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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE

   UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA



           José Alberto de Almeida Junior




    UM CANDOMBLÉ EM FORTALEZA-CE :

          O ILÊ OSUN OYEYE NI MÓ




                    Dissertação submetida ao Programa
               de Mestrado Interinstitucional UECE/UFBA
                  em cumprimento parcial das exigências
                        para obtenção do grau de mestre
                 Área de Concentração: Etnomusicologia




Orientadora: Profa. Dra. Angela Elizabeth Lühning




             FORTALEZA - CEARÁ
               Fevereiro / 2002
2
3




Aos meus pais.
4


Meus sinceros agradecimentos a:


André Vidal Sampaio, amigo e companheiro de todas as horas, pelo
apoio, revisão de parte do texto e tradução do resumo.

Angela Elizabeth Lühning, minha orientadora, por suas críticas e
sugestões que foram de fundamental importância.

Erwin Schrader, companheiro de mestrado, que muito me apoiou em
todos os momentos.

Elvis Matos, companheiro de profissão, pela revisão de parte do texto.

Gerardo Viana Junior e Simone Sousa, pelo empréstimo de seus
materiais de campo.

Alexandre Fontes, alabê do Ilê Osun Oyeye Ni Mó pelas valiosas
informações.

Luís Thomas Cavalcante Junior, amigo e abiãn do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
pelas valiosas informações.

Fundação Cearense de          Amparo    à   Pesquisa    (FUNCAP),        pelo
financiamento da pesquisa.

Fundação Pierre Verger, e as pessoas que a fazem, pelo carinho e pelo
acesso a seu acervo bibliográfico.

Elba Braga Ramalho, por todo o seu apoio sempre me incentivando a
seguir em frente.

Carmem Saenz Coopat, minha amiga, por seu carinho.

Hugo Lopes Neto, meu irmão, por sua ajuda no tratamento do material
gráfico.

Alencar Júnior, pela enorme ajuda no tratamento do material sonoro
recolhido em campo.

Alexandre Havt, Eliezer Albuquerque, Francisco Costa Holanda, Marcio
Mattos, Eunice Moura, Angélica Ellery, Lu Basile, Babi, Elidia, Luíza (F.P.
Verger), Dona Margarida (F.P. Verger), Anastácia Tabatinga.

A todos os que fazem o Ilê Osun Oyeye Ni Mó.


Aos orixás.
5


Sumário:

1 – Introdução                                                  13

2 – Histórico e definições                                      22

  2.1 – O Candomblé como sistema religioso – mitologia e        22

definições

  2.2 – O Candomblé no Brasil                                   34

  2.3 – O processo de africanização, uma tendência recente      38

  2.4 – O Candomblé no Ceará                                    43

3 – Apresentação do local de estudo, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó     49

  3.1 – Histórico do Ilê Osun Oyeye Ni Mó                       49

  3.2 – Estrutura física do Ilê Osun Oyeye Ni Mó                52

  3.3 – Funcionamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó                   55

    3.3.1 – Perfil dos integrantes do Ilê Osun Oyeye Ni Mó      56

    3.3.2 – Perfil dos freqüentadores do Ilê Osun Oyeye Ni Mó   59

4- A transmissão do conhecimento musical                        62

  4.1 – A transmissão oral como modelo nas religiões afro-      62

brasileiras

  4.2 – A transmissão musical dentro do Ilê Osun Oyeye Ni Mó    67

    4.2.1 – Quem ensina e quem aprende?                         67

    4.2.2 – Formas alternativas de aprendizagem                 71

5- A música como uma multiplicidade de elementos essenciais à   76

festa

  5.1 – A festa do xirê: Descrição de um modelo de festa        77

  5.2 – A música na festa                                       79

    5.2.1 – Descrição do conjunto instrumental                  80
6


 5.3 – Descrição de cantigas e toques selecionados             85

6- Processos de adaptação no candomblé praticado no Ilê Osun

Oyeye Ni Mó                                                    95

 6.1 – A recriação de uma tradição não vivida                  95

   6.1.1 – Bahia versus África, a troca de paradigmas          96

 6.2 – Uma religião de minorias?                               98

 6.3 – Reflexos dessa adaptação no repertório                  101

7 – Considerações finais                                       103

8 – Anexos                                                     109

 8.1 – Transcrições das canções                                109

 8.2 – Fotografias                                             114

9 – Referências                                                127

 9.1 – Bibliografia                                            127

 9.2 – Fontes orais (entrevistas)                              133
7


Lista de figuras:

Figura 1: Desenho esquemático do “barracão padrão”          28

Figura 2: Desenho esquemático do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó   55

Figura 3: Transcrição do adarrum                            87

Figura 4: Transcrição do aguere                             88

Figura 5: Transcrição do sató                               88

Figura 6: Transcrição do alujá                              89

Figura 7: Transcrição do ago                                89

Figura 8: Transcrição do opanijé                            90

Figura 9: Transcrição do ijexá                              90

Figura 10: Transcrição de cantiga de Exu                    109

Figura 11: Transcrição de cantiga de Ogum                   109

Figura 12: Transcrição de cantiga de Oxossi                 110

Figura 13: Transcrição de cantiga de Ossain                 110

Figura 14: Transcrição de cantiga de Logunedé               110

Figura 15: Transcrição de cantiga de Obaluaê                111

Figura 16: Transcrição de cantiga de Oxumaré                111

Figura 17: Transcrição de cantiga de Xangô                  112

Figura 18: Transcrição de cantiga de Iansã                  112

Figura 19: Transcrição de cantiga de Oxum                   112

Figura 20: Transcrição de cantiga de Iemanjá                113

Figura 21: Transcrição de cantiga de Nanã                   113



Lista de fotografias:

Foto 1: Entrada do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001)              114
8


Foto 2: Vizinhança do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001)                   114

Foto 3: 1ª saída de santo feita na casa (1977)                      115

Foto 4: Festa de confirmação de Ogãn e Ekédi (1988)                 115

Foto 5: Saída de Obaluaê (1988)                                     116

Foto 6: Oxum de Mãe Ilza, ao centro e Ogum Torodê á direita         116

(1992)

Foto 7: Festa no barracão de trás (1995)                            117

Foto 8: Odete, Mãe Ilza, Alexandre Fontes (esquerda para direita)

na festa de 21 anos de santo de Ilza e confirmação de Alexandre

como ogãn (1997)                                                    117

Foto 9: Festa de saída de Oxalufã (1997)                            118

Foto 10: Três Yemanjás e uma Oxum em uma festa de Oxossi            118

(2000)

Foto 11: Oxum em iaô masculino em uma festa de Oxossi (2000)        119

Foto 12: Um Oxossi em sua festa (2000)                              120

Foto 13: Ori axé do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001)                     121

Foto 14: Detalhe do teto do barracão (2001)                         121

Foto 15: Detalhe do painel pintado na parede do barracão

simbolizando Oxum (2001)                                            122

Foto 16: Pepelê com os três atabaques (2001)                        122

Foto 17: Detalhe dos atabaques (2001)                               123

Foto 18: Detalhe das cordas e madeiras do sistema de afinação de

um dos atabaques (2001)                                             123

Foto 19: Assentamento da Oxum de Mãe Ilza (2001)                    124

Foto 20: Assentamento de Ogum (2001)                                124
9


Foto 21: Assentamento de Ossain (2001)                         125

Foto 22: Assentamento de Tempo (2001)                          125

Foto 23: Casas de santo nos fundos do terreno (2001)           126

Foto 24: Porta de uma casa de santo com restos do sacrifício

(2001)                                                         126



Roteiro do cd de exemplos:

Faixas:

01    Cantiga de Exu - Altair

02    Cantiga de Exu - Alexandre

03    Cantiga de Ogun - Altair

04    Cantiga de Ogum - Alexandre

05    Cantiga de Oxossi - Altair

06    Cantiga de Oxossi - Alexandre

07    Cantiga de Ossain - Altair

08    Cantiga de Ossain - Alexandre

09    Cantiga de Logunedé - Altair

10    Cantiga de Logunedé - Alexandre

11    Cantiga de Obaluaê - Altair

12    Cantiga de Obaluaê - Alexandre

13    Cantiga de Oxumaré - Altair

14    Cantiga de Oxumaré - Alexandre

15    Cantiga de Xangô - Altair

16    Cantiga de Xangô - Alexandre

17    Cantiga de Iansã - Altair
10


18   Cantiga de Iansã - Alexandre

19   Cantiga de Oxum - Altair

20   Cantiga de Oxum - Alexandre

21   Cantiga de Iemanjá - Altair

22   Cantiga de Iemanjá - Alexandre

23   Cantiga de Nanã - Altair

24   Cantiga de Nanã - Alexandre
11


Resumo

             O presente trabalho é o resultado de um estudo
         de caso sobre o Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, uma
         casa de candomblé de nação ketu na cidade de
         Fortaleza-CE, que tem passado desde 1991 por um
         processo de africanização (PRANDI, 1999c).
         Procuramos com esse trabalho responder primeiro a
         questões básicas de fixação e sobrevivência da
         religião candomblé em nossa cidade para depois
         discutir acerca das modificações e adaptações que
         esta sofreu devido à sua clientela muito
         diversificada em extratos sociais, escolaridade e
         raça, principalmente no que diz respeito à questão
         musical.
             Averiguamos inicialmente que esse processo de
         africanização que vem ocorrendo nos cultos de
         candomblé no Brasil se propõe a restaurar ou
         recriar tradições julgadas perdidas na transposição
         do complexo religioso africano para o nosso país
         durante o período da escravatura negra, e essa
         africanização em Fortaleza vem talvez como uma
         forma de estruturar esta religião afro-brasileira
         inserida em um ambiente branco e mestiço.
             Através de uma pesquisa de campo baseada na
         observação participativa, tivemos a preocupação de
         registrar tudo à nossa volta da melhor forma
         possível, através de gravações em áudio e vídeo,
         ou máquina fotográfica, para depois proceder às
         análises do discurso dos entrevistados, assim como
         à seleção de material musical para transcrições e
         posterior análise.
             Nos deparamos com uma realidade até então
         inédita para nós: a descaracterização do modo de
         transmissão oral/aural descrito para todas as
         religiões afro-brasileiras. Ensaios e recorrência a
         compact discs e fitas cassete fazem parte da
         realidade     cotidiana    do   terreiro   estudado,
         introduzindo realidades sonoras que não existiam
         antes na comunidade, assim como modificando
         drasticamente o esquema de transmissão e
         aquisição de conhecimento musical.
             Concluímos então com o presente trabalho que o
         processo de busca de uma autenticidade perdida
         tem afetado o repertório musical e principalmente as
         suas formas de transmissão.
12


Abstract

              The present work is the result of a case study on
           the Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, a candomblé house
           of Ketu tradition in the city of Fortaleza, Brazil, which
           has been since 1991 going through a process of
           africanization (PRANDI, 1999c). We tried, on this
           work, to answer primarily to fundamental questions
           about the implantation and survival of the
           Candomblé religion in our city, and then go on to
           discuss the changes and adaptations to which it was
           submitted because of the great diversity of social
           backgrounds, education and ethnical origins of its
           members, especially in the aspects related to music.
              We initially attested that this process of
           africanization that has been occurring in the cult of
           Candomblé in Brazil aims to restore or recreate
           traditions which were judged lost on the
           transposition of the African religious complex to our
           country during the period of slavery, and that this
           africanization in Fortaleza possibly appears as a
           way of structuring this afro-Brazilian religion inserted
           in a predominantly white and half-breed
           environment.
              Through a field research based on participative
           observation, we have been careful in registering
           everything around us the best way possible, using
           audio and video recordings or photography, and
           then proceeding to the analysis of the interviews, as
           well as the selection of the musical sources for
           transcription and posterior analysis.
              We were faced with a situation until then
           unknown to us: the partial abandonment of the
           oral/aural method of transmission described as
           common to all the afro-Brazilian religions.
           Rehearsals and the use of CD and tape are a part of
           the daily routine of the house under study,
           introducing sounds that did not exist in the
           community before, as well as changing radically the
           method of transmission and acquirement of musical
           knowledge.
              We then infer, with the present work, that this
           search of a lost authenticity has affected both the
           musical repertoire and especially its forms of
           transmission.
13


1- Introdução

      Este trabalho é o resultado de alguns anos de pesquisa sobre o

candomblé em Fortaleza, no estado do Ceará. Pesquisa em vários níveis:

desde a pesquisa curiosa e desinteressada de um leigo sobre o assunto,

até a pesquisa mais sistemática e devidamente orientada, ajustada aos

padrões de uma pesquisa científica.

      Ainda na época de nossa graduação em música na Universidade

Estadual do Ceará (UECE), fomos inicialmente apresentados às religiões

afro-brasileiras. Como trabalho final de uma disciplina de metodologia do

trabalho científico, fizemos em grupo um estudo sobre um terreiro de

umbanda na periferia da cidade de Fortaleza, o Centro Espírita de

Umbanda Casa da Caridade sob a direção de Pai Francisco. A partir

deste contato inicial começamos a ler um pouco mais sobre o assunto e a

encorajar alguns amigos a trabalharem na mesma área. Continuamos

ainda assim como simples curiosos por bastante tempo até ter em nosso

círculo de amizades algumas “pessoas do candomblé”. Entre elas o abiãn

Luís Thomas Cavalcante Junior, que foi de extrema importância para a

realização desse trabalho. Foi o abiãn Thomas que nos apresentou de

perto o candomblé (a umbanda nós já havíamos conhecido em trabalho

anterior), e principalmente o candomblé feito no terreiro de sua mãe-de-

santo: a Mãe Ilza d’Oxum, yalorixá do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, uma

casa de nação ketu na cidade de Fortaleza-CE. Esse terreiro tornou-se

então nosso objeto para um estudo mais aprofundado.

      Alguns pontos rapidamente nos chamaram atenção e nos

intrigaram:
14


       Como poderia existir candomblé em Fortaleza-CE se esta é uma

       religião que no senso comum está ligada à etnia negra,1 e o

       mesmo senso comum diz que praticamente não existem negros em

       Fortaleza-CE?

       Porque uma religião existente desde o fim da década de 60 em

       Fortaleza-CE permaneceu praticamente no anonimato?

       Quais as tradições que a sustentam?

       De onde saem seus seguidores?

       Que     influências    essas    “diferenças”    notadas     tem    sobre    a

       transmissão do conhecimento musical?

    Tudo isso foram indagações que deram asas à nossa imaginação e à

nossa curiosidade. Tentamos respondê-las a contento para nós mesmos

e dessa busca por respostas surgiu esse trabalho.

    Centramos então, como já dissemos, nossa pesquisa no Ilê Osun

Oyeye Ni Mó, não só pela admiração demonstrada por adeptos de outros

terreiros de Fortaleza por este Ilê, mas também pela sua estrutura física e

recursos humanos disponíveis para a execução dos rituais dentro desse

terreiro, que não encontramos em nenhum outro a que tivemos acesso.

Houve ainda uma facilidade de acesso proporcionada pela figura de

Thomas Junior, e o importante fato do Ilê Osun Oyeye Ni Mó ser

atualmente o terreiro de candomblé mais antigo em funcionamento regular

na cidade de Fortaleza-CE. 2



1
  Discutiremos mais tarde o conceito de etnia e como ele se apresenta dentro do
candomblé.
2
  Nossa primeira escolha para realização da pesquisa de campo para esse trabalho, por
diversas razões deveria ter sido o Ilê Ibá, primeira casa a ser fundada na cidade de
Fortaleza, mas infelizmente Pai José Xavier, pai-de-santo fundador da casa, morreu no
15


         Um outro ponto que nos levou a escolher esse terreiro é a

existência de um processo de africanização (PRANDI, 1999c) que vem se

desenvolvendo dentro dele nos últimos anos. Esse processo de

africanização3 dos cultos de candomblé no Brasil, segundo Prandi, tem o

intento de restaurar ou recriar tradições perdidas na transposição do

complexo religioso africano para o Brasil durante o período da escravatura

negra.

             Começava o que chamei de processo de
             africanização do candomblé, em que o retorno
             deliberado à tradição africana significa o
             reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram
             deturpados e perdidos na adversidade da diáspora;
             voltar à África não para ser africano nem para ser
             negro, mas para recuperar um patrimônio cuja
             presença no Brasil é agora motivo de orgulho,
             sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o
             detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo
             negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no
             orixá. (PRANDI, 1999c:105)


         Essa africanização em Fortaleza vem talvez como uma forma de

estruturar e dotar de uma legitimidade, que a ausência de uma etnia

negra não promoveu, esta religião afro-brasileira inserida em um ambiente

branco e mestiço, com pessoas de backgrounds diferenciados, que

geralmente não tem nenhuma relação (a não ser talvez afetiva) com os

movimentos de resistência cultural negra acontecidos durante a história

do Brasil.

             Grupo étnico designa uma população que: 1) Se
             perpetua principalmente por meios biológicos; 2)
             partilha de valores culturais fundamentais postos em
             prática a partir de formas culturais; 3) compõe um

começo do ano de 2000, estando a casa desde então passando por problemas na sua
manutenção.
3
  Encontramos em SILVA (1999:149) o termo reafricanização com o mesmo sentido e
aliado ao termo dessincretização.
16


             campo de comunicação e interação; 4) tem um
             grupo de membros que se identifica e é identificado
             por outros, como sendo constituinte de uma
             categoria distinguível de outras categorias da
             mesma ordem. (BARTH, 1969:10)


       Este fenômeno vem se desenvolvendo há vários anos, e

recentemente parece ter ganho mais força. Está inserido em vários locais

do Brasil, inclusive em Salvador, que é considerada a “Meca negra do

Brasil”. Encontramos em Fortaleza-CE alguns pais e mães-de-santo que

não parecem estar dispostos a ir a África atrás de sua “africanidade” mas

sim trazer a África até eles por terceiros ou livros.

             Na impossibilidade de ir à África, como se fazia
             outrora, o zelador de hoje estuda a África através
             dos livros para reformar sua própria religião.
             (BASTIDE, 1983:168)


       Não sabemos ainda até que ponto todo esse processo de busca de

uma autenticidade perdida tem afetado e ainda afetará no futuro o

repertório musical e as suas formas de transmissão.

       Neste ponto de nossas reflexões perguntamos a nós mesmos, em

relação específica ao fenômeno musical intrinsecamente ligado às

religiões:

       Como se preservam seus toques e cantigas?

       Que influências esse público tão diferenciado tem trazido para a

       criação e recriação do fenômeno musical dentro do candomblé?

       Segundo Hobsbawn (1984:9) “muitas vezes, ‘tradições’ que

parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não

são inventadas”. Partindo dessa afirmação podemos então dizer que
17


todos esses fatores presentes na cidade de Fortaleza-CE já citados

acabaram por inventar uma nova tradição?

           Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de
           práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
           abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual
           ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas
           de comportamento através da repetição, o que
           implica, automaticamente; uma continuidade em
           relação ao passado. Aliás, sempre que possível,
           tenta-se estabelecer continuidade com um passado
           histórico apropriado. (HOBSBAWM, 1984:19)

       Podemos ainda extrapolar o conceito, e a partir das considerações

de Prandi (93, 95/96, 1999c) que considera o candomblé como sendo

uma tradição reinventada, dizer que em Fortaleza-CE temos uma

reinvenção da tradição reinventada.

       Mas achamos ainda muito cedo para tais afirmações, seria

precipitado de nossa parte, contudo podemos dizer com certeza que

houve adaptações na dinâmica dessa religião afro-brasileira devido ao

local e material humano disponíveis, como veremos mais à frente.

       Tentamos então neste trabalho, através do Ilê Osun Oyeye Ni Mó,

apresentar um panorama de como se comporta o candomblé em

Fortaleza-CE e como sua clientela muito diversificada em extratos sociais,

escolaridade e raça têm afetado na transmissão musical oral/aural

característica das religiões afro-brasileiras.

       Uma vez estabelecidas todas as perguntas que queríamos

responder, e escolhido o local de trabalho, lançamos mão de métodos de

trabalho de campo em etnomusicologia que foram, através dos anos,

derivados de métodos desenvolvidos pela antropologia.
18


       Com o passar dos anos, a partir da introdução da pesquisa-de-

campo com observação participativa nos métodos de pesquisa em

etnomusicologia demos um salto qualitativo na interpretação dos dados

coletados: o coletor é o mesmo que analisa. Ele está ciente de como

aquilo foi cantado ou tocado, de que forma, em qual situação, e em como

ter assistido ou mesmo participado daquilo afetou seu corpo e mente. Os

testemunhos, mesmo que ainda vistos por alguém que não pertence

àquela cultura em estudo passam a ser mais fiéis, assim como o som

descrito.

       A coleta dos dados a partir de então passa a ser preferencialmente

feita pela mesma pessoa que vai analisá-los, e esta deverá se preocupar

em registrar tudo à sua volta da melhor forma possível, através de

gravações em áudio e vídeo, ou máquina fotográfica sempre que for

possível.4 Notas em um caderno de campo também são sempre

importantes, elas registram as impressões de um momento, são como

fotografias de sua mente na hora em que a informação foi recebida. Em

uma observação participativa o pesquisador deve ainda procurar aprender

“a tocar, cantar e dançar igual (dentro do possível) a um membro da

cultura a ser estudada” (LÜHNING, 1991: 116); isso facilitará muito na

hora de transcrever o material musical. Assim como também se deve

aprender a terminologia e a teoria musical daquele meio, se estiverem

presentes. A não observação cuidadosa desses pontos poderá acarretar

interpretações errôneas, preconceituosas, e sem nenhum valor para o

entendimento do fenômeno musical.

4
 Por experiência própria sabemos que filmar, fotografar ou mesmo gravar muitas vezes
não é permitido.
19


      Usamos nesta pesquisa além do material coletado por nós mesmos

dentro uma forma participativa, o material levantado por Simone Santos

Sousa e Gerardo Viana Júnior, amigos de longa data, colegas de trabalho

e de pesquisa musical; perfazendo pouco mais de três anos de

acompanhamento em várias casas, assim como pouco mais de dois anos

de acompanhamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, incluindo documentos,

entrevistas e gravações em áudio e vídeo de festas públicas.

      Na    tentativa   de   estabelecer    uma   linha   de   pensamento

fundamentada em fatos, para então fazermos a remontagem do contexto

no qual o candomblé chegou e se fixou em Fortaleza, além das devidas

transcrições musicais para entendermos como se dá a transmissão

musical do mesmo, fizemos o levantamento dos seguintes materiais:

   Livros, periódicos e documentos com menção sobre o candomblé e

   sobre sua inserção em Fortaleza-CE nos seguintes locais:

1. Biblioteca Pública do Estado do Ceará,

2. Biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Federal do

   Ceará,

3. Biblioteca Central da Universidade Estadual do Ceará,

4. Biblioteca da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia,

5. Biblioteca da Fundação Pierre Verger, Salvador-BA.

   Entrevistas com pais e mães-de-santo atuantes hoje em Fortaleza-CE

   assim como seus filhos-de-santo, ogãns, abiãns e freqüentadores

   ocasionais das festas de candomblé.

   Gravações musicais realizadas no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, e gravações

   cedidas por seu alabê.
20


        Devido à extensão do repertório, e das limitações que teríamos em

coletá-lo por não sermos praticantes dessa religião, escolhemos para

nossa amostragem nos fixarmos em um repertório de festas de xirê5 de

apenas uma casa. Sendo assim este será um “estudo intensivo” dentro

das definições de Merriam: “O estudo intensivo (...) é aquele no qual o

estudante seleciona uma área limitada em particular e dá a ela a sua total

atenção” 6 (MERRIAM, 1978: 42).

        Sabemos desde já que a redução da música para sua notação

escrita está condenada a imperfeições. A música é um fenômeno acústico

com muitas variáveis cabendo ao pesquisador escolher quais dela são as

mais relevantes ao trabalho que será feito, e por isso serão impressas em

papel. Com isso temos que a transcrição não é única, ela varia de acordo

com os propósitos da análise.

        Seeger7 nos fala de duas diferentes formas de transcrição musical:

a transcrição prescritiva e a transcrição descritiva. Segundo Seeger a

transcrição descritiva seria mais indicativa e menos carregada de sinais,

enquanto que a prescritiva seria mais carregada de indicações, tentando

recriar o mais próximo possível o fenômeno musical. Cada uma delas tem

sua função e sua esfera de uso. Para esse trabalho usamos uma

transcrição mais descritiva e menos prescritiva por achar que a função

das transcrições nesse contexto é a de subsidiar nossas análises, e não a

de recriação do fenômeno sonoro por terceiros a partir da partitura.



5
  Mais à frente descreveremos em linhas gerais a festa de xirê.
6
  The intensive study (...) is one in which the student selects a particular limited area and
gives his entire attention to it.”.
7
  SEEGER, Charles. Prescriptive and descriptive music writing, Musical Quarterly. 44:
184-195, apud NETTL, 1968: 99.
21


      Nos capítulos a seguir tentaremos ilustrar em palavras, imagens e

sons o que conseguimos apreender nesse tempo de convívio com a

realidade do Ilê Osun Oyeye Ni Mó.
22


2- Histórico e definições

                                 O Candomblé é um resumo de toda a África mística

                                                                  (Roger Bastide)

      Para podermos nos situar melhor no universo formado em torno do

Candomblé, é necessário explicarmos seus princípios básicos e darmos

algumas informações de como se processa a sua dinâmica através de

uma compilação de literatura. Também esboçaremos abreviadamente

uma idéia de como ele se instalou no Brasil, e chegou à cidade de

Fortaleza, no Estado do Ceará.



2.1 – O Candomblé como sistema religioso – mitologia e definições

      O trabalho aqui empreendido não se propõe a explicar esse

complexo sistema religioso, seguindo agora um resumo substancial do

que é esse sistema, apenas como forma do leitor se situar dentro desse

universo e poder entender mais adiante as questões levantadas.

      Juntamente com os negros trazidos do continente africano durante

todo o período da escravatura no Brasil, vieram várias culturas, crenças,

línguas, dialetos, etc., que após um processo de síntese recriam um

sistema religioso: o Candomblé.

          É necessário ressaltar que o candomblé surge no
          Brasil como produto de [re]invenções – de
          adaptações e de síntese – dos vários sistemas de
          crenças provenientes do continente africano durante
          mais de três séculos do período da escravidão. A
          [re]invenção de uma África mítica aparece, desde o
          início, como elemento fundante das diversas
          identidades religiosas assumidas e apregoadas
          como raízes ou nações que marcam as fronteiras
          litúrgicas de cada comunidade – terreiro, que a partir
          do século XIX começam a adquirir visibilidade e
          legitimidade social. (TEIXEIRA, 1999:133/134)
23


       Como está citado acima, esta religião afro-brasileira passa a ser

oficialmente visível no Brasil apenas a partir do século XIX, quando a

sociedade      branca      social    e    economicamente          dominante       toma

conhecimento do primeiro terreiro de Candomblé no Brasil, por volta de

1830 na Bahia.8 Esta religião está construída sob a noção de família,9

onde cada indivíduo tem a oportunidade, o livre-arbítrio, de inserir-se em

um terreiro de candomblé e ocupar seu lugar dentro de uma hierarquia.

       Inicialmente, para compreendermos essa forma de hierarquização

familiar existente dentro do candomblé, onde tudo orbita em torno de um

pai ou mãe-de-santo, tendo vários indivíduos dividindo o mesmo teto, é

preciso remetermo-nos à organização das sociedades africanas yorubá.

            O ebi (família, linhagem) constituía a organização
            social básica, geralmente sob forma de linhagem
            agnatícia ou patrilinear. Ao ebi – e não ao indivíduo
            membro – pertenciam os bens de produção e até
            mesmo os títulos de nobreza. Seus membros viviam
            juntos no agbo-ilê (conjunto de casas, grande
            comunidade). A cidade ou a vila (ilu) era formada
            por vários agbo-ilê e governada pelo rei (obá) e
            pelos chefes (ijoye) civis e militares. Os estratos
            sociais seguintes eram os membros mais velhos do
            ebi – os baale – e finalmente os cidadãos. (...)
            Através do terreiro – associação litúrgica organizada
            (egbé) – transferia-se para o Brasil grande parte do
            patrimônio cultural negro-africano. (MUNIZ, 1988:49)

       Com o passar dos anos, através de processos de miscigenação

racial e cultural, nos quais não mais uma ascendência negra, mas sim a

8
  Esta noção de “primeiro terreiro” parte de uma tentativa de reconstituição da história
dessa religião afro-brasileira. Digo tentativa porque as fontes são escassas e vagas uma
vez que esta é uma parte marginalizada da história do Brasil, tendo sido levantada em
grande parte por Pierre Verger em toda a sua obra.
9
  Segundo Hoebel & Frost (1999:204) A família é a “unidade primária da cultura humana
e da sociedade” Quando falamos neste ponto de nosso trabalho em “noção de família”
estamos querendo dizer que não existe necessariamente a família natural formada por
laços consangüíneos dentro das estruturas do candomblé, mas sim uma família
simbólica, espiritual, onde indivíduos assumem vínculos uns com os outros, e esses
vínculos recebem uma hierarquização baseada na hierarquia familiar básica (pai, mãe,
irmão, etc.).
24


curiosidade ou uma identificação em relação à cultura afro-brasileira

determina a clientela de um terreiro de candomblé, a família-de-santo

passa então a ser construído por pessoas de origens étnicas,10 nível

social e cultural diferentes. 11

       Os orixás, segundo Reis (2000:57-58) são deuses que “foram em

vida seres excepcionais, que detinham um poderoso axé e não morrem

simplesmente, fazendo na verdade, uma passagem da condição mortal de

seres humanos para a condição imortal de orixá (...)”.Essa noção do orixá

como ancestral divinizado fundamenta-se e encontra sua razão de ser no

conceito descrito anteriormente de que o candomblé é uma religião

baseada em uma noção familiar. O orixá seria então um ancestral que

quando pertenceu em vida ao grupo familiar, estabeleceu vínculos que lhe

permitiram o controle sobre uma força da natureza como o trovão, ou

vento. O orixá é uma divindade onipresente, é a manifestação da vida

eternizada e manifesta através do axé.

       O orixá seria, portanto uma força pura, axé imaterial que só se

torna perceptível aos seres humanos ao incorporar-se em um deles, em

um fenômeno chamado de transe (Reis, 2000:58), ou possessão. A

realização das cerimônias de adoração ao orixá é assegurada e

conduzida pelo pai ou mãe-de-santo designado para tal. Os outros

membros da família-de-santo devem contribuir materialmente para o custo


10
   Segundo Brandão (1986:145) um grupo étnico é “uma categoria de articulação de
tipos de pessoas que, por estarem historicamente unidos por laços próprios de relações
realizadas como famílias, redes de parentes, clãs, metades, aldeias e tribos, e por
viverem e se reconhecerem vivendo em comum um mesmo modo peculiar de vida e
representação de vida social, estabelecem para eles próprios e para os outros as suas
fronteiras étnicas, os seus limites de etnia. Mergulhados em um sistema de relações
regidas pela desigualdade aprendem a se pensar como diferentes.”.
11
   Hoje não é raro encontrar em uma festa de candomblé desde analfabetos até
intelectuais de diversas origens étnicas.
25


do culto, assim como ajudar na preparação da festa, além de observar as

proibições alimentares e outras ligadas ao culto de seu orixá.

          Se uma pessoa, ao entrar para um grupo ou família-de-santo, for

chamada a ser filho-de-santo, cabe ao pai ou mãe-de-santo a tarefa de

iniciá-lo e de preparar o assento de seu orixá naquele terreiro. Sendo

assim, dentro do ilê existirão inúmeros assentamentos de diferentes

orixás (os dos filhos-de-santo), além do assentamento do orixá do terreiro

(o do pai ou mãe-de-santo). Como já dissemos antes, atualmente, com a

perda da identidade familiar africana, a família-de-santo passa a ser

construída        por   pessoas      de   origens   diversas,   sendo   assim   a

consangüinidade com o orixá, ancestral divinizado, fica comprometida,

não podendo mais ser reivindicada. Entretanto, pode haver entre todos os

crentes, independente da etnia da qual provêem, certas afinidades de

temperamento: tendências inatas de seu comportamento que são

característicos de um orixá. Podemos chamar essas tendências de

arquétipos de personalidade que não podem desenvolver-se livremente

dentro de cada indivíduo sem entrarem em conflito com as regras de

conduta admitidas em seu meio social que normalmente no Brasil é

dominado por uma ética branca européia e cristã.

          Além dos orixás, segundo Reis (2000:58) temos ainda nos cultos

os egúngún, ou eguns. Estes também são ancestrais, mas que não

transcenderam a morte como os orixás, e sim passaram por ela. Eles são

os detentores de segredos da morte e do renascimento. Segundo Pai

Francisco12 os eguns são:


12
     Pai Francisco de Iansã, 1999.
26


            Espíritos travessos e maleficientes. São espíritos de
            pessoas desencarnadas. Todo ser vivo é um egun,
            pois ele é um espírito dentro de uma matéria, mas
            no instante em que ele desencarna essa matéria
            perde a importância, pois para o espírito não há
            morte, ele vive para sempre.


       A mitologia na qual se apóia o candomblé de nação ketu, sobre o

qual trata o nosso trabalho, já é bem estabelecida, bastante rica, e tem

sido extensamente descrita desde os trabalhos de Verger, até os de

Prandi e vários outros autores recentes. 13

       O espaço físico onde acontecem as cerimônias é também moradia

do pai ou mãe-de-santo, e de toda uma comunidade; segundo Pai

Francisco, 14 recebe o nome de ilê, roça, baquisse, abaçá, ou gozemu. 15

Cada ilê é ao mesmo tempo moradia para humanos e orixás. As famílias-

de-santo dividem o espaço com seus deuses. Os orixás podem ocupar

cômodos internos da casa ou pequenas construções no exterior, em uma

parte do terreno. A casa se diferencia de uma residência comum por dois

espaços particulares: o barracão (que pode ser mais de um16), salão onde

se realizam as festas; e o roncó, um quarto sem comunicação com a parte

externa do terreno, onde os noviços ficam recolhidos por 21 dias durante

o processo de sua iniciação.

       Dentro do barracão existem dois lugares de especial destaque. Um

deles fica no centro do barracão e é denominado de axé da casa ou ori

axé. Trata-se de um local sagrado, que foi bento com folhas e ervas, e


13
   PRANDI, 2001; VERGER, 1997a; VERGER, 1997b; REIS, 2000; entre outros.
14
   Pai Francisco de Iansã, 1999.
15
   Pai Francisco de Iansã (1999) relaciona vários nomes sem distinguir de que tradição
(nação) eles provêem.
16
   No Ilê Osun Oyeye Ni Mó encontramos dois barracões: um logo na entrada, e um ao
fundo destinado às festas de Omulu.
27


onde está enterrado o que os participantes chamam de fundamento. Toda

vez que um iniciado entra no barracão, ele toca nesse local com a mão

direita (no chão) e em seguida toca a cabeça, como se pedisse uma

bênção ao orixá dono da casa. Isso também acontece nas festas: quando

os atabaques tocam para um determinado santo, todos os seus filhos

tocam o ori axé. Esse gesto é descrito por Lühning17 como sendo respeito

e reverência do iniciado para com a terra, ou para com o orixá.

       Outro lugar importante no barracão é o pepelê, onde ficam os três

atabaques que acompanham todos os rituais. Na maioria das casas, além

dos três atabaques encontramos o agogô, e os adjás18. Raramente

encontramos maracás, caxixis, xequerês ou outros instrumentos.




17
  LÜHNING, 1990:45-46.
18
   Até agora, podemos notar que não houve discrepância entre os termos e conceitos
recolhidos na pesquisa de campo e os termos e conceitos adotados no candomblé
baiano e largamente descritos em literatura. Mais à frente veremos como se processa
essa relação entre o candomblé de Fortaleza, o candomblé baiano e os processos de
africanização.
28




       Figura 1: Desenho esquemático do “barracão padrão” em Fortaleza-CE




      O Ilê axé, é dirigido por um pai ou uma mãe-de-santo, responsável

pelo culto. Também chamados de babalorixá ou iyalorixá, pai ou mãe

respectivamente, são eles os encarregados de cuidar do poder do orixá.

      Os pais e mães-de-santo são assistidos por pais ou mães-

pequenos, babá ou iya kekerê respectivamente, e por uma série de

ajudantes, com papéis e atividades diversos e definidos, ligados às

necessidades do culto. Esses “cargos especiais” são determinados pela

vontade do pai ou mãe-de-santo e confirmados pela consulta aos búzios.
29


          Entre os ajudantes no Ilê axé, está ainda a iatebessê que dirige a

seqüência dos cânticos dos orixás nas cerimônias públicas; a iabessê que

supervisiona a preparação das comidas destinadas aos orixás e aos seres

humanos; o axogum, responsável por realizar o sacrifício dos animais

oferecidos aos deuses, e o alabê, chefe dos tocadores de atabaque.

          Os ogãns são os músicos responsáveis pela execução dos toques

nos atabaques, durante as festas públicas e mesmo durante as

cerimônias secretas quando o ritual assim o exige. Ainda existem os iaôs

que são os filhos e as filhas-de-santo, e os abiãns que são os

freqüentadores noviços ainda não iniciados do terreiro, que ajudam nas

tarefas domésticas gerais.

          Dentro do complexo religioso do candomblé, são realizados

diversos tipos de rituais e cerimônias, com os mais diversos objetivos

ligados à necessidade da manutenção e obtenção do axé por parte dos

freqüentadores do terreiro.

          Algumas dessas cerimônias, como as festas de xirê, têm caráter

público, podendo ser acompanhadas por visitantes, outras só podem ser

assistidas       pelos    freqüentadores   da   casa,   pois   têm   em   seu

desenvolvimento os chamados fundamentos, segredos rituais acessíveis

apenas aos iniciados. Pai Xavier divide os rituais da seguinte forma:

              O candomblé é um ritual que tem sua parte de
              segredo, que nós chamamos de fundamento, e tem
              uma parte folclórica, que é o que nós apresentamos
              no barracão, que todo mundo participa. E tem a parte
              do roncó, da iniciação, das obrigações, que são
              privadas de pessoas que não são da seita. O
              candomblé requer muita abnegação, respeito, e força
              de vontade.19

19
     Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
30


       As festas de xirê, que como já dissemos são festas com a

participação de um público externo ao ilê axé, geralmente seguem o

mesmo roteiro. Antes da festa há rituais que começam na madrugada

anterior à festa e duram o dia inteiro. Dentre esses rituais fechados ao

público, que compreendem matança de animais e oferendas, está o padê

de Exu. 20 À noite acontece a festa em si. Os atabaques começam a tocar,

enquanto os filhos e filhas-de-santo entram puxados pelo pai ou mãe-de-

santo carregando o adjá. O pai ou mãe-de-santo se coloca em uma

cadeira especialmente reservada enquanto os filhos-de-santo formam

uma ou duas rodas (a depender da quantidade de pessoas e do tamanho

do barracão) que giram em sentido anti-horário enquanto saúdam o ori

axé. Iniciam-se então as cantigas para os orixás, o que normalmente é

feito de uma forma responsorial entre o puxador e a assembléia. Variando

de terreiro a terreiro podemos ter duas formas de iniciar o xirê: na primeira

o pai-de-santo faz uma chamada ao coro com os atabaques ainda

calados, começando a tocar em seguida. Na segunda os atabaques

introduzem um ritmo antes da primeira cantiga indicando que o xirê vai ser

iniciado.

       Os orixás são invocados seguindo uma ordem: a ordem do xirê.21 A

primeira entidade a ser louvada é Exu,22 seguido por Ogum, Ossanha ou



20
   Padê, ou despacho de Exu, segundo Pai Xavier de Obaluaê (1999), é um ritual onde
se agrada este orixá, que faz a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. Suas
oferendas são levadas para fora do barracão e a porta de entrada é batizada água,
cachaça ou mel.
21
   É a ordem na qual cada um dos orixás é saudado, ou chamado à roda em uma festa
de xirê. A ordem dada acima nos foi informada por Pai Xavier de Obaluaê (1999), Pai
Edson de Ogun (1999), Pai Francisco de Iansã (1999) e o alabê Alexandre Fontes
(2000-2001) em suas entrevistas.
22
   A presença de Exu nesse momento é variável. Nas casas de Pai Xavier de Obaluaê
(1999) e Pai Edson de Iansã (1999) se toca para Exu no momento da festa, na Casa de
31


Ossain, Oxossi ou Odé, Obaluaê ou Omulu ou Xapanã ou Xapadê,

Oxumaré ou Odã, Xangô, e Tempo, que fecha a seqüência de orixás

borós ou masculinos. Começa a invocação das iabas, orixás femininos:

Iansã ou Oiá, Oxum, Ewa, Obá, Iemanjá, Irocô, e por último Nanã ou

Burucu. Há ainda Logunedé que pode estar tanto depois de Oxossi, como

antes de Oxun.

      Ao final do xirê ocorre um pequeno intervalo, após o qual os

atabaques anunciam o reinício da festa. Neste momento entram o pai ou

mãe-de-santo carregando o adjá e alguns indivíduos23 em transe,

vestindo os paramentos de seu orixá. Após nova saudação ao ori axé,

toca-se dezenas de músicas relacionadas aos orixás presentes na roda.

Lembramos que durante toda a festa, os orixás incorporados dançam

guiados pelo adjá, carregado pelo pai ou mãe-de-santo, ou por alguma

outra autoridade do terreiro. Após esta segunda parte da festa resta então

homenagear Oxalá. Este momento é considerado o ponto alto da festa,

quando todos os iniciados incorporam seus orixás e entram na roda para

dançar. Depois do xirê é servido um jantar a todos os presentes.

      Sobre os rituais secretos não podemos discorrer muito. Sabemos

deles em linhas gerais, mas nada sabemos sobre seus detalhes, ou suas

músicas. Quando indagado sobre esses cultos secretos, Pai Xavier os

define como sendo “tudo o que é feito no roncó: as obrigações, os

banhos, as oferendas”. 24 Um dos rituais secretos mais mencionados nas

entrevistas é o da iniciação dos abiãns. Quando um abiãn sente fraqueza,


Mãe Ilza d´Oxum (2001) não se toca para Exu neste momento, pois este já foi
homenageado no padê antes da chegada dos convidados.
23
   A maioria iaôs da casa.
24
   Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
32


tontura, ou mesmo desmaia em uma das festas durante os toques, isso

normalmente indica a necessidade dele de ser iniciado, então o pai-de-

santo joga os búzios para descobrir qual o orixá ao qual quem o noviço

será dedicado. Após isso, a pessoa a ser iniciada se prepara, comprando

todo o material necessário para seu “enxoval” durante o período de

iniciação.25 Com esse material em mãos, a pessoa se recolhe ao roncó –

um quarto dentro da casa sem comunicação com o exterior – por cerca

de vinte e um dias. Sobre esse recolhimento Pai Francisco nos fala:

            A iniciação, o ensinamento e o fundamento são um
            só. Só que é um ritual muito fechado; as pessoas que
            se iniciam na seita têm que passar vinte e um dias de
            obrigação recolhidos no roncó, recebendo visitas
            apenas de pessoas da mesma seita que já têm
            obrigação para santo. Do recolhimento, as pessoas
            só saem três horas da manhã para tomar um banho
            de abô, para limpeza e purificação da matéria.
            Depois dos vinte e um dias, o noviço ou iaô sai do
            roncó para se apresentar em sala e se manifestar
            com o seu orixá.26

        Ainda se referindo ao tempo passado no roncó durante o processo

de iniciação, Pai Francisco diz que “na iniciação você (o abiãn) tem um

caderno de complementação, fitas e gravador no roncó”27 para aprender,

por exemplo, o idioma yorubá, utilizado nas cerimônias.

        No final desse período de vinte e um dias, o noviço passa por uma

cerimônia chamada de raspagem da cabeça. Após esse rito, o novo iaô

(filho-de-santo     recém-iniciado)       dança     em     uma      festa    preparada

especialmente para esse fim, a festa de saída de iaô, quando ele sai para

25
   Esse enxoval consiste de animais, cereais, raízes, ervas, roupas e acessórios do orixá.
26
   Pai Francisco de Iansã, 1999.
27
   Informação dada por Pai Francisco de Iansã (1999). O uso do gravador no roncó difere
completamente do padrão das casas de candomblé do Brasil. Também parece diferir do
padrão de Fortaleza, parecendo ser uma orientação exclusiva desse pai-de-santo.
Quando indagado se isso acontecia também no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, Alexandre Fontes
e outros entrevistados negaram o fato.
33


o barracão pintado de branco e vestido com a roupa de seu orixá para

então anunciar seu nome,28 e ser visto e reconhecido por toda a

comunidade como tendo um novo “grau” dentro do candomblé.

          Veja como Pai Edson nos explica o que acontece durante a

iniciação e depois como se forma um novo pai-de-santo:

              Tudo começa no Ifá. Faz-se o jogo para apurar qual
              é o orixá da pessoa. Depois a pessoa se prepara
              financeiramente para comprar todos os materiais. Aí
              ela passa vinte e um dias recolhido em um quarto
              sem comunicação com o exterior até o dia posterior
              ao da sua feitura. Depois ela passa por uma
              cerimônia muito fechada para a raspagem da
              cabeça, quando a pessoa sai do barracão vestida
              com a roupa do seu orixá e pintado de branco. Nessa
              festa tira-se seu novo nome, em yorubá, com um
              grito de guerra que se chama ilá. Depois de três
              meses há a queda do quelê, que é um colar que é
              amarrado no pescoço que simboliza uma aliança.
              Depois há um ato de sete dias que se chama
              umbigueira, depois o qual a pessoa está livre. Nesse
              meio tempo, a pessoa não come carne, não bebe,
              não anda nas ruas nas chamadas horas grandes:
              seis da manhã e de tarde, meio-dia e meia-noite, não
              fuma nem toma café. (...). É um aprendizado de sete
              anos, até a pessoa já poder abrir uma casa. Ela vai
              passar por uma obrigação de um ano que é a
              confirmação da feitura. Depois tem a obrigação de
              três, cinco e sete anos, quando ela recebe o oiê, que
              significa cuia ou deká. Aí ele recebe o jogo de búzios,
              navalha, tesoura, folhas, ervas e outras coisas.
              Mesmo assim, os seus três primeiros filhos-de-santo,
              quem faz é o seu pai-de-santo, com a sua ajuda.29

          A outra cerimônia secreta citada em entrevistas é o axexê. Este é

um ritual que promove o “desligamento” de um iniciado do mundo material

após sua morte. Todos os laços espirituais criados durante a vida deste

iniciado vão um a um sendo desfeitos até que não fique dentro do terreiro

nenhum sinal da presença daquela pessoa.

28
     Pois se trata de um renascimento.
29
     Pai Edson de Ogum, 1999.
34


             Para possibilitar essa passagem sem contratempos,
             ritos mortuários são celebrados nos terreiros
             tradicionais cujo ciclo completo é denominado axexê.
             (SANTOS, 1975:224)

       Quanto mais tempo de santo tinha a pessoa que morreu, mais

tempo demora o ritual.

       Com isso esperamos ter situado o Candomblé enquanto religião de

procedência africana que passou por ajustes no Brasil, falando

resumidamente de seus conceitos principais. Passamos adiante com um

histórico de sua fixação em território brasileiro.



2.2 – O Candomblé no Brasil

   Estima-se que entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco milhões

de africanos foram capturados e trazidos para o Brasil na condição de

escravos. Não é possível ter números exatos, pois a circular do Ministério

da Fazenda, número 29, de 13 de maio de 1891, mandou queimar todos

os arquivos referentes à escravidão no Brasil, destruindo assim fontes

valiosas para a remontagem histórica dos fatos referentes ao tráfico de

escravos (RODRIGUES,1932: 23). Embarcados em navios negreiros na

costa da África, os que viriam a ser escravos no Brasil viajavam até o

continente novo em condições insalubres, amontoados uns sobre os

outros, com água e comida racionadas apenas ao suficiente para mantê-

los vivos.

             A alimentação nos navios era apenas o bastante
             para manter os escravos respirando; para conservar
             os fôlegos vivos: um pouco de farinha e às vezes
             umas favas fervidas. (...). Um copo d’água por três
             dias chegava para impedir a morte de um negro;
             calculava-se sôbre essa base as provisões d’água
35


              para viagens às vezes de quatro meses. (FREYRE,
              1963:82)

      Os mais fortes, que conseguiam completar a travessia de barco,

chegavam ao Brasil por vários pontos, para a partir deles serem

comercializados. Não se tratava mais de um povo, mas de uma

multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas, etc. Uma síntese da

África negra!

      É possível falar em três grandes grupos culturais que chegaram ao

Brasil:

          Os sudaneses, representados principalmente pelos grupos Yorubá

          (nagô), Dahomey (jêjes) e Fanti-Ashanti (mina).

          Os africanos islamizados: Peuhl, Mandinga e Haussa (malê e alufá)

          As tribos Banto, compreendendo entre setecentas e duas mil

          línguas e dialetos aparentados.

          Estes negros foram trazidos e espalhados pelo Brasil escravista

seguindo uma política de tentar evitar que muitas pessoas provenientes

de uma mesma etnia ficassem juntas, criando assim uma torre de babel

lingüística e cultural dentro da população escrava, que nem falava o

português, nem tão pouco se entendia com seus companheiros.30 Além

das desavenças que as várias etnias tinham entre si, devido às lutas

tribais ocorridas ainda no continente africano, muitos eram os dialetos e

línguas presentes em uma senzala. Esta política, que evitou a

concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia em uma mesma

propriedade, tentou impedir a formação de núcleos de preservação da

cultura africana. Com a sua estrutura familiar e cultural destruída, os

30
     RIBEIRO, 1994:115.
36


negros foram diluindo-se no Brasil perdendo o seu status de africano e

pouco a pouco criando uma nova categoria dentro do país: o afro-

brasileiro.

       Com o passar dos anos o Brasil, até então agrário, começa a se

urbanizar, sendo então o negro escravo trazido em quantidade para os

centros urbanos. Nos últimos anos do império era grande o contingente

de negros escravos e negros libertos, assim com mulatos livres nas

grandes metrópoles brasileiras.

              O negro rural, transladado às favelas, tem de
              aprender os modos de vida da cidade, onde não
              pode plantar. Afortunadamente, encontram negros
              de antiga extração nelas instalados, que já haviam
              construído uma cultura própria, na qual se
              expressavam com alto grau de criatividade. Uma
              cultura feita de retalhos do que o africano guardara
              no peito nos longos anos de escravidão, como
              sentimentos      musicais,    ritmos,   sabores    e
              religiosidade. (RIBEIRO, 1994:222)


       A contribuição cultural das etnias negras na formação de nossa

identidade, segundo Ribeiro (1995:114), foi mais passiva que ativa, sendo

feita de forma sorrateira, mas continuada. Ela se manifesta no

vocabulário, na culinária, no vestuário, na religiosidade popular, mas sem

identificação de origem, ficando sob a alcunha de “africano”.

       Ao fim da escravidão, o Brasil era um país povoado de negros e de

mulatos que eram a síntese da mistura que começava a originar o povo

brasileiro. A mistura entre as diversas etnias negras se encarregou de

apagar com o tempo traços que podiam definir a origem de um grupo,

formando o tipo “negro”. Um tipo genérico que já não era africano, mas

completamente brasileiro, em um processo forçado de integração com a

sociedade que antes o escravizava, e agora o excluía. A expressão
37


cultural africana que logrou mais êxito em sobreviver foi a religiosa. Nina

Rodrigues ainda nos primeiros estudos sobre os negros no Brasil confirma

este fato:

             De todas as instituições africanas, entretidas na
             América pelos colonos negros ou transmitidos aos
             seus descendentes puros ou mestiços, foram as
             práticas religiosas do seu fetichismo as que melhor
             se conservaram no Brasil. (RODRIGUES, 1932: 214)


       Darcy Ribeiro se referindo também à preservação dos saberes

africanos no Brasil, apesar de se basear também na preservação através

das práticas religiosas, admite que ela ocorreu de uma forma mais ampla

do que a descrita por Rodrigues (1932):

             Só através de um esforço inteligente e continuado, o
             negro escravo iria reconstituindo suas virtualidades
             de ser cultural pelo convívio de africanos de diversas
             procedências com a gente da terra, (...) sobreviveria
             principalmente no plano ideológico, porque ele era
             mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças
             religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se
             apegava no esforço ingente por consolar-se do seu
             destino e para controlar as ameaças do mundo
             azaroso em que submergira. Junto com esses
             valores espirituais, os negros retém, no mais
             recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e
             musicais, como saberes e gostos culinários.
             (RIBEIRO, 1994:116-117)

       Apesar do esforço contínuo das políticas das classes dominantes

para apagar a história passada dos negros trazidos ao Brasil,31 muitos

negros e mestiços conseguiram restabelecer seus laços de origem

através de parentes retornados à África, principalmente para Nigéria.

Olinto (1980), apoiado em estudos anteriores de Verger (1987), descreve

que:

31
  Como já dissemos, a Circular do Ministério da Fazenda, número 29, de 13 de maio de
1891, manda queimar todos os arquivos da escravidão (RODRIGUES, 1932: 23).
38


           Em Lagos, já na primeira metade do século XIX,
           vários antigos escravos voltavam à terra natal e com
           eles traziam filhos e netos já nascidos no Brasil.
           (OLINTO, 1980:143).

       Por volta da metade do século XIX, fica então visível no Brasil a

grande reconstrução cultural do negro ex-africano, agora brasileiro: as

religiões afro-brasileiras.

       Reis (2000), baseado em trabalhos anteriores, e na história oral,

atribui ao estado da Bahia o mérito de ter sido o local onde o foi fundado o

primeiro terreiro de candomblé do Brasil, o Ilé Ìyá Nasó Oká. Isso,

segundo ele, se deu por volta de 1830, por iniciativa de um grupo de

mulheres originárias de Ketu, antigas escravas libertas, e pertencentes à

Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da Barroquinha, em

Salvador-BA (REIS, 2000: 64).

       A partir desse terreiro, e de alguns outros que foram sendo

descobertos ao público, o candomblé começa a aparecer em outros

pontos do Brasil, talvez por raízes próprias, talvez tendo sido levado da

Bahia por movimentos migratórios.



2.3 – O processo de africanização, uma tendência recente.

       Dentro tanto de casas mais tradicionais no cenário do candomblé

no Brasil, como de casas mais novas, tem acontecido nos últimos anos

um processo chamado de “africanização” (PRANDI, 1995/96; 1999) ou

“reafricanização” (SILVA, 1999).

       Prandi divide em três momentos a história das religiões afro-

brasileiras:
39


           Primeiro, da sincretização com o catolicismo,
           durante a formação das modalidades tradicionais
           conhecidas como candomblé, xangô, tambor de
           mina e batuque; segundo, do branqueamento, na
           formação da umbanda nos anos 1920 e 30; terceiro,
           da africanização, na transformação do candomblé
           em religião universal, isto é, aberta a todos, sem
           barreiras de cor ou origem racial, africanização que
           implica negação do sincretismo a partir dos anos
           1960. (PRANDI, 1999c:93)


       É preciso mencionar e entender antes de qualquer elaboração mais

detalhada que dentro do panorama nacional existem realidades muito

diferentes que cercam essa religião. Não temos como comparar, nem

querer que seja semelhante à situação do candomblé no estado da Bahia

– detentor mitificado de todas as tradições negras existentes no Brasil –

com a dos estados de São Paulo, Minas Gerais, ou Ceará. Estes últimos

estados somente nas últimas décadas do século XX construíram seus

universos de religiões afro-brasileiras, precisando então situá-los e

alimentar suas raízes não existentes, mesmo que simbolicamente. Sobre

essa falta de raízes vejamos o seguinte depoimento:

           O candomblé no Ceará é muito novo, e o cearense
           não tem a ginga, a malandragem do negro. Por aqui
           a gente sente falta da dança ritualística solta, que
           tem ginga. O cearense é mais duro. Também é difícil
           se       encontrar    pessoas      que       toquem
                              32
           satisfatoriamente.

       Nesse processo de (re)africanização, existe a negação do

sincretismo na tentativa de apagar as “impurezas” presentes no

candomblé, incorporadas nos anos de aculturação33 do negro no Brasil,

afastado de seu habitat original e sob o peso da escravidão. Além disso,
32
  Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
33
  Entendemos por aculturação o “processo de interação entre duas sociedades nas
quais a cultura da sociedade na posição subordinada é drasticamente modificada para
conformar-se com a cultura da sociedade dominante.” (HOEBEL & FROST,1999: 443)
40


começa uma busca pelo que é supostamente puro, pelo autêntico, pelo

verdadeiro, levando turmas de pais-de-santo às terras africanas, e

centenas de curiosos a fazerem cursos de língua yorubá, entre outros que

prometiam e prometem restabelecer fragmentos perdidos do candomblé

em relação à sua religião originária, ainda hoje praticada na Nigéria. São

cursos dados por africanos em meios acadêmicos com uma clientela nova

e muito diferente da que se imagina em um terreiro de candomblé. São

pessoas jovens, na maioria, alfabetizadas, acostumadas a aprender pela

linguagem escrita e que têm pressa de conhecer coisas novas, conhecer

tudo que está ao seu alcance nos livros; tudo o que lhes foi negado

algumas vez por uma pessoa mais velha do candomblé. O fato dos

professores serem – ou se dizerem – legítimos africanos é suficiente para

se ter um atestado de confiança. É como se o simples fato do “produto”

comercializado ali, no caso cursos de ritualística e idioma, vir da África,

independente de qualquer outra coisa, o impregna de uma aura de

autenticidade que não deve ser contestada.

          Essa relação existente no meio dos pais-de-santo em relação à

“autenticidade africana” pode ser exemplificada nas palavras de Pai

Edson:

              Hoje em dia existem duas linhas de candomblé: o
              candomblé baiano e o candomblé mais africano ou
              africanizado (não totalmente africano). O candomblé
              baiano que é mais brasileiro, já incorporou
              elementos que não existiam no candomblé como a
              pomba-gira, a Maria Padilha, os caboclos. As
              diferenças que existem dizem respeito à nação de
              onde ele veio, onde ele surgiu. O baiano mistificou
              muito o candomblé.34


34
     Pai Edson de Ogum, 1999.
41


         Um ponto que não deve passar despercebido nesse processo de

perda cultural que a (re)africanização se propõe a sanar, é um conceito

definido por Wande Abimbola35 como over-ritualization, ou seja, uma

ênfase ritual excessiva. Ele defende que a perda de sentido das palavras

e    o   conseqüente     esquecimento      da   literatura   oral   tenham     sido

compensados pela complicação e elaboração excessiva dos ritos.

Segundo Abimbola, uma ênfase crescente nos ritos acompanhada de

uma boa dose criatividade criou uma série de exageros. Um desses

exageros pode ser observado na questão do sacrifício: enquanto que na

Nigéria se costuma oferecer uma única ave a um determinado orixá, no

Brasil o número de animais sacrificados pode chegar a uma dezena. Ele

afirma que o brasileiro sustenta um rito fausto e dispendioso que um

africano não teria condições financeiras de realizar. Prandi (1999a) ainda

complementa falando de forma crítica sobre o candomblé praticado hoje

em São Paulo, que, após o período de reclusão para a iniciação de um

novo filho-de-santo, quando este for exposto ao público em sua festa de

saída-de-santo, “todos os olhos estarão voltados para o apuro estético e o

fausto da apresentação. Ninguém estará preocupado com virtudes e

sentimentos religiosos”36 (PRANDI, 1999a). O que Abimbola parece

esquecer em suas afirmações sobre os excessos relativos ao número de

animais sacrificados em um ritual feito no Brasil, talvez por não estar

inserido nesta realidade, é que estes animais sacrificados servirão para




35
  ABIMBOLA, 1977.
36
   Não nos compete aqui concordar ou discordar com essa afirmação de R. Prandi,
apesar de em algumas entrevistas, principalmente nas feitas com abiãns esse fato ter
sido tocado rapidamente, sem nenhuma ênfase.
42


alimentar além dos orixás, os muitos que freqüentam as festas públicas

nos terreiros, assim como os próprios moradores da casa.37

       Diante      desse   quadro   de   tradições   perdidas,   recuperadas,

inventadas e reinventadas, criticadas ou não; temos cada vez mais claro o

que significa para nós e para os adeptos do candomblé o termo

(re)africanizar.

           No processo de legitimação que foi se firmando em
           São Paulo desde o final dos anos 1970, a maioria
           dos sacerdotes que se deixam envolver nesse
           processo é forçada a peregrinar à África, dar
           obrigações e tomar cargos nos templos da Nigéria e
           do Benin, (...). Isso é africanizar. Mas africanizar não
           significa nem ser negro nem desejar sê-lo e muito
           menos viver como os africanos. Lembremo-nos da
           grande parcela de seguidores do candomblé
           formada por adeptos brancos. Africanizar significa
           também a intelectualização, o acesso a uma
           literatura sagrada contendo os poemas oraculares
           de Ifá, a reorganização do culto conforme modelos
           ou com elementos trazidos da África contemporânea
           (...); implica o aparecimento do sacerdote na
           sociedade metropolitana como alguém capaz de
           superar uma identidade com o baiano pobre,
           ignorante e preconceituosamente discriminado.
           (PRANDI, 1999c:106)


       Esse processo de busca de uma ancestralidade perdida (ou nunca

tida) de adeptos brancos e negros parece ter reflexo tanto em casas mais

antigas e já estabelecidas, como em casas mais novas, em estados onde

o candomblé é um fenômeno recente. Nestes últimos, sem uma grande

influência étnica negra, e onde principalmente não há um acúmulo de

gerações que possam transmitir conhecimentos seculares, transmitidos

de mais velho para mais novo, temos um meio propício para a

propagação da idéia. Prandi, em sua citação logo acima, fala desse

37
    Partindo desse comentário podemos então afirmar que houve no Brasil uma
reinterpretação do sacrifício e quais são as suas atribuições.
43


processo em São Paulo, mas no estado do Ceará, local de nosso estudo,

esse fenômeno vem acontecendo já há mais de cinco anos, e é possível

encontrar vestes africanas, rituais remodelados, tradições inventadas e

reinventadas como será visto no decorrer dos próximos capítulos.



2.4 – O Candomblé no Ceará

       O estado do Ceará, onde se centra o nosso estudo, até onde se

sabe, não foi um grande importador de escravos negros. Ainda em 1836,

antes da destruição dos arquivos referentes à escravidão no Brasil,

Affonso de A. Taunay contabilizou números que mostram a quantidade de

escravos que foram levados para vários estados do Brasil. Taunay diz que

“enquanto que em Minas Gerais o aporte de escravos foi de 168.543

indivíduos, seguindo-se Bahia com 147.263, o Ceará contou apenas com

a importação de 55.439 escravos”,38 que se espalharam inicialmente pelo

sertão do estado (então capitania) e depois pelas regiões serranas e

litorâneas. Estes escravos teriam vindo para trabalhar nas culturas de

café e banana das regiões serranas, na pecuária mais ao sul do estado

que depois se expandiu às regiões litorâneas, e em serviços domésticos

nas cidades maiores: Aquiraz, uma das primeiras vilas da capitania

Aracati, a antiga capital do estado; Crato, cidade que servia de articulação

entre os pontos do sertão central; Fortaleza, a nova capital; e Sobral, com

várias famílias aristocráticas, e próxima à fronteira com o Piauí.

           No regime pastoril do Ceará percebem-se facilmente
           duas fases. A primeira caracteriza-se pelo
           absenteísmo, isto é: homens ricos, moradores em
           outras capitanias, requerem e obtém sesmarias para
38
  Taunay, Affonso de A. Ainda Números do Tráfico, Jornal do Comércio, 30 de agosto
de 1836; in RAMOS,1937:283.
44


           onde mandaram vaqueiros com algumas sementes
           de gado (...). Na segunda fase os fazendeiros vão se
           estabelecer em suas terras, ou porque o avultado
           dos interesses exija a sua presença, ou por incitá-los
           ao espírito de liberdade que foi o propulsor do
           povoamento dos sertões do Norte, ao contrário dos
           do Sul, em que a ambição do lucro foi a grande
           alavanca. (ABREU, 1960: 261)

       Antes do fim do século XVIII a seca e outros fatores como luta

entre famílias fazem com que o Ceará entre em franca decadência: “a

seca foi uma grande rasoira, que em poucos meses desbaratava as

maiores fortunas” (ABREU:1960, 262). Isso forçou os senhores de

escravos a se desfazerem dos mesmos, promovendo um ciclo de

emigração de escravos principalmente para o estado de Pernambuco. A

emigração dos negros para outros estados devido à falência dos seus

donos e a mortandade por doenças foi tão acentuada após esse período,

que o estado do Ceará declara abolida a escravatura em seu território

ainda em 1883, sendo o primeiro estado a legalizar essa decisão. Em

censo realizado após a abolição, o contingente de escravos libertos no

Ceará era o menor do país com apenas cento e oito indivíduos.39 Isso

explica em parte porque encontramos tão poucos negros em todo o

estado do Ceará, sendo sua população formada na maior parte por

brancos e mestiços. Isso também pode ser uma possível explicação para

o não florescimento anterior de casas de candomblé em Fortaleza.

       Considerando que a fundação da primeira casa de Candomblé no

Brasil teria sido por volta de 1830 em Salvador-BA, difundindo-se

rapidamente para os estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e

Maranhão, verifica-se o quão recente em relação a estes estados é o
39
   Segundo População escrava e libertos arrolados, Ministério dos Negócios da
Agricultura, Commercio e Obras Públicas, Imprensa Official, 1888; in RAMOS, 1956:26.
45


estabelecimento do candomblé no estado do Ceará40 e como isso parece

influir na sua dinâmica. Segundo Pai Edson, se referindo ao candomblé

em Fortaleza-CE: “O candomblé aqui é muito defasado, muito atrasado. A

gente conta umas quatro ou cinco casas que sabem o que estão

fazendo”.41

       O candomblé cearense, assim como no resto do país, se divide em

nações. Segundo Pai Francisco de Iansã,42 no Ceará elas são três: Ketu,

Angola e Jêje. Ele ainda define as nações como sendo relativas ao lugar

de origem do negro ainda na África

       No Ceará, a primeira casa de candomblé, segundo a maior parte

dos entrevistados, foi o Ilê Ibá (Casa de Reza), fundada por Pai José

Xavier43 em 1967, situada hoje em Fortaleza, no bairro do Itaperi. Pai

Xavier afirma:

           No Ceará, o candomblé foi trazido da Bahia. Eu acho
           que posso ter o privilégio de dizer que esta aqui foi a
           primeira casa de candomblé a ser fundada. (...). Eu
           me iniciei no Rio de Janeiro, com pessoas da Bahia,
           que tinham casas em Salvador e no Rio. O
           candomblé no Ceará foi trazido por pessoas,
           inclusive eu, que fizeram obrigações, muito embora
           fora do estado da Bahia mas com pessoas da Bahia
           que tinham ido para outros estados.44

       Pai Xavier comenta em sua entrevista sobre Luís de Xangô, um

pai-de-santo feito em Recife, que fundou uma casa vários anos antes,45

mas que segundo Xavier, “não tocava candomblé, tocava mais pra Exu,


40
   Nas entrevistas averiguamos que o candomblé cearense conta com duas “datas de
nascimento”. Uma por volta dos anos 40, por intermédio de Luis de Xangô, e outra no fim
dos anos 60 por intermédio de Pai José Xavier, como veremos a seguir.
41
   Pai Edson de Ogum, 1999.
42
   Pai Francisco de Iansã, 1999.
43
   Falecido em fevereiro de 2000.
44
   Pai José Xavier de Obaluaê, 1999. As informações foram todas confirmadas por Pai
Edson de Iansã (1999).
45
   Ninguém soube informar a data com certeza.
46


para caboclo”. Relata ainda que Luís de Xangô não fazia filhos-de-santo,

por isso ele e outros entrevistados não reconhecem essa casa como

sendo a primeira. Esclarecendo mais sobre este fato, Alexandre Fontes46

nos conta que Luís de Xangô mantinha duas casas em dois pontos

distantes na periferia da cidade: uma toda pintada de preto e vermelho,

onde ele tocava só para o Caboclo Exu, e uma outra branca onde ele

fazia toques para orixás. Alexandre Fontes não nos soube precisar datas,

mas informou que quando Luís de Xangô morreu, as casas fecharam por

falta de filhos-de-santo para levar o trabalho adiante.47 Sendo assim,

temos dois pontos isolados de “criação do candomblé”em Fortaleza,

sendo que um não parece estar relacionado com o outro.

      De certa forma, confirmando as informações dadas por Pai Xavier

e Alexandre Fontes, é possível encontrar gravações de músicas de

xangôs em Fortaleza feitas na década de 40 por Luiz Heitor Correia de

Azevedo,48 tendo sido estas executadas por Raimundo Alves Feitosa,

integrante de um bloco de maracatu. Porém, em suas notas que

acompanham a gravação, Correia de Azevedo nota que a instrumentação

utilizada não correspondia à tradicional dos cultos yorubá no Brasil,

restringindo-se apenas a uma cuíca, instrumento não utilizado hoje em

nenhum dos terreiros visitados em Fortaleza. Isso pode ser explicado por

ter sido uma gravação feita fora de contexto, tendo o informante usado o

instrumento que estava mais próximo para ilustrar o toque que

acompanha a cantiga.


46
   Alabê do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó.
47
   Alexandre Fontes, 2000-2001.
48
   “The Library of Congress: Endangered Music Project” Música do Ceará e Minas
Gerais.
47


       O candomblé no Ceará permaneceu por bastante tempo como uma

religião marginal, tendo sido notada pelos intelectuais somente há poucas

décadas. Isto não é verdadeiro em relação à umbanda, religião já bem

estabelecida à várias décadas, conhecida por todos, documentada em

jornais e periódicos, e com inserção em todos os estratos sociais da

cidade.

       Para comprovar esse desconhecimento para com o candomblé, e a

superioridade numérica das casas de umbanda basta uma rápida

consulta ao Anuário do Ceará.49 Em nenhuma de suas edições consta

uma menção sobre o candomblé em Fortaleza, enquanto que aparece em

todos os volumes que apresentam o capítulo “Religiões” um item

chamado “Umbanda”. No ano de 1983, os terreiros de umbanda no Ceará

chegaram ao número de 4000 centros, sendo cerca 700 só em

Fortaleza.50 Até aqui temos uma completa falta de informações concretas

sobre a história dos terreiros de candomblé em Fortaleza. Inexiste uma

associação que os represente, e segundo os pais e mães-de-santo

contatados, existe pouco intercâmbio de informações entre eles, sendo

poucos considerados sérios ou com fundamento. Para fazer esse trabalho

de levantamento histórico mais apurado sobre cada casa seria necessário

entrevistar todos os pais e mães-de-santo de todas as casas da cidade, e

cruzar as suas informações, que muitas vezes são confusas ou

imprecisas. Esse levantamento histórico mais detalhado não faz parte

desta dissertação, tendo sido apresentado apenas um apanhado geral



49
   SAMPAIO (1971, 1972, 1973, 1974, 1975, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982,
1983).
50
   Dados fornecidos pela União Espírita Cearense de Umbanda (SAMPAIO, 1983).
48


com o intuito de situar o leitor sobre o estabelecimento dessa religião afro-

brasileira em Fortaleza-CE.

          Hoje é muito difícil dizer quantas casas de candomblé existem ao

todo na cidade de Fortaleza. Sabemos por depoimentos do abiãn Luís

Thomas Jr., freqüentador da casa de Mãe Ilza d’Oxum, o Ilê Osun Oyeye

Ni Mó, que dentro da casa que ele freqüenta, “apenas umas nove outras

casas são consideradas sérias”.51 Quando Thomas fala isso ele se refere

apenas às casas de nação ketu. Não temos nenhuma estimativa, e nem

pretendemos isso nesse trabalho, da quantidade de casas existentes de

outras nações. Sabemos apenas que existem várias casas da nação

angola, provavelmente a segunda maior nação de candomblé em

Fortaleza, estando a ketu em maior número e aparentemente mais

organizada.

          Dentro da nação ketu, a casa mais antiga em funcionamento hoje é

a casa de Mãe Ilza d’Oxum, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, que completa 25

anos de atividade no final do ano de 2001. O Ilê Ibá apesar de ser a casa

mais antiga de Fortaleza, tem enfrentado problemas de funcionamento

desde o falecimento de Pai José Xavier.




51
     Informação confirmada por Alexandre Fontes (2000-2001).
49


3- Apresentação do local de estudo, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó.

       Para esse estudo, foi feito um estudo de caso centrado em um

terreiro da cidade de Fortaleza, e foram recolhidas informações sobre

outros terreiros que existem, existiram, e que estão de alguma forma

ligados ao local estudado. Nesse capítulo daremos informações mais

específicas sobre o que é o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, como seu histórico e

sua estrutura física.52 Falaremos ainda de uma maneira sucinta sobre

quem o faz e quem o freqüenta.



3.1 – Histórico do Ilê Osun Oyeye Ni Mó

       O Ilê Osun Oyeye Ni Mó foi fundado em 1976, na cidade de

Fortaleza-CE pela iyalorixá Ilza d’Oxum. Atualmente ele está situado no

bairro Canindezinho, na periferia da cidade de Fortaleza, já próximo à

divisa com a cidade de Maranguape. Segundo seus integrantes o terreiro

tem um bom relacionamento com seus vizinhos, participando da vida das

pessoas que o circundam criando laços de afetividade e respeito.

Vejamos isso em um trecho de entrevista feita com um de seus

integrantes:

            Quando a gente mudou pra cá não existia
            vizinhança, era só mato. A única casa que existia era
            essa aqui da frente, a da Dona Iracema. E ela
            acabou se beneficiando com a gente aqui. Quando
            havia matança, tinham algumas carnes que a gente
            não podia comer por causa do preceito, aí minha
            mãe ofertava a ela, até mesmo pra não jogar tudo no
            lixo. Saiu do ritual ela é uma carne como outra
            qualquer. Então com a vizinhança nunca houve
            problema, mas no começo houve com a polícia
            exatamente por esse aspecto da magia negra que o

52
   Fotos mostrando o interior do terreiro, bem como alguns detalhes de sua estrutura
física, e algumas das festas que ocorreram durante sua história encontram-se anexadas
ao final desta dissertação.
50


            povo achava que a gente fazia. Só que a gente tinha
            uma vantagem que era a do C. ser soldado do
            exército. Então todas as vezes que eles chegavam
            aqui, já com a arma na mão o C. mandava baixar as
            armas e explicava tudo direitinho, até o ponto deles
            se tornarem amigos da gente, de vir, assistir as
            festas, ficar pro jantar. Tanto que hoje em dia a
            gente conhece diversos policiais por aqui. Quando a
            gente vai fazer trabalhos fora da roça eles param no
            carro olham, vêem que é minha mãe e não
            incomodam. Acaba que como a gente chegou
            primeiro, os vizinhos nunca deram problema.53


       Mais adiante, no decorrer da entrevista podemos notar que nem

sempre é assim que acontece. Os conflitos com uma vizinhança formada

por muitos evangélicos, apesar de não acontecerem com freqüência criam

um clima de desconforto dentro do terreiro.

            Aqui têm muitos evangélicos. Mas tem uns
            evangélicos que tem muito respeito e entram aqui
            sem problema. (...). Agora tem os mais radicais que
            atacam mesmo. Ficam lá na porta gritando: “saiam
            desse inferno!...” coisas de evangélicos. Mas como
            eles tem medo do que não conhecem, eles nunca
            entraram e nunca criaram maiores problemas, até
            porque minha mãe tem muito prestígio no bairro, ela
            já ajudou muita gente. Inclusive alguns desses
            crentes que hoje em dia atacam a ela.54


       Mãe Ilza d’Oxum, fundadora do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, segundo ela

mesma, foi iniciada no candomblé em 1964 pela iyalorixá Amália de

Oxumaré, no estado da Bahia, mudando-se depois para Fortaleza-CE.55 A

princípio os cultos dentro de seu ilê eram realizados segundo as tradições

do candomblé baiano, contando ainda com visitas anuais de comitivas

53
   Alexandre Fontes, 2000-2001.
54
   Alexandre Fontes, 2000-2001.
55
   Na verdade, Ilza d’Oxum volta para Fortaleza. Segundo ela mesma, ela já morava em
Fortaleza antes, onde era casada com um deputado. Por conta de uma doença grave
(leucemia) entrou em contato com o candomblé, tornou-se adepta, iniciou-se, e curou-se.
Após seu processo de cura, largou tudo o que tinha e mudou-se para Salvador onde foi
iniciada, voltando depois para Fortaleza para abrir sua casa.(Mãe Ilza d´Oxum, 2001)
51


vindas de Salvador (do terreiro de um irmão-de-santo seu) para auxiliar

nas festas e obrigações de seu terreiro.

            Quando aqui começou, quando minha mãe era do
            axé baiano, aqui predominavam os negros. Um pai
            de santo baiano que era irmão de santo dela sempre
            vinha pra cá trazendo muita gente, todo mundo
            negro.56

       Esse panorama mudou a partir de 1991, quando Ilza d’Oxum passa

a ser filha-de-santo do babalorixá Ogum Torodê57 que, após ter feito por

muitos anos pesquisas na África, tem promovido em vários terreiros

espalhados pelo Brasil processos de reafricanização.

            O pai de santo dela é carioca. A gente teve a
            oportunidade de conhecê-lo, e a gente se deu muito
            bem e ele era como um pesquisador. Ele viajou para
            a África, para a Áustria, e chegando da África ele
            trouxe tudo aquilo da maneira mais correta, porque
            quando você passa uma cantiga, uma reza, uma
            oração, qualquer coisa de boca em boca, aquilo ali
            sempre vai mudando.58

       Ao fazermos as entrevistas, ficou muito claro para nós que as

pessoas do terreiro sabem separar muito bem, dentro de seus discursos,

a existência desses dois momentos distintos na história do Ilê Osun

Oyeye Ni Mó. É muito comum ouvir a expressão “no tempo dos baianos”,

em referência ao funcionamento do terreiro antes de 1991. As referências

estão espalhadas por todo lugar, seja nas falas ou em um álbum de

retratos guardados por Alexandre Valentim com fotos “do tempo dos

baianos”, com a seguinte inscrição na capa: velhos tempos. Atualmente o

Ilê Osun Oyeye Ni Mó é um terreiro respeitado pela comunidade ketu de

56
   Alexandre Fontes, 2000-2001.
57
   Todas as informações relativas a Ogum Torodê nos foram dadas por Alexandre
Fontes. Sabemos que ele realmente esteve presente na história desse terreiro, pois
tivemos acesso a fotos e fitas de vídeo onde ele aparece dando “aulas” aos integrantes
do terreiro. Por uma série de motivos não conseguimos entrevistá-lo.
58
   Alexandre Fontes, 2000-2001.
52


Fortaleza, sendo suas festas bem freqüentadas e motivo de alegria para

todos. Apesar disso tudo esse ilê se vê hoje ameaçado em sua existência.

A      Companhia        Hidroelétrica     do    São     Francisco     (CHESF)       está

desapropriando áreas para construção de novas linhas condutoras, e uma

dessas linhas passará nos fundos do terreno onde se encontra o terreiro,

praticamente sobre os assentamentos dos orixás. Com isso o ilê de Mãe

Ilza d’Oxum terá que mudar de endereço, podendo inclusive mudar de

cidade. De qualquer forma a tradição do candomblé em Fortaleza

continua se renovando, uma vez que recentemente, no dia primeiro de

dezembro de 2001, aconteceu uma festa de entrega de deká no Ilê Osun

Oyeye Ni Mó a um filho-de-santo do falecido Pai José Xavier continuando

uma tradição que teima em sobreviver.



3.2 – Estrutura física do Ilê Osun Oyeye Ni Mó

          Para descrever a organização do terreiro estudado dentro do

espaço físico contamos com um desenho esquemático feito a partir de

nossa observação, e das explicações de Alexandre Fontes, alabê da

casa.59

          O espaço desse terreiro está em constante mudança e talvez por

sua conotação marginal, tem já em sua criação uma transgressão à

ordem que delimita o uso dos espaços urbanos da cidade.

               Quando a mamãe chegou aqui, passava uma rua no
               meio do terreno. Aqui no meu quarto era pra ser uma
               rua. Mas aí a gente fechou a rua e juntou os dois
               terrenos. Quando os filhos-de-santo construíram
               essa roça fizeram empréstimos e conseguiram
               levantar tudo. Mas isso aqui já mudou de cara várias
               vezes... Esse barracão já deve ter mudado de feição
59
     Ver figura 2. Os números apontados no texto que se segue estão relacionados a ela.
53


           umas sete vezes. A gente acredita que no
           candomblé a gente não pode deixar as coisas
           estáveis... Botar as coisas em movimento quebra as
           energias negativas.60


       Pelo lado de fora, a não ser pela palha pendurada no alto do portão

e de grãos de milho que às vezes tomam conta da calçada, é

praticamente impossível dizer que por trás daqueles muros existe um

terreiro de candomblé. Abrindo-se o pesado portão de madeira, já na

entrada o terreiro conta com dois assentamentos61 (1), um de cada lado

do portão, protegidos por compartimentos cilíndricos sem portas (2). São

os dois exus que tomam conta da porta da casa. Eles têm como função

proteger o terreiro de energias negativas, feitiços, pessoas mal-

intencionadas, ou qualquer tipo de coisa que seja prejudicial ao ilê.

       Após os assentamentos dos exus, temos à nossa frente, à

esquerda, o barracão onde são realizadas as festas públicas e os rituais

(3). O barracão tem as paredes abertas, menos uma onde existe um

painel pintado com motivos de Oxum. O piso é revestido de cerâmica

clara, as colunas de sustentação são pintadas com cal branca, com

bancos correndo pelas suas laterais. No centro, destacando-se no piso

vemos uma cerâmica diferente que demarca o local onde estão

enterrados os fundamentos do terreiro. Esse local chama-se orí axé (4), e

é onde a energia do terreiro encontra-se concentrada. Na parede onde

está pintado o painel, que dá de frente para o portão da casa, há uma

porta (5), por onde entram os filhos-de-santo da casa por ocasião das



60
  Alexandre Fontes, 2000-2001.
61
  Assentamentos são espécies de altar onde se guardam símbolos ligados aos orixás,
onde está concentrada a energia desses deuses, e onde se fazem as oferendas a eles.
54


festas públicas. Do lado esquerdo da porta está o pepelê (6), local onde

ficam os três atabaques e os outros instrumentos durante as festas.

       Ao lado do barracão, existe um corredor, que na verdade é a

varanda da casa, e que leva ao interior do terreiro. Ao passar pela lateral

do barracão encontramos um pequeno quarto reservado ao jogo de

búzios (7). Do lado direito, já separado da construção principal, temos

uma pequena construção em forma de castelo para homenagear Oxum, o

orixá da mãe-de-santo (8). Nessa construção está o assentamento da

Oxum da iyalorixá. Seguindo o corredor, pelo lado da construção principal,

ao lado do cômodo do jogo de búzios, temos a porta que leva ao interior

da residência da mãe-de-santo62 (9). Pelo lado de dentro da casa, ao lado

de quarto dos búzios temos o roncó (10), onde ficam reclusos os iaôs no

período de iniciação, ou antes de alguma obrigação. A entrada do roncó

se faz pelo lado de dentro da casa, e esse quarto, a não ser pela porta,

não tem nenhuma outra comunicação com o exterior. Além desse

complexo barração-roncó-residência, existem várias outras pequenas

construções espalhadas pela área do terreiro (11). São assentamentos ao

ar livre ou casas-de-santo (ilê-orixá) onde está assentado cada um dos

orixás, como os de Ogum (12) e Ossain (13). Temos ainda um barracão

com teto de palha específico para as celebrações de Obaluaê (14), e um

assentamento de Orunmilá (15) num ponto mais afastado do terreiro.

Pudemos ainda observar que espalhados pelo terreno, estão árvores

canteiros e hortas. Estes abastecem a casa com uma enorme quantidade

de folhas, raízes e frutos que vão ser utilizados nos rituais.

62
  Dentro de um terreiro vivem geralmente a mãe-de-santo e alguns filhos-de-santo que a
elas prestam serviços.
55




          Figura 2: Desenho esquemático do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó.

      Dentro deste ilê, assim como em qualquer casa de candomblé,

vivem muitas pessoas além de mãe-de-santo. Hoje são onze pessoas que

moram dentro do terreiro, seja na construção principal onde fica a

residência de Mãe Ilza d’Oxum, seja em construções anexas um pouco

afastadas da casa principal. Esse número de pessoas, devido à própria

dinâmica desta religião está sempre variando. Segundo Alexandre Fontes

esse número já chegou em algumas épocas a trinta pessoas.



3.3 – Funcionamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
56


      O Ilê Osun Oyeye Ni Mó, como todo terreiro de candomblé, tem

particularidades na sua forma de encaminhar os rituais e de organizar

suas festas. Isso não desqualifica de forma alguma o que é feito dentro

dele, pois existem, e provavelmente sempre existirão adaptações, como

vamos ver mais adiante.     Para entender um pouco mais sobre esse

terreiro de candomblé vamos ver rapidamente quem são os participantes

dessa história. Quem integra e quem freqüenta o Ilê Osun Oyeye Ni Mó.



3.3.1 – Perfil dos integrantes do Ilê Osun Oyeye Ni Mó

      O integrante do terreiro provém de origens sociais e étnicas as

mais diversas, predominando entre eles os de hierarquia mais baixa,

gente de baixa renda. Dentro deste ilê existem as mais variadas histórias

que contam de pessoas “bem nascidas” da sociedade cearense, que

largaram tudo em suas vidas para se dedicarem ao candomblé. Esse

seria o caso da própria mãe-de-santo, Ilza Vieira, e da ekédi mais velha

da casa, Odete Fontes. O terreiro encontra-se muito bem organizado,

sempre aberto, sempre com muitas pessoas dentro dele desempenhando

as mais diversas tarefas. Por várias vezes inclusive foi difícil manter um

diálogo fluente com os membros do terreiro, não devido a algum tipo de

proibição por parte deles, mas devido às suas ocupações freqüentes. O

tempo dentro de um terreiro passa de forma diferente, mas ele não pára

nunca. Devido a tudo isso, as pessoas que mais contribuíram em

depoimentos para essa pesquisa foram Alexandre Fontes, ogãn e alabê

da casa, e Thomas Junior, abiãn da casa e nosso amigo pessoal.
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Transmissão musical em casa de candomblé no Ceará

  • 1. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA José Alberto de Almeida Junior UM CANDOMBLÉ EM FORTALEZA-CE : O ILÊ OSUN OYEYE NI MÓ Dissertação submetida ao Programa de Mestrado Interinstitucional UECE/UFBA em cumprimento parcial das exigências para obtenção do grau de mestre Área de Concentração: Etnomusicologia Orientadora: Profa. Dra. Angela Elizabeth Lühning FORTALEZA - CEARÁ Fevereiro / 2002
  • 2. 2
  • 4. 4 Meus sinceros agradecimentos a: André Vidal Sampaio, amigo e companheiro de todas as horas, pelo apoio, revisão de parte do texto e tradução do resumo. Angela Elizabeth Lühning, minha orientadora, por suas críticas e sugestões que foram de fundamental importância. Erwin Schrader, companheiro de mestrado, que muito me apoiou em todos os momentos. Elvis Matos, companheiro de profissão, pela revisão de parte do texto. Gerardo Viana Junior e Simone Sousa, pelo empréstimo de seus materiais de campo. Alexandre Fontes, alabê do Ilê Osun Oyeye Ni Mó pelas valiosas informações. Luís Thomas Cavalcante Junior, amigo e abiãn do Ilê Osun Oyeye Ni Mó pelas valiosas informações. Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP), pelo financiamento da pesquisa. Fundação Pierre Verger, e as pessoas que a fazem, pelo carinho e pelo acesso a seu acervo bibliográfico. Elba Braga Ramalho, por todo o seu apoio sempre me incentivando a seguir em frente. Carmem Saenz Coopat, minha amiga, por seu carinho. Hugo Lopes Neto, meu irmão, por sua ajuda no tratamento do material gráfico. Alencar Júnior, pela enorme ajuda no tratamento do material sonoro recolhido em campo. Alexandre Havt, Eliezer Albuquerque, Francisco Costa Holanda, Marcio Mattos, Eunice Moura, Angélica Ellery, Lu Basile, Babi, Elidia, Luíza (F.P. Verger), Dona Margarida (F.P. Verger), Anastácia Tabatinga. A todos os que fazem o Ilê Osun Oyeye Ni Mó. Aos orixás.
  • 5. 5 Sumário: 1 – Introdução 13 2 – Histórico e definições 22 2.1 – O Candomblé como sistema religioso – mitologia e 22 definições 2.2 – O Candomblé no Brasil 34 2.3 – O processo de africanização, uma tendência recente 38 2.4 – O Candomblé no Ceará 43 3 – Apresentação do local de estudo, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó 49 3.1 – Histórico do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 49 3.2 – Estrutura física do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 52 3.3 – Funcionamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 55 3.3.1 – Perfil dos integrantes do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 56 3.3.2 – Perfil dos freqüentadores do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 59 4- A transmissão do conhecimento musical 62 4.1 – A transmissão oral como modelo nas religiões afro- 62 brasileiras 4.2 – A transmissão musical dentro do Ilê Osun Oyeye Ni Mó 67 4.2.1 – Quem ensina e quem aprende? 67 4.2.2 – Formas alternativas de aprendizagem 71 5- A música como uma multiplicidade de elementos essenciais à 76 festa 5.1 – A festa do xirê: Descrição de um modelo de festa 77 5.2 – A música na festa 79 5.2.1 – Descrição do conjunto instrumental 80
  • 6. 6 5.3 – Descrição de cantigas e toques selecionados 85 6- Processos de adaptação no candomblé praticado no Ilê Osun Oyeye Ni Mó 95 6.1 – A recriação de uma tradição não vivida 95 6.1.1 – Bahia versus África, a troca de paradigmas 96 6.2 – Uma religião de minorias? 98 6.3 – Reflexos dessa adaptação no repertório 101 7 – Considerações finais 103 8 – Anexos 109 8.1 – Transcrições das canções 109 8.2 – Fotografias 114 9 – Referências 127 9.1 – Bibliografia 127 9.2 – Fontes orais (entrevistas) 133
  • 7. 7 Lista de figuras: Figura 1: Desenho esquemático do “barracão padrão” 28 Figura 2: Desenho esquemático do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó 55 Figura 3: Transcrição do adarrum 87 Figura 4: Transcrição do aguere 88 Figura 5: Transcrição do sató 88 Figura 6: Transcrição do alujá 89 Figura 7: Transcrição do ago 89 Figura 8: Transcrição do opanijé 90 Figura 9: Transcrição do ijexá 90 Figura 10: Transcrição de cantiga de Exu 109 Figura 11: Transcrição de cantiga de Ogum 109 Figura 12: Transcrição de cantiga de Oxossi 110 Figura 13: Transcrição de cantiga de Ossain 110 Figura 14: Transcrição de cantiga de Logunedé 110 Figura 15: Transcrição de cantiga de Obaluaê 111 Figura 16: Transcrição de cantiga de Oxumaré 111 Figura 17: Transcrição de cantiga de Xangô 112 Figura 18: Transcrição de cantiga de Iansã 112 Figura 19: Transcrição de cantiga de Oxum 112 Figura 20: Transcrição de cantiga de Iemanjá 113 Figura 21: Transcrição de cantiga de Nanã 113 Lista de fotografias: Foto 1: Entrada do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001) 114
  • 8. 8 Foto 2: Vizinhança do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001) 114 Foto 3: 1ª saída de santo feita na casa (1977) 115 Foto 4: Festa de confirmação de Ogãn e Ekédi (1988) 115 Foto 5: Saída de Obaluaê (1988) 116 Foto 6: Oxum de Mãe Ilza, ao centro e Ogum Torodê á direita 116 (1992) Foto 7: Festa no barracão de trás (1995) 117 Foto 8: Odete, Mãe Ilza, Alexandre Fontes (esquerda para direita) na festa de 21 anos de santo de Ilza e confirmação de Alexandre como ogãn (1997) 117 Foto 9: Festa de saída de Oxalufã (1997) 118 Foto 10: Três Yemanjás e uma Oxum em uma festa de Oxossi 118 (2000) Foto 11: Oxum em iaô masculino em uma festa de Oxossi (2000) 119 Foto 12: Um Oxossi em sua festa (2000) 120 Foto 13: Ori axé do Ilê Osun Oyeye Ni Mó (2001) 121 Foto 14: Detalhe do teto do barracão (2001) 121 Foto 15: Detalhe do painel pintado na parede do barracão simbolizando Oxum (2001) 122 Foto 16: Pepelê com os três atabaques (2001) 122 Foto 17: Detalhe dos atabaques (2001) 123 Foto 18: Detalhe das cordas e madeiras do sistema de afinação de um dos atabaques (2001) 123 Foto 19: Assentamento da Oxum de Mãe Ilza (2001) 124 Foto 20: Assentamento de Ogum (2001) 124
  • 9. 9 Foto 21: Assentamento de Ossain (2001) 125 Foto 22: Assentamento de Tempo (2001) 125 Foto 23: Casas de santo nos fundos do terreno (2001) 126 Foto 24: Porta de uma casa de santo com restos do sacrifício (2001) 126 Roteiro do cd de exemplos: Faixas: 01 Cantiga de Exu - Altair 02 Cantiga de Exu - Alexandre 03 Cantiga de Ogun - Altair 04 Cantiga de Ogum - Alexandre 05 Cantiga de Oxossi - Altair 06 Cantiga de Oxossi - Alexandre 07 Cantiga de Ossain - Altair 08 Cantiga de Ossain - Alexandre 09 Cantiga de Logunedé - Altair 10 Cantiga de Logunedé - Alexandre 11 Cantiga de Obaluaê - Altair 12 Cantiga de Obaluaê - Alexandre 13 Cantiga de Oxumaré - Altair 14 Cantiga de Oxumaré - Alexandre 15 Cantiga de Xangô - Altair 16 Cantiga de Xangô - Alexandre 17 Cantiga de Iansã - Altair
  • 10. 10 18 Cantiga de Iansã - Alexandre 19 Cantiga de Oxum - Altair 20 Cantiga de Oxum - Alexandre 21 Cantiga de Iemanjá - Altair 22 Cantiga de Iemanjá - Alexandre 23 Cantiga de Nanã - Altair 24 Cantiga de Nanã - Alexandre
  • 11. 11 Resumo O presente trabalho é o resultado de um estudo de caso sobre o Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, uma casa de candomblé de nação ketu na cidade de Fortaleza-CE, que tem passado desde 1991 por um processo de africanização (PRANDI, 1999c). Procuramos com esse trabalho responder primeiro a questões básicas de fixação e sobrevivência da religião candomblé em nossa cidade para depois discutir acerca das modificações e adaptações que esta sofreu devido à sua clientela muito diversificada em extratos sociais, escolaridade e raça, principalmente no que diz respeito à questão musical. Averiguamos inicialmente que esse processo de africanização que vem ocorrendo nos cultos de candomblé no Brasil se propõe a restaurar ou recriar tradições julgadas perdidas na transposição do complexo religioso africano para o nosso país durante o período da escravatura negra, e essa africanização em Fortaleza vem talvez como uma forma de estruturar esta religião afro-brasileira inserida em um ambiente branco e mestiço. Através de uma pesquisa de campo baseada na observação participativa, tivemos a preocupação de registrar tudo à nossa volta da melhor forma possível, através de gravações em áudio e vídeo, ou máquina fotográfica, para depois proceder às análises do discurso dos entrevistados, assim como à seleção de material musical para transcrições e posterior análise. Nos deparamos com uma realidade até então inédita para nós: a descaracterização do modo de transmissão oral/aural descrito para todas as religiões afro-brasileiras. Ensaios e recorrência a compact discs e fitas cassete fazem parte da realidade cotidiana do terreiro estudado, introduzindo realidades sonoras que não existiam antes na comunidade, assim como modificando drasticamente o esquema de transmissão e aquisição de conhecimento musical. Concluímos então com o presente trabalho que o processo de busca de uma autenticidade perdida tem afetado o repertório musical e principalmente as suas formas de transmissão.
  • 12. 12 Abstract The present work is the result of a case study on the Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, a candomblé house of Ketu tradition in the city of Fortaleza, Brazil, which has been since 1991 going through a process of africanization (PRANDI, 1999c). We tried, on this work, to answer primarily to fundamental questions about the implantation and survival of the Candomblé religion in our city, and then go on to discuss the changes and adaptations to which it was submitted because of the great diversity of social backgrounds, education and ethnical origins of its members, especially in the aspects related to music. We initially attested that this process of africanization that has been occurring in the cult of Candomblé in Brazil aims to restore or recreate traditions which were judged lost on the transposition of the African religious complex to our country during the period of slavery, and that this africanization in Fortaleza possibly appears as a way of structuring this afro-Brazilian religion inserted in a predominantly white and half-breed environment. Through a field research based on participative observation, we have been careful in registering everything around us the best way possible, using audio and video recordings or photography, and then proceeding to the analysis of the interviews, as well as the selection of the musical sources for transcription and posterior analysis. We were faced with a situation until then unknown to us: the partial abandonment of the oral/aural method of transmission described as common to all the afro-Brazilian religions. Rehearsals and the use of CD and tape are a part of the daily routine of the house under study, introducing sounds that did not exist in the community before, as well as changing radically the method of transmission and acquirement of musical knowledge. We then infer, with the present work, that this search of a lost authenticity has affected both the musical repertoire and especially its forms of transmission.
  • 13. 13 1- Introdução Este trabalho é o resultado de alguns anos de pesquisa sobre o candomblé em Fortaleza, no estado do Ceará. Pesquisa em vários níveis: desde a pesquisa curiosa e desinteressada de um leigo sobre o assunto, até a pesquisa mais sistemática e devidamente orientada, ajustada aos padrões de uma pesquisa científica. Ainda na época de nossa graduação em música na Universidade Estadual do Ceará (UECE), fomos inicialmente apresentados às religiões afro-brasileiras. Como trabalho final de uma disciplina de metodologia do trabalho científico, fizemos em grupo um estudo sobre um terreiro de umbanda na periferia da cidade de Fortaleza, o Centro Espírita de Umbanda Casa da Caridade sob a direção de Pai Francisco. A partir deste contato inicial começamos a ler um pouco mais sobre o assunto e a encorajar alguns amigos a trabalharem na mesma área. Continuamos ainda assim como simples curiosos por bastante tempo até ter em nosso círculo de amizades algumas “pessoas do candomblé”. Entre elas o abiãn Luís Thomas Cavalcante Junior, que foi de extrema importância para a realização desse trabalho. Foi o abiãn Thomas que nos apresentou de perto o candomblé (a umbanda nós já havíamos conhecido em trabalho anterior), e principalmente o candomblé feito no terreiro de sua mãe-de- santo: a Mãe Ilza d’Oxum, yalorixá do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó, uma casa de nação ketu na cidade de Fortaleza-CE. Esse terreiro tornou-se então nosso objeto para um estudo mais aprofundado. Alguns pontos rapidamente nos chamaram atenção e nos intrigaram:
  • 14. 14 Como poderia existir candomblé em Fortaleza-CE se esta é uma religião que no senso comum está ligada à etnia negra,1 e o mesmo senso comum diz que praticamente não existem negros em Fortaleza-CE? Porque uma religião existente desde o fim da década de 60 em Fortaleza-CE permaneceu praticamente no anonimato? Quais as tradições que a sustentam? De onde saem seus seguidores? Que influências essas “diferenças” notadas tem sobre a transmissão do conhecimento musical? Tudo isso foram indagações que deram asas à nossa imaginação e à nossa curiosidade. Tentamos respondê-las a contento para nós mesmos e dessa busca por respostas surgiu esse trabalho. Centramos então, como já dissemos, nossa pesquisa no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, não só pela admiração demonstrada por adeptos de outros terreiros de Fortaleza por este Ilê, mas também pela sua estrutura física e recursos humanos disponíveis para a execução dos rituais dentro desse terreiro, que não encontramos em nenhum outro a que tivemos acesso. Houve ainda uma facilidade de acesso proporcionada pela figura de Thomas Junior, e o importante fato do Ilê Osun Oyeye Ni Mó ser atualmente o terreiro de candomblé mais antigo em funcionamento regular na cidade de Fortaleza-CE. 2 1 Discutiremos mais tarde o conceito de etnia e como ele se apresenta dentro do candomblé. 2 Nossa primeira escolha para realização da pesquisa de campo para esse trabalho, por diversas razões deveria ter sido o Ilê Ibá, primeira casa a ser fundada na cidade de Fortaleza, mas infelizmente Pai José Xavier, pai-de-santo fundador da casa, morreu no
  • 15. 15 Um outro ponto que nos levou a escolher esse terreiro é a existência de um processo de africanização (PRANDI, 1999c) que vem se desenvolvendo dentro dele nos últimos anos. Esse processo de africanização3 dos cultos de candomblé no Brasil, segundo Prandi, tem o intento de restaurar ou recriar tradições perdidas na transposição do complexo religioso africano para o Brasil durante o período da escravatura negra. Começava o que chamei de processo de africanização do candomblé, em que o retorno deliberado à tradição africana significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da diáspora; voltar à África não para ser africano nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá. (PRANDI, 1999c:105) Essa africanização em Fortaleza vem talvez como uma forma de estruturar e dotar de uma legitimidade, que a ausência de uma etnia negra não promoveu, esta religião afro-brasileira inserida em um ambiente branco e mestiço, com pessoas de backgrounds diferenciados, que geralmente não tem nenhuma relação (a não ser talvez afetiva) com os movimentos de resistência cultural negra acontecidos durante a história do Brasil. Grupo étnico designa uma população que: 1) Se perpetua principalmente por meios biológicos; 2) partilha de valores culturais fundamentais postos em prática a partir de formas culturais; 3) compõe um começo do ano de 2000, estando a casa desde então passando por problemas na sua manutenção. 3 Encontramos em SILVA (1999:149) o termo reafricanização com o mesmo sentido e aliado ao termo dessincretização.
  • 16. 16 campo de comunicação e interação; 4) tem um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros, como sendo constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem. (BARTH, 1969:10) Este fenômeno vem se desenvolvendo há vários anos, e recentemente parece ter ganho mais força. Está inserido em vários locais do Brasil, inclusive em Salvador, que é considerada a “Meca negra do Brasil”. Encontramos em Fortaleza-CE alguns pais e mães-de-santo que não parecem estar dispostos a ir a África atrás de sua “africanidade” mas sim trazer a África até eles por terceiros ou livros. Na impossibilidade de ir à África, como se fazia outrora, o zelador de hoje estuda a África através dos livros para reformar sua própria religião. (BASTIDE, 1983:168) Não sabemos ainda até que ponto todo esse processo de busca de uma autenticidade perdida tem afetado e ainda afetará no futuro o repertório musical e as suas formas de transmissão. Neste ponto de nossas reflexões perguntamos a nós mesmos, em relação específica ao fenômeno musical intrinsecamente ligado às religiões: Como se preservam seus toques e cantigas? Que influências esse público tão diferenciado tem trazido para a criação e recriação do fenômeno musical dentro do candomblé? Segundo Hobsbawn (1984:9) “muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”. Partindo dessa afirmação podemos então dizer que
  • 17. 17 todos esses fatores presentes na cidade de Fortaleza-CE já citados acabaram por inventar uma nova tradição? Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM, 1984:19) Podemos ainda extrapolar o conceito, e a partir das considerações de Prandi (93, 95/96, 1999c) que considera o candomblé como sendo uma tradição reinventada, dizer que em Fortaleza-CE temos uma reinvenção da tradição reinventada. Mas achamos ainda muito cedo para tais afirmações, seria precipitado de nossa parte, contudo podemos dizer com certeza que houve adaptações na dinâmica dessa religião afro-brasileira devido ao local e material humano disponíveis, como veremos mais à frente. Tentamos então neste trabalho, através do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, apresentar um panorama de como se comporta o candomblé em Fortaleza-CE e como sua clientela muito diversificada em extratos sociais, escolaridade e raça têm afetado na transmissão musical oral/aural característica das religiões afro-brasileiras. Uma vez estabelecidas todas as perguntas que queríamos responder, e escolhido o local de trabalho, lançamos mão de métodos de trabalho de campo em etnomusicologia que foram, através dos anos, derivados de métodos desenvolvidos pela antropologia.
  • 18. 18 Com o passar dos anos, a partir da introdução da pesquisa-de- campo com observação participativa nos métodos de pesquisa em etnomusicologia demos um salto qualitativo na interpretação dos dados coletados: o coletor é o mesmo que analisa. Ele está ciente de como aquilo foi cantado ou tocado, de que forma, em qual situação, e em como ter assistido ou mesmo participado daquilo afetou seu corpo e mente. Os testemunhos, mesmo que ainda vistos por alguém que não pertence àquela cultura em estudo passam a ser mais fiéis, assim como o som descrito. A coleta dos dados a partir de então passa a ser preferencialmente feita pela mesma pessoa que vai analisá-los, e esta deverá se preocupar em registrar tudo à sua volta da melhor forma possível, através de gravações em áudio e vídeo, ou máquina fotográfica sempre que for possível.4 Notas em um caderno de campo também são sempre importantes, elas registram as impressões de um momento, são como fotografias de sua mente na hora em que a informação foi recebida. Em uma observação participativa o pesquisador deve ainda procurar aprender “a tocar, cantar e dançar igual (dentro do possível) a um membro da cultura a ser estudada” (LÜHNING, 1991: 116); isso facilitará muito na hora de transcrever o material musical. Assim como também se deve aprender a terminologia e a teoria musical daquele meio, se estiverem presentes. A não observação cuidadosa desses pontos poderá acarretar interpretações errôneas, preconceituosas, e sem nenhum valor para o entendimento do fenômeno musical. 4 Por experiência própria sabemos que filmar, fotografar ou mesmo gravar muitas vezes não é permitido.
  • 19. 19 Usamos nesta pesquisa além do material coletado por nós mesmos dentro uma forma participativa, o material levantado por Simone Santos Sousa e Gerardo Viana Júnior, amigos de longa data, colegas de trabalho e de pesquisa musical; perfazendo pouco mais de três anos de acompanhamento em várias casas, assim como pouco mais de dois anos de acompanhamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, incluindo documentos, entrevistas e gravações em áudio e vídeo de festas públicas. Na tentativa de estabelecer uma linha de pensamento fundamentada em fatos, para então fazermos a remontagem do contexto no qual o candomblé chegou e se fixou em Fortaleza, além das devidas transcrições musicais para entendermos como se dá a transmissão musical do mesmo, fizemos o levantamento dos seguintes materiais: Livros, periódicos e documentos com menção sobre o candomblé e sobre sua inserção em Fortaleza-CE nos seguintes locais: 1. Biblioteca Pública do Estado do Ceará, 2. Biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, 3. Biblioteca Central da Universidade Estadual do Ceará, 4. Biblioteca da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, 5. Biblioteca da Fundação Pierre Verger, Salvador-BA. Entrevistas com pais e mães-de-santo atuantes hoje em Fortaleza-CE assim como seus filhos-de-santo, ogãns, abiãns e freqüentadores ocasionais das festas de candomblé. Gravações musicais realizadas no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, e gravações cedidas por seu alabê.
  • 20. 20 Devido à extensão do repertório, e das limitações que teríamos em coletá-lo por não sermos praticantes dessa religião, escolhemos para nossa amostragem nos fixarmos em um repertório de festas de xirê5 de apenas uma casa. Sendo assim este será um “estudo intensivo” dentro das definições de Merriam: “O estudo intensivo (...) é aquele no qual o estudante seleciona uma área limitada em particular e dá a ela a sua total atenção” 6 (MERRIAM, 1978: 42). Sabemos desde já que a redução da música para sua notação escrita está condenada a imperfeições. A música é um fenômeno acústico com muitas variáveis cabendo ao pesquisador escolher quais dela são as mais relevantes ao trabalho que será feito, e por isso serão impressas em papel. Com isso temos que a transcrição não é única, ela varia de acordo com os propósitos da análise. Seeger7 nos fala de duas diferentes formas de transcrição musical: a transcrição prescritiva e a transcrição descritiva. Segundo Seeger a transcrição descritiva seria mais indicativa e menos carregada de sinais, enquanto que a prescritiva seria mais carregada de indicações, tentando recriar o mais próximo possível o fenômeno musical. Cada uma delas tem sua função e sua esfera de uso. Para esse trabalho usamos uma transcrição mais descritiva e menos prescritiva por achar que a função das transcrições nesse contexto é a de subsidiar nossas análises, e não a de recriação do fenômeno sonoro por terceiros a partir da partitura. 5 Mais à frente descreveremos em linhas gerais a festa de xirê. 6 The intensive study (...) is one in which the student selects a particular limited area and gives his entire attention to it.”. 7 SEEGER, Charles. Prescriptive and descriptive music writing, Musical Quarterly. 44: 184-195, apud NETTL, 1968: 99.
  • 21. 21 Nos capítulos a seguir tentaremos ilustrar em palavras, imagens e sons o que conseguimos apreender nesse tempo de convívio com a realidade do Ilê Osun Oyeye Ni Mó.
  • 22. 22 2- Histórico e definições O Candomblé é um resumo de toda a África mística (Roger Bastide) Para podermos nos situar melhor no universo formado em torno do Candomblé, é necessário explicarmos seus princípios básicos e darmos algumas informações de como se processa a sua dinâmica através de uma compilação de literatura. Também esboçaremos abreviadamente uma idéia de como ele se instalou no Brasil, e chegou à cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará. 2.1 – O Candomblé como sistema religioso – mitologia e definições O trabalho aqui empreendido não se propõe a explicar esse complexo sistema religioso, seguindo agora um resumo substancial do que é esse sistema, apenas como forma do leitor se situar dentro desse universo e poder entender mais adiante as questões levantadas. Juntamente com os negros trazidos do continente africano durante todo o período da escravatura no Brasil, vieram várias culturas, crenças, línguas, dialetos, etc., que após um processo de síntese recriam um sistema religioso: o Candomblé. É necessário ressaltar que o candomblé surge no Brasil como produto de [re]invenções – de adaptações e de síntese – dos vários sistemas de crenças provenientes do continente africano durante mais de três séculos do período da escravidão. A [re]invenção de uma África mítica aparece, desde o início, como elemento fundante das diversas identidades religiosas assumidas e apregoadas como raízes ou nações que marcam as fronteiras litúrgicas de cada comunidade – terreiro, que a partir do século XIX começam a adquirir visibilidade e legitimidade social. (TEIXEIRA, 1999:133/134)
  • 23. 23 Como está citado acima, esta religião afro-brasileira passa a ser oficialmente visível no Brasil apenas a partir do século XIX, quando a sociedade branca social e economicamente dominante toma conhecimento do primeiro terreiro de Candomblé no Brasil, por volta de 1830 na Bahia.8 Esta religião está construída sob a noção de família,9 onde cada indivíduo tem a oportunidade, o livre-arbítrio, de inserir-se em um terreiro de candomblé e ocupar seu lugar dentro de uma hierarquia. Inicialmente, para compreendermos essa forma de hierarquização familiar existente dentro do candomblé, onde tudo orbita em torno de um pai ou mãe-de-santo, tendo vários indivíduos dividindo o mesmo teto, é preciso remetermo-nos à organização das sociedades africanas yorubá. O ebi (família, linhagem) constituía a organização social básica, geralmente sob forma de linhagem agnatícia ou patrilinear. Ao ebi – e não ao indivíduo membro – pertenciam os bens de produção e até mesmo os títulos de nobreza. Seus membros viviam juntos no agbo-ilê (conjunto de casas, grande comunidade). A cidade ou a vila (ilu) era formada por vários agbo-ilê e governada pelo rei (obá) e pelos chefes (ijoye) civis e militares. Os estratos sociais seguintes eram os membros mais velhos do ebi – os baale – e finalmente os cidadãos. (...) Através do terreiro – associação litúrgica organizada (egbé) – transferia-se para o Brasil grande parte do patrimônio cultural negro-africano. (MUNIZ, 1988:49) Com o passar dos anos, através de processos de miscigenação racial e cultural, nos quais não mais uma ascendência negra, mas sim a 8 Esta noção de “primeiro terreiro” parte de uma tentativa de reconstituição da história dessa religião afro-brasileira. Digo tentativa porque as fontes são escassas e vagas uma vez que esta é uma parte marginalizada da história do Brasil, tendo sido levantada em grande parte por Pierre Verger em toda a sua obra. 9 Segundo Hoebel & Frost (1999:204) A família é a “unidade primária da cultura humana e da sociedade” Quando falamos neste ponto de nosso trabalho em “noção de família” estamos querendo dizer que não existe necessariamente a família natural formada por laços consangüíneos dentro das estruturas do candomblé, mas sim uma família simbólica, espiritual, onde indivíduos assumem vínculos uns com os outros, e esses vínculos recebem uma hierarquização baseada na hierarquia familiar básica (pai, mãe, irmão, etc.).
  • 24. 24 curiosidade ou uma identificação em relação à cultura afro-brasileira determina a clientela de um terreiro de candomblé, a família-de-santo passa então a ser construído por pessoas de origens étnicas,10 nível social e cultural diferentes. 11 Os orixás, segundo Reis (2000:57-58) são deuses que “foram em vida seres excepcionais, que detinham um poderoso axé e não morrem simplesmente, fazendo na verdade, uma passagem da condição mortal de seres humanos para a condição imortal de orixá (...)”.Essa noção do orixá como ancestral divinizado fundamenta-se e encontra sua razão de ser no conceito descrito anteriormente de que o candomblé é uma religião baseada em uma noção familiar. O orixá seria então um ancestral que quando pertenceu em vida ao grupo familiar, estabeleceu vínculos que lhe permitiram o controle sobre uma força da natureza como o trovão, ou vento. O orixá é uma divindade onipresente, é a manifestação da vida eternizada e manifesta através do axé. O orixá seria, portanto uma força pura, axé imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos ao incorporar-se em um deles, em um fenômeno chamado de transe (Reis, 2000:58), ou possessão. A realização das cerimônias de adoração ao orixá é assegurada e conduzida pelo pai ou mãe-de-santo designado para tal. Os outros membros da família-de-santo devem contribuir materialmente para o custo 10 Segundo Brandão (1986:145) um grupo étnico é “uma categoria de articulação de tipos de pessoas que, por estarem historicamente unidos por laços próprios de relações realizadas como famílias, redes de parentes, clãs, metades, aldeias e tribos, e por viverem e se reconhecerem vivendo em comum um mesmo modo peculiar de vida e representação de vida social, estabelecem para eles próprios e para os outros as suas fronteiras étnicas, os seus limites de etnia. Mergulhados em um sistema de relações regidas pela desigualdade aprendem a se pensar como diferentes.”. 11 Hoje não é raro encontrar em uma festa de candomblé desde analfabetos até intelectuais de diversas origens étnicas.
  • 25. 25 do culto, assim como ajudar na preparação da festa, além de observar as proibições alimentares e outras ligadas ao culto de seu orixá. Se uma pessoa, ao entrar para um grupo ou família-de-santo, for chamada a ser filho-de-santo, cabe ao pai ou mãe-de-santo a tarefa de iniciá-lo e de preparar o assento de seu orixá naquele terreiro. Sendo assim, dentro do ilê existirão inúmeros assentamentos de diferentes orixás (os dos filhos-de-santo), além do assentamento do orixá do terreiro (o do pai ou mãe-de-santo). Como já dissemos antes, atualmente, com a perda da identidade familiar africana, a família-de-santo passa a ser construída por pessoas de origens diversas, sendo assim a consangüinidade com o orixá, ancestral divinizado, fica comprometida, não podendo mais ser reivindicada. Entretanto, pode haver entre todos os crentes, independente da etnia da qual provêem, certas afinidades de temperamento: tendências inatas de seu comportamento que são característicos de um orixá. Podemos chamar essas tendências de arquétipos de personalidade que não podem desenvolver-se livremente dentro de cada indivíduo sem entrarem em conflito com as regras de conduta admitidas em seu meio social que normalmente no Brasil é dominado por uma ética branca européia e cristã. Além dos orixás, segundo Reis (2000:58) temos ainda nos cultos os egúngún, ou eguns. Estes também são ancestrais, mas que não transcenderam a morte como os orixás, e sim passaram por ela. Eles são os detentores de segredos da morte e do renascimento. Segundo Pai Francisco12 os eguns são: 12 Pai Francisco de Iansã, 1999.
  • 26. 26 Espíritos travessos e maleficientes. São espíritos de pessoas desencarnadas. Todo ser vivo é um egun, pois ele é um espírito dentro de uma matéria, mas no instante em que ele desencarna essa matéria perde a importância, pois para o espírito não há morte, ele vive para sempre. A mitologia na qual se apóia o candomblé de nação ketu, sobre o qual trata o nosso trabalho, já é bem estabelecida, bastante rica, e tem sido extensamente descrita desde os trabalhos de Verger, até os de Prandi e vários outros autores recentes. 13 O espaço físico onde acontecem as cerimônias é também moradia do pai ou mãe-de-santo, e de toda uma comunidade; segundo Pai Francisco, 14 recebe o nome de ilê, roça, baquisse, abaçá, ou gozemu. 15 Cada ilê é ao mesmo tempo moradia para humanos e orixás. As famílias- de-santo dividem o espaço com seus deuses. Os orixás podem ocupar cômodos internos da casa ou pequenas construções no exterior, em uma parte do terreno. A casa se diferencia de uma residência comum por dois espaços particulares: o barracão (que pode ser mais de um16), salão onde se realizam as festas; e o roncó, um quarto sem comunicação com a parte externa do terreno, onde os noviços ficam recolhidos por 21 dias durante o processo de sua iniciação. Dentro do barracão existem dois lugares de especial destaque. Um deles fica no centro do barracão e é denominado de axé da casa ou ori axé. Trata-se de um local sagrado, que foi bento com folhas e ervas, e 13 PRANDI, 2001; VERGER, 1997a; VERGER, 1997b; REIS, 2000; entre outros. 14 Pai Francisco de Iansã, 1999. 15 Pai Francisco de Iansã (1999) relaciona vários nomes sem distinguir de que tradição (nação) eles provêem. 16 No Ilê Osun Oyeye Ni Mó encontramos dois barracões: um logo na entrada, e um ao fundo destinado às festas de Omulu.
  • 27. 27 onde está enterrado o que os participantes chamam de fundamento. Toda vez que um iniciado entra no barracão, ele toca nesse local com a mão direita (no chão) e em seguida toca a cabeça, como se pedisse uma bênção ao orixá dono da casa. Isso também acontece nas festas: quando os atabaques tocam para um determinado santo, todos os seus filhos tocam o ori axé. Esse gesto é descrito por Lühning17 como sendo respeito e reverência do iniciado para com a terra, ou para com o orixá. Outro lugar importante no barracão é o pepelê, onde ficam os três atabaques que acompanham todos os rituais. Na maioria das casas, além dos três atabaques encontramos o agogô, e os adjás18. Raramente encontramos maracás, caxixis, xequerês ou outros instrumentos. 17 LÜHNING, 1990:45-46. 18 Até agora, podemos notar que não houve discrepância entre os termos e conceitos recolhidos na pesquisa de campo e os termos e conceitos adotados no candomblé baiano e largamente descritos em literatura. Mais à frente veremos como se processa essa relação entre o candomblé de Fortaleza, o candomblé baiano e os processos de africanização.
  • 28. 28 Figura 1: Desenho esquemático do “barracão padrão” em Fortaleza-CE O Ilê axé, é dirigido por um pai ou uma mãe-de-santo, responsável pelo culto. Também chamados de babalorixá ou iyalorixá, pai ou mãe respectivamente, são eles os encarregados de cuidar do poder do orixá. Os pais e mães-de-santo são assistidos por pais ou mães- pequenos, babá ou iya kekerê respectivamente, e por uma série de ajudantes, com papéis e atividades diversos e definidos, ligados às necessidades do culto. Esses “cargos especiais” são determinados pela vontade do pai ou mãe-de-santo e confirmados pela consulta aos búzios.
  • 29. 29 Entre os ajudantes no Ilê axé, está ainda a iatebessê que dirige a seqüência dos cânticos dos orixás nas cerimônias públicas; a iabessê que supervisiona a preparação das comidas destinadas aos orixás e aos seres humanos; o axogum, responsável por realizar o sacrifício dos animais oferecidos aos deuses, e o alabê, chefe dos tocadores de atabaque. Os ogãns são os músicos responsáveis pela execução dos toques nos atabaques, durante as festas públicas e mesmo durante as cerimônias secretas quando o ritual assim o exige. Ainda existem os iaôs que são os filhos e as filhas-de-santo, e os abiãns que são os freqüentadores noviços ainda não iniciados do terreiro, que ajudam nas tarefas domésticas gerais. Dentro do complexo religioso do candomblé, são realizados diversos tipos de rituais e cerimônias, com os mais diversos objetivos ligados à necessidade da manutenção e obtenção do axé por parte dos freqüentadores do terreiro. Algumas dessas cerimônias, como as festas de xirê, têm caráter público, podendo ser acompanhadas por visitantes, outras só podem ser assistidas pelos freqüentadores da casa, pois têm em seu desenvolvimento os chamados fundamentos, segredos rituais acessíveis apenas aos iniciados. Pai Xavier divide os rituais da seguinte forma: O candomblé é um ritual que tem sua parte de segredo, que nós chamamos de fundamento, e tem uma parte folclórica, que é o que nós apresentamos no barracão, que todo mundo participa. E tem a parte do roncó, da iniciação, das obrigações, que são privadas de pessoas que não são da seita. O candomblé requer muita abnegação, respeito, e força de vontade.19 19 Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
  • 30. 30 As festas de xirê, que como já dissemos são festas com a participação de um público externo ao ilê axé, geralmente seguem o mesmo roteiro. Antes da festa há rituais que começam na madrugada anterior à festa e duram o dia inteiro. Dentre esses rituais fechados ao público, que compreendem matança de animais e oferendas, está o padê de Exu. 20 À noite acontece a festa em si. Os atabaques começam a tocar, enquanto os filhos e filhas-de-santo entram puxados pelo pai ou mãe-de- santo carregando o adjá. O pai ou mãe-de-santo se coloca em uma cadeira especialmente reservada enquanto os filhos-de-santo formam uma ou duas rodas (a depender da quantidade de pessoas e do tamanho do barracão) que giram em sentido anti-horário enquanto saúdam o ori axé. Iniciam-se então as cantigas para os orixás, o que normalmente é feito de uma forma responsorial entre o puxador e a assembléia. Variando de terreiro a terreiro podemos ter duas formas de iniciar o xirê: na primeira o pai-de-santo faz uma chamada ao coro com os atabaques ainda calados, começando a tocar em seguida. Na segunda os atabaques introduzem um ritmo antes da primeira cantiga indicando que o xirê vai ser iniciado. Os orixás são invocados seguindo uma ordem: a ordem do xirê.21 A primeira entidade a ser louvada é Exu,22 seguido por Ogum, Ossanha ou 20 Padê, ou despacho de Exu, segundo Pai Xavier de Obaluaê (1999), é um ritual onde se agrada este orixá, que faz a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. Suas oferendas são levadas para fora do barracão e a porta de entrada é batizada água, cachaça ou mel. 21 É a ordem na qual cada um dos orixás é saudado, ou chamado à roda em uma festa de xirê. A ordem dada acima nos foi informada por Pai Xavier de Obaluaê (1999), Pai Edson de Ogun (1999), Pai Francisco de Iansã (1999) e o alabê Alexandre Fontes (2000-2001) em suas entrevistas. 22 A presença de Exu nesse momento é variável. Nas casas de Pai Xavier de Obaluaê (1999) e Pai Edson de Iansã (1999) se toca para Exu no momento da festa, na Casa de
  • 31. 31 Ossain, Oxossi ou Odé, Obaluaê ou Omulu ou Xapanã ou Xapadê, Oxumaré ou Odã, Xangô, e Tempo, que fecha a seqüência de orixás borós ou masculinos. Começa a invocação das iabas, orixás femininos: Iansã ou Oiá, Oxum, Ewa, Obá, Iemanjá, Irocô, e por último Nanã ou Burucu. Há ainda Logunedé que pode estar tanto depois de Oxossi, como antes de Oxun. Ao final do xirê ocorre um pequeno intervalo, após o qual os atabaques anunciam o reinício da festa. Neste momento entram o pai ou mãe-de-santo carregando o adjá e alguns indivíduos23 em transe, vestindo os paramentos de seu orixá. Após nova saudação ao ori axé, toca-se dezenas de músicas relacionadas aos orixás presentes na roda. Lembramos que durante toda a festa, os orixás incorporados dançam guiados pelo adjá, carregado pelo pai ou mãe-de-santo, ou por alguma outra autoridade do terreiro. Após esta segunda parte da festa resta então homenagear Oxalá. Este momento é considerado o ponto alto da festa, quando todos os iniciados incorporam seus orixás e entram na roda para dançar. Depois do xirê é servido um jantar a todos os presentes. Sobre os rituais secretos não podemos discorrer muito. Sabemos deles em linhas gerais, mas nada sabemos sobre seus detalhes, ou suas músicas. Quando indagado sobre esses cultos secretos, Pai Xavier os define como sendo “tudo o que é feito no roncó: as obrigações, os banhos, as oferendas”. 24 Um dos rituais secretos mais mencionados nas entrevistas é o da iniciação dos abiãns. Quando um abiãn sente fraqueza, Mãe Ilza d´Oxum (2001) não se toca para Exu neste momento, pois este já foi homenageado no padê antes da chegada dos convidados. 23 A maioria iaôs da casa. 24 Pai José Xavier de Obaluaê, 1999.
  • 32. 32 tontura, ou mesmo desmaia em uma das festas durante os toques, isso normalmente indica a necessidade dele de ser iniciado, então o pai-de- santo joga os búzios para descobrir qual o orixá ao qual quem o noviço será dedicado. Após isso, a pessoa a ser iniciada se prepara, comprando todo o material necessário para seu “enxoval” durante o período de iniciação.25 Com esse material em mãos, a pessoa se recolhe ao roncó – um quarto dentro da casa sem comunicação com o exterior – por cerca de vinte e um dias. Sobre esse recolhimento Pai Francisco nos fala: A iniciação, o ensinamento e o fundamento são um só. Só que é um ritual muito fechado; as pessoas que se iniciam na seita têm que passar vinte e um dias de obrigação recolhidos no roncó, recebendo visitas apenas de pessoas da mesma seita que já têm obrigação para santo. Do recolhimento, as pessoas só saem três horas da manhã para tomar um banho de abô, para limpeza e purificação da matéria. Depois dos vinte e um dias, o noviço ou iaô sai do roncó para se apresentar em sala e se manifestar com o seu orixá.26 Ainda se referindo ao tempo passado no roncó durante o processo de iniciação, Pai Francisco diz que “na iniciação você (o abiãn) tem um caderno de complementação, fitas e gravador no roncó”27 para aprender, por exemplo, o idioma yorubá, utilizado nas cerimônias. No final desse período de vinte e um dias, o noviço passa por uma cerimônia chamada de raspagem da cabeça. Após esse rito, o novo iaô (filho-de-santo recém-iniciado) dança em uma festa preparada especialmente para esse fim, a festa de saída de iaô, quando ele sai para 25 Esse enxoval consiste de animais, cereais, raízes, ervas, roupas e acessórios do orixá. 26 Pai Francisco de Iansã, 1999. 27 Informação dada por Pai Francisco de Iansã (1999). O uso do gravador no roncó difere completamente do padrão das casas de candomblé do Brasil. Também parece diferir do padrão de Fortaleza, parecendo ser uma orientação exclusiva desse pai-de-santo. Quando indagado se isso acontecia também no Ilê Osun Oyeye Ni Mó, Alexandre Fontes e outros entrevistados negaram o fato.
  • 33. 33 o barracão pintado de branco e vestido com a roupa de seu orixá para então anunciar seu nome,28 e ser visto e reconhecido por toda a comunidade como tendo um novo “grau” dentro do candomblé. Veja como Pai Edson nos explica o que acontece durante a iniciação e depois como se forma um novo pai-de-santo: Tudo começa no Ifá. Faz-se o jogo para apurar qual é o orixá da pessoa. Depois a pessoa se prepara financeiramente para comprar todos os materiais. Aí ela passa vinte e um dias recolhido em um quarto sem comunicação com o exterior até o dia posterior ao da sua feitura. Depois ela passa por uma cerimônia muito fechada para a raspagem da cabeça, quando a pessoa sai do barracão vestida com a roupa do seu orixá e pintado de branco. Nessa festa tira-se seu novo nome, em yorubá, com um grito de guerra que se chama ilá. Depois de três meses há a queda do quelê, que é um colar que é amarrado no pescoço que simboliza uma aliança. Depois há um ato de sete dias que se chama umbigueira, depois o qual a pessoa está livre. Nesse meio tempo, a pessoa não come carne, não bebe, não anda nas ruas nas chamadas horas grandes: seis da manhã e de tarde, meio-dia e meia-noite, não fuma nem toma café. (...). É um aprendizado de sete anos, até a pessoa já poder abrir uma casa. Ela vai passar por uma obrigação de um ano que é a confirmação da feitura. Depois tem a obrigação de três, cinco e sete anos, quando ela recebe o oiê, que significa cuia ou deká. Aí ele recebe o jogo de búzios, navalha, tesoura, folhas, ervas e outras coisas. Mesmo assim, os seus três primeiros filhos-de-santo, quem faz é o seu pai-de-santo, com a sua ajuda.29 A outra cerimônia secreta citada em entrevistas é o axexê. Este é um ritual que promove o “desligamento” de um iniciado do mundo material após sua morte. Todos os laços espirituais criados durante a vida deste iniciado vão um a um sendo desfeitos até que não fique dentro do terreiro nenhum sinal da presença daquela pessoa. 28 Pois se trata de um renascimento. 29 Pai Edson de Ogum, 1999.
  • 34. 34 Para possibilitar essa passagem sem contratempos, ritos mortuários são celebrados nos terreiros tradicionais cujo ciclo completo é denominado axexê. (SANTOS, 1975:224) Quanto mais tempo de santo tinha a pessoa que morreu, mais tempo demora o ritual. Com isso esperamos ter situado o Candomblé enquanto religião de procedência africana que passou por ajustes no Brasil, falando resumidamente de seus conceitos principais. Passamos adiante com um histórico de sua fixação em território brasileiro. 2.2 – O Candomblé no Brasil Estima-se que entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco milhões de africanos foram capturados e trazidos para o Brasil na condição de escravos. Não é possível ter números exatos, pois a circular do Ministério da Fazenda, número 29, de 13 de maio de 1891, mandou queimar todos os arquivos referentes à escravidão no Brasil, destruindo assim fontes valiosas para a remontagem histórica dos fatos referentes ao tráfico de escravos (RODRIGUES,1932: 23). Embarcados em navios negreiros na costa da África, os que viriam a ser escravos no Brasil viajavam até o continente novo em condições insalubres, amontoados uns sobre os outros, com água e comida racionadas apenas ao suficiente para mantê- los vivos. A alimentação nos navios era apenas o bastante para manter os escravos respirando; para conservar os fôlegos vivos: um pouco de farinha e às vezes umas favas fervidas. (...). Um copo d’água por três dias chegava para impedir a morte de um negro; calculava-se sôbre essa base as provisões d’água
  • 35. 35 para viagens às vezes de quatro meses. (FREYRE, 1963:82) Os mais fortes, que conseguiam completar a travessia de barco, chegavam ao Brasil por vários pontos, para a partir deles serem comercializados. Não se tratava mais de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas, etc. Uma síntese da África negra! É possível falar em três grandes grupos culturais que chegaram ao Brasil: Os sudaneses, representados principalmente pelos grupos Yorubá (nagô), Dahomey (jêjes) e Fanti-Ashanti (mina). Os africanos islamizados: Peuhl, Mandinga e Haussa (malê e alufá) As tribos Banto, compreendendo entre setecentas e duas mil línguas e dialetos aparentados. Estes negros foram trazidos e espalhados pelo Brasil escravista seguindo uma política de tentar evitar que muitas pessoas provenientes de uma mesma etnia ficassem juntas, criando assim uma torre de babel lingüística e cultural dentro da população escrava, que nem falava o português, nem tão pouco se entendia com seus companheiros.30 Além das desavenças que as várias etnias tinham entre si, devido às lutas tribais ocorridas ainda no continente africano, muitos eram os dialetos e línguas presentes em uma senzala. Esta política, que evitou a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia em uma mesma propriedade, tentou impedir a formação de núcleos de preservação da cultura africana. Com a sua estrutura familiar e cultural destruída, os 30 RIBEIRO, 1994:115.
  • 36. 36 negros foram diluindo-se no Brasil perdendo o seu status de africano e pouco a pouco criando uma nova categoria dentro do país: o afro- brasileiro. Com o passar dos anos o Brasil, até então agrário, começa a se urbanizar, sendo então o negro escravo trazido em quantidade para os centros urbanos. Nos últimos anos do império era grande o contingente de negros escravos e negros libertos, assim com mulatos livres nas grandes metrópoles brasileiras. O negro rural, transladado às favelas, tem de aprender os modos de vida da cidade, onde não pode plantar. Afortunadamente, encontram negros de antiga extração nelas instalados, que já haviam construído uma cultura própria, na qual se expressavam com alto grau de criatividade. Uma cultura feita de retalhos do que o africano guardara no peito nos longos anos de escravidão, como sentimentos musicais, ritmos, sabores e religiosidade. (RIBEIRO, 1994:222) A contribuição cultural das etnias negras na formação de nossa identidade, segundo Ribeiro (1995:114), foi mais passiva que ativa, sendo feita de forma sorrateira, mas continuada. Ela se manifesta no vocabulário, na culinária, no vestuário, na religiosidade popular, mas sem identificação de origem, ficando sob a alcunha de “africano”. Ao fim da escravidão, o Brasil era um país povoado de negros e de mulatos que eram a síntese da mistura que começava a originar o povo brasileiro. A mistura entre as diversas etnias negras se encarregou de apagar com o tempo traços que podiam definir a origem de um grupo, formando o tipo “negro”. Um tipo genérico que já não era africano, mas completamente brasileiro, em um processo forçado de integração com a sociedade que antes o escravizava, e agora o excluía. A expressão
  • 37. 37 cultural africana que logrou mais êxito em sobreviver foi a religiosa. Nina Rodrigues ainda nos primeiros estudos sobre os negros no Brasil confirma este fato: De todas as instituições africanas, entretidas na América pelos colonos negros ou transmitidos aos seus descendentes puros ou mestiços, foram as práticas religiosas do seu fetichismo as que melhor se conservaram no Brasil. (RODRIGUES, 1932: 214) Darcy Ribeiro se referindo também à preservação dos saberes africanos no Brasil, apesar de se basear também na preservação através das práticas religiosas, admite que ela ocorreu de uma forma mais ampla do que a descrita por Rodrigues (1932): Só através de um esforço inteligente e continuado, o negro escravo iria reconstituindo suas virtualidades de ser cultural pelo convívio de africanos de diversas procedências com a gente da terra, (...) sobreviveria principalmente no plano ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira. Junto com esses valores espirituais, os negros retém, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários. (RIBEIRO, 1994:116-117) Apesar do esforço contínuo das políticas das classes dominantes para apagar a história passada dos negros trazidos ao Brasil,31 muitos negros e mestiços conseguiram restabelecer seus laços de origem através de parentes retornados à África, principalmente para Nigéria. Olinto (1980), apoiado em estudos anteriores de Verger (1987), descreve que: 31 Como já dissemos, a Circular do Ministério da Fazenda, número 29, de 13 de maio de 1891, manda queimar todos os arquivos da escravidão (RODRIGUES, 1932: 23).
  • 38. 38 Em Lagos, já na primeira metade do século XIX, vários antigos escravos voltavam à terra natal e com eles traziam filhos e netos já nascidos no Brasil. (OLINTO, 1980:143). Por volta da metade do século XIX, fica então visível no Brasil a grande reconstrução cultural do negro ex-africano, agora brasileiro: as religiões afro-brasileiras. Reis (2000), baseado em trabalhos anteriores, e na história oral, atribui ao estado da Bahia o mérito de ter sido o local onde o foi fundado o primeiro terreiro de candomblé do Brasil, o Ilé Ìyá Nasó Oká. Isso, segundo ele, se deu por volta de 1830, por iniciativa de um grupo de mulheres originárias de Ketu, antigas escravas libertas, e pertencentes à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da Barroquinha, em Salvador-BA (REIS, 2000: 64). A partir desse terreiro, e de alguns outros que foram sendo descobertos ao público, o candomblé começa a aparecer em outros pontos do Brasil, talvez por raízes próprias, talvez tendo sido levado da Bahia por movimentos migratórios. 2.3 – O processo de africanização, uma tendência recente. Dentro tanto de casas mais tradicionais no cenário do candomblé no Brasil, como de casas mais novas, tem acontecido nos últimos anos um processo chamado de “africanização” (PRANDI, 1995/96; 1999) ou “reafricanização” (SILVA, 1999). Prandi divide em três momentos a história das religiões afro- brasileiras:
  • 39. 39 Primeiro, da sincretização com o catolicismo, durante a formação das modalidades tradicionais conhecidas como candomblé, xangô, tambor de mina e batuque; segundo, do branqueamento, na formação da umbanda nos anos 1920 e 30; terceiro, da africanização, na transformação do candomblé em religião universal, isto é, aberta a todos, sem barreiras de cor ou origem racial, africanização que implica negação do sincretismo a partir dos anos 1960. (PRANDI, 1999c:93) É preciso mencionar e entender antes de qualquer elaboração mais detalhada que dentro do panorama nacional existem realidades muito diferentes que cercam essa religião. Não temos como comparar, nem querer que seja semelhante à situação do candomblé no estado da Bahia – detentor mitificado de todas as tradições negras existentes no Brasil – com a dos estados de São Paulo, Minas Gerais, ou Ceará. Estes últimos estados somente nas últimas décadas do século XX construíram seus universos de religiões afro-brasileiras, precisando então situá-los e alimentar suas raízes não existentes, mesmo que simbolicamente. Sobre essa falta de raízes vejamos o seguinte depoimento: O candomblé no Ceará é muito novo, e o cearense não tem a ginga, a malandragem do negro. Por aqui a gente sente falta da dança ritualística solta, que tem ginga. O cearense é mais duro. Também é difícil se encontrar pessoas que toquem 32 satisfatoriamente. Nesse processo de (re)africanização, existe a negação do sincretismo na tentativa de apagar as “impurezas” presentes no candomblé, incorporadas nos anos de aculturação33 do negro no Brasil, afastado de seu habitat original e sob o peso da escravidão. Além disso, 32 Pai José Xavier de Obaluaê, 1999. 33 Entendemos por aculturação o “processo de interação entre duas sociedades nas quais a cultura da sociedade na posição subordinada é drasticamente modificada para conformar-se com a cultura da sociedade dominante.” (HOEBEL & FROST,1999: 443)
  • 40. 40 começa uma busca pelo que é supostamente puro, pelo autêntico, pelo verdadeiro, levando turmas de pais-de-santo às terras africanas, e centenas de curiosos a fazerem cursos de língua yorubá, entre outros que prometiam e prometem restabelecer fragmentos perdidos do candomblé em relação à sua religião originária, ainda hoje praticada na Nigéria. São cursos dados por africanos em meios acadêmicos com uma clientela nova e muito diferente da que se imagina em um terreiro de candomblé. São pessoas jovens, na maioria, alfabetizadas, acostumadas a aprender pela linguagem escrita e que têm pressa de conhecer coisas novas, conhecer tudo que está ao seu alcance nos livros; tudo o que lhes foi negado algumas vez por uma pessoa mais velha do candomblé. O fato dos professores serem – ou se dizerem – legítimos africanos é suficiente para se ter um atestado de confiança. É como se o simples fato do “produto” comercializado ali, no caso cursos de ritualística e idioma, vir da África, independente de qualquer outra coisa, o impregna de uma aura de autenticidade que não deve ser contestada. Essa relação existente no meio dos pais-de-santo em relação à “autenticidade africana” pode ser exemplificada nas palavras de Pai Edson: Hoje em dia existem duas linhas de candomblé: o candomblé baiano e o candomblé mais africano ou africanizado (não totalmente africano). O candomblé baiano que é mais brasileiro, já incorporou elementos que não existiam no candomblé como a pomba-gira, a Maria Padilha, os caboclos. As diferenças que existem dizem respeito à nação de onde ele veio, onde ele surgiu. O baiano mistificou muito o candomblé.34 34 Pai Edson de Ogum, 1999.
  • 41. 41 Um ponto que não deve passar despercebido nesse processo de perda cultural que a (re)africanização se propõe a sanar, é um conceito definido por Wande Abimbola35 como over-ritualization, ou seja, uma ênfase ritual excessiva. Ele defende que a perda de sentido das palavras e o conseqüente esquecimento da literatura oral tenham sido compensados pela complicação e elaboração excessiva dos ritos. Segundo Abimbola, uma ênfase crescente nos ritos acompanhada de uma boa dose criatividade criou uma série de exageros. Um desses exageros pode ser observado na questão do sacrifício: enquanto que na Nigéria se costuma oferecer uma única ave a um determinado orixá, no Brasil o número de animais sacrificados pode chegar a uma dezena. Ele afirma que o brasileiro sustenta um rito fausto e dispendioso que um africano não teria condições financeiras de realizar. Prandi (1999a) ainda complementa falando de forma crítica sobre o candomblé praticado hoje em São Paulo, que, após o período de reclusão para a iniciação de um novo filho-de-santo, quando este for exposto ao público em sua festa de saída-de-santo, “todos os olhos estarão voltados para o apuro estético e o fausto da apresentação. Ninguém estará preocupado com virtudes e sentimentos religiosos”36 (PRANDI, 1999a). O que Abimbola parece esquecer em suas afirmações sobre os excessos relativos ao número de animais sacrificados em um ritual feito no Brasil, talvez por não estar inserido nesta realidade, é que estes animais sacrificados servirão para 35 ABIMBOLA, 1977. 36 Não nos compete aqui concordar ou discordar com essa afirmação de R. Prandi, apesar de em algumas entrevistas, principalmente nas feitas com abiãns esse fato ter sido tocado rapidamente, sem nenhuma ênfase.
  • 42. 42 alimentar além dos orixás, os muitos que freqüentam as festas públicas nos terreiros, assim como os próprios moradores da casa.37 Diante desse quadro de tradições perdidas, recuperadas, inventadas e reinventadas, criticadas ou não; temos cada vez mais claro o que significa para nós e para os adeptos do candomblé o termo (re)africanizar. No processo de legitimação que foi se firmando em São Paulo desde o final dos anos 1970, a maioria dos sacerdotes que se deixam envolver nesse processo é forçada a peregrinar à África, dar obrigações e tomar cargos nos templos da Nigéria e do Benin, (...). Isso é africanizar. Mas africanizar não significa nem ser negro nem desejar sê-lo e muito menos viver como os africanos. Lembremo-nos da grande parcela de seguidores do candomblé formada por adeptos brancos. Africanizar significa também a intelectualização, o acesso a uma literatura sagrada contendo os poemas oraculares de Ifá, a reorganização do culto conforme modelos ou com elementos trazidos da África contemporânea (...); implica o aparecimento do sacerdote na sociedade metropolitana como alguém capaz de superar uma identidade com o baiano pobre, ignorante e preconceituosamente discriminado. (PRANDI, 1999c:106) Esse processo de busca de uma ancestralidade perdida (ou nunca tida) de adeptos brancos e negros parece ter reflexo tanto em casas mais antigas e já estabelecidas, como em casas mais novas, em estados onde o candomblé é um fenômeno recente. Nestes últimos, sem uma grande influência étnica negra, e onde principalmente não há um acúmulo de gerações que possam transmitir conhecimentos seculares, transmitidos de mais velho para mais novo, temos um meio propício para a propagação da idéia. Prandi, em sua citação logo acima, fala desse 37 Partindo desse comentário podemos então afirmar que houve no Brasil uma reinterpretação do sacrifício e quais são as suas atribuições.
  • 43. 43 processo em São Paulo, mas no estado do Ceará, local de nosso estudo, esse fenômeno vem acontecendo já há mais de cinco anos, e é possível encontrar vestes africanas, rituais remodelados, tradições inventadas e reinventadas como será visto no decorrer dos próximos capítulos. 2.4 – O Candomblé no Ceará O estado do Ceará, onde se centra o nosso estudo, até onde se sabe, não foi um grande importador de escravos negros. Ainda em 1836, antes da destruição dos arquivos referentes à escravidão no Brasil, Affonso de A. Taunay contabilizou números que mostram a quantidade de escravos que foram levados para vários estados do Brasil. Taunay diz que “enquanto que em Minas Gerais o aporte de escravos foi de 168.543 indivíduos, seguindo-se Bahia com 147.263, o Ceará contou apenas com a importação de 55.439 escravos”,38 que se espalharam inicialmente pelo sertão do estado (então capitania) e depois pelas regiões serranas e litorâneas. Estes escravos teriam vindo para trabalhar nas culturas de café e banana das regiões serranas, na pecuária mais ao sul do estado que depois se expandiu às regiões litorâneas, e em serviços domésticos nas cidades maiores: Aquiraz, uma das primeiras vilas da capitania Aracati, a antiga capital do estado; Crato, cidade que servia de articulação entre os pontos do sertão central; Fortaleza, a nova capital; e Sobral, com várias famílias aristocráticas, e próxima à fronteira com o Piauí. No regime pastoril do Ceará percebem-se facilmente duas fases. A primeira caracteriza-se pelo absenteísmo, isto é: homens ricos, moradores em outras capitanias, requerem e obtém sesmarias para 38 Taunay, Affonso de A. Ainda Números do Tráfico, Jornal do Comércio, 30 de agosto de 1836; in RAMOS,1937:283.
  • 44. 44 onde mandaram vaqueiros com algumas sementes de gado (...). Na segunda fase os fazendeiros vão se estabelecer em suas terras, ou porque o avultado dos interesses exija a sua presença, ou por incitá-los ao espírito de liberdade que foi o propulsor do povoamento dos sertões do Norte, ao contrário dos do Sul, em que a ambição do lucro foi a grande alavanca. (ABREU, 1960: 261) Antes do fim do século XVIII a seca e outros fatores como luta entre famílias fazem com que o Ceará entre em franca decadência: “a seca foi uma grande rasoira, que em poucos meses desbaratava as maiores fortunas” (ABREU:1960, 262). Isso forçou os senhores de escravos a se desfazerem dos mesmos, promovendo um ciclo de emigração de escravos principalmente para o estado de Pernambuco. A emigração dos negros para outros estados devido à falência dos seus donos e a mortandade por doenças foi tão acentuada após esse período, que o estado do Ceará declara abolida a escravatura em seu território ainda em 1883, sendo o primeiro estado a legalizar essa decisão. Em censo realizado após a abolição, o contingente de escravos libertos no Ceará era o menor do país com apenas cento e oito indivíduos.39 Isso explica em parte porque encontramos tão poucos negros em todo o estado do Ceará, sendo sua população formada na maior parte por brancos e mestiços. Isso também pode ser uma possível explicação para o não florescimento anterior de casas de candomblé em Fortaleza. Considerando que a fundação da primeira casa de Candomblé no Brasil teria sido por volta de 1830 em Salvador-BA, difundindo-se rapidamente para os estados do Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, verifica-se o quão recente em relação a estes estados é o 39 Segundo População escrava e libertos arrolados, Ministério dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas, Imprensa Official, 1888; in RAMOS, 1956:26.
  • 45. 45 estabelecimento do candomblé no estado do Ceará40 e como isso parece influir na sua dinâmica. Segundo Pai Edson, se referindo ao candomblé em Fortaleza-CE: “O candomblé aqui é muito defasado, muito atrasado. A gente conta umas quatro ou cinco casas que sabem o que estão fazendo”.41 O candomblé cearense, assim como no resto do país, se divide em nações. Segundo Pai Francisco de Iansã,42 no Ceará elas são três: Ketu, Angola e Jêje. Ele ainda define as nações como sendo relativas ao lugar de origem do negro ainda na África No Ceará, a primeira casa de candomblé, segundo a maior parte dos entrevistados, foi o Ilê Ibá (Casa de Reza), fundada por Pai José Xavier43 em 1967, situada hoje em Fortaleza, no bairro do Itaperi. Pai Xavier afirma: No Ceará, o candomblé foi trazido da Bahia. Eu acho que posso ter o privilégio de dizer que esta aqui foi a primeira casa de candomblé a ser fundada. (...). Eu me iniciei no Rio de Janeiro, com pessoas da Bahia, que tinham casas em Salvador e no Rio. O candomblé no Ceará foi trazido por pessoas, inclusive eu, que fizeram obrigações, muito embora fora do estado da Bahia mas com pessoas da Bahia que tinham ido para outros estados.44 Pai Xavier comenta em sua entrevista sobre Luís de Xangô, um pai-de-santo feito em Recife, que fundou uma casa vários anos antes,45 mas que segundo Xavier, “não tocava candomblé, tocava mais pra Exu, 40 Nas entrevistas averiguamos que o candomblé cearense conta com duas “datas de nascimento”. Uma por volta dos anos 40, por intermédio de Luis de Xangô, e outra no fim dos anos 60 por intermédio de Pai José Xavier, como veremos a seguir. 41 Pai Edson de Ogum, 1999. 42 Pai Francisco de Iansã, 1999. 43 Falecido em fevereiro de 2000. 44 Pai José Xavier de Obaluaê, 1999. As informações foram todas confirmadas por Pai Edson de Iansã (1999). 45 Ninguém soube informar a data com certeza.
  • 46. 46 para caboclo”. Relata ainda que Luís de Xangô não fazia filhos-de-santo, por isso ele e outros entrevistados não reconhecem essa casa como sendo a primeira. Esclarecendo mais sobre este fato, Alexandre Fontes46 nos conta que Luís de Xangô mantinha duas casas em dois pontos distantes na periferia da cidade: uma toda pintada de preto e vermelho, onde ele tocava só para o Caboclo Exu, e uma outra branca onde ele fazia toques para orixás. Alexandre Fontes não nos soube precisar datas, mas informou que quando Luís de Xangô morreu, as casas fecharam por falta de filhos-de-santo para levar o trabalho adiante.47 Sendo assim, temos dois pontos isolados de “criação do candomblé”em Fortaleza, sendo que um não parece estar relacionado com o outro. De certa forma, confirmando as informações dadas por Pai Xavier e Alexandre Fontes, é possível encontrar gravações de músicas de xangôs em Fortaleza feitas na década de 40 por Luiz Heitor Correia de Azevedo,48 tendo sido estas executadas por Raimundo Alves Feitosa, integrante de um bloco de maracatu. Porém, em suas notas que acompanham a gravação, Correia de Azevedo nota que a instrumentação utilizada não correspondia à tradicional dos cultos yorubá no Brasil, restringindo-se apenas a uma cuíca, instrumento não utilizado hoje em nenhum dos terreiros visitados em Fortaleza. Isso pode ser explicado por ter sido uma gravação feita fora de contexto, tendo o informante usado o instrumento que estava mais próximo para ilustrar o toque que acompanha a cantiga. 46 Alabê do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó. 47 Alexandre Fontes, 2000-2001. 48 “The Library of Congress: Endangered Music Project” Música do Ceará e Minas Gerais.
  • 47. 47 O candomblé no Ceará permaneceu por bastante tempo como uma religião marginal, tendo sido notada pelos intelectuais somente há poucas décadas. Isto não é verdadeiro em relação à umbanda, religião já bem estabelecida à várias décadas, conhecida por todos, documentada em jornais e periódicos, e com inserção em todos os estratos sociais da cidade. Para comprovar esse desconhecimento para com o candomblé, e a superioridade numérica das casas de umbanda basta uma rápida consulta ao Anuário do Ceará.49 Em nenhuma de suas edições consta uma menção sobre o candomblé em Fortaleza, enquanto que aparece em todos os volumes que apresentam o capítulo “Religiões” um item chamado “Umbanda”. No ano de 1983, os terreiros de umbanda no Ceará chegaram ao número de 4000 centros, sendo cerca 700 só em Fortaleza.50 Até aqui temos uma completa falta de informações concretas sobre a história dos terreiros de candomblé em Fortaleza. Inexiste uma associação que os represente, e segundo os pais e mães-de-santo contatados, existe pouco intercâmbio de informações entre eles, sendo poucos considerados sérios ou com fundamento. Para fazer esse trabalho de levantamento histórico mais apurado sobre cada casa seria necessário entrevistar todos os pais e mães-de-santo de todas as casas da cidade, e cruzar as suas informações, que muitas vezes são confusas ou imprecisas. Esse levantamento histórico mais detalhado não faz parte desta dissertação, tendo sido apresentado apenas um apanhado geral 49 SAMPAIO (1971, 1972, 1973, 1974, 1975, 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982, 1983). 50 Dados fornecidos pela União Espírita Cearense de Umbanda (SAMPAIO, 1983).
  • 48. 48 com o intuito de situar o leitor sobre o estabelecimento dessa religião afro- brasileira em Fortaleza-CE. Hoje é muito difícil dizer quantas casas de candomblé existem ao todo na cidade de Fortaleza. Sabemos por depoimentos do abiãn Luís Thomas Jr., freqüentador da casa de Mãe Ilza d’Oxum, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, que dentro da casa que ele freqüenta, “apenas umas nove outras casas são consideradas sérias”.51 Quando Thomas fala isso ele se refere apenas às casas de nação ketu. Não temos nenhuma estimativa, e nem pretendemos isso nesse trabalho, da quantidade de casas existentes de outras nações. Sabemos apenas que existem várias casas da nação angola, provavelmente a segunda maior nação de candomblé em Fortaleza, estando a ketu em maior número e aparentemente mais organizada. Dentro da nação ketu, a casa mais antiga em funcionamento hoje é a casa de Mãe Ilza d’Oxum, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, que completa 25 anos de atividade no final do ano de 2001. O Ilê Ibá apesar de ser a casa mais antiga de Fortaleza, tem enfrentado problemas de funcionamento desde o falecimento de Pai José Xavier. 51 Informação confirmada por Alexandre Fontes (2000-2001).
  • 49. 49 3- Apresentação do local de estudo, o Ilê Osun Oyeye Ni Mó. Para esse estudo, foi feito um estudo de caso centrado em um terreiro da cidade de Fortaleza, e foram recolhidas informações sobre outros terreiros que existem, existiram, e que estão de alguma forma ligados ao local estudado. Nesse capítulo daremos informações mais específicas sobre o que é o Ilê Osun Oyeye Ni Mó, como seu histórico e sua estrutura física.52 Falaremos ainda de uma maneira sucinta sobre quem o faz e quem o freqüenta. 3.1 – Histórico do Ilê Osun Oyeye Ni Mó O Ilê Osun Oyeye Ni Mó foi fundado em 1976, na cidade de Fortaleza-CE pela iyalorixá Ilza d’Oxum. Atualmente ele está situado no bairro Canindezinho, na periferia da cidade de Fortaleza, já próximo à divisa com a cidade de Maranguape. Segundo seus integrantes o terreiro tem um bom relacionamento com seus vizinhos, participando da vida das pessoas que o circundam criando laços de afetividade e respeito. Vejamos isso em um trecho de entrevista feita com um de seus integrantes: Quando a gente mudou pra cá não existia vizinhança, era só mato. A única casa que existia era essa aqui da frente, a da Dona Iracema. E ela acabou se beneficiando com a gente aqui. Quando havia matança, tinham algumas carnes que a gente não podia comer por causa do preceito, aí minha mãe ofertava a ela, até mesmo pra não jogar tudo no lixo. Saiu do ritual ela é uma carne como outra qualquer. Então com a vizinhança nunca houve problema, mas no começo houve com a polícia exatamente por esse aspecto da magia negra que o 52 Fotos mostrando o interior do terreiro, bem como alguns detalhes de sua estrutura física, e algumas das festas que ocorreram durante sua história encontram-se anexadas ao final desta dissertação.
  • 50. 50 povo achava que a gente fazia. Só que a gente tinha uma vantagem que era a do C. ser soldado do exército. Então todas as vezes que eles chegavam aqui, já com a arma na mão o C. mandava baixar as armas e explicava tudo direitinho, até o ponto deles se tornarem amigos da gente, de vir, assistir as festas, ficar pro jantar. Tanto que hoje em dia a gente conhece diversos policiais por aqui. Quando a gente vai fazer trabalhos fora da roça eles param no carro olham, vêem que é minha mãe e não incomodam. Acaba que como a gente chegou primeiro, os vizinhos nunca deram problema.53 Mais adiante, no decorrer da entrevista podemos notar que nem sempre é assim que acontece. Os conflitos com uma vizinhança formada por muitos evangélicos, apesar de não acontecerem com freqüência criam um clima de desconforto dentro do terreiro. Aqui têm muitos evangélicos. Mas tem uns evangélicos que tem muito respeito e entram aqui sem problema. (...). Agora tem os mais radicais que atacam mesmo. Ficam lá na porta gritando: “saiam desse inferno!...” coisas de evangélicos. Mas como eles tem medo do que não conhecem, eles nunca entraram e nunca criaram maiores problemas, até porque minha mãe tem muito prestígio no bairro, ela já ajudou muita gente. Inclusive alguns desses crentes que hoje em dia atacam a ela.54 Mãe Ilza d’Oxum, fundadora do Ilê Osun Oyeye Ni Mó, segundo ela mesma, foi iniciada no candomblé em 1964 pela iyalorixá Amália de Oxumaré, no estado da Bahia, mudando-se depois para Fortaleza-CE.55 A princípio os cultos dentro de seu ilê eram realizados segundo as tradições do candomblé baiano, contando ainda com visitas anuais de comitivas 53 Alexandre Fontes, 2000-2001. 54 Alexandre Fontes, 2000-2001. 55 Na verdade, Ilza d’Oxum volta para Fortaleza. Segundo ela mesma, ela já morava em Fortaleza antes, onde era casada com um deputado. Por conta de uma doença grave (leucemia) entrou em contato com o candomblé, tornou-se adepta, iniciou-se, e curou-se. Após seu processo de cura, largou tudo o que tinha e mudou-se para Salvador onde foi iniciada, voltando depois para Fortaleza para abrir sua casa.(Mãe Ilza d´Oxum, 2001)
  • 51. 51 vindas de Salvador (do terreiro de um irmão-de-santo seu) para auxiliar nas festas e obrigações de seu terreiro. Quando aqui começou, quando minha mãe era do axé baiano, aqui predominavam os negros. Um pai de santo baiano que era irmão de santo dela sempre vinha pra cá trazendo muita gente, todo mundo negro.56 Esse panorama mudou a partir de 1991, quando Ilza d’Oxum passa a ser filha-de-santo do babalorixá Ogum Torodê57 que, após ter feito por muitos anos pesquisas na África, tem promovido em vários terreiros espalhados pelo Brasil processos de reafricanização. O pai de santo dela é carioca. A gente teve a oportunidade de conhecê-lo, e a gente se deu muito bem e ele era como um pesquisador. Ele viajou para a África, para a Áustria, e chegando da África ele trouxe tudo aquilo da maneira mais correta, porque quando você passa uma cantiga, uma reza, uma oração, qualquer coisa de boca em boca, aquilo ali sempre vai mudando.58 Ao fazermos as entrevistas, ficou muito claro para nós que as pessoas do terreiro sabem separar muito bem, dentro de seus discursos, a existência desses dois momentos distintos na história do Ilê Osun Oyeye Ni Mó. É muito comum ouvir a expressão “no tempo dos baianos”, em referência ao funcionamento do terreiro antes de 1991. As referências estão espalhadas por todo lugar, seja nas falas ou em um álbum de retratos guardados por Alexandre Valentim com fotos “do tempo dos baianos”, com a seguinte inscrição na capa: velhos tempos. Atualmente o Ilê Osun Oyeye Ni Mó é um terreiro respeitado pela comunidade ketu de 56 Alexandre Fontes, 2000-2001. 57 Todas as informações relativas a Ogum Torodê nos foram dadas por Alexandre Fontes. Sabemos que ele realmente esteve presente na história desse terreiro, pois tivemos acesso a fotos e fitas de vídeo onde ele aparece dando “aulas” aos integrantes do terreiro. Por uma série de motivos não conseguimos entrevistá-lo. 58 Alexandre Fontes, 2000-2001.
  • 52. 52 Fortaleza, sendo suas festas bem freqüentadas e motivo de alegria para todos. Apesar disso tudo esse ilê se vê hoje ameaçado em sua existência. A Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) está desapropriando áreas para construção de novas linhas condutoras, e uma dessas linhas passará nos fundos do terreno onde se encontra o terreiro, praticamente sobre os assentamentos dos orixás. Com isso o ilê de Mãe Ilza d’Oxum terá que mudar de endereço, podendo inclusive mudar de cidade. De qualquer forma a tradição do candomblé em Fortaleza continua se renovando, uma vez que recentemente, no dia primeiro de dezembro de 2001, aconteceu uma festa de entrega de deká no Ilê Osun Oyeye Ni Mó a um filho-de-santo do falecido Pai José Xavier continuando uma tradição que teima em sobreviver. 3.2 – Estrutura física do Ilê Osun Oyeye Ni Mó Para descrever a organização do terreiro estudado dentro do espaço físico contamos com um desenho esquemático feito a partir de nossa observação, e das explicações de Alexandre Fontes, alabê da casa.59 O espaço desse terreiro está em constante mudança e talvez por sua conotação marginal, tem já em sua criação uma transgressão à ordem que delimita o uso dos espaços urbanos da cidade. Quando a mamãe chegou aqui, passava uma rua no meio do terreno. Aqui no meu quarto era pra ser uma rua. Mas aí a gente fechou a rua e juntou os dois terrenos. Quando os filhos-de-santo construíram essa roça fizeram empréstimos e conseguiram levantar tudo. Mas isso aqui já mudou de cara várias vezes... Esse barracão já deve ter mudado de feição 59 Ver figura 2. Os números apontados no texto que se segue estão relacionados a ela.
  • 53. 53 umas sete vezes. A gente acredita que no candomblé a gente não pode deixar as coisas estáveis... Botar as coisas em movimento quebra as energias negativas.60 Pelo lado de fora, a não ser pela palha pendurada no alto do portão e de grãos de milho que às vezes tomam conta da calçada, é praticamente impossível dizer que por trás daqueles muros existe um terreiro de candomblé. Abrindo-se o pesado portão de madeira, já na entrada o terreiro conta com dois assentamentos61 (1), um de cada lado do portão, protegidos por compartimentos cilíndricos sem portas (2). São os dois exus que tomam conta da porta da casa. Eles têm como função proteger o terreiro de energias negativas, feitiços, pessoas mal- intencionadas, ou qualquer tipo de coisa que seja prejudicial ao ilê. Após os assentamentos dos exus, temos à nossa frente, à esquerda, o barracão onde são realizadas as festas públicas e os rituais (3). O barracão tem as paredes abertas, menos uma onde existe um painel pintado com motivos de Oxum. O piso é revestido de cerâmica clara, as colunas de sustentação são pintadas com cal branca, com bancos correndo pelas suas laterais. No centro, destacando-se no piso vemos uma cerâmica diferente que demarca o local onde estão enterrados os fundamentos do terreiro. Esse local chama-se orí axé (4), e é onde a energia do terreiro encontra-se concentrada. Na parede onde está pintado o painel, que dá de frente para o portão da casa, há uma porta (5), por onde entram os filhos-de-santo da casa por ocasião das 60 Alexandre Fontes, 2000-2001. 61 Assentamentos são espécies de altar onde se guardam símbolos ligados aos orixás, onde está concentrada a energia desses deuses, e onde se fazem as oferendas a eles.
  • 54. 54 festas públicas. Do lado esquerdo da porta está o pepelê (6), local onde ficam os três atabaques e os outros instrumentos durante as festas. Ao lado do barracão, existe um corredor, que na verdade é a varanda da casa, e que leva ao interior do terreiro. Ao passar pela lateral do barracão encontramos um pequeno quarto reservado ao jogo de búzios (7). Do lado direito, já separado da construção principal, temos uma pequena construção em forma de castelo para homenagear Oxum, o orixá da mãe-de-santo (8). Nessa construção está o assentamento da Oxum da iyalorixá. Seguindo o corredor, pelo lado da construção principal, ao lado do cômodo do jogo de búzios, temos a porta que leva ao interior da residência da mãe-de-santo62 (9). Pelo lado de dentro da casa, ao lado de quarto dos búzios temos o roncó (10), onde ficam reclusos os iaôs no período de iniciação, ou antes de alguma obrigação. A entrada do roncó se faz pelo lado de dentro da casa, e esse quarto, a não ser pela porta, não tem nenhuma outra comunicação com o exterior. Além desse complexo barração-roncó-residência, existem várias outras pequenas construções espalhadas pela área do terreiro (11). São assentamentos ao ar livre ou casas-de-santo (ilê-orixá) onde está assentado cada um dos orixás, como os de Ogum (12) e Ossain (13). Temos ainda um barracão com teto de palha específico para as celebrações de Obaluaê (14), e um assentamento de Orunmilá (15) num ponto mais afastado do terreiro. Pudemos ainda observar que espalhados pelo terreno, estão árvores canteiros e hortas. Estes abastecem a casa com uma enorme quantidade de folhas, raízes e frutos que vão ser utilizados nos rituais. 62 Dentro de um terreiro vivem geralmente a mãe-de-santo e alguns filhos-de-santo que a elas prestam serviços.
  • 55. 55 Figura 2: Desenho esquemático do Ilê Axé Osun Oyeye Ni Mó. Dentro deste ilê, assim como em qualquer casa de candomblé, vivem muitas pessoas além de mãe-de-santo. Hoje são onze pessoas que moram dentro do terreiro, seja na construção principal onde fica a residência de Mãe Ilza d’Oxum, seja em construções anexas um pouco afastadas da casa principal. Esse número de pessoas, devido à própria dinâmica desta religião está sempre variando. Segundo Alexandre Fontes esse número já chegou em algumas épocas a trinta pessoas. 3.3 – Funcionamento do Ilê Osun Oyeye Ni Mó
  • 56. 56 O Ilê Osun Oyeye Ni Mó, como todo terreiro de candomblé, tem particularidades na sua forma de encaminhar os rituais e de organizar suas festas. Isso não desqualifica de forma alguma o que é feito dentro dele, pois existem, e provavelmente sempre existirão adaptações, como vamos ver mais adiante. Para entender um pouco mais sobre esse terreiro de candomblé vamos ver rapidamente quem são os participantes dessa história. Quem integra e quem freqüenta o Ilê Osun Oyeye Ni Mó. 3.3.1 – Perfil dos integrantes do Ilê Osun Oyeye Ni Mó O integrante do terreiro provém de origens sociais e étnicas as mais diversas, predominando entre eles os de hierarquia mais baixa, gente de baixa renda. Dentro deste ilê existem as mais variadas histórias que contam de pessoas “bem nascidas” da sociedade cearense, que largaram tudo em suas vidas para se dedicarem ao candomblé. Esse seria o caso da própria mãe-de-santo, Ilza Vieira, e da ekédi mais velha da casa, Odete Fontes. O terreiro encontra-se muito bem organizado, sempre aberto, sempre com muitas pessoas dentro dele desempenhando as mais diversas tarefas. Por várias vezes inclusive foi difícil manter um diálogo fluente com os membros do terreiro, não devido a algum tipo de proibição por parte deles, mas devido às suas ocupações freqüentes. O tempo dentro de um terreiro passa de forma diferente, mas ele não pára nunca. Devido a tudo isso, as pessoas que mais contribuíram em depoimentos para essa pesquisa foram Alexandre Fontes, ogãn e alabê da casa, e Thomas Junior, abiãn da casa e nosso amigo pessoal.