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%HermesFileInfo:C-10:20111002:
C10 Cidades/Metrópole DOMINGO, 2 DE OUTUBRO DE 2011 O ESTADO DE S. PAULO
O português entrou na lista de lín-
guas “faladas” pelo Google Tradu-
tor em maio do ano passado. Nessa
época, o serviço ganhou, de uma
vez, mais 27 idiomas no Text-to-
Speech – hoje são mais de 30. Isso é
a metade dos 63 idiomas que o site
traduz. Para passar as palavras, fra-
ses ou documentos inteiros de uma
língua para outra, o Google usa um
processo que eles chamam de tradu-
ção estatística. Um programa anali-
sa e compara milhões de documen-
tos que já haviam sido traduzidos
por pessoas e, por meio dessa leitu-
ra, são detectados automaticamente
padrões de linguagem. Ou seja, a
máquina “aprende” aos poucos a
traduzir melhor.
A
o lado de discutíveis vanta-
gens, morrer tem seus in-
convenientes–eumdelesé
ficarexpostoaumasublite-
ratura em mais de um sentido fúne-
bre.Vocêpodeargumentarqueàque-
la altura – ou fundura – já não seria o
caso de se preocupar com questões
estilísticas. Inês estando morta, tan-
to faz alguém gravar na pedra uma
“saudadeimorredoura”,quandoaex-
tinta criatura gostaria mesmo é que
imorredourafosseela,nãoasaudade.
Pode ser. Pra que tanta pose, doutor,
pra que esse orgulho?, questionou
em samba Billy Blanco, por sinal já
chegado a esse estágio em que “todo
mundoéigualquandoavidatermina
com terra em cima e na horizontal”.
Aindaassim,peçolicençaparavol-
taraumaquestãoquemeparecegrave–
inclusive no sentido que tem, na língua
inglesa, a palavra grave.
Você bate as botas e alguém manda
gravar na lápide um texto que o faria
morrerdevergonha,semortojánãoes-
tivesse. A morte é também isso. Por
que,então,nãocuidardotextoantesda
fatalbatidadebotas?Comofezaescrito-
ra Dorothy Parker, ao imaginar letras
minúsculas sobre uma vasta superfície
de pedra: “Se você conseguiu ler aqui, é
porque já chegou perto demais!” Tam-
bémédela esteaqui:“Desculpe o pó...”
Confesso que para uso próprio ainda
não aprontei algo brilhante, ou mesmo
fosco, a ser lido pelos pósteros ao pé de
minha campa. Já pensei em recorrer à
dramática secura de uma inscrição que
li no cemitério de Havana, verdadeiro
grito gravado no mármore: ¡Irene Ma-
nuela! Mas talvez não mereça a carga
emotivadospontosdeexclamaçãoarre-
vesados– assimcomonão mejulgo,em
meus piores momentos, merecedor de
algocomquemedepareiaoperambular
por um cemitério de defuntos finos de
São Paulo em busca de artes funerárias
deVictorBrecheret.Láestá,sobonome
de um fulano, numa lápide de granito
negro: “ABosta”.Sim, nem toda páé de
cal, e tudo vira pó, inclusive aquilo.
O fato de ser autor de um dicionário
de lugares-comuns e frases feitas me
criaria constrangimentose quisesse in-
cidir na “saudade de seus entes queri-
dos”.Maiscoerenteseriabuscarinspira-
çãonum pocket book que jácomeçaa ser
curiosoporteraformadeumadaquelas
lápides de cemitério inglês, com uma
corcova no alto. Chama-se A small book
ofgravehumour.Nele,certoFritzSpiegl
recolheuvelhosepitáfios,maishilarian-
tes que lacrimogêneos.
Esta inscrição, por exemplo, trata
commortalfranquezaamemóriadeum
defunto humilde: “Aqui jaz John
Taggart,homemhonesto,baixodeesta-
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feito com uma pequena participação
que tinha numa lojinha em Wigtown, e
isso era tudo.” Outra, ao reverenciar as
virtudes morais da falecida, lança enxo-
fre sobre a honra de suas conterrâneas:
“AquijazapobreCharlotte,quenãomor-
reu rameira, e sim virgem, aos 19 anos,
algo raro de se ver nas vizinhanças.”
Doisepitáfiossãoobras-primasdehu-
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dos foram enterrados em Wimble, me-
nos eu, que estou enterrado aqui.”
“AquijazJohnHigley,cujospaismor-
reram num naufrágio. Se tivessem so-
brevivido, os dois estariam enterrados
aqui.”
No túmulo de um líder mórmon, afa-
madopordotesnãoexatamenteespi-
rituais, o Fritz anotou: “Homem de
muita coragem e de soberbo equipa-
mento.”
Nãofaltamaolivroumastantasre-
clamações póstumas:
“Ó morte cruel, como pôde você
sertãodesapiedada,levando-oantes
e me deixando para trás. Em vez dis-
so, você deveria ter levado os dois, o
que teria sido mais agradável para o
sobrevivente.”
“Aqui jaz o corpo de Molly Dickie,
a esposa de Hall Dickie Taylor. Com
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marido tentou, em vão, curar meus
males. Por fim arranjou um terceiro,
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“EmmemóriadeCharlesWard,fi-
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afetuoso. Nota: Este túmulo não foi
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san. Ela erigiu um túmulo para John
Salter, seu segundo marido, esque-
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Como não me serve nenhuma das
fórmulas reunidas pelo Fritz Spiegl,
eutalvezacabeplagiandoopoetaMá-
rio Quintana, que, inconformado
com a iminência de seu passamento,
quis epitáfio nestes termos: “Eu não
estou aqui.” Pois também eupreten-
do não estar.
Online. Siga o Metrópole
no Twitter
Regina dá voz ao Google Tradutor, que
é usado em brincadeiras no YouTube
@metropole_oesp
A MULHER
QUE PASSA
TROTES SEM
QUERER
PARAENTENDER
HÉLVIO ROMERO/AE
Daniel Trielli
R
egina Bittar fica sem saber
o que dizer quando ouve as
barbaridades que ela mes-
ma fala. Ela já foi flagrada
passando trotes para pizzarias, bri-
gando com crianças e até xingando,
pelotelefone,apresentadoresdepro-
gramasdetelevisãoaovivo.MasRegi-
nanãoémal-educada.Elaéavozbra-
sileiradoGoogleTradutor(translate.
google.com.br).Comoaferramenta,
que oferece as traduções em som, é
completamente editável, as palavras
com o timbre de Regina são monta-
das por qualquer usuário do site. E
não demorou muito para todo tipo
de brincadeira surgir no YouTube.
“Essamisturademáquinacomvoz
ativaaimaginaçãodas pessoas.Exis-
tealgumfetiche,algumamagiadamá-
quina falar e ter uma voz especial”,
diz a locutora, apresentadora e mes-
tre decerimônias.“Essa coisadavoz
vemdaépocadorádio.Équenemler
um livro. A sua imaginação é que vai
fazer o personagem. Se ele é loiro,
moreno, alto, baixo... E o áudio tam-
bém funciona assim.”
AntesdeseravozdoGoogleTradu-
tor, Regina, de 49 anos, já era a mu-
lherqueavisaqualprogramavaipas-
sar em seguida no canal Fox. Tam-
bém é locutora de vários comerciais
edeusuavozaatendentesautomáti-
cos de telefone – aqueles que falam
qual é o seu saldo bancário ou para
aguardar na linha que um funcioná-
rio estará disponível em poucos ins-
tantes. Isso sem contar as palestras,
cerimônias e vídeos corporativos.
Reginacontaqueostruquesdapro-
fissão são úteis não só no trabalho,
masemqualquersituação.“Seeues-
tou em uma reunião de condomínio
e quero ter mais força na voz, uso de
todososartifícios.Porqueeuseiusar
eseioefeitoquecausa.Qualquerum
faz isso, mas sem perceber e sem o
controle.Oprofissionalsabearmare
desarmar”, conta. “Um dia, fui fazer
um boletim de ocorrência e estava
impaciente.Eocaraqueestavaaten-
dendo na delegacia parecia bravo. Deu
um tempo, ele me chamou e eu pensei:
‘bom,voulevarbronca’.Atéqueelediz:
‘eu estou vendo aqui que você é locuto-
ra. Como é que é? Fala alguma coisapa-
ra eu ouvir’... Todo mundo quer uma
palhinha.”
Voz à máquina. A ferramenta de tradu-
ção não é a primeira máquina para a
qual Regina deu sua voz. Ela também
participou do Mediz, um serviço lança-
doem2001pelaGradiente.Osusuários
decelulardocomeçodadécadaligavam
para o número, pediam algum tipo de
informaçãoeouviamReginadizeroho-
róscopo,aprevisãodetempoouasnotí-
cias. “Foi o primeiro contato que tive
comessetipodecoisa,comavozroboti-
zada,deumamáquina.Easpessoasque
ligavamseenvolverambastantenoser-
viço. Teve o caso de uma mulher que
ligou desesperada porque o namorado
estava apaixonado por outra e ela não
sabia o que fazer. Virou uma espécie de
CVV (Centro de Valorização da Vida).”
Entãoquandoumaempresaeuropeia
fez uma seleção para um trabalho de
Text-to-Speech (“texto para voz”, ou
nasigla eminglês,TTS),Reginajásabia
o que a esperava. Algumas cláusulas de
confidencialidade não permitem que
ela diga como foi feita a gravação nem
qual é a empresa, mas ela conta que a
gravação também foi usada em outros
serviços, como GPS. “Essa tecnologia
(TTS) já existe há bastante tempo. O
grandediferencial éoGoogle,queapo-
pularizou. Esse usuário comum teve
contato com uma tecnologia que, para
ele, é novidade.”
A voz de Regina entrou no tradutor
no ano passado. Algum tempo depois,
surgiramosprimeirosvídeosnoYouTu-
be. “Faz uns quatro meses que fiquei
sabendo das brincadeiras. Fazer o quê?
O que cai na rede não dá para saber no
que vai dar. Acho que ninguém imagi-
nou que isso ia acontecer.”
Alocutoraadmitequequandodesco-
briuaferramenta,atéelafezumasbrin-
cadeiras. “Às vezes, estou conversando
com alguns amigos e um deles pega um
laptopefazminhavozfalaralgumpala-
vrão. Já participei de uma reunião em
umaprodutoraetinhaumcaraquenin-
guém gosta. Até que alguém digitou
umaspalavrasederepente‘eu’falo:‘Fu-
lano de tal, vai tomar no...’.”
Ovídeopreferidodelaédacriançade
3 anos que briga com a voz do Google
que manda ela dormir (www.youtube.
com/watch?v=JvKJbtdn2cU).“Étãobo-
nitinha... ‘Está na hora de você dor-
mir’”, imita-se. “Tem gente que pede
pizzacomaminhavoz.Euachoquesea
pessoaquepassaotrotepagapelapizza
depois, tudo bem.”
‘Caiçara’. Regina demorou para ga-
nharavida comavoz.Ela não começou
a carreira no áudio, mas no texto. No
começo dos anos 1980, ela ainda estava
em sua cidade natal, Santos. Com pou-
co menos de 20 anos, trabalhava como
contatopublicitárionaCinemasdeSan-
tos,umaempresaquetinhasalasdeexi-
bição e uma casa noturna, a Heavy Me-
tal.Issoalevouatercontatodiretocom
ojornalATribunaenãodemorariamui-
toparaelaserconvidadaparafazeruma
revistademodaecomportamento,cha-
madaNossaModa.“Foiaprimeirarevis-
tacoloridadeSantos, compapel cuchê,
uma inovação muito grande.”
Alguns anos depois, o diretor artísti-
co da rádio 89 FM, Sinésio Bernardo,
descobriuavocaçãodeRegina.“Eledis-
se: ‘Você é locutora, tem um baita tim-
bre’.Emeconvidouparafazerumapro-
paganda na rádio, para a Ótica Mar-
tins.” O primeiro trabalho de locutora
foi tão bom que Bernardo quis fazer a
revistadeReginanarádio,emumpro-
grama chamado Rádio Revista. “Era
uma liberdade muito grande. Eu fa-
ziaumascoisasquenãosabiaquenão
podia. Ficava lendo poesias, falando
umas coisas meio nada a ver. Mas os
ouvintes elogiavam! É isso que eu fa-
lo: o poder da voz é muito grande.”
Na virada para a década de 1990, o
marido engenheiro, Rodolfo, estava
cansado de subir e descer a Serra do
Mar para trabalhar em Santo André,
no ABC paulista. E a família, agora
com duas crianças – Rhassan, hoje
com 23 anos, e Rhaissa, com 22 –, su-
biuparaacapital.“Nãoqueriavirpa-
ra São Paulo. Eu era bem bairrista,
bemcaiçara.Meunegócioerapraia”,
admite.“Mascaídeboca.Meapaixo-
nei pela cidade. Hoje, me sinto uma
paulista que vai para Santos de vez
em quando, respirar o ar da praia.”
Mesmo assim, ela gosta de morar
em um lugar menos cinza da metró-
pole.Afamíliaviveemumprédioan-
tigo, de 52 anos, em um condomínio
muito arborizado na Aclimação, re-
gião central da capital. Para ela, as
árvoreseaarquiteturalembramaor-
lasantista.“Esseéomeucantinhode
Santos em São Paulo.” Em um dos
cômodos,elatemaprópriacabinede
gravação, para que continue dando
sua voz a muitas outras máquinas.
PAULISTÂNIAUMACIDADEESUAGENTE
HUMBERTO
WERNECK
Literaturaterminal
Máquina ‘aprende’
a traduzir melhor
Truques. ‘Se eu estou em uma reunião de condomínio e quero ter mais força na voz, uso alguns artifícios’
estadão.com.br
Você bate as botas e alguém
grava na lápide um texto
que o faria morrer de vergonha

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A o lado de discutíveis vanta- gens, morrer tem seus in- convenientes–eumdelesé ficarexpostoaumasublite- ratura em mais de um sentido fúne- bre.Vocêpodeargumentarqueàque- la altura – ou fundura – já não seria o caso de se preocupar com questões estilísticas. Inês estando morta, tan- to faz alguém gravar na pedra uma “saudadeimorredoura”,quandoaex- tinta criatura gostaria mesmo é que imorredourafosseela,nãoasaudade. Pode ser. Pra que tanta pose, doutor, pra que esse orgulho?, questionou em samba Billy Blanco, por sinal já chegado a esse estágio em que “todo mundoéigualquandoavidatermina com terra em cima e na horizontal”. Aindaassim,peçolicençaparavol- taraumaquestãoquemeparecegrave– inclusive no sentido que tem, na língua inglesa, a palavra grave. Você bate as botas e alguém manda gravar na lápide um texto que o faria morrerdevergonha,semortojánãoes- tivesse. A morte é também isso. Por que,então,nãocuidardotextoantesda fatalbatidadebotas?Comofezaescrito- ra Dorothy Parker, ao imaginar letras minúsculas sobre uma vasta superfície de pedra: “Se você conseguiu ler aqui, é porque já chegou perto demais!” Tam- bémédela esteaqui:“Desculpe o pó...” Confesso que para uso próprio ainda não aprontei algo brilhante, ou mesmo fosco, a ser lido pelos pósteros ao pé de minha campa. Já pensei em recorrer à dramática secura de uma inscrição que li no cemitério de Havana, verdadeiro grito gravado no mármore: ¡Irene Ma- nuela! Mas talvez não mereça a carga emotivadospontosdeexclamaçãoarre- vesados– assimcomonão mejulgo,em meus piores momentos, merecedor de algocomquemedepareiaoperambular por um cemitério de defuntos finos de São Paulo em busca de artes funerárias deVictorBrecheret.Láestá,sobonome de um fulano, numa lápide de granito negro: “ABosta”.Sim, nem toda páé de cal, e tudo vira pó, inclusive aquilo. O fato de ser autor de um dicionário de lugares-comuns e frases feitas me criaria constrangimentose quisesse in- cidir na “saudade de seus entes queri- dos”.Maiscoerenteseriabuscarinspira- çãonum pocket book que jácomeçaa ser curiosoporteraformadeumadaquelas lápides de cemitério inglês, com uma corcova no alto. Chama-se A small book ofgravehumour.Nele,certoFritzSpiegl recolheuvelhosepitáfios,maishilarian- tes que lacrimogêneos. Esta inscrição, por exemplo, trata commortalfranquezaamemóriadeum defunto humilde: “Aqui jaz John Taggart,homemhonesto,baixodeesta- turaemancodeumaperna.Estavasatis- feito com uma pequena participação que tinha numa lojinha em Wigtown, e isso era tudo.” Outra, ao reverenciar as virtudes morais da falecida, lança enxo- fre sobre a honra de suas conterrâneas: “AquijazapobreCharlotte,quenãomor- reu rameira, e sim virgem, aos 19 anos, algo raro de se ver nas vizinhanças.” Doisepitáfiossãoobras-primasdehu- mor nonsense: “Aqui jazem pai, mãe, irmã e eu. To- dos foram enterrados em Wimble, me- nos eu, que estou enterrado aqui.” “AquijazJohnHigley,cujospaismor- reram num naufrágio. Se tivessem so- brevivido, os dois estariam enterrados aqui.” No túmulo de um líder mórmon, afa- madopordotesnãoexatamenteespi- rituais, o Fritz anotou: “Homem de muita coragem e de soberbo equipa- mento.” Nãofaltamaolivroumastantasre- clamações póstumas: “Ó morte cruel, como pôde você sertãodesapiedada,levando-oantes e me deixando para trás. Em vez dis- so, você deveria ter levado os dois, o que teria sido mais agradável para o sobrevivente.” “Aqui jaz o corpo de Molly Dickie, a esposa de Hall Dickie Taylor. Com dois grandes médicos, meu adorado marido tentou, em vão, curar meus males. Por fim arranjou um terceiro, e aí eu morri.” “EmmemóriadeCharlesWard,fi- lho zeloso, irmão amoroso e marido afetuoso. Nota: Este túmulo não foi mandado erigir por sua mulher, Su- san. Ela erigiu um túmulo para John Salter, seu segundo marido, esque- cendo o afeto de Charles Ward.” Como não me serve nenhuma das fórmulas reunidas pelo Fritz Spiegl, eutalvezacabeplagiandoopoetaMá- rio Quintana, que, inconformado com a iminência de seu passamento, quis epitáfio nestes termos: “Eu não estou aqui.” Pois também eupreten- do não estar. Online. Siga o Metrópole no Twitter Regina dá voz ao Google Tradutor, que é usado em brincadeiras no YouTube @metropole_oesp A MULHER QUE PASSA TROTES SEM QUERER PARAENTENDER HÉLVIO ROMERO/AE Daniel Trielli R egina Bittar fica sem saber o que dizer quando ouve as barbaridades que ela mes- ma fala. Ela já foi flagrada passando trotes para pizzarias, bri- gando com crianças e até xingando, pelotelefone,apresentadoresdepro- gramasdetelevisãoaovivo.MasRegi- nanãoémal-educada.Elaéavozbra- sileiradoGoogleTradutor(translate. google.com.br).Comoaferramenta, que oferece as traduções em som, é completamente editável, as palavras com o timbre de Regina são monta- das por qualquer usuário do site. E não demorou muito para todo tipo de brincadeira surgir no YouTube. “Essamisturademáquinacomvoz ativaaimaginaçãodas pessoas.Exis- tealgumfetiche,algumamagiadamá- quina falar e ter uma voz especial”, diz a locutora, apresentadora e mes- tre decerimônias.“Essa coisadavoz vemdaépocadorádio.Équenemler um livro. A sua imaginação é que vai fazer o personagem. Se ele é loiro, moreno, alto, baixo... E o áudio tam- bém funciona assim.” AntesdeseravozdoGoogleTradu- tor, Regina, de 49 anos, já era a mu- lherqueavisaqualprogramavaipas- sar em seguida no canal Fox. Tam- bém é locutora de vários comerciais edeusuavozaatendentesautomáti- cos de telefone – aqueles que falam qual é o seu saldo bancário ou para aguardar na linha que um funcioná- rio estará disponível em poucos ins- tantes. Isso sem contar as palestras, cerimônias e vídeos corporativos. Reginacontaqueostruquesdapro- fissão são úteis não só no trabalho, masemqualquersituação.“Seeues- tou em uma reunião de condomínio e quero ter mais força na voz, uso de todososartifícios.Porqueeuseiusar eseioefeitoquecausa.Qualquerum faz isso, mas sem perceber e sem o controle.Oprofissionalsabearmare desarmar”, conta. “Um dia, fui fazer um boletim de ocorrência e estava impaciente.Eocaraqueestavaaten- dendo na delegacia parecia bravo. Deu um tempo, ele me chamou e eu pensei: ‘bom,voulevarbronca’.Atéqueelediz: ‘eu estou vendo aqui que você é locuto- ra. Como é que é? Fala alguma coisapa- ra eu ouvir’... Todo mundo quer uma palhinha.” Voz à máquina. A ferramenta de tradu- ção não é a primeira máquina para a qual Regina deu sua voz. Ela também participou do Mediz, um serviço lança- doem2001pelaGradiente.Osusuários decelulardocomeçodadécadaligavam para o número, pediam algum tipo de informaçãoeouviamReginadizeroho- róscopo,aprevisãodetempoouasnotí- cias. “Foi o primeiro contato que tive comessetipodecoisa,comavozroboti- zada,deumamáquina.Easpessoasque ligavamseenvolverambastantenoser- viço. Teve o caso de uma mulher que ligou desesperada porque o namorado estava apaixonado por outra e ela não sabia o que fazer. Virou uma espécie de CVV (Centro de Valorização da Vida).” Entãoquandoumaempresaeuropeia fez uma seleção para um trabalho de Text-to-Speech (“texto para voz”, ou nasigla eminglês,TTS),Reginajásabia o que a esperava. Algumas cláusulas de confidencialidade não permitem que ela diga como foi feita a gravação nem qual é a empresa, mas ela conta que a gravação também foi usada em outros serviços, como GPS. “Essa tecnologia (TTS) já existe há bastante tempo. O grandediferencial éoGoogle,queapo- pularizou. Esse usuário comum teve contato com uma tecnologia que, para ele, é novidade.” A voz de Regina entrou no tradutor no ano passado. Algum tempo depois, surgiramosprimeirosvídeosnoYouTu- be. “Faz uns quatro meses que fiquei sabendo das brincadeiras. Fazer o quê? O que cai na rede não dá para saber no que vai dar. Acho que ninguém imagi- nou que isso ia acontecer.” Alocutoraadmitequequandodesco- briuaferramenta,atéelafezumasbrin- cadeiras. “Às vezes, estou conversando com alguns amigos e um deles pega um laptopefazminhavozfalaralgumpala- vrão. Já participei de uma reunião em umaprodutoraetinhaumcaraquenin- guém gosta. Até que alguém digitou umaspalavrasederepente‘eu’falo:‘Fu- lano de tal, vai tomar no...’.” Ovídeopreferidodelaédacriançade 3 anos que briga com a voz do Google que manda ela dormir (www.youtube. com/watch?v=JvKJbtdn2cU).“Étãobo- nitinha... ‘Está na hora de você dor- mir’”, imita-se. “Tem gente que pede pizzacomaminhavoz.Euachoquesea pessoaquepassaotrotepagapelapizza depois, tudo bem.” ‘Caiçara’. Regina demorou para ga- nharavida comavoz.Ela não começou a carreira no áudio, mas no texto. No começo dos anos 1980, ela ainda estava em sua cidade natal, Santos. Com pou- co menos de 20 anos, trabalhava como contatopublicitárionaCinemasdeSan- tos,umaempresaquetinhasalasdeexi- bição e uma casa noturna, a Heavy Me- tal.Issoalevouatercontatodiretocom ojornalATribunaenãodemorariamui- toparaelaserconvidadaparafazeruma revistademodaecomportamento,cha- madaNossaModa.“Foiaprimeirarevis- tacoloridadeSantos, compapel cuchê, uma inovação muito grande.” Alguns anos depois, o diretor artísti- co da rádio 89 FM, Sinésio Bernardo, descobriuavocaçãodeRegina.“Eledis- se: ‘Você é locutora, tem um baita tim- bre’.Emeconvidouparafazerumapro- paganda na rádio, para a Ótica Mar- tins.” O primeiro trabalho de locutora foi tão bom que Bernardo quis fazer a revistadeReginanarádio,emumpro- grama chamado Rádio Revista. “Era uma liberdade muito grande. Eu fa- ziaumascoisasquenãosabiaquenão podia. Ficava lendo poesias, falando umas coisas meio nada a ver. Mas os ouvintes elogiavam! É isso que eu fa- lo: o poder da voz é muito grande.” Na virada para a década de 1990, o marido engenheiro, Rodolfo, estava cansado de subir e descer a Serra do Mar para trabalhar em Santo André, no ABC paulista. E a família, agora com duas crianças – Rhassan, hoje com 23 anos, e Rhaissa, com 22 –, su- biuparaacapital.“Nãoqueriavirpa- ra São Paulo. Eu era bem bairrista, bemcaiçara.Meunegócioerapraia”, admite.“Mascaídeboca.Meapaixo- nei pela cidade. Hoje, me sinto uma paulista que vai para Santos de vez em quando, respirar o ar da praia.” Mesmo assim, ela gosta de morar em um lugar menos cinza da metró- pole.Afamíliaviveemumprédioan- tigo, de 52 anos, em um condomínio muito arborizado na Aclimação, re- gião central da capital. Para ela, as árvoreseaarquiteturalembramaor- lasantista.“Esseéomeucantinhode Santos em São Paulo.” Em um dos cômodos,elatemaprópriacabinede gravação, para que continue dando sua voz a muitas outras máquinas. PAULISTÂNIAUMACIDADEESUAGENTE HUMBERTO WERNECK Literaturaterminal Máquina ‘aprende’ a traduzir melhor Truques. ‘Se eu estou em uma reunião de condomínio e quero ter mais força na voz, uso alguns artifícios’ estadão.com.br Você bate as botas e alguém grava na lápide um texto que o faria morrer de vergonha