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Vão grampear a sua energia 27 de julho de 2009 — Márcio Alcântara  Revista Época  Data:25/07/2009Por Thiago Cid Um novo sistema conseguirá ler seus hábitos de consumo. Mas você vai gostar: a conta poderá cair. FIM DO “GATO”. Um técnico instala um medidor digital em Niterói, Rio de Janeiro, na área da distribuidora de energia Ampla. O dispositivo reduz furtos e desperdício. O cidadão tem motivos diversos para querer melhorar seu perfil de consumo de eletricidade – dos mais imediatos, como gastar menos dinheiro, aos mais nobres, como reduzir o impacto ambiental causado por sua família. Esse empenho, atualmente, recebe pouca ajuda das empresas distribuidoras de energia, como Eletropaulo e Light. O relógio mecânico e arcaico que mede o consumo em cada residência revela informações úteis somente ao técnico que vai fazer a leitura. Se o consumidor pudesse entender esses dados e escolher como seu lar gasta energia, a fim de usá-la de forma mais inteligente, o sistema elétrico brasileiro passaria por um salto evolucionário. Um impulso para esse salto foi tomado neste ano, na discreta consulta pública feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) sobre a substituição, nas residências brasileiras, dos medidores analógicos por digitais. O que se discute é bem mais que uma troca de equipamento. O novo medidor tem potencial para tornar o sistema de geração e distribuição de energia mais eficiente, econômico e limpo. “Só com a medição eletrônica será possível tarifar a eletricidade de acordo com o horário de uso”, diz Luiz Maurer, especialista sênior em energia do Banco Mundial. Essa medição tornaria a eletricidade para as residências mais barata em horários de pouco uso, como de madrugada, e mais cara nos horários de pico, no fim da tarde e início da noite – algo semelhante ao que ocorre com as tarifas da telefonia. Hoje, nos momentos de maior demanda, o sistema de distribuição trabalha acima de 90% de sua capacidade, o que significa maior risco de quedas de força. “Um sistema sobrecarregado sofre panes”, diz o especialista e consultor Roberto D’Araújo. “E, quando há uma pane, a rede deixa de distribuir energia por um instante, para depois a carga voltar muito alta. Por isso, há um grande número de queimas de aparelhos elétricos.” Com a mudança de tecnologia na medição, seria possível também diferenciar a tarifa no verão e no inverno. Como a geração de energia é menor no período mais frio e seco do ano, a tarifa do horário de pico do inverno poderia ser maior que a do verão, afirma D’Araújo, que é pesquisador associado do Coppe, a pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma mudança assim traria um grande benefício ambiental. No inverno, o maior consumo de eletricidade faz com que o país recorra às poluentes termoelétricas, a parte ruim da razoavelmente limpa matriz energética brasileira. Além disso, num cenário de volta do crescimento econômico, em 2010 e 2011, o Brasil terá de avaliar novamente os limites de sua capacidade de geração. Embora a indústria use a maior parte da energia produzida no país, as residências respondem por mais de 20% do consumo e têm influência nesse quadro. A ANEEL, ao mesmo tempo que avalia a necessidade de modernização da infraestrutura, modera a ansiedade de fabricantes de equipamentos e consultores que veem no processo uma oportunidade de venda. Ainda não foram definidos o prazo para a substituição dos medidores nem as características necessárias ao equipamento digital. Sabe-se que ele oferece muitas possibilidades, além da tarifação por horário. O equipamento pode mostrar ao consumidor quanta energia foi gasta e como ela foi usada, em períodos de tempo determinados. Ao conferir seu perfil de uso, ele saberia como reduzir o desperdício e em quais horários utilizar os aparelhos que mais consomem, como ferro de passar roupa e chuveiro elétrico. A tecnologia digital poderia também detectar rapidamente falhas no fornecimento, localizando o problema e disparando alertas automáticos. Tanto o consumidor quanto a fiscalização teriam uma ferramenta para averiguar a qualidade do serviço prestado pelas empresas.  Pesquisas em andamento sugerem que haverá medidores com novas capacidades num futuro próximo. Cyro Boccuzzi, presidente da consultoria de eficiência energética ECOee e ex-vice- -presidente da Eletropaulo, diz: “Os novos medidores não podem estar limitados à tecnologia atual e ao preço mais baixo. Devem ter todas as funções que beneficiem os consumidores”. Na África do Sul, o sistema digital ajudou as famílias a reduzir seu consumo de energia em 20% . Entre as novas capacidades estaria a medição nos dois sentidos, ou bilateral. Ela permitiria que pequenos produtores residenciais de energia (a partir de geração solar, por exemplo) vendessem seu excedente para o sistema. O medidor registraria quanto o consumidor utilizou da energia da concessionária e quanto ele enviou para o sistema. A novidade, assim, incentivaria investimentos difusos em fontes renováveis. Um sistema com essas características – flexibilidade, captura e uso intensivo de dados, circulação de informação nos dois sentidos e capacidade de incorporar inúmeras pequenas fontes geradoras – aproxima-se de uma rede elétrica inteligente, também conhecida em inglês como “smart grid” (tema de um congresso internacional a ocorrer em São Paulo, em novembro). O engenheiro eletricista Pedro Jatobá, um dos principais especialistas brasileiros em smart grids, afirma que o sistema, para se tornar progressivamente mais inteligente, precisa mirar simultaneamente em três objetivos: mais segurança, menor impacto ambiental e menos gasto. A parte da despesa menor para o usuário já virou realidade na África do Sul, onde o uso dos medidores eletrônicos proporcionou queda de 20% no consumo residencial. Com o aparelho, as famílias entenderam seu perfil de consumo e reduziram o desperdício. “O medidor pode mostrar claramente como um banho demorado faz energia e dinheiro escorrerem pelo ralo”, afirma Maurer, do Banco Mundial. Na consulta pública, a ANEEL quis saber quais funções o aparelho deveria ter. Essa etapa terminou em abril e coletou 33 sugestões. Apenas seis foram de consumidores. A maior parte das sugestões tinha como objetivo favorecer as empresas fornecedoras de energia. A ANEEL afirma que a conversa apenas começou. “Queremos chegar a um consenso, para adotar aparelhos que beneficiem consumidores e empresas concessionárias”, diz Joísa Dutra, diretora do órgão regulador. Para as distribuidoras, seria vantajoso ter meios de prevenir furtos de energia, os famosos “gatos”. Elas também teriam um mapa detalhado da rede, com a localização dos gargalos e o perfil do consumo dos clientes. “Os medidores poderão registrar tudo o que se passa na rede e transmitir esses dados para as concessionárias”, afirma André Moraga, diretor de relações institucionais da Ampla, concessionária que atua em 73% do Estado do Rio de Janeiro. O medidor foi crucial na redução dos furtos de energia na área de atuação da Ampla. Em 2005, antes de a concessionária substituir cerca de 300 mil dispositivos por modelos digitais, 27% de sua energia era furtada, e com isso ela sofria prejuízo anual de cerca de R$ 800 milhões. Com a novidade, a empresa afirma ter reduzido a taxa de roubo para 20% e economizado R$ 200 milhões. O consumidor se beneficia de maneira indireta, porque a redução de perdas diminui a necessidade de reajustes por parte da empresa. Para que uma estrutura assim funcione, a rede elétrica deverá estar equipada com sensores, capazes de levar os dados colhidos até as centrais de operação das concessionárias. Eles podem captar as informações de aproximadamente mil medidores e enviá-las – por ondas de rádio ou pela própria rede elétrica – às centrais. A tecnologia permitiria troca de informações entre todos os pontos do sistema, como as estações distribuidoras de energia, a central de processamento da concessionária e as residências. Essa capacidade de comunicação permitiria à empresa não somente detectar falhas após seu acontecimento, mas também monitorar o sistema para evitar que problemas acontecessem, diz Jatobá, que preside a Associação de Empresas Proprietárias de Infraestrutura e de Sistemas Privados de Telecomunicações (Aptel). Desde 2007, os medidores digitais precisam passar pelo crivo do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Até agora, apenas uma marca recebeu o selo necessário. “Outros dois fabricantes estão a caminho da aprovação”, afirma Luiz Carlos Gomes, diretor de Metrologia Legal do Inmetro. O aparelho permitido é fabricado pela empresa Landis Gyr, suíça, mas, segundo o presidente da companhia no Brasil, Álvaro Dias Filho, a tecnologia foi toda desenvolvida aqui. “Nossos aparelhos permitem todas as funções, mas, até a ANEEL regulamentar quais operações serão permitidas, ele está sendo usado apenas para mostrar, de forma simples, quanto cada casa está consumindo”, diz. Diante do extenso cardápio de possibilidades (e de ainda poucas certezas), cabe lembrar que o usuário não é o principal responsável pela robustez do fornecimento. “As empresas concessionárias são obrigadas a manter uma rede moderna, capaz de suportar a demanda da população crescente. Para isso, o consumidor já paga por investimentos em infraestrutura, perdas técnicas e furto de energia, que são repassados na conta”, afirma o consultor D’Araujo.
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Ainda não foram definidos o prazo para a substituição dos medidores nem as características necessárias ao equipamento digital. Sabe-se que ele oferece muitas possibilidades, além da tarifação por horário. O equipamento pode mostrar ao consumidor quanta energia foi gasta e como ela foi usada, em períodos de tempo determinados. Ao conferir seu perfil de uso, ele saberia como reduzir o desperdício e em quais horários utilizar os aparelhos que mais consomem, como ferro de passar roupa e chuveiro elétrico. A tecnologia digital poderia também detectar rapidamente falhas no fornecimento, localizando o problema e disparando alertas automáticos. Tanto o consumidor quanto a fiscalização teriam uma ferramenta para averiguar a qualidade do serviço prestado pelas empresas.  Pesquisas em andamento sugerem que haverá medidores com novas capacidades num futuro próximo. 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Um sistema com essas características – flexibilidade, captura e uso intensivo de dados, circulação de informação nos dois sentidos e capacidade de incorporar inúmeras pequenas fontes geradoras – aproxima-se de uma rede elétrica inteligente, também conhecida em inglês como “smart grid” (tema de um congresso internacional a ocorrer em São Paulo, em novembro). O engenheiro eletricista Pedro Jatobá, um dos principais especialistas brasileiros em smart grids, afirma que o sistema, para se tornar progressivamente mais inteligente, precisa mirar simultaneamente em três objetivos: mais segurança, menor impacto ambiental e menos gasto. A parte da despesa menor para o usuário já virou realidade na África do Sul, onde o uso dos medidores eletrônicos proporcionou queda de 20% no consumo residencial. 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Elas também teriam um mapa detalhado da rede, com a localização dos gargalos e o perfil do consumo dos clientes. “Os medidores poderão registrar tudo o que se passa na rede e transmitir esses dados para as concessionárias”, afirma André Moraga, diretor de relações institucionais da Ampla, concessionária que atua em 73% do Estado do Rio de Janeiro. O medidor foi crucial na redução dos furtos de energia na área de atuação da Ampla. Em 2005, antes de a concessionária substituir cerca de 300 mil dispositivos por modelos digitais, 27% de sua energia era furtada, e com isso ela sofria prejuízo anual de cerca de R$ 800 milhões. Com a novidade, a empresa afirma ter reduzido a taxa de roubo para 20% e economizado R$ 200 milhões. O consumidor se beneficia de maneira indireta, porque a redução de perdas diminui a necessidade de reajustes por parte da empresa. 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