Este resumo apresenta um estudo de caso sobre o Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, um terreiro de candomblé de nação ketu localizado em Fortaleza, Ceará. O trabalho analisa o processo de africanização ocorrendo nesse terreiro desde 1991 e seus impactos, especialmente no repertório musical e em suas formas de transmissão. A pesquisa de campo observou modificações como o uso de CDs e fitas durante os ensaios, introduzindo novos sons e alterando a transmissão oral tradicional. Concl
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Transmissão musical em casa de candomblé no Ceará
1. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA
José Alberto de Almeida Junior
UM CANDOMBLÉ EM FORTALEZA-CE :
O ILÊ OSUN OYEYE NI MÓ
Dissertação submetida ao Programa
de Mestrado Interinstitucional UECE/UFBA
em cumprimento parcial das exigências
para obtenção do grau de mestre
Área de Concentração: Etnomusicologia
Orientadora: Profa. Dra. Angela Elizabeth Lühning
FORTALEZA - CEARÁ
Fevereiro / 2002
4. 4
Meus sinceros agradecimentos a:
André Vidal Sampaio, amigo e companheiro de todas as horas, pelo
apoio, revisão de parte do texto e tradução do resumo.
Angela Elizabeth Lühning, minha orientadora, por suas críticas e
sugestões que foram de fundamental importância.
Erwin Schrader, companheiro de mestrado, que muito me apoiou em
todos os momentos.
Elvis Matos, companheiro de profissão, pela revisão de parte do texto.
Gerardo Viana Junior e Simone Sousa, pelo empréstimo de seus
materiais de campo.
Alexandre Fontes, alabê do Ilê Osun Oyeye Ni Mó pelas valiosas
informações.
Luís Thomas Cavalcante Junior, amigo e abiãn do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
pelas valiosas informações.
Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP), pelo
financiamento da pesquisa.
Fundação Pierre Verger, e as pessoas que a fazem, pelo carinho e pelo
acesso a seu acervo bibliográfico.
Elba Braga Ramalho, por todo o seu apoio sempre me incentivando a
seguir em frente.
Carmem Saenz Coopat, minha amiga, por seu carinho.
Hugo Lopes Neto, meu irmão, por sua ajuda no tratamento do material
gráfico.
Alencar Júnior, pela enorme ajuda no tratamento do material sonoro
recolhido em campo.
Alexandre Havt, Eliezer Albuquerque, Francisco Costa Holanda, Marcio
Mattos, Eunice Moura, Angélica Ellery, Lu Basile, Babi, Elidia, Luíza (F.P.
Verger), Dona Margarida (F.P. Verger), Anastácia Tabatinga.
A todos os que fazem o Ilê Osun Oyeye Ni Mó.
Aos orixás.
5. 5
Sumário:
1 – Introdução 13
2 – Histórico e definições 22
2.1 – O Candomblé como sistema religioso – mitologia e 22
definições
2.2 – O Candomblé no Brasil 34
2.3 – O processo de africanização, uma tendência recente 38
2.4 – O Candomblé no Ceará 43
3 – Apresentação do local de estudo, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó 49
3.1 – Histórico do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 49
3.2 – Estrutura física do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 52
3.3 – Funcionamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 55
3.3.1 – Perfil dos integrantes do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 56
3.3.2 – Perfil dos freqüentadores do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 59
4- A transmissão do conhecimento musical 62
4.1 – A transmissão oral como modelo nas religiões afro- 62
brasileiras
4.2 – A transmissão musical dentro do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 67
4.2.1 – Quem ensina e quem aprende? 67
4.2.2 – Formas alternativas de aprendizagem 71
5- A música como uma multiplicidade de elementos essenciais à 76
festa
5.1 – A festa do xirê: Descrição de um modelo de festa 77
5.2 – A música na festa 79
5.2.1 – Descrição do conjunto instrumental 80
6. 6
5.3 – Descrição de cantigas e toques selecionados 85
6- Processos de adaptação no candomblé praticado no Ilê Osun
Oyeye Ni Mó 95
6.1 – A recriação de uma tradição não vivida 95
6.1.1 – Bahia versus África, a troca de paradigmas 96
6.2 – Uma religião de minorias? 98
6.3 – Reflexos dessa adaptação no repertório 101
7 – Considerações finais 103
8 – Anexos 109
8.1 – Transcrições das canções 109
8.2 – Fotografias 114
9 – Referências 127
9.1 – Bibliografia 127
9.2 – Fontes orais (entrevistas) 133
7. 7
Lista de figuras:
Figura 1: Desenho esquemático do “barracão padrão” 28
Figura 2: Desenho esquemático do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó 55
Figura 3: Transcrição do adarrum 87
Figura 4: Transcrição do aguere 88
Figura 5: Transcrição do sató 88
Figura 6: Transcrição do alujá 89
Figura 7: Transcrição do ago 89
Figura 8: Transcrição do opanijé 90
Figura 9: Transcrição do ijexá 90
Figura 10: Transcrição de cantiga de Exu 109
Figura 11: Transcrição de cantiga de Ogum 109
Figura 12: Transcrição de cantiga de Oxossi 110
Figura 13: Transcrição de cantiga de Ossain 110
Figura 14: Transcrição de cantiga de Logunedé 110
Figura 15: Transcrição de cantiga de Obaluaê 111
Figura 16: Transcrição de cantiga de Oxumaré 111
Figura 17: Transcrição de cantiga de Xangô 112
Figura 18: Transcrição de cantiga de Iansã 112
Figura 19: Transcrição de cantiga de Oxum 112
Figura 20: Transcrição de cantiga de Iemanjá 113
Figura 21: Transcrição de cantiga de Nanã 113
Lista de fotografias:
Foto 1: Entrada do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001) 114
8. 8
Foto 2: Vizinhança do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001) 114
Foto 3: 1ª saída de santo feita na casa (1977) 115
Foto 4: Festa de confirmação de Ogãn e Ekédi (1988) 115
Foto 5: Saída de Obaluaê (1988) 116
Foto 6: Oxum de Mãe Ilza, ao centro e Ogum Torodê á direita 116
(1992)
Foto 7: Festa no barracão de trás (1995) 117
Foto 8: Odete, Mãe Ilza, Alexandre Fontes (esquerda para direita)
na festa de 21 anos de santo de Ilza e confirmação de Alexandre
como ogãn (1997) 117
Foto 9: Festa de saída de Oxalufã (1997) 118
Foto 10: Três Yemanjás e uma Oxum em uma festa de Oxossi 118
(2000)
Foto 11: Oxum em iaô masculino em uma festa de Oxossi (2000) 119
Foto 12: Um Oxossi em sua festa (2000) 120
Foto 13: Ori axé do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001) 121
Foto 14: Detalhe do teto do barracão (2001) 121
Foto 15: Detalhe do painel pintado na parede do barracão
simbolizando Oxum (2001) 122
Foto 16: Pepelê com os três atabaques (2001) 122
Foto 17: Detalhe dos atabaques (2001) 123
Foto 18: Detalhe das cordas e madeiras do sistema de afinação de
um dos atabaques (2001) 123
Foto 19: Assentamento da Oxum de Mãe Ilza (2001) 124
Foto 20: Assentamento de Ogum (2001) 124
9. 9
Foto 21: Assentamento de Ossain (2001) 125
Foto 22: Assentamento de Tempo (2001) 125
Foto 23: Casas de santo nos fundos do terreno (2001) 126
Foto 24: Porta de uma casa de santo com restos do sacrifício
(2001) 126
Roteiro do cd de exemplos:
Faixas:
01 Cantiga de Exu - Altair
02 Cantiga de Exu - Alexandre
03 Cantiga de Ogun - Altair
04 Cantiga de Ogum - Alexandre
05 Cantiga de Oxossi - Altair
06 Cantiga de Oxossi - Alexandre
07 Cantiga de Ossain - Altair
08 Cantiga de Ossain - Alexandre
09 Cantiga de Logunedé - Altair
10 Cantiga de Logunedé - Alexandre
11 Cantiga de Obaluaê - Altair
12 Cantiga de Obaluaê - Alexandre
13 Cantiga de Oxumaré - Altair
14 Cantiga de Oxumaré - Alexandre
15 Cantiga de Xangô - Altair
16 Cantiga de Xangô - Alexandre
17 Cantiga de Iansã - Altair
10. 10
18 Cantiga de Iansã - Alexandre
19 Cantiga de Oxum - Altair
20 Cantiga de Oxum - Alexandre
21 Cantiga de Iemanjá - Altair
22 Cantiga de Iemanjá - Alexandre
23 Cantiga de Nanã - Altair
24 Cantiga de Nanã - Alexandre
11. 11
Resumo
O presente trabalho é o resultado de um estudo
de caso sobre o Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, uma
casa de candomblé de nação ketu na cidade de
Fortaleza-CE, que tem passado desde 1991 por um
processo de africanização (PRANDI, 1999c).
Procuramos com esse trabalho responder primeiro a
questões básicas de fixação e sobrevivência da
religião candomblé em nossa cidade para depois
discutir acerca das modificações e adaptações que
esta sofreu devido à sua clientela muito
diversificada em extratos sociais, escolaridade e
raça, principalmente no que diz respeito à questão
musical.
Averiguamos inicialmente que esse processo de
africanização que vem ocorrendo nos cultos de
candomblé no Brasil se propõe a restaurar ou
recriar tradições julgadas perdidas na transposição
do complexo religioso africano para o nosso país
durante o período da escravatura negra, e essa
africanização em Fortaleza vem talvez como uma
forma de estruturar esta religião afro-brasileira
inserida em um ambiente branco e mestiço.
Através de uma pesquisa de campo baseada na
observação participativa, tivemos a preocupação de
registrar tudo à nossa volta da melhor forma
possível, através de gravações em áudio e vídeo,
ou máquina fotográfica, para depois proceder às
análises do discurso dos entrevistados, assim como
à seleção de material musical para transcrições e
posterior análise.
Nos deparamos com uma realidade até então
inédita para nós: a descaracterização do modo de
transmissão oral/aural descrito para todas as
religiões afro-brasileiras. Ensaios e recorrência a
compact discs e fitas cassete fazem parte da
realidade cotidiana do terreiro estudado,
introduzindo realidades sonoras que não existiam
antes na comunidade, assim como modificando
drasticamente o esquema de transmissão e
aquisição de conhecimento musical.
Concluímos então com o presente trabalho que o
processo de busca de uma autenticidade perdida
tem afetado o repertório musical e principalmente as
suas formas de transmissão.
12. 12
Abstract
The present work is the result of a case study on
the Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, a candomblé house
of Ketu tradition in the city of Fortaleza, Brazil, which
has been since 1991 going through a process of
africanization (PRANDI, 1999c). We tried, on this
work, to answer primarily to fundamental questions
about the implantation and survival of the
Candomblé religion in our city, and then go on to
discuss the changes and adaptations to which it was
submitted because of the great diversity of social
backgrounds, education and ethnical origins of its
members, especially in the aspects related to music.
We initially attested that this process of
africanization that has been occurring in the cult of
Candomblé in Brazil aims to restore or recreate
traditions which were judged lost on the
transposition of the African religious complex to our
country during the period of slavery, and that this
africanization in Fortaleza possibly appears as a
way of structuring this afro-Brazilian religion inserted
in a predominantly white and half-breed
environment.
Through a field research based on participative
observation, we have been careful in registering
everything around us the best way possible, using
audio and video recordings or photography, and
then proceeding to the analysis of the interviews, as
well as the selection of the musical sources for
transcription and posterior analysis.
We were faced with a situation until then
unknown to us: the partial abandonment of the
oral/aural method of transmission described as
common to all the afro-Brazilian religions.
Rehearsals and the use of CD and tape are a part of
the daily routine of the house under study,
introducing sounds that did not exist in the
community before, as well as changing radically the
method of transmission and acquirement of musical
knowledge.
We then infer, with the present work, that this
search of a lost authenticity has affected both the
musical repertoire and especially its forms of
transmission.
13. 13
1- Introdução
Este trabalho é o resultado de alguns anos de pesquisa sobre o
candomblé em Fortaleza, no estado do Ceará. Pesquisa em vários níveis:
desde a pesquisa curiosa e desinteressada de um leigo sobre o assunto,
até a pesquisa mais sistemática e devidamente orientada, ajustada aos
padrões de uma pesquisa científica.
Ainda na época de nossa graduação em música na Universidade
Estadual do Ceará (UECE), fomos inicialmente apresentados às religiões
afro-brasileiras. Como trabalho final de uma disciplina de metodologia do
trabalho científico, fizemos em grupo um estudo sobre um terreiro de
umbanda na periferia da cidade de Fortaleza, o Centro Espírita de
Umbanda Casa da Caridade sob a direção de Pai Francisco. A partir
deste contato inicial começamos a ler um pouco mais sobre o assunto e a
encorajar alguns amigos a trabalharem na mesma área. Continuamos
ainda assim como simples curiosos por bastante tempo até ter em nosso
círculo de amizades algumas “pessoas do candomblé”. Entre elas o abiãn
Luís Thomas Cavalcante Junior, que foi de extrema importância para a
realização desse trabalho. Foi o abiãn Thomas que nos apresentou de
perto o candomblé (a umbanda nós já havíamos conhecido em trabalho
anterior), e principalmente o candomblé feito no terreiro de sua mãe-de-
santo: a Mãe Ilza d’Oxum, yalorixá do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, uma
casa de nação ketu na cidade de Fortaleza-CE. Esse terreiro tornou-se
então nosso objeto para um estudo mais aprofundado.
Alguns pontos rapidamente nos chamaram atenção e nos
intrigaram:
14. 14
Como poderia existir candomblé em Fortaleza-CE se esta é uma
religião que no senso comum está ligada à etnia negra,1 e o
mesmo senso comum diz que praticamente não existem negros em
Fortaleza-CE?
Porque uma religião existente desde o fim da década de 60 em
Fortaleza-CE permaneceu praticamente no anonimato?
Quais as tradições que a sustentam?
De onde saem seus seguidores?
Que influências essas “diferenças” notadas tem sobre a
transmissão do conhecimento musical?
Tudo isso foram indagações que deram asas à nossa imaginação e à
nossa curiosidade. Tentamos respondê-las a contento para nós mesmos
e dessa busca por respostas surgiu esse trabalho.
Centramos então, como já dissemos, nossa pesquisa no Ilê Osun
Oyeye Ni Mó, não só pela admiração demonstrada por adeptos de outros
terreiros de Fortaleza por este Ilê, mas também pela sua estrutura física e
recursos humanos disponíveis para a execução dos rituais dentro desse
terreiro, que não encontramos em nenhum outro a que tivemos acesso.
Houve ainda uma facilidade de acesso proporcionada pela figura de
Thomas Junior, e o importante fato do Ilê Osun Oyeye Ni Mó ser
atualmente o terreiro de candomblé mais antigo em funcionamento regular
na cidade de Fortaleza-CE. 2
1
Discutiremos mais tarde o conceito de etnia e como ele se apresenta dentro do
candomblé.
2
Nossa primeira escolha para realização da pesquisa de campo para esse trabalho, por
diversas razões deveria ter sido o Ilê Ibá, primeira casa a ser fundada na cidade de
Fortaleza, mas infelizmente Pai José Xavier, pai-de-santo fundador da casa, morreu no
15. 15
Um outro ponto que nos levou a escolher esse terreiro é a
existência de um processo de africanização (PRANDI, 1999c) que vem se
desenvolvendo dentro dele nos últimos anos. Esse processo de
africanização3 dos cultos de candomblé no Brasil, segundo Prandi, tem o
intento de restaurar ou recriar tradições perdidas na transposição do
complexo religioso africano para o Brasil durante o período da escravatura
negra.
Começava o que chamei de processo de
africanização do candomblé, em que o retorno
deliberado à tradição africana significa o
reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram
deturpados e perdidos na adversidade da diáspora;
voltar à África não para ser africano nem para ser
negro, mas para recuperar um patrimônio cuja
presença no Brasil é agora motivo de orgulho,
sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o
detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo
negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no
orixá. (PRANDI, 1999c:105)
Essa africanização em Fortaleza vem talvez como uma forma de
estruturar e dotar de uma legitimidade, que a ausência de uma etnia
negra não promoveu, esta religião afro-brasileira inserida em um ambiente
branco e mestiço, com pessoas de backgrounds diferenciados, que
geralmente não tem nenhuma relação (a não ser talvez afetiva) com os
movimentos de resistência cultural negra acontecidos durante a história
do Brasil.
Grupo étnico designa uma população que: 1) Se
perpetua principalmente por meios biológicos; 2)
partilha de valores culturais fundamentais postos em
prática a partir de formas culturais; 3) compõe um
começo do ano de 2000, estando a casa desde então passando por problemas na sua
manutenção.
3
Encontramos em SILVA (1999:149) o termo reafricanização com o mesmo sentido e
aliado ao termo dessincretização.
16. 16
campo de comunicação e interação; 4) tem um
grupo de membros que se identifica e é identificado
por outros, como sendo constituinte de uma
categoria distinguível de outras categorias da
mesma ordem. (BARTH, 1969:10)
Este fenômeno vem se desenvolvendo há vários anos, e
recentemente parece ter ganho mais força. Está inserido em vários locais
do Brasil, inclusive em Salvador, que é considerada a “Meca negra do
Brasil”. Encontramos em Fortaleza-CE alguns pais e mães-de-santo que
não parecem estar dispostos a ir a África atrás de sua “africanidade” mas
sim trazer a África até eles por terceiros ou livros.
Na impossibilidade de ir à África, como se fazia
outrora, o zelador de hoje estuda a África através
dos livros para reformar sua própria religião.
(BASTIDE, 1983:168)
Não sabemos ainda até que ponto todo esse processo de busca de
uma autenticidade perdida tem afetado e ainda afetará no futuro o
repertório musical e as suas formas de transmissão.
Neste ponto de nossas reflexões perguntamos a nós mesmos, em
relação específica ao fenômeno musical intrinsecamente ligado às
religiões:
Como se preservam seus toques e cantigas?
Que influências esse público tão diferenciado tem trazido para a
criação e recriação do fenômeno musical dentro do candomblé?
Segundo Hobsbawn (1984:9) “muitas vezes, ‘tradições’ que
parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não
são inventadas”. Partindo dessa afirmação podemos então dizer que
17. 17
todos esses fatores presentes na cidade de Fortaleza-CE já citados
acabaram por inventar uma nova tradição?
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de
práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual
ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas
de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente; uma continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível,
tenta-se estabelecer continuidade com um passado
histórico apropriado. (HOBSBAWM, 1984:19)
Podemos ainda extrapolar o conceito, e a partir das considerações
de Prandi (93, 95/96, 1999c) que considera o candomblé como sendo
uma tradição reinventada, dizer que em Fortaleza-CE temos uma
reinvenção da tradição reinventada.
Mas achamos ainda muito cedo para tais afirmações, seria
precipitado de nossa parte, contudo podemos dizer com certeza que
houve adaptações na dinâmica dessa religião afro-brasileira devido ao
local e material humano disponíveis, como veremos mais à frente.
Tentamos então neste trabalho, através do Ilê Osun Oyeye Ni Mó,
apresentar um panorama de como se comporta o candomblé em
Fortaleza-CE e como sua clientela muito diversificada em extratos sociais,
escolaridade e raça têm afetado na transmissão musical oral/aural
característica das religiões afro-brasileiras.
Uma vez estabelecidas todas as perguntas que queríamos
responder, e escolhido o local de trabalho, lançamos mão de métodos de
trabalho de campo em etnomusicologia que foram, através dos anos,
derivados de métodos desenvolvidos pela antropologia.
18. 18
Com o passar dos anos, a partir da introdução da pesquisa-de-
campo com observação participativa nos métodos de pesquisa em
etnomusicologia demos um salto qualitativo na interpretação dos dados
coletados: o coletor é o mesmo que analisa. Ele está ciente de como
aquilo foi cantado ou tocado, de que forma, em qual situação, e em como
ter assistido ou mesmo participado daquilo afetou seu corpo e mente. Os
testemunhos, mesmo que ainda vistos por alguém que não pertence
àquela cultura em estudo passam a ser mais fiéis, assim como o som
descrito.
A coleta dos dados a partir de então passa a ser preferencialmente
feita pela mesma pessoa que vai analisá-los, e esta deverá se preocupar
em registrar tudo à sua volta da melhor forma possível, através de
gravações em áudio e vídeo, ou máquina fotográfica sempre que for
possível.4 Notas em um caderno de campo também são sempre
importantes, elas registram as impressões de um momento, são como
fotografias de sua mente na hora em que a informação foi recebida. Em
uma observação participativa o pesquisador deve ainda procurar aprender
“a tocar, cantar e dançar igual (dentro do possível) a um membro da
cultura a ser estudada” (LÜHNING, 1991: 116); isso facilitará muito na
hora de transcrever o material musical. Assim como também se deve
aprender a terminologia e a teoria musical daquele meio, se estiverem
presentes. A não observação cuidadosa desses pontos poderá acarretar
interpretações errôneas, preconceituosas, e sem nenhum valor para o
entendimento do fenômeno musical.
4
Por experiência própria sabemos que filmar, fotografar ou mesmo gravar muitas vezes
não é permitido.
19. 19
Usamos nesta pesquisa além do material coletado por nós mesmos
dentro uma forma participativa, o material levantado por Simone Santos
Sousa e Gerardo Viana Júnior, amigos de longa data, colegas de trabalho
e de pesquisa musical; perfazendo pouco mais de três anos de
acompanhamento em várias casas, assim como pouco mais de dois anos
de acompanhamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, incluindo documentos,
entrevistas e gravações em áudio e vídeo de festas públicas.
Na tentativa de estabelecer uma linha de pensamento
fundamentada em fatos, para então fazermos a remontagem do contexto
no qual o candomblé chegou e se fixou em Fortaleza, além das devidas
transcrições musicais para entendermos como se dá a transmissão
musical do mesmo, fizemos o levantamento dos seguintes materiais:
Livros, periódicos e documentos com menção sobre o candomblé e
sobre sua inserção em Fortaleza-CE nos seguintes locais:
1. Biblioteca Pública do Estado do Ceará,
2. Biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Federal do
Ceará,
3. Biblioteca Central da Universidade Estadual do Ceará,
4. Biblioteca da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia,
5. Biblioteca da Fundação Pierre Verger, Salvador-BA.
Entrevistas com pais e mães-de-santo atuantes hoje em Fortaleza-CE
assim como seus filhos-de-santo, ogãns, abiãns e freqüentadores
ocasionais das festas de candomblé.
Gravações musicais realizadas no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, e gravações
cedidas por seu alabê.
20. 20
Devido à extensão do repertório, e das limitações que teríamos em
coletá-lo por não sermos praticantes dessa religião, escolhemos para
nossa amostragem nos fixarmos em um repertório de festas de xirê5 de
apenas uma casa. Sendo assim este será um “estudo intensivo” dentro
das definições de Merriam: “O estudo intensivo (...) é aquele no qual o
estudante seleciona uma área limitada em particular e dá a ela a sua total
atenção” 6 (MERRIAM, 1978: 42).
Sabemos desde já que a redução da música para sua notação
escrita está condenada a imperfeições. A música é um fenômeno acústico
com muitas variáveis cabendo ao pesquisador escolher quais dela são as
mais relevantes ao trabalho que será feito, e por isso serão impressas em
papel. Com isso temos que a transcrição não é única, ela varia de acordo
com os propósitos da análise.
Seeger7 nos fala de duas diferentes formas de transcrição musical:
a transcrição prescritiva e a transcrição descritiva. Segundo Seeger a
transcrição descritiva seria mais indicativa e menos carregada de sinais,
enquanto que a prescritiva seria mais carregada de indicações, tentando
recriar o mais próximo possível o fenômeno musical. Cada uma delas tem
sua função e sua esfera de uso. Para esse trabalho usamos uma
transcrição mais descritiva e menos prescritiva por achar que a função
das transcrições nesse contexto é a de subsidiar nossas análises, e não a
de recriação do fenômeno sonoro por terceiros a partir da partitura.
5
Mais à frente descreveremos em linhas gerais a festa de xirê.
6
The intensive study (...) is one in which the student selects a particular limited area and
gives his entire attention to it.”.
7
SEEGER, Charles. Prescriptive and descriptive music writing, Musical Quarterly. 44:
184-195, apud NETTL, 1968: 99.
21. 21
Nos capítulos a seguir tentaremos ilustrar em palavras, imagens e
sons o que conseguimos apreender nesse tempo de convívio com a
realidade do Ilê Osun Oyeye Ni Mó.
22. 22
2- Histórico e definições
O Candomblé é um resumo de toda a África mística
(Roger Bastide)
Para podermos nos situar melhor no universo formado em torno do
Candomblé, é necessário explicarmos seus princípios básicos e darmos
algumas informações de como se processa a sua dinâmica através de
uma compilação de literatura. Também esboçaremos abreviadamente
uma idéia de como ele se instalou no Brasil, e chegou à cidade de
Fortaleza, no Estado do Ceará.
2.1 – O Candomblé como sistema religioso – mitologia e definições
O trabalho aqui empreendido não se propõe a explicar esse
complexo sistema religioso, seguindo agora um resumo substancial do
que é esse sistema, apenas como forma do leitor se situar dentro desse
universo e poder entender mais adiante as questões levantadas.
Juntamente com os negros trazidos do continente africano durante
todo o período da escravatura no Brasil, vieram várias culturas, crenças,
línguas, dialetos, etc., que após um processo de síntese recriam um
sistema religioso: o Candomblé.
É necessário ressaltar que o candomblé surge no
Brasil como produto de [re]invenções – de
adaptações e de síntese – dos vários sistemas de
crenças provenientes do continente africano durante
mais de três séculos do período da escravidão. A
[re]invenção de uma África mítica aparece, desde o
início, como elemento fundante das diversas
identidades religiosas assumidas e apregoadas
como raízes ou nações que marcam as fronteiras
litúrgicas de cada comunidade – terreiro, que a partir
do século XIX começam a adquirir visibilidade e
legitimidade social. (TEIXEIRA, 1999:133/134)
23. 23
Como está citado acima, esta religião afro-brasileira passa a ser
oficialmente visível no Brasil apenas a partir do século XIX, quando a
sociedade branca social e economicamente dominante toma
conhecimento do primeiro terreiro de Candomblé no Brasil, por volta de
1830 na Bahia.8 Esta religião está construída sob a noção de família,9
onde cada indivíduo tem a oportunidade, o livre-arbítrio, de inserir-se em
um terreiro de candomblé e ocupar seu lugar dentro de uma hierarquia.
Inicialmente, para compreendermos essa forma de hierarquização
familiar existente dentro do candomblé, onde tudo orbita em torno de um
pai ou mãe-de-santo, tendo vários indivíduos dividindo o mesmo teto, é
preciso remetermo-nos à organização das sociedades africanas yorubá.
O ebi (família, linhagem) constituía a organização
social básica, geralmente sob forma de linhagem
agnatícia ou patrilinear. Ao ebi – e não ao indivíduo
membro – pertenciam os bens de produção e até
mesmo os títulos de nobreza. Seus membros viviam
juntos no agbo-ilê (conjunto de casas, grande
comunidade). A cidade ou a vila (ilu) era formada
por vários agbo-ilê e governada pelo rei (obá) e
pelos chefes (ijoye) civis e militares. Os estratos
sociais seguintes eram os membros mais velhos do
ebi – os baale – e finalmente os cidadãos. (...)
Através do terreiro – associação litúrgica organizada
(egbé) – transferia-se para o Brasil grande parte do
patrimônio cultural negro-africano. (MUNIZ, 1988:49)
Com o passar dos anos, através de processos de miscigenação
racial e cultural, nos quais não mais uma ascendência negra, mas sim a
8
Esta noção de “primeiro terreiro” parte de uma tentativa de reconstituição da história
dessa religião afro-brasileira. Digo tentativa porque as fontes são escassas e vagas uma
vez que esta é uma parte marginalizada da história do Brasil, tendo sido levantada em
grande parte por Pierre Verger em toda a sua obra.
9
Segundo Hoebel & Frost (1999:204) A família é a “unidade primária da cultura humana
e da sociedade” Quando falamos neste ponto de nosso trabalho em “noção de família”
estamos querendo dizer que não existe necessariamente a família natural formada por
laços consangüíneos dentro das estruturas do candomblé, mas sim uma família
simbólica, espiritual, onde indivíduos assumem vínculos uns com os outros, e esses
vínculos recebem uma hierarquização baseada na hierarquia familiar básica (pai, mãe,
irmão, etc.).
24. 24
curiosidade ou uma identificação em relação à cultura afro-brasileira
determina a clientela de um terreiro de candomblé, a família-de-santo
passa então a ser construído por pessoas de origens étnicas,10 nível
social e cultural diferentes. 11
Os orixás, segundo Reis (2000:57-58) são deuses que “foram em
vida seres excepcionais, que detinham um poderoso axé e não morrem
simplesmente, fazendo na verdade, uma passagem da condição mortal de
seres humanos para a condição imortal de orixá (...)”.Essa noção do orixá
como ancestral divinizado fundamenta-se e encontra sua razão de ser no
conceito descrito anteriormente de que o candomblé é uma religião
baseada em uma noção familiar. O orixá seria então um ancestral que
quando pertenceu em vida ao grupo familiar, estabeleceu vínculos que lhe
permitiram o controle sobre uma força da natureza como o trovão, ou
vento. O orixá é uma divindade onipresente, é a manifestação da vida
eternizada e manifesta através do axé.
O orixá seria, portanto uma força pura, axé imaterial que só se
torna perceptível aos seres humanos ao incorporar-se em um deles, em
um fenômeno chamado de transe (Reis, 2000:58), ou possessão. A
realização das cerimônias de adoração ao orixá é assegurada e
conduzida pelo pai ou mãe-de-santo designado para tal. Os outros
membros da família-de-santo devem contribuir materialmente para o custo
10
Segundo Brandão (1986:145) um grupo étnico é “uma categoria de articulação de
tipos de pessoas que, por estarem historicamente unidos por laços próprios de relações
realizadas como famílias, redes de parentes, clãs, metades, aldeias e tribos, e por
viverem e se reconhecerem vivendo em comum um mesmo modo peculiar de vida e
representação de vida social, estabelecem para eles próprios e para os outros as suas
fronteiras étnicas, os seus limites de etnia. Mergulhados em um sistema de relações
regidas pela desigualdade aprendem a se pensar como diferentes.”.
11
Hoje não é raro encontrar em uma festa de candomblé desde analfabetos até
intelectuais de diversas origens étnicas.
25. 25
do culto, assim como ajudar na preparação da festa, além de observar as
proibições alimentares e outras ligadas ao culto de seu orixá.
Se uma pessoa, ao entrar para um grupo ou família-de-santo, for
chamada a ser filho-de-santo, cabe ao pai ou mãe-de-santo a tarefa de
iniciá-lo e de preparar o assento de seu orixá naquele terreiro. Sendo
assim, dentro do ilê existirão inúmeros assentamentos de diferentes
orixás (os dos filhos-de-santo), além do assentamento do orixá do terreiro
(o do pai ou mãe-de-santo). Como já dissemos antes, atualmente, com a
perda da identidade familiar africana, a família-de-santo passa a ser
construída por pessoas de origens diversas, sendo assim a
consangüinidade com o orixá, ancestral divinizado, fica comprometida,
não podendo mais ser reivindicada. Entretanto, pode haver entre todos os
crentes, independente da etnia da qual provêem, certas afinidades de
temperamento: tendências inatas de seu comportamento que são
característicos de um orixá. Podemos chamar essas tendências de
arquétipos de personalidade que não podem desenvolver-se livremente
dentro de cada indivíduo sem entrarem em conflito com as regras de
conduta admitidas em seu meio social que normalmente no Brasil é
dominado por uma ética branca européia e cristã.
Além dos orixás, segundo Reis (2000:58) temos ainda nos cultos
os egúngún, ou eguns. Estes também são ancestrais, mas que não
transcenderam a morte como os orixás, e sim passaram por ela. Eles são
os detentores de segredos da morte e do renascimento. Segundo Pai
Francisco12 os eguns são:
12
Pai Francisco de Iansã, 1999.
26. 26
Espíritos travessos e maleficientes. São espíritos de
pessoas desencarnadas. Todo ser vivo é um egun,
pois ele é um espírito dentro de uma matéria, mas
no instante em que ele desencarna essa matéria
perde a importância, pois para o espírito não há
morte, ele vive para sempre.
A mitologia na qual se apóia o candomblé de nação ketu, sobre o
qual trata o nosso trabalho, já é bem estabelecida, bastante rica, e tem
sido extensamente descrita desde os trabalhos de Verger, até os de
Prandi e vários outros autores recentes. 13
O espaço físico onde acontecem as cerimônias é também moradia
do pai ou mãe-de-santo, e de toda uma comunidade; segundo Pai
Francisco, 14 recebe o nome de ilê, roça, baquisse, abaçá, ou gozemu. 15
Cada ilê é ao mesmo tempo moradia para humanos e orixás. As famílias-
de-santo dividem o espaço com seus deuses. Os orixás podem ocupar
cômodos internos da casa ou pequenas construções no exterior, em uma
parte do terreno. A casa se diferencia de uma residência comum por dois
espaços particulares: o barracão (que pode ser mais de um16), salão onde
se realizam as festas; e o roncó, um quarto sem comunicação com a parte
externa do terreno, onde os noviços ficam recolhidos por 21 dias durante
o processo de sua iniciação.
Dentro do barracão existem dois lugares de especial destaque. Um
deles fica no centro do barracão e é denominado de axé da casa ou ori
axé. Trata-se de um local sagrado, que foi bento com folhas e ervas, e
13
PRANDI, 2001; VERGER, 1997a; VERGER, 1997b; REIS, 2000; entre outros.
14
Pai Francisco de Iansã, 1999.
15
Pai Francisco de Iansã (1999) relaciona vários nomes sem distinguir de que tradição
(nação) eles provêem.
16
No Ilê Osun Oyeye Ni Mó encontramos dois barracões: um logo na entrada, e um ao
fundo destinado às festas de Omulu.
27. 27
onde está enterrado o que os participantes chamam de fundamento. Toda
vez que um iniciado entra no barracão, ele toca nesse local com a mão
direita (no chão) e em seguida toca a cabeça, como se pedisse uma
bênção ao orixá dono da casa. Isso também acontece nas festas: quando
os atabaques tocam para um determinado santo, todos os seus filhos
tocam o ori axé. Esse gesto é descrito por Lühning17 como sendo respeito
e reverência do iniciado para com a terra, ou para com o orixá.
Outro lugar importante no barracão é o pepelê, onde ficam os três
atabaques que acompanham todos os rituais. Na maioria das casas, além
dos três atabaques encontramos o agogô, e os adjás18. Raramente
encontramos maracás, caxixis, xequerês ou outros instrumentos.
17
LÜHNING, 1990:45-46.
18
Até agora, podemos notar que não houve discrepância entre os termos e conceitos
recolhidos na pesquisa de campo e os termos e conceitos adotados no candomblé
baiano e largamente descritos em literatura. Mais à frente veremos como se processa
essa relação entre o candomblé de Fortaleza, o candomblé baiano e os processos de
africanização.
28. 28
Figura 1: Desenho esquemático do “barracão padrão” em Fortaleza-CE
O Ilê axé, é dirigido por um pai ou uma mãe-de-santo, responsável
pelo culto. Também chamados de babalorixá ou iyalorixá, pai ou mãe
respectivamente, são eles os encarregados de cuidar do poder do orixá.
Os pais e mães-de-santo são assistidos por pais ou mães-
pequenos, babá ou iya kekerê respectivamente, e por uma série de
ajudantes, com papéis e atividades diversos e definidos, ligados às
necessidades do culto. Esses “cargos especiais” são determinados pela
vontade do pai ou mãe-de-santo e confirmados pela consulta aos búzios.
29. 29
Entre os ajudantes no Ilê axé, está ainda a iatebessê que dirige a
seqüência dos cânticos dos orixás nas cerimônias públicas; a iabessê que
supervisiona a preparação das comidas destinadas aos orixás e aos seres
humanos; o axogum, responsável por realizar o sacrifício dos animais
oferecidos aos deuses, e o alabê, chefe dos tocadores de atabaque.
Os ogãns são os músicos responsáveis pela execução dos toques
nos atabaques, durante as festas públicas e mesmo durante as
cerimônias secretas quando o ritual assim o exige. Ainda existem os iaôs
que são os filhos e as filhas-de-santo, e os abiãns que são os
freqüentadores noviços ainda não iniciados do terreiro, que ajudam nas
tarefas domésticas gerais.
Dentro do complexo religioso do candomblé, são realizados
diversos tipos de rituais e cerimônias, com os mais diversos objetivos
ligados à necessidade da manutenção e obtenção do axé por parte dos
freqüentadores do terreiro.
Algumas dessas cerimônias, como as festas de xirê, têm caráter
público, podendo ser acompanhadas por visitantes, outras só podem ser
assistidas pelos freqüentadores da casa, pois têm em seu
desenvolvimento os chamados fundamentos, segredos rituais acessíveis
apenas aos iniciados. Pai Xavier divide os rituais da seguinte forma:
O candomblé é um ritual que tem sua parte de
segredo, que nós chamamos de fundamento, e tem
uma parte folclórica, que é o que nós apresentamos
no barracão, que todo mundo participa. E tem a parte
do roncó, da iniciação, das obrigações, que são
privadas de pessoas que não são da seita. O
candomblé requer muita abnegação, respeito, e força
de vontade.19
19
Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
30. 30
As festas de xirê, que como já dissemos são festas com a
participação de um público externo ao ilê axé, geralmente seguem o
mesmo roteiro. Antes da festa há rituais que começam na madrugada
anterior à festa e duram o dia inteiro. Dentre esses rituais fechados ao
público, que compreendem matança de animais e oferendas, está o padê
de Exu. 20 À noite acontece a festa em si. Os atabaques começam a tocar,
enquanto os filhos e filhas-de-santo entram puxados pelo pai ou mãe-de-
santo carregando o adjá. O pai ou mãe-de-santo se coloca em uma
cadeira especialmente reservada enquanto os filhos-de-santo formam
uma ou duas rodas (a depender da quantidade de pessoas e do tamanho
do barracão) que giram em sentido anti-horário enquanto saúdam o ori
axé. Iniciam-se então as cantigas para os orixás, o que normalmente é
feito de uma forma responsorial entre o puxador e a assembléia. Variando
de terreiro a terreiro podemos ter duas formas de iniciar o xirê: na primeira
o pai-de-santo faz uma chamada ao coro com os atabaques ainda
calados, começando a tocar em seguida. Na segunda os atabaques
introduzem um ritmo antes da primeira cantiga indicando que o xirê vai ser
iniciado.
Os orixás são invocados seguindo uma ordem: a ordem do xirê.21 A
primeira entidade a ser louvada é Exu,22 seguido por Ogum, Ossanha ou
20
Padê, ou despacho de Exu, segundo Pai Xavier de Obaluaê (1999), é um ritual onde
se agrada este orixá, que faz a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. Suas
oferendas são levadas para fora do barracão e a porta de entrada é batizada água,
cachaça ou mel.
21
É a ordem na qual cada um dos orixás é saudado, ou chamado à roda em uma festa
de xirê. A ordem dada acima nos foi informada por Pai Xavier de Obaluaê (1999), Pai
Edson de Ogun (1999), Pai Francisco de Iansã (1999) e o alabê Alexandre Fontes
(2000-2001) em suas entrevistas.
22
A presença de Exu nesse momento é variável. Nas casas de Pai Xavier de Obaluaê
(1999) e Pai Edson de Iansã (1999) se toca para Exu no momento da festa, na Casa de
31. 31
Ossain, Oxossi ou Odé, Obaluaê ou Omulu ou Xapanã ou Xapadê,
Oxumaré ou Odã, Xangô, e Tempo, que fecha a seqüência de orixás
borós ou masculinos. Começa a invocação das iabas, orixás femininos:
Iansã ou Oiá, Oxum, Ewa, Obá, Iemanjá, Irocô, e por último Nanã ou
Burucu. Há ainda Logunedé que pode estar tanto depois de Oxossi, como
antes de Oxun.
Ao final do xirê ocorre um pequeno intervalo, após o qual os
atabaques anunciam o reinício da festa. Neste momento entram o pai ou
mãe-de-santo carregando o adjá e alguns indivíduos23 em transe,
vestindo os paramentos de seu orixá. Após nova saudação ao ori axé,
toca-se dezenas de músicas relacionadas aos orixás presentes na roda.
Lembramos que durante toda a festa, os orixás incorporados dançam
guiados pelo adjá, carregado pelo pai ou mãe-de-santo, ou por alguma
outra autoridade do terreiro. Após esta segunda parte da festa resta então
homenagear Oxalá. Este momento é considerado o ponto alto da festa,
quando todos os iniciados incorporam seus orixás e entram na roda para
dançar. Depois do xirê é servido um jantar a todos os presentes.
Sobre os rituais secretos não podemos discorrer muito. Sabemos
deles em linhas gerais, mas nada sabemos sobre seus detalhes, ou suas
músicas. Quando indagado sobre esses cultos secretos, Pai Xavier os
define como sendo “tudo o que é feito no roncó: as obrigações, os
banhos, as oferendas”. 24 Um dos rituais secretos mais mencionados nas
entrevistas é o da iniciação dos abiãns. Quando um abiãn sente fraqueza,
Mãe Ilza d´Oxum (2001) não se toca para Exu neste momento, pois este já foi
homenageado no padê antes da chegada dos convidados.
23
A maioria iaôs da casa.
24
Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
32. 32
tontura, ou mesmo desmaia em uma das festas durante os toques, isso
normalmente indica a necessidade dele de ser iniciado, então o pai-de-
santo joga os búzios para descobrir qual o orixá ao qual quem o noviço
será dedicado. Após isso, a pessoa a ser iniciada se prepara, comprando
todo o material necessário para seu “enxoval” durante o período de
iniciação.25 Com esse material em mãos, a pessoa se recolhe ao roncó –
um quarto dentro da casa sem comunicação com o exterior – por cerca
de vinte e um dias. Sobre esse recolhimento Pai Francisco nos fala:
A iniciação, o ensinamento e o fundamento são um
só. Só que é um ritual muito fechado; as pessoas que
se iniciam na seita têm que passar vinte e um dias de
obrigação recolhidos no roncó, recebendo visitas
apenas de pessoas da mesma seita que já têm
obrigação para santo. Do recolhimento, as pessoas
só saem três horas da manhã para tomar um banho
de abô, para limpeza e purificação da matéria.
Depois dos vinte e um dias, o noviço ou iaô sai do
roncó para se apresentar em sala e se manifestar
com o seu orixá.26
Ainda se referindo ao tempo passado no roncó durante o processo
de iniciação, Pai Francisco diz que “na iniciação você (o abiãn) tem um
caderno de complementação, fitas e gravador no roncó”27 para aprender,
por exemplo, o idioma yorubá, utilizado nas cerimônias.
No final desse período de vinte e um dias, o noviço passa por uma
cerimônia chamada de raspagem da cabeça. Após esse rito, o novo iaô
(filho-de-santo recém-iniciado) dança em uma festa preparada
especialmente para esse fim, a festa de saída de iaô, quando ele sai para
25
Esse enxoval consiste de animais, cereais, raízes, ervas, roupas e acessórios do orixá.
26
Pai Francisco de Iansã, 1999.
27
Informação dada por Pai Francisco de Iansã (1999). O uso do gravador no roncó difere
completamente do padrão das casas de candomblé do Brasil. Também parece diferir do
padrão de Fortaleza, parecendo ser uma orientação exclusiva desse pai-de-santo.
Quando indagado se isso acontecia também no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, Alexandre Fontes
e outros entrevistados negaram o fato.
33. 33
o barracão pintado de branco e vestido com a roupa de seu orixá para
então anunciar seu nome,28 e ser visto e reconhecido por toda a
comunidade como tendo um novo “grau” dentro do candomblé.
Veja como Pai Edson nos explica o que acontece durante a
iniciação e depois como se forma um novo pai-de-santo:
Tudo começa no Ifá. Faz-se o jogo para apurar qual
é o orixá da pessoa. Depois a pessoa se prepara
financeiramente para comprar todos os materiais. Aí
ela passa vinte e um dias recolhido em um quarto
sem comunicação com o exterior até o dia posterior
ao da sua feitura. Depois ela passa por uma
cerimônia muito fechada para a raspagem da
cabeça, quando a pessoa sai do barracão vestida
com a roupa do seu orixá e pintado de branco. Nessa
festa tira-se seu novo nome, em yorubá, com um
grito de guerra que se chama ilá. Depois de três
meses há a queda do quelê, que é um colar que é
amarrado no pescoço que simboliza uma aliança.
Depois há um ato de sete dias que se chama
umbigueira, depois o qual a pessoa está livre. Nesse
meio tempo, a pessoa não come carne, não bebe,
não anda nas ruas nas chamadas horas grandes:
seis da manhã e de tarde, meio-dia e meia-noite, não
fuma nem toma café. (...). É um aprendizado de sete
anos, até a pessoa já poder abrir uma casa. Ela vai
passar por uma obrigação de um ano que é a
confirmação da feitura. Depois tem a obrigação de
três, cinco e sete anos, quando ela recebe o oiê, que
significa cuia ou deká. Aí ele recebe o jogo de búzios,
navalha, tesoura, folhas, ervas e outras coisas.
Mesmo assim, os seus três primeiros filhos-de-santo,
quem faz é o seu pai-de-santo, com a sua ajuda.29
A outra cerimônia secreta citada em entrevistas é o axexê. Este é
um ritual que promove o “desligamento” de um iniciado do mundo material
após sua morte. Todos os laços espirituais criados durante a vida deste
iniciado vão um a um sendo desfeitos até que não fique dentro do terreiro
nenhum sinal da presença daquela pessoa.
28
Pois se trata de um renascimento.
29
Pai Edson de Ogum, 1999.
34. 34
Para possibilitar essa passagem sem contratempos,
ritos mortuários são celebrados nos terreiros
tradicionais cujo ciclo completo é denominado axexê.
(SANTOS, 1975:224)
Quanto mais tempo de santo tinha a pessoa que morreu, mais
tempo demora o ritual.
Com isso esperamos ter situado o Candomblé enquanto religião de
procedência africana que passou por ajustes no Brasil, falando
resumidamente de seus conceitos principais. Passamos adiante com um
histórico de sua fixação em território brasileiro.
2.2 – O Candomblé no Brasil
Estima-se que entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco milhões
de africanos foram capturados e trazidos para o Brasil na condição de
escravos. Não é possível ter números exatos, pois a circular do Ministério
da Fazenda, número 29, de 13 de maio de 1891, mandou queimar todos
os arquivos referentes à escravidão no Brasil, destruindo assim fontes
valiosas para a remontagem histórica dos fatos referentes ao tráfico de
escravos (RODRIGUES,1932: 23). Embarcados em navios negreiros na
costa da África, os que viriam a ser escravos no Brasil viajavam até o
continente novo em condições insalubres, amontoados uns sobre os
outros, com água e comida racionadas apenas ao suficiente para mantê-
los vivos.
A alimentação nos navios era apenas o bastante
para manter os escravos respirando; para conservar
os fôlegos vivos: um pouco de farinha e às vezes
umas favas fervidas. (...). Um copo d’água por três
dias chegava para impedir a morte de um negro;
calculava-se sôbre essa base as provisões d’água
35. 35
para viagens às vezes de quatro meses. (FREYRE,
1963:82)
Os mais fortes, que conseguiam completar a travessia de barco,
chegavam ao Brasil por vários pontos, para a partir deles serem
comercializados. Não se tratava mais de um povo, mas de uma
multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas, etc. Uma síntese da
África negra!
É possível falar em três grandes grupos culturais que chegaram ao
Brasil:
Os sudaneses, representados principalmente pelos grupos Yorubá
(nagô), Dahomey (jêjes) e Fanti-Ashanti (mina).
Os africanos islamizados: Peuhl, Mandinga e Haussa (malê e alufá)
As tribos Banto, compreendendo entre setecentas e duas mil
línguas e dialetos aparentados.
Estes negros foram trazidos e espalhados pelo Brasil escravista
seguindo uma política de tentar evitar que muitas pessoas provenientes
de uma mesma etnia ficassem juntas, criando assim uma torre de babel
lingüística e cultural dentro da população escrava, que nem falava o
português, nem tão pouco se entendia com seus companheiros.30 Além
das desavenças que as várias etnias tinham entre si, devido às lutas
tribais ocorridas ainda no continente africano, muitos eram os dialetos e
línguas presentes em uma senzala. Esta política, que evitou a
concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia em uma mesma
propriedade, tentou impedir a formação de núcleos de preservação da
cultura africana. Com a sua estrutura familiar e cultural destruída, os
30
RIBEIRO, 1994:115.
36. 36
negros foram diluindo-se no Brasil perdendo o seu status de africano e
pouco a pouco criando uma nova categoria dentro do país: o afro-
brasileiro.
Com o passar dos anos o Brasil, até então agrário, começa a se
urbanizar, sendo então o negro escravo trazido em quantidade para os
centros urbanos. Nos últimos anos do império era grande o contingente
de negros escravos e negros libertos, assim com mulatos livres nas
grandes metrópoles brasileiras.
O negro rural, transladado às favelas, tem de
aprender os modos de vida da cidade, onde não
pode plantar. Afortunadamente, encontram negros
de antiga extração nelas instalados, que já haviam
construído uma cultura própria, na qual se
expressavam com alto grau de criatividade. Uma
cultura feita de retalhos do que o africano guardara
no peito nos longos anos de escravidão, como
sentimentos musicais, ritmos, sabores e
religiosidade. (RIBEIRO, 1994:222)
A contribuição cultural das etnias negras na formação de nossa
identidade, segundo Ribeiro (1995:114), foi mais passiva que ativa, sendo
feita de forma sorrateira, mas continuada. Ela se manifesta no
vocabulário, na culinária, no vestuário, na religiosidade popular, mas sem
identificação de origem, ficando sob a alcunha de “africano”.
Ao fim da escravidão, o Brasil era um país povoado de negros e de
mulatos que eram a síntese da mistura que começava a originar o povo
brasileiro. A mistura entre as diversas etnias negras se encarregou de
apagar com o tempo traços que podiam definir a origem de um grupo,
formando o tipo “negro”. Um tipo genérico que já não era africano, mas
completamente brasileiro, em um processo forçado de integração com a
sociedade que antes o escravizava, e agora o excluía. A expressão
37. 37
cultural africana que logrou mais êxito em sobreviver foi a religiosa. Nina
Rodrigues ainda nos primeiros estudos sobre os negros no Brasil confirma
este fato:
De todas as instituições africanas, entretidas na
América pelos colonos negros ou transmitidos aos
seus descendentes puros ou mestiços, foram as
práticas religiosas do seu fetichismo as que melhor
se conservaram no Brasil. (RODRIGUES, 1932: 214)
Darcy Ribeiro se referindo também à preservação dos saberes
africanos no Brasil, apesar de se basear também na preservação através
das práticas religiosas, admite que ela ocorreu de uma forma mais ampla
do que a descrita por Rodrigues (1932):
Só através de um esforço inteligente e continuado, o
negro escravo iria reconstituindo suas virtualidades
de ser cultural pelo convívio de africanos de diversas
procedências com a gente da terra, (...) sobreviveria
principalmente no plano ideológico, porque ele era
mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças
religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se
apegava no esforço ingente por consolar-se do seu
destino e para controlar as ameaças do mundo
azaroso em que submergira. Junto com esses
valores espirituais, os negros retém, no mais
recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e
musicais, como saberes e gostos culinários.
(RIBEIRO, 1994:116-117)
Apesar do esforço contínuo das políticas das classes dominantes
para apagar a história passada dos negros trazidos ao Brasil,31 muitos
negros e mestiços conseguiram restabelecer seus laços de origem
através de parentes retornados à África, principalmente para Nigéria.
Olinto (1980), apoiado em estudos anteriores de Verger (1987), descreve
que:
31
Como já dissemos, a Circular do Ministério da Fazenda, número 29, de 13 de maio de
1891, manda queimar todos os arquivos da escravidão (RODRIGUES, 1932: 23).
38. 38
Em Lagos, já na primeira metade do século XIX,
vários antigos escravos voltavam à terra natal e com
eles traziam filhos e netos já nascidos no Brasil.
(OLINTO, 1980:143).
Por volta da metade do século XIX, fica então visível no Brasil a
grande reconstrução cultural do negro ex-africano, agora brasileiro: as
religiões afro-brasileiras.
Reis (2000), baseado em trabalhos anteriores, e na história oral,
atribui ao estado da Bahia o mérito de ter sido o local onde o foi fundado o
primeiro terreiro de candomblé do Brasil, o Ilé Ìyá Nasó Oká. Isso,
segundo ele, se deu por volta de 1830, por iniciativa de um grupo de
mulheres originárias de Ketu, antigas escravas libertas, e pertencentes à
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da Barroquinha, em
Salvador-BA (REIS, 2000: 64).
A partir desse terreiro, e de alguns outros que foram sendo
descobertos ao público, o candomblé começa a aparecer em outros
pontos do Brasil, talvez por raízes próprias, talvez tendo sido levado da
Bahia por movimentos migratórios.
2.3 – O processo de africanização, uma tendência recente.
Dentro tanto de casas mais tradicionais no cenário do candomblé
no Brasil, como de casas mais novas, tem acontecido nos últimos anos
um processo chamado de “africanização” (PRANDI, 1995/96; 1999) ou
“reafricanização” (SILVA, 1999).
Prandi divide em três momentos a história das religiões afro-
brasileiras:
39. 39
Primeiro, da sincretização com o catolicismo,
durante a formação das modalidades tradicionais
conhecidas como candomblé, xangô, tambor de
mina e batuque; segundo, do branqueamento, na
formação da umbanda nos anos 1920 e 30; terceiro,
da africanização, na transformação do candomblé
em religião universal, isto é, aberta a todos, sem
barreiras de cor ou origem racial, africanização que
implica negação do sincretismo a partir dos anos
1960. (PRANDI, 1999c:93)
É preciso mencionar e entender antes de qualquer elaboração mais
detalhada que dentro do panorama nacional existem realidades muito
diferentes que cercam essa religião. Não temos como comparar, nem
querer que seja semelhante à situação do candomblé no estado da Bahia
– detentor mitificado de todas as tradições negras existentes no Brasil –
com a dos estados de São Paulo, Minas Gerais, ou Ceará. Estes últimos
estados somente nas últimas décadas do século XX construíram seus
universos de religiões afro-brasileiras, precisando então situá-los e
alimentar suas raízes não existentes, mesmo que simbolicamente. Sobre
essa falta de raízes vejamos o seguinte depoimento:
O candomblé no Ceará é muito novo, e o cearense
não tem a ginga, a malandragem do negro. Por aqui
a gente sente falta da dança ritualística solta, que
tem ginga. O cearense é mais duro. Também é difícil
se encontrar pessoas que toquem
32
satisfatoriamente.
Nesse processo de (re)africanização, existe a negação do
sincretismo na tentativa de apagar as “impurezas” presentes no
candomblé, incorporadas nos anos de aculturação33 do negro no Brasil,
afastado de seu habitat original e sob o peso da escravidão. Além disso,
32
Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
33
Entendemos por aculturação o “processo de interação entre duas sociedades nas
quais a cultura da sociedade na posição subordinada é drasticamente modificada para
conformar-se com a cultura da sociedade dominante.” (HOEBEL & FROST,1999: 443)
40. 40
começa uma busca pelo que é supostamente puro, pelo autêntico, pelo
verdadeiro, levando turmas de pais-de-santo às terras africanas, e
centenas de curiosos a fazerem cursos de língua yorubá, entre outros que
prometiam e prometem restabelecer fragmentos perdidos do candomblé
em relação à sua religião originária, ainda hoje praticada na Nigéria. São
cursos dados por africanos em meios acadêmicos com uma clientela nova
e muito diferente da que se imagina em um terreiro de candomblé. São
pessoas jovens, na maioria, alfabetizadas, acostumadas a aprender pela
linguagem escrita e que têm pressa de conhecer coisas novas, conhecer
tudo que está ao seu alcance nos livros; tudo o que lhes foi negado
algumas vez por uma pessoa mais velha do candomblé. O fato dos
professores serem – ou se dizerem – legítimos africanos é suficiente para
se ter um atestado de confiança. É como se o simples fato do “produto”
comercializado ali, no caso cursos de ritualística e idioma, vir da África,
independente de qualquer outra coisa, o impregna de uma aura de
autenticidade que não deve ser contestada.
Essa relação existente no meio dos pais-de-santo em relação à
“autenticidade africana” pode ser exemplificada nas palavras de Pai
Edson:
Hoje em dia existem duas linhas de candomblé: o
candomblé baiano e o candomblé mais africano ou
africanizado (não totalmente africano). O candomblé
baiano que é mais brasileiro, já incorporou
elementos que não existiam no candomblé como a
pomba-gira, a Maria Padilha, os caboclos. As
diferenças que existem dizem respeito à nação de
onde ele veio, onde ele surgiu. O baiano mistificou
muito o candomblé.34
34
Pai Edson de Ogum, 1999.
41. 41
Um ponto que não deve passar despercebido nesse processo de
perda cultural que a (re)africanização se propõe a sanar, é um conceito
definido por Wande Abimbola35 como over-ritualization, ou seja, uma
ênfase ritual excessiva. Ele defende que a perda de sentido das palavras
e o conseqüente esquecimento da literatura oral tenham sido
compensados pela complicação e elaboração excessiva dos ritos.
Segundo Abimbola, uma ênfase crescente nos ritos acompanhada de
uma boa dose criatividade criou uma série de exageros. Um desses
exageros pode ser observado na questão do sacrifício: enquanto que na
Nigéria se costuma oferecer uma única ave a um determinado orixá, no
Brasil o número de animais sacrificados pode chegar a uma dezena. Ele
afirma que o brasileiro sustenta um rito fausto e dispendioso que um
africano não teria condições financeiras de realizar. Prandi (1999a) ainda
complementa falando de forma crítica sobre o candomblé praticado hoje
em São Paulo, que, após o período de reclusão para a iniciação de um
novo filho-de-santo, quando este for exposto ao público em sua festa de
saída-de-santo, “todos os olhos estarão voltados para o apuro estético e o
fausto da apresentação. Ninguém estará preocupado com virtudes e
sentimentos religiosos”36 (PRANDI, 1999a). O que Abimbola parece
esquecer em suas afirmações sobre os excessos relativos ao número de
animais sacrificados em um ritual feito no Brasil, talvez por não estar
inserido nesta realidade, é que estes animais sacrificados servirão para
35
ABIMBOLA, 1977.
36
Não nos compete aqui concordar ou discordar com essa afirmação de R. Prandi,
apesar de em algumas entrevistas, principalmente nas feitas com abiãns esse fato ter
sido tocado rapidamente, sem nenhuma ênfase.
42. 42
alimentar além dos orixás, os muitos que freqüentam as festas públicas
nos terreiros, assim como os próprios moradores da casa.37
Diante desse quadro de tradições perdidas, recuperadas,
inventadas e reinventadas, criticadas ou não; temos cada vez mais claro o
que significa para nós e para os adeptos do candomblé o termo
(re)africanizar.
No processo de legitimação que foi se firmando em
São Paulo desde o final dos anos 1970, a maioria
dos sacerdotes que se deixam envolver nesse
processo é forçada a peregrinar à África, dar
obrigações e tomar cargos nos templos da Nigéria e
do Benin, (...). Isso é africanizar. Mas africanizar não
significa nem ser negro nem desejar sê-lo e muito
menos viver como os africanos. Lembremo-nos da
grande parcela de seguidores do candomblé
formada por adeptos brancos. Africanizar significa
também a intelectualização, o acesso a uma
literatura sagrada contendo os poemas oraculares
de Ifá, a reorganização do culto conforme modelos
ou com elementos trazidos da África contemporânea
(...); implica o aparecimento do sacerdote na
sociedade metropolitana como alguém capaz de
superar uma identidade com o baiano pobre,
ignorante e preconceituosamente discriminado.
(PRANDI, 1999c:106)
Esse processo de busca de uma ancestralidade perdida (ou nunca
tida) de adeptos brancos e negros parece ter reflexo tanto em casas mais
antigas e já estabelecidas, como em casas mais novas, em estados onde
o candomblé é um fenômeno recente. Nestes últimos, sem uma grande
influência étnica negra, e onde principalmente não há um acúmulo de
gerações que possam transmitir conhecimentos seculares, transmitidos
de mais velho para mais novo, temos um meio propício para a
propagação da idéia. Prandi, em sua citação logo acima, fala desse
37
Partindo desse comentário podemos então afirmar que houve no Brasil uma
reinterpretação do sacrifício e quais são as suas atribuições.
43. 43
processo em São Paulo, mas no estado do Ceará, local de nosso estudo,
esse fenômeno vem acontecendo já há mais de cinco anos, e é possível
encontrar vestes africanas, rituais remodelados, tradições inventadas e
reinventadas como será visto no decorrer dos próximos capítulos.
2.4 – O Candomblé no Ceará
O estado do Ceará, onde se centra o nosso estudo, até onde se
sabe, não foi um grande importador de escravos negros. Ainda em 1836,
antes da destruição dos arquivos referentes à escravidão no Brasil,
Affonso de A. Taunay contabilizou números que mostram a quantidade de
escravos que foram levados para vários estados do Brasil. Taunay diz que
“enquanto que em Minas Gerais o aporte de escravos foi de 168.543
indivíduos, seguindo-se Bahia com 147.263, o Ceará contou apenas com
a importação de 55.439 escravos”,38 que se espalharam inicialmente pelo
sertão do estado (então capitania) e depois pelas regiões serranas e
litorâneas. Estes escravos teriam vindo para trabalhar nas culturas de
café e banana das regiões serranas, na pecuária mais ao sul do estado
que depois se expandiu às regiões litorâneas, e em serviços domésticos
nas cidades maiores: Aquiraz, uma das primeiras vilas da capitania
Aracati, a antiga capital do estado; Crato, cidade que servia de articulação
entre os pontos do sertão central; Fortaleza, a nova capital; e Sobral, com
várias famílias aristocráticas, e próxima à fronteira com o Piauí.
No regime pastoril do Ceará percebem-se facilmente
duas fases. A primeira caracteriza-se pelo
absenteísmo, isto é: homens ricos, moradores em
outras capitanias, requerem e obtém sesmarias para
38
Taunay, Affonso de A. Ainda Números do Tráfico, Jornal do Comércio, 30 de agosto
de 1836; in RAMOS,1937:283.
44. 44
onde mandaram vaqueiros com algumas sementes
de gado (...). Na segunda fase os fazendeiros vão se
estabelecer em suas terras, ou porque o avultado
dos interesses exija a sua presença, ou por incitá-los
ao espírito de liberdade que foi o propulsor do
povoamento dos sertões do Norte, ao contrário dos
do Sul, em que a ambição do lucro foi a grande
alavanca. (ABREU, 1960: 261)
Antes do fim do século XVIII a seca e outros fatores como luta
entre famílias fazem com que o Ceará entre em franca decadência: “a
seca foi uma grande rasoira, que em poucos meses desbaratava as
maiores fortunas” (ABREU:1960, 262). Isso forçou os senhores de
escravos a se desfazerem dos mesmos, promovendo um ciclo de
emigração de escravos principalmente para o estado de Pernambuco. A
emigração dos negros para outros estados devido à falência dos seus
donos e a mortandade por doenças foi tão acentuada após esse período,
que o estado do Ceará declara abolida a escravatura em seu território
ainda em 1883, sendo o primeiro estado a legalizar essa decisão. Em
censo realizado após a abolição, o contingente de escravos libertos no
Ceará era o menor do país com apenas cento e oito indivíduos.39 Isso
explica em parte porque encontramos tão poucos negros em todo o
estado do Ceará, sendo sua população formada na maior parte por
brancos e mestiços. Isso também pode ser uma possível explicação para
o não florescimento anterior de casas de candomblé em Fortaleza.
Considerando que a fundação da primeira casa de Candomblé no
Brasil teria sido por volta de 1830 em Salvador-BA, difundindo-se
rapidamente para os estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e
Maranhão, verifica-se o quão recente em relação a estes estados é o
39
Segundo População escrava e libertos arrolados, Ministério dos Negócios da
Agricultura, Commercio e Obras Públicas, Imprensa Official, 1888; in RAMOS, 1956:26.
45. 45
estabelecimento do candomblé no estado do Ceará40 e como isso parece
influir na sua dinâmica. Segundo Pai Edson, se referindo ao candomblé
em Fortaleza-CE: “O candomblé aqui é muito defasado, muito atrasado. A
gente conta umas quatro ou cinco casas que sabem o que estão
fazendo”.41
O candomblé cearense, assim como no resto do país, se divide em
nações. Segundo Pai Francisco de Iansã,42 no Ceará elas são três: Ketu,
Angola e Jêje. Ele ainda define as nações como sendo relativas ao lugar
de origem do negro ainda na África
No Ceará, a primeira casa de candomblé, segundo a maior parte
dos entrevistados, foi o Ilê Ibá (Casa de Reza), fundada por Pai José
Xavier43 em 1967, situada hoje em Fortaleza, no bairro do Itaperi. Pai
Xavier afirma:
No Ceará, o candomblé foi trazido da Bahia. Eu acho
que posso ter o privilégio de dizer que esta aqui foi a
primeira casa de candomblé a ser fundada. (...). Eu
me iniciei no Rio de Janeiro, com pessoas da Bahia,
que tinham casas em Salvador e no Rio. O
candomblé no Ceará foi trazido por pessoas,
inclusive eu, que fizeram obrigações, muito embora
fora do estado da Bahia mas com pessoas da Bahia
que tinham ido para outros estados.44
Pai Xavier comenta em sua entrevista sobre Luís de Xangô, um
pai-de-santo feito em Recife, que fundou uma casa vários anos antes,45
mas que segundo Xavier, “não tocava candomblé, tocava mais pra Exu,
40
Nas entrevistas averiguamos que o candomblé cearense conta com duas “datas de
nascimento”. Uma por volta dos anos 40, por intermédio de Luis de Xangô, e outra no fim
dos anos 60 por intermédio de Pai José Xavier, como veremos a seguir.
41
Pai Edson de Ogum, 1999.
42
Pai Francisco de Iansã, 1999.
43
Falecido em fevereiro de 2000.
44
Pai José Xavier de Obaluaê, 1999. As informações foram todas confirmadas por Pai
Edson de Iansã (1999).
45
Ninguém soube informar a data com certeza.
46. 46
para caboclo”. Relata ainda que Luís de Xangô não fazia filhos-de-santo,
por isso ele e outros entrevistados não reconhecem essa casa como
sendo a primeira. Esclarecendo mais sobre este fato, Alexandre Fontes46
nos conta que Luís de Xangô mantinha duas casas em dois pontos
distantes na periferia da cidade: uma toda pintada de preto e vermelho,
onde ele tocava só para o Caboclo Exu, e uma outra branca onde ele
fazia toques para orixás. Alexandre Fontes não nos soube precisar datas,
mas informou que quando Luís de Xangô morreu, as casas fecharam por
falta de filhos-de-santo para levar o trabalho adiante.47 Sendo assim,
temos dois pontos isolados de “criação do candomblé”em Fortaleza,
sendo que um não parece estar relacionado com o outro.
De certa forma, confirmando as informações dadas por Pai Xavier
e Alexandre Fontes, é possível encontrar gravações de músicas de
xangôs em Fortaleza feitas na década de 40 por Luiz Heitor Correia de
Azevedo,48 tendo sido estas executadas por Raimundo Alves Feitosa,
integrante de um bloco de maracatu. Porém, em suas notas que
acompanham a gravação, Correia de Azevedo nota que a instrumentação
utilizada não correspondia à tradicional dos cultos yorubá no Brasil,
restringindo-se apenas a uma cuíca, instrumento não utilizado hoje em
nenhum dos terreiros visitados em Fortaleza. Isso pode ser explicado por
ter sido uma gravação feita fora de contexto, tendo o informante usado o
instrumento que estava mais próximo para ilustrar o toque que
acompanha a cantiga.
46
Alabê do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó.
47
Alexandre Fontes, 2000-2001.
48
“The Library of Congress: Endangered Music Project” Música do Ceará e Minas
Gerais.
47. 47
O candomblé no Ceará permaneceu por bastante tempo como uma
religião marginal, tendo sido notada pelos intelectuais somente há poucas
décadas. Isto não é verdadeiro em relação à umbanda, religião já bem
estabelecida à várias décadas, conhecida por todos, documentada em
jornais e periódicos, e com inserção em todos os estratos sociais da
cidade.
Para comprovar esse desconhecimento para com o candomblé, e a
superioridade numérica das casas de umbanda basta uma rápida
consulta ao Anuário do Ceará.49 Em nenhuma de suas edições consta
uma menção sobre o candomblé em Fortaleza, enquanto que aparece em
todos os volumes que apresentam o capítulo “Religiões” um item
chamado “Umbanda”. No ano de 1983, os terreiros de umbanda no Ceará
chegaram ao número de 4000 centros, sendo cerca 700 só em
Fortaleza.50 Até aqui temos uma completa falta de informações concretas
sobre a história dos terreiros de candomblé em Fortaleza. Inexiste uma
associação que os represente, e segundo os pais e mães-de-santo
contatados, existe pouco intercâmbio de informações entre eles, sendo
poucos considerados sérios ou com fundamento. Para fazer esse trabalho
de levantamento histórico mais apurado sobre cada casa seria necessário
entrevistar todos os pais e mães-de-santo de todas as casas da cidade, e
cruzar as suas informações, que muitas vezes são confusas ou
imprecisas. Esse levantamento histórico mais detalhado não faz parte
desta dissertação, tendo sido apresentado apenas um apanhado geral
49
SAMPAIO (1971, 1972, 1973, 1974, 1975, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982,
1983).
50
Dados fornecidos pela União Espírita Cearense de Umbanda (SAMPAIO, 1983).
48. 48
com o intuito de situar o leitor sobre o estabelecimento dessa religião afro-
brasileira em Fortaleza-CE.
Hoje é muito difícil dizer quantas casas de candomblé existem ao
todo na cidade de Fortaleza. Sabemos por depoimentos do abiãn Luís
Thomas Jr., freqüentador da casa de Mãe Ilza d’Oxum, o Ilê Osun Oyeye
Ni Mó, que dentro da casa que ele freqüenta, “apenas umas nove outras
casas são consideradas sérias”.51 Quando Thomas fala isso ele se refere
apenas às casas de nação ketu. Não temos nenhuma estimativa, e nem
pretendemos isso nesse trabalho, da quantidade de casas existentes de
outras nações. Sabemos apenas que existem várias casas da nação
angola, provavelmente a segunda maior nação de candomblé em
Fortaleza, estando a ketu em maior número e aparentemente mais
organizada.
Dentro da nação ketu, a casa mais antiga em funcionamento hoje é
a casa de Mãe Ilza d’Oxum, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, que completa 25
anos de atividade no final do ano de 2001. O Ilê Ibá apesar de ser a casa
mais antiga de Fortaleza, tem enfrentado problemas de funcionamento
desde o falecimento de Pai José Xavier.
51
Informação confirmada por Alexandre Fontes (2000-2001).
49. 49
3- Apresentação do local de estudo, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó.
Para esse estudo, foi feito um estudo de caso centrado em um
terreiro da cidade de Fortaleza, e foram recolhidas informações sobre
outros terreiros que existem, existiram, e que estão de alguma forma
ligados ao local estudado. Nesse capítulo daremos informações mais
específicas sobre o que é o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, como seu histórico e
sua estrutura física.52 Falaremos ainda de uma maneira sucinta sobre
quem o faz e quem o freqüenta.
3.1 – Histórico do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
O Ilê Osun Oyeye Ni Mó foi fundado em 1976, na cidade de
Fortaleza-CE pela iyalorixá Ilza d’Oxum. Atualmente ele está situado no
bairro Canindezinho, na periferia da cidade de Fortaleza, já próximo à
divisa com a cidade de Maranguape. Segundo seus integrantes o terreiro
tem um bom relacionamento com seus vizinhos, participando da vida das
pessoas que o circundam criando laços de afetividade e respeito.
Vejamos isso em um trecho de entrevista feita com um de seus
integrantes:
Quando a gente mudou pra cá não existia
vizinhança, era só mato. A única casa que existia era
essa aqui da frente, a da Dona Iracema. E ela
acabou se beneficiando com a gente aqui. Quando
havia matança, tinham algumas carnes que a gente
não podia comer por causa do preceito, aí minha
mãe ofertava a ela, até mesmo pra não jogar tudo no
lixo. Saiu do ritual ela é uma carne como outra
qualquer. Então com a vizinhança nunca houve
problema, mas no começo houve com a polícia
exatamente por esse aspecto da magia negra que o
52
Fotos mostrando o interior do terreiro, bem como alguns detalhes de sua estrutura
física, e algumas das festas que ocorreram durante sua história encontram-se anexadas
ao final desta dissertação.
50. 50
povo achava que a gente fazia. Só que a gente tinha
uma vantagem que era a do C. ser soldado do
exército. Então todas as vezes que eles chegavam
aqui, já com a arma na mão o C. mandava baixar as
armas e explicava tudo direitinho, até o ponto deles
se tornarem amigos da gente, de vir, assistir as
festas, ficar pro jantar. Tanto que hoje em dia a
gente conhece diversos policiais por aqui. Quando a
gente vai fazer trabalhos fora da roça eles param no
carro olham, vêem que é minha mãe e não
incomodam. Acaba que como a gente chegou
primeiro, os vizinhos nunca deram problema.53
Mais adiante, no decorrer da entrevista podemos notar que nem
sempre é assim que acontece. Os conflitos com uma vizinhança formada
por muitos evangélicos, apesar de não acontecerem com freqüência criam
um clima de desconforto dentro do terreiro.
Aqui têm muitos evangélicos. Mas tem uns
evangélicos que tem muito respeito e entram aqui
sem problema. (...). Agora tem os mais radicais que
atacam mesmo. Ficam lá na porta gritando: “saiam
desse inferno!...” coisas de evangélicos. Mas como
eles tem medo do que não conhecem, eles nunca
entraram e nunca criaram maiores problemas, até
porque minha mãe tem muito prestígio no bairro, ela
já ajudou muita gente. Inclusive alguns desses
crentes que hoje em dia atacam a ela.54
Mãe Ilza d’Oxum, fundadora do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, segundo ela
mesma, foi iniciada no candomblé em 1964 pela iyalorixá Amália de
Oxumaré, no estado da Bahia, mudando-se depois para Fortaleza-CE.55 A
princípio os cultos dentro de seu ilê eram realizados segundo as tradições
do candomblé baiano, contando ainda com visitas anuais de comitivas
53
Alexandre Fontes, 2000-2001.
54
Alexandre Fontes, 2000-2001.
55
Na verdade, Ilza d’Oxum volta para Fortaleza. Segundo ela mesma, ela já morava em
Fortaleza antes, onde era casada com um deputado. Por conta de uma doença grave
(leucemia) entrou em contato com o candomblé, tornou-se adepta, iniciou-se, e curou-se.
Após seu processo de cura, largou tudo o que tinha e mudou-se para Salvador onde foi
iniciada, voltando depois para Fortaleza para abrir sua casa.(Mãe Ilza d´Oxum, 2001)
51. 51
vindas de Salvador (do terreiro de um irmão-de-santo seu) para auxiliar
nas festas e obrigações de seu terreiro.
Quando aqui começou, quando minha mãe era do
axé baiano, aqui predominavam os negros. Um pai
de santo baiano que era irmão de santo dela sempre
vinha pra cá trazendo muita gente, todo mundo
negro.56
Esse panorama mudou a partir de 1991, quando Ilza d’Oxum passa
a ser filha-de-santo do babalorixá Ogum Torodê57 que, após ter feito por
muitos anos pesquisas na África, tem promovido em vários terreiros
espalhados pelo Brasil processos de reafricanização.
O pai de santo dela é carioca. A gente teve a
oportunidade de conhecê-lo, e a gente se deu muito
bem e ele era como um pesquisador. Ele viajou para
a África, para a Áustria, e chegando da África ele
trouxe tudo aquilo da maneira mais correta, porque
quando você passa uma cantiga, uma reza, uma
oração, qualquer coisa de boca em boca, aquilo ali
sempre vai mudando.58
Ao fazermos as entrevistas, ficou muito claro para nós que as
pessoas do terreiro sabem separar muito bem, dentro de seus discursos,
a existência desses dois momentos distintos na história do Ilê Osun
Oyeye Ni Mó. É muito comum ouvir a expressão “no tempo dos baianos”,
em referência ao funcionamento do terreiro antes de 1991. As referências
estão espalhadas por todo lugar, seja nas falas ou em um álbum de
retratos guardados por Alexandre Valentim com fotos “do tempo dos
baianos”, com a seguinte inscrição na capa: velhos tempos. Atualmente o
Ilê Osun Oyeye Ni Mó é um terreiro respeitado pela comunidade ketu de
56
Alexandre Fontes, 2000-2001.
57
Todas as informações relativas a Ogum Torodê nos foram dadas por Alexandre
Fontes. Sabemos que ele realmente esteve presente na história desse terreiro, pois
tivemos acesso a fotos e fitas de vídeo onde ele aparece dando “aulas” aos integrantes
do terreiro. Por uma série de motivos não conseguimos entrevistá-lo.
58
Alexandre Fontes, 2000-2001.
52. 52
Fortaleza, sendo suas festas bem freqüentadas e motivo de alegria para
todos. Apesar disso tudo esse ilê se vê hoje ameaçado em sua existência.
A Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) está
desapropriando áreas para construção de novas linhas condutoras, e uma
dessas linhas passará nos fundos do terreno onde se encontra o terreiro,
praticamente sobre os assentamentos dos orixás. Com isso o ilê de Mãe
Ilza d’Oxum terá que mudar de endereço, podendo inclusive mudar de
cidade. De qualquer forma a tradição do candomblé em Fortaleza
continua se renovando, uma vez que recentemente, no dia primeiro de
dezembro de 2001, aconteceu uma festa de entrega de deká no Ilê Osun
Oyeye Ni Mó a um filho-de-santo do falecido Pai José Xavier continuando
uma tradição que teima em sobreviver.
3.2 – Estrutura física do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
Para descrever a organização do terreiro estudado dentro do
espaço físico contamos com um desenho esquemático feito a partir de
nossa observação, e das explicações de Alexandre Fontes, alabê da
casa.59
O espaço desse terreiro está em constante mudança e talvez por
sua conotação marginal, tem já em sua criação uma transgressão à
ordem que delimita o uso dos espaços urbanos da cidade.
Quando a mamãe chegou aqui, passava uma rua no
meio do terreno. Aqui no meu quarto era pra ser uma
rua. Mas aí a gente fechou a rua e juntou os dois
terrenos. Quando os filhos-de-santo construíram
essa roça fizeram empréstimos e conseguiram
levantar tudo. Mas isso aqui já mudou de cara várias
vezes... Esse barracão já deve ter mudado de feição
59
Ver figura 2. Os números apontados no texto que se segue estão relacionados a ela.
53. 53
umas sete vezes. A gente acredita que no
candomblé a gente não pode deixar as coisas
estáveis... Botar as coisas em movimento quebra as
energias negativas.60
Pelo lado de fora, a não ser pela palha pendurada no alto do portão
e de grãos de milho que às vezes tomam conta da calçada, é
praticamente impossível dizer que por trás daqueles muros existe um
terreiro de candomblé. Abrindo-se o pesado portão de madeira, já na
entrada o terreiro conta com dois assentamentos61 (1), um de cada lado
do portão, protegidos por compartimentos cilíndricos sem portas (2). São
os dois exus que tomam conta da porta da casa. Eles têm como função
proteger o terreiro de energias negativas, feitiços, pessoas mal-
intencionadas, ou qualquer tipo de coisa que seja prejudicial ao ilê.
Após os assentamentos dos exus, temos à nossa frente, à
esquerda, o barracão onde são realizadas as festas públicas e os rituais
(3). O barracão tem as paredes abertas, menos uma onde existe um
painel pintado com motivos de Oxum. O piso é revestido de cerâmica
clara, as colunas de sustentação são pintadas com cal branca, com
bancos correndo pelas suas laterais. No centro, destacando-se no piso
vemos uma cerâmica diferente que demarca o local onde estão
enterrados os fundamentos do terreiro. Esse local chama-se orí axé (4), e
é onde a energia do terreiro encontra-se concentrada. Na parede onde
está pintado o painel, que dá de frente para o portão da casa, há uma
porta (5), por onde entram os filhos-de-santo da casa por ocasião das
60
Alexandre Fontes, 2000-2001.
61
Assentamentos são espécies de altar onde se guardam símbolos ligados aos orixás,
onde está concentrada a energia desses deuses, e onde se fazem as oferendas a eles.
54. 54
festas públicas. Do lado esquerdo da porta está o pepelê (6), local onde
ficam os três atabaques e os outros instrumentos durante as festas.
Ao lado do barracão, existe um corredor, que na verdade é a
varanda da casa, e que leva ao interior do terreiro. Ao passar pela lateral
do barracão encontramos um pequeno quarto reservado ao jogo de
búzios (7). Do lado direito, já separado da construção principal, temos
uma pequena construção em forma de castelo para homenagear Oxum, o
orixá da mãe-de-santo (8). Nessa construção está o assentamento da
Oxum da iyalorixá. Seguindo o corredor, pelo lado da construção principal,
ao lado do cômodo do jogo de búzios, temos a porta que leva ao interior
da residência da mãe-de-santo62 (9). Pelo lado de dentro da casa, ao lado
de quarto dos búzios temos o roncó (10), onde ficam reclusos os iaôs no
período de iniciação, ou antes de alguma obrigação. A entrada do roncó
se faz pelo lado de dentro da casa, e esse quarto, a não ser pela porta,
não tem nenhuma outra comunicação com o exterior. Além desse
complexo barração-roncó-residência, existem várias outras pequenas
construções espalhadas pela área do terreiro (11). São assentamentos ao
ar livre ou casas-de-santo (ilê-orixá) onde está assentado cada um dos
orixás, como os de Ogum (12) e Ossain (13). Temos ainda um barracão
com teto de palha específico para as celebrações de Obaluaê (14), e um
assentamento de Orunmilá (15) num ponto mais afastado do terreiro.
Pudemos ainda observar que espalhados pelo terreno, estão árvores
canteiros e hortas. Estes abastecem a casa com uma enorme quantidade
de folhas, raízes e frutos que vão ser utilizados nos rituais.
62
Dentro de um terreiro vivem geralmente a mãe-de-santo e alguns filhos-de-santo que a
elas prestam serviços.
55. 55
Figura 2: Desenho esquemático do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó.
Dentro deste ilê, assim como em qualquer casa de candomblé,
vivem muitas pessoas além de mãe-de-santo. Hoje são onze pessoas que
moram dentro do terreiro, seja na construção principal onde fica a
residência de Mãe Ilza d’Oxum, seja em construções anexas um pouco
afastadas da casa principal. Esse número de pessoas, devido à própria
dinâmica desta religião está sempre variando. Segundo Alexandre Fontes
esse número já chegou em algumas épocas a trinta pessoas.
3.3 – Funcionamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
56. 56
O Ilê Osun Oyeye Ni Mó, como todo terreiro de candomblé, tem
particularidades na sua forma de encaminhar os rituais e de organizar
suas festas. Isso não desqualifica de forma alguma o que é feito dentro
dele, pois existem, e provavelmente sempre existirão adaptações, como
vamos ver mais adiante. Para entender um pouco mais sobre esse
terreiro de candomblé vamos ver rapidamente quem são os participantes
dessa história. Quem integra e quem freqüenta o Ilê Osun Oyeye Ni Mó.
3.3.1 – Perfil dos integrantes do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
O integrante do terreiro provém de origens sociais e étnicas as
mais diversas, predominando entre eles os de hierarquia mais baixa,
gente de baixa renda. Dentro deste ilê existem as mais variadas histórias
que contam de pessoas “bem nascidas” da sociedade cearense, que
largaram tudo em suas vidas para se dedicarem ao candomblé. Esse
seria o caso da própria mãe-de-santo, Ilza Vieira, e da ekédi mais velha
da casa, Odete Fontes. O terreiro encontra-se muito bem organizado,
sempre aberto, sempre com muitas pessoas dentro dele desempenhando
as mais diversas tarefas. Por várias vezes inclusive foi difícil manter um
diálogo fluente com os membros do terreiro, não devido a algum tipo de
proibição por parte deles, mas devido às suas ocupações freqüentes. O
tempo dentro de um terreiro passa de forma diferente, mas ele não pára
nunca. Devido a tudo isso, as pessoas que mais contribuíram em
depoimentos para essa pesquisa foram Alexandre Fontes, ogãn e alabê
da casa, e Thomas Junior, abiãn da casa e nosso amigo pessoal.