontos violentos devido à ameaça do presidente Joseph Kabila de estender seu mandato que já dura 15 anos, adiando
até 2018 eleições que tinham sido marcadas para novembro.
Os muitos desafios de se fazer negócios no Congo incluem ameaças de morte, sequestros e extorsões. Autoridades do
governo muitas vezes inventam tarifas ou forjam documentos para exigir mais dinheiro do que é devido. No ano passado,
pelo menos 175 estrangeiros e congoleses, muitos trabalhando para organizações humanitárias, foram sequestrados,
segundo a organização Human Rights Watch.
A maioria dos sequestros aconteceu em áreas próximas à zona produtora de cafés especiais. Para reduzir o risco,
empresários ocidentais costumam viajar com pessoas locais de confiança, que conhecem o terreno e mantêm contatos
com as autoridades militares.
Apesar do perigo, o Congo está atraindo alguns dos maiores nomes da indústria do café. A americana Starbucks Corp. vai
investir US$ 1 milhão no país nos próximos três anos por meio de sua fundação. Em março, a empresa passou a vender
seu primeiro café congolês de origem única on­line e em 1.500 lojas nos EUA e Canadá.
"Estamos sempre à procura de locais novos ou interessantes que possam fornecer um café arábica de alta qualidade", diz
Craig Russell, vice­presidente executivo das operações globais de café da Starbucks.
A Blue Bottle Coffee Co., torrefadora da Califórnia, às vezes mescla café congolês com dois tipos de grãos etíopes em sua
marca Three Africans, que ela descreve como tendo "uma personalidade muito fácil de agradar".
Os cafés especiais são um segmento de rápido crescimento num mercado que movimenta cerca de US$ 175 bilhões
mundialmente por ano. O café especial é feito de grãos arábica da mais alta qualidade. Seu preço embute um prêmio e ele
deixou de ser um artigo de nicho. Nos EUA, 31% dos adultos tomam café especial todos os dias, ante 16% em 2006, estima
a Associação Nacional do Café do país.
A produção de cafés especiais do Congo foi de quase zero em 2008 para até 960 toneladas por ano, segundo a Iniciativa
Congo Oriental, um grupo sem fins lucrativos que se concentra em modernizar a agricultura local.
As províncias Kivu do Norte e Kivu do Sul tinham sete estações de lavagem de café há cinco anos e hoje contam com 94, de
acordo com a Universidade Bilíngue Chrétienne do Congo. Essas estações são cruciais na infraestrutura dos cafés
especiais, porque permitem que os agricultores separem as sementes do café do resto do fruto. Em seguida, elas são
lavadas, fermentadas e secas para preservar suas qualidades "premium".
Embora o governo congolês não disponha de dados oficiais sobre a produção de cafés especiais, entrevistas com
agricultores sugerem que a renda de alguns está subindo. Torrefadores estrangeiros estão gastando milhões de dólares
para reunir os agricultores em grupos e ensinar­lhes as melhores práticas e financiar a próxima safra.
Chris Treter, um dos fundadores da Higher Grounds Trading Co., uma torrefadora americana de café especial, fez cerca de
dez viagens ao Congo nos últimos três anos e já investiu cerca de US$ 450 mil na cafeicultura do país.
Ele é um evangelizador do potencial do país, mesmo após uma autoridade e sócio local dele ter sido encontrado morto em
2015, dias antes de um evento de degustação de café para compradores internacionais que Treter batalhou para organizar.
Residentes locais presumem que ele foi envenenado, mas a polícia sugere que ele morreu de causas naturais, diz Treter.
"Para mim, aqui é o Velho Oeste [...] e o último bastião dos cafés especiais."
Apesar do interesse, a produção geral de café do Congo vem caindo há décadas. Na safra 2015­16, a produção total foi de
335 mil sacas de 60 quilos, comparado com 1,6 milhão em 1990­91, segundo a Organização Internacional do Café. O
Brasil, maior produtor do mundo, colheu 43,2 milhões de sacas em 2015­16.
O café africano, com apenas 12% do mercado global, está entre os mais procurados e costuma ser usado para dar mais
sabor às misturas de grãos de múltiplas origens. O arábica representa hoje mais da metade da produção do Congo, ante
20% há dez anos, segundo estimativas da indústria.
"Se realmente há um fornecedor potencial inexplorado de café de alta qualidade no mundo, é ele", diz Ben Corey­Moran,
diretor de fornecimento de café da Fair Trade USA, que certifica produtos de comércio justo no EUA. O Comércio Justo é
um rótulo que atesta que o produtor recebeu preços de mercado e que certas normas foram respeitadas durante a
produção. Corey­Moran diz que o Congo Oriental "é basicamente a terra dos sonhos para a produção de cafés especiais".
Cafés especiais têm de ser provados por um "sommelier" em um ritual que determina a qualidade em uma escala de até
100 pontos, conforme definido pela Associação de Cafés Especiais da América. O grão precisa superar 80 pontos para se
qualificar. Os melhores grãos do Congo geralmente obtêm ao menos 85 pontos e conseguem no atacado cerca de US$ 3 por
libra­peso, quase o dobro do preço na bolsa de futuros ICE, em Nova York.
Milhares de produtores de café congoleses veem no grão a oportunidade de prosperar. Grandes áreas do Congo Oriental
contam com a altitude, o clima e a fertilidade do solo ideais para o cultivo de café, mas levar a safra ao mercado é difícil.
Em média, são necessários de 45 a 50 dias para que um contêiner de café congolês tipo exportação zarpe do porto
queniano de Mombasa, diz Andreas Nicolaides, diretor financeiro da Coffeelac, que exporta cerca de 40% do café do Congo.
O café da vizinha Uganda chega ao porto em cerca de 10 a 15 dias.
Gisele Mudiay, assessora agrícola e de desenvolvimento rural do presidente da RDC, diz que o governo está "ciente dos
vários problemas" e "trabalhando com todos os envolvidos para melhorar o ambiente de negócios".
Durante uma visita, em maio, à Sopacdi, cooperativa que reúne 8 mil cafeicultores, em Bulenga, a estação de lavagem de
café era acessível apenas por barco porque as chuvas tornaram as estradas próximas intransitáveis. Mulheres em roupas
tradicionais coloridas, muitas com bebês amarrados nas costas, trabalhavam em mesas de secagem, onde os grãos de café
de maior qualidade eram espalhados em bandejas de arame.
Mas, mesmo com as dificuldades existentes, o esforço para promover o café do país começa a ser recompensado.
Carspersen, a jurada da competição em maio, planeja comprar pelo menos 120 mil sacas de café congolês "premium" este
ano para a Equal Exchange, torrefadora da qual ela é gerente de controle de qualidade, 50% mais do que ela planejava no
início do ano.
Café do Congo atrai torrefadores apesar dos riscos

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