O documento descreve a vida e carreira de José Nunes Ereira, o trisavô de José Avillez. José Ereira começou como comerciante de vinhos em Cascais no século XIX e mais tarde se tornou um empresário próspero, fundando o primeiro cabaré de Lisboa, o Maxim's, e o Grande Casino Internacional Mont'Estoril.
A ascensão de um comerciante modesto que fundou o primeiro cabaré de Lisboa
1. 74
Sociedade
Apesar de ter sido um homem
empreendedor, que subiu a pulso,
e de ter estado envolvido na cria-
ção de estabelecimentos noctur-
nos que deram que falar, o nome
de José Ereira raramente aparece
em hemerotecas, arquivos, igrejas
ou bibliotecas.
Além do Maxim’s, teve o Teatro-
-Salão Foz, que abriu com outro
sócio, também em 1908 e no
mesmo edifício, mas com entrada
pela Calçada da Glória. Era uma
sala de concertos e espectáculos
de animatógrafo para 730 espec-
tadores, além de “sessões da
moda da actual épocha”, como se
lê num jornal de 1915.
Uma das raras referências a José
Nunes Ereira aparece em outro
“A SUA
QUINTA ERA
LOCAL PRE-
FERIDO DO
REI D. CAR-
LOS PELAS
GALINHOLAS
QUE POR ALI
ABUNDA-
VAM”
PERFIL. JOSÉ NUNES EREIRA COMEÇOU COM UM ARMAZÉM DE VINHOS
O trisavô de José Avillez era um pequeno comerciante quando
chegou a Cascais, no século XIX. Depois enriqueceu, teve um
casino, caçou com o Rei e fundou o primeiro cabaré de Lisboa.
Em 2017, o chefabriu o Beco em sua homenagem. PorMarco Alves
N
o dia 22 de Junho de 1940
os portugueses estavam
entre o choque e o es-
panto. O choque vinha da
guerra-relâmpago que Hitler lança-
ra em Setembro de 1939. O espanto
devia-se à Exposição do Mundo
Português, que seria inaugurada no
dia seguinte – espécie de Expo 98
em formato panfleto do Estado
Novo, a feira de Salazar incluía ele-
fantes, leões e palhotas com africa-
nos mandados vir da origem.
Talvez por isso tenha passado dis-
creta esta notícia do Diário de Lis-
boa: “Vai ser leiloado o recheio do
Maxim’s, que esteve instalado no
Palácio Foz.” Assim se marcava o
fim definitivo do primeiro cabaré de
Lisboa, situado desde 1908 no Palá-
cio Castelo Melhor, ou Palácio Foz,
nos Restauradores. O fim vinha
com elogio fúnebre: “O mais ele-
gante clube de Lisboa”, dizia o jor-
nal, que defendia que a notícia não
era “um facto banal, pois o Maxim’s
está ligado à vida da Lisboa mun-
dana das últimas décadas”.
O jornalista que escreveu a peça
não imaginaria que, 77 anos de-
pois, um tal de José Avillez iria
inaugurar, 650 metros a subir pelo
Chiado, o Beco – Cabaret Gour-
met, assumindo-o como uma con-
tinuação do Maxim’s (recriando o
imaginário cénico) e como uma
homenagem a quem o fundou, Jo-
sé Ereira, seu trisavô.
DAALDEIA
PARAOCABARÉ
jornal do mesmo ano, O Zé. Num
artigo publicado a 5 de Outubro, é
descrito como “um dos grandes
capitalistas de Lisboa, cavalheiro
de consideração e carácter”. O
seu filho, Joaquim (que é, portan-
to, o bisavô do chefAvillez) esta-
T
Herdou-lhe
oempreendedorismo
José Avillez e o trisavô, José Ereira.
A foto deste, a única conhecida, foi
cedida à SÁBADO pelo site
Restos de Colecção, de José Leite
i
José Avillez,
37 anos, descende
da nobreza,
mas também
de comerciantes
modestos que
subiram a pulso
BRUNOCALADO
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T
Regresso ao passado
A 28 de Dezembro de 1930, o
Notícias Ilustrado mostrava uma
festa no Maxim’s, cabaré que serviu
de inspiração para o Beco (2017)
Os seus anúncios falavam em
“Primeiro Restaurant-Dancing
do Paiz”, “Lindos efeitos de luz”
[comandados por um “electricis-
ta”] e “Últimas novidades de Paris,
Londres e Berlim”. Ricamente
ornamentado (Fernando Pessoa
descreve tudo em Lisboa – O Que
o Turista Deve Ver, de 1925)
e profusamente animado por
excentricidades e variedades
(incluindo striptease).
Havia mesas de jogo, cocaína e
álcool, e também beldades que
podiam praticar esporadicamente
o que hoje, rispidamente, se cha-
ma alterne e prostituição de luxo.
“É lá que todos os que se divertem
vão passar as horas da noite, fora
da labuta, em busca da verdadeira
alegria”, resumia o Ilustrado.
Pai discreto, filho benemérito
José Ereira foi também um dos só-
cios do Grande Casino Internacio-
nal Mont’Estoril, inaugurado em
1899 e desde aí repleto de janta-
res-concerto e espectáculos, in-
cluindo de artistas internacionais.
Frequentado pela alta sociedade
ria já também na gestão do espa-
ço, uma vez que é ele que o cede
em definitivo em 1917.
O Salão Foz foi notícia pelas pio-
res razões na noite de 29 de Janei-
ro de 1929, quando um incêndio o
destruiu. O Maxim’s também seria
afectado. “Àquela hora, o Maxim’s
regurgitava de gente. A certa altu-
ra, uma das senhoras que ali se
encontravam atravessou o dan-
cingcorrendo”, escreve o Diário
de Notícias, que logo a seguir tem
esta passagem curiosa, lembrando
o desastre do Titanic: “Quando o
sr. Walter Machado, director, foi
avisado do fogo, para evitar o pâ-
nico, recomendou à orquestra que
continuasse tocando e aos criados
que avisassem os clientes de que
era forçoso retirarem-se. E assim
se fez, na melhor ordem, apesar
das chamas irromperem com vio-
lência do telhado.”
O fogo e a água dos bombeiros
provocaram prejuízos de 400
contos no Maxim’s (cerca de 370
mil euros hoje), incluindo “a arre-
cadação de material eléctrico de
ornamentações e lingerie”.
O Maxim’s, óbvia importação
parisiense (o primeiro cabaré
foi o Le Chat Noir, em 1891), mar-
cara uma época como clube de
prazer para elites – “onde toda
a gente chic está”, dizia o Notí-
cias Ilustrado.
OhistoriadorJoão Aníbal
Henriques facultou à SÁBADO
alguns anúncios da mercearia
de Joaquim Pedada, cunhado
e sócio de José Ereira.
Além de vinho (que o trisavô
de José Avil-
lez também
vendia), havia
“variado sorti-
mento de
géneros de
mercearia”,
tabacos, ce-
reais e lenhas.
Vinhosavulso
Amerceariados Pedada,
que se juntaram aos Ereira
Ereiras
O pai, o avô e o
trisavô do chef
Avillez têm o
mesmo nome:
José Ereira. Foi
o nome que
deu ao seu
filho, de 7 anos
OTRISAVÔ
ERADISCRE-
TO,MASOBI-
SAVÔERAFA-
MOSO:DAVA
DINHEIRO
AQUEMLHO
PEDIA
g
Quando o jogo foi
proibido, o
Maxim’s escondia-
-o. Tinha um em-
pregado à entrada
que tocava uma
campainha inter-
na quando a polí-
cia chegava
Q
3. 76
Sociedade
(incluindo a Rainha Dona Amé-
lia), fechou quando abriu o Casino
do Estoril, em 1931.
Joaquim Ereira tomou conta
dos negócios do pai e ficou mais
conhecido. Tido como profunda-
mente generoso (no sentido literal
de dar dinheiro a quem precisava),
tem hoje uma rua em Cascais com
o seu nome (ao lado da Quinta da
Bicuda, e isso não é por acaso,
como veremos).
É através de Joaquim que se en-
contra no Arquivo Histórico Muni-
cipal de Cascais uma referência ao
seu pai. Datada de 28 de Dezembro
de 1914, é uma carta enviada à câ-
mara informando que o seu pai
“está disposto a vender a sua pro-
priedade, na rua Visconde da Luz,
por 7.000$00” (144 mil euros hoje).
Joaquim Ereira continuou alguns
negócios do pai. “É ele quem dá
forma e espírito à família. Deixou
obra muito determinante na con-
solidação da vocação turística de
Cascais. Aparece nos meus regis-
tos como sendo ele que explora
uma casa de jogo numa das ruelas
por trás do Casino da Praia [inau-
gurado em 1873 na orla da praia
da Ribeira] e é ele quem, em so-
ciedade com várias famílias que
então se tinham instalado em Cas-
cais, explora o jogo nascente no
Monte Estoril”, diz à SÁBADO o
tres, os Melo e Castro e os Ulrich,
quando, em 2015, se casou com
Sofia de Melo e Castro Ulrich.
Resta, portanto o último apelido,
Ereira. Seguindo uma tradição
onomástica antiga (adoptar o
nome da terra), os Ereiras come-
çaram a ficar Ereira porque vie-
ram da Ereira, uma pequena loca-
lidade do concelho do Cartaxo, a
64 km de Lisboa.
“Eu sou Ereira, mas no râguebi,
nos escuteiros, nem me tratavam
por Zé. Era o Avillez. Fiquei o
Avillez. Agora, o meu filho vai
nascer e vou ressuscitar um José
Ereira. Do lado do meu pai morreu
toda a gente. Os tios, os avós; só
tenho dois primos direitos. O meu
filho vai ser Zezinho Ereira”, dizia
o chefao Público em 2009.
Em oitocentos, Cascais era uma
vila banal – havia a expressão “a
Cascais vinha-se uma vez e nunca
mais…” –, habitada por trabalhado-
res sazonais (pescadores e militares
aquartelados na Cidadela). “O resto
era composto pelos saloios dos ar-
rabaldes, que forneciam a vila de
fruta e legumes e por um ainda in-
cipiente grupo de comerciantes
oriundos de várias zonas do País”,
diz João Aníbal Henriques.
Um desses comerciantes era Jo-
sé Ereira, que se estabeleceu por
volta de 1880 na Rua do Arco
como proprietário de um arma-
zém de vinhos. “Mais tarde, uma
irmã sua, Engrácia, terá casado
com outro ilustre proto-
-comerciante, Joaquim Pedada,
dono de uma das mais prósperas
mercearias da vila, situada de-
fronte do armazém dos Ereiras.
Os Pedadas, naturais do Algarve,
historiador João Aníbal Henriques.
“Exploraram o Casino Portu-
guês, o Strangers e, mais tarde,
o Casino Internacional do Monte
Estoril. Depois, em parceria
com Guilherme Cardim, Armando
Vilar e João Aranha, criaram
a Sociedade Estoril Plage (ainda
hoje existente), que arrenda
a Fausto Figueiredo o direito
à exploração do jogo no Estoril,
fundando o casino que hoje co-
nhecemos”, conclui.
Um grandesaltopara osEreiras
O nome completo do chefmais
estrelado de Portugal é José de
Avillez Burnay Ereira. O apelido
Avillez vem da mãe, que tem uma
longa ascendência de fidalgos da
Casa Real Portuguesa. O apelido
Burnay da avó paterna, trineta do
1º conde de Burnay. O chefde co-
zinha herda portanto os dois ape-
lidos através dos casamentos do
pai e do seu avô com duas mu-
lheres de famílias conceituadas.
Ele próprio fez o mesmo, “juntan-
do-se” a outras duas famílias ilus-
Horário
Em 1921, o
Maxim’s era um
dos seis clubes
nocturnos de
Lisboa autoriza-
dos a funcionar
até às 4h da
manhã
T
A evolução da cozinha
Em cima, uma criação de José
Avillez para o Beco (2017).
Ao lado, a cozinha do Maxim’s
(Notícias Ilustrado, 20 de Dezem-
bro de 1931)
g
O estilo cabaré do
Maxim’s: restau-
rante com espaço
para dançar.
Havia ainda salas
de jogo, de chá, de
fumo e de leitura.
E uma barbearia
i
O Maxim’s
assumia-se como
restaurante de
cozinha francesa.
Havia “jantares e
ceias de mesa
redonda e à carta”,
dizia um anúncio
BRUNOCALADO
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suas grandes e por vezes excên-
tricas moradias e palacetes de
Verão (foi uma época de ouro
para a arquitectura), misturando o
seu sangue com os Ereiras e os
Pedadas enquanto se dedicavam
a inúmeras actividades – acções
de beneficência, touradas, festas,
regatas e bailes.
D. Carlos e as galinholas
Não foi um típico enredo de tele-
novela – para matar o tédio, a ra-
pariga rica vai à mercearia com a
empregada, apaixona-se pelo fi-
lho do merceeiro, há turras de fa-
mílias, no fim acaba tudo em bem.
Pelo contrário. Nesta altura, os
Ereiras e os Pedadas já frequenta-
vam os meios dos ricos porque
também eles eram já ricos, ainda
que não de nascença. Em Cascais
como em todo o lado, o dinheiro
esbatia fronteiras de sangue.
“A prosperidade da família Erei-
ra vem da primeira ligação matri-
monial que une dois dos mais
prósperos negócios de Cascais de
então e foi com base nesta noto-
riedade empreendedora que co-
meça a impor-se socialmente, ga-
nhando cabedal para alargar os
seus investimentos”, acrescenta
João Aníbal Henriques. Logo a se-
guir, José Ereira compra a Quinta
dos Farias, que mudará de nome.
João Aníbal Henriques conta
a história: “Como a família tinha
uma paixão pela caça, partilhada
pelo Rei e por grande parte das
mais proeminentes figuras de
então, tornou-se hábito ver o ve-
lho Ereira nos grupos mais afa-
mados das caçadas que se faziam.
E a sua Quinta dos Farias era
local preferido do Rei D. Carlos
pelas galinholas que por ali
abundavam. E como o Rei, brin-
cando nesse grupo de amigos,
chamava “bicudas” às ditas perdi-
zes, terão mudado o nome da
quinta, que passou a chamar-se
Quinta da Bicuda, nome que
mantém até hoje.”
Na entrevista ao Público,
Avillez diz que esta quinta “foi
durante anos a única auto-
-suficiente de Portugal. Fazia-se
vinho, manteiga, pão. Ao domingo
abriam a casa a trabalhadores, a
quem morasse perto, para comer
cozido à portuguesa. A quinta
vendia gado, queijo, tudo.”
Agora é um condomínio de
luxo, mas ainda hoje tem, à en-
trada, a Ermida de S. José, man-
dada construir por Joaquim Erei-
ra. Foi ele que começou a urbani-
zação do local. No arquivo de
Cascais pode consultar-se o pe-
dido que fez à câmara para cons-
truir uma casa – em 1941. W
eram de origem muito humilde.”
A este sucesso empresarial não
será alheio o facto de, por esta
altura, Cascais estar mais próspe-
ra. O ponto de viragem ocorrera
por volta de 1870, quando a famí-
lia real elegeu a vila como estân-
cia de veraneio. E em 1895 inau-
gura-se a ligação Cascais-Alcân-
tara por comboio.
Veio o Rei e a Rainha (Maria Pia
de Sabóia), e com eles vieram
também a nobreza e as elites lis-
boetas. Estes últimos (os Burnay,
os Avillez, Ulrich, d’Orey, O’Neill,
Guedes, Herédia, Mello e por aí
fora) foram assim construindo as
T
O vintagee o burlesco
O Maxim’s tinha quadros
de Columbano e José Malhoa
(entre outros). O Beco tem Dita
Von Teese desenhada por
Patrícia Braga
JOSÉ
AVILLEZ
HERDOU
DOIS APELI-
DOS ILUS-
TRES ATRA-
VÉS DOS
CASAMEN-
TOS DO PAI
E DO AVÔ
Ofício
No arquivo de
Cascais há um
ofício de 1914
para que “se
vistorie o esta-
do das canaliza-
ções das fossas
da propriedade
de José Ereira”
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