Quando a pessoa com deficiência fal em primeiro lugar
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MOVIMENTOS SOCIAIS E CIDADANIA: QUANDO A PESSOA COM
DEFICIÊNCIA MENTAL FALA NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR
Tânia Regina Levada Neves1
INTRODUÇÃO
A trajetória histórica da construção da imagem da pessoa com deficiência
mental impulsiona, ainda hoje, de forma significativa a visão que se tem dessa
população. O imaginário faz vislumbrar um grupo de pessoas infantis, sem
condições de participação e de efetivação de suas próprias escolhas.
Os movimentos organizados e conduzidos por pessoas com deficiência
mental em vários países vêm mostrando que, quando existe a igualdade de
oportunidade para a participação, a própria pessoa se auto-representa numa ação
mais direta e objetiva. Os resultados se apresentam muito mais concretos, uma
vez que partem não de suposições mas de vivências e experiências dentro da
própria deficiência.
O texto que segue procura mostrar parte da história dos movimentos
sociais, buscando situar a pessoa com deficiência mental como alguém que,
estimulada, incentivada e apoiada, fala na “primeira pessoa do singular”, ou seja,
pode ser constituída com auto-advogado, garantindo direitos e deveres, ampliando
o seu próprio conceito de cidadania e levando a uma reflexão sobre o real
conceito da palavra inclusão.
NUMA LONGA CAMINHADA, O PRIMEIRO PASSO...
Os movimentos sociais têm se caracterizado por terem em seu bojo alguns
aspectos essenciais. Podemos dizer que para que, um movimento seja
caracterizado como movimento social, deverá ser analisado dentro dos seguintes
aspectos :
a) representar uma ação grupal voltada para uma transformação;
b) ter sua dinâmica voltada para a realização dos mesmos objetivos;
1
Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de
São Carlos. Professora de Metodologia de Pesquisa Científica do Curso de Direito das Faculdades
COC/Ribeirão Preto. E.mail: levada@universe.com.br
2
c) ter a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos
comuns;
d) ter uma organização diretiva mais ou menos definida.
Um movimento exige uma organização pré-determinada para que possa
assumir o formato de social.
Um outro aspecto a ser considerado é a questão do grupo envolvido nos
movimentos sociais. Na descrição de Scherer-Warrem2 podemos falar em
movimentos sociais quando grupos oprimidos partem em busca de sua libertação
dentro das relações sociais comandadas pela dialética opressão/libertação.
Segundo Scherer-Warrem3 o ”... ideal básico que substancia o agir destes novos
movimentos sociais é o da criação de um novo sujeito social, o que redefine o
espaço da cidadania”.
Assim definidos, podemos identificar hoje como movimentos sociais a
mobilização estabelecida pelas pessoas portadoras de deficiência (grupo
oprimido), organizado com o objetivo de lutar pelo estabelecimento de uma
cidadania plena, dentro de uma dinâmica de movimento que leva até a sociedade
como um todo as necessidades e reivindicações do grupo com o objetivo de
garantir a igualdade de oportunidades.
Definido como grupo de oprimidos, o grupo das pessoas com deficiência foi
acobertado pelo silêncio histórico por muito tempo, sofrendo conseqüências por
atitudes de discriminação e segregação, incompatíveis com a idéia de cidadania e
direitos humanos plenos. Escondidos da sociedade pela própria família ou
isolados em instituições segregadoras, as pessoas com deficiência tiveram poucas
oportunidades de participação na construção social.
Dessa forma, podemos verificar com facilidades fatos tais como: as cidades
foram organizadas e construídas para o modelo ideal de pessoa, cujos atributos
físicos, sensoriais e mentais não devem constituir impedimento para qualquer tipo
de participação. As ruas, os edifícios, as igrejas são enfeitadas com longas
escadarias; as beiradas de calçadas são ornamentadas com floreiras com plantas
cujas folhas se espalham exigindo um desvio; os orelhões são colocados sobre
2
Scherer-Warrem, 1987
3
Scherer-Warrem, 1996, p.54
3
suportes que não permitem dimensionar o seu tamanho real; os ônibus são todos
iguais, não permitindo sua identificação pela cor; as portas de garagem não são
sinalizadas com som ou com luz para alertar o pedestre. Essas citações
constituem uma mínima parcela dos impedimentos que a pessoa com deficiência
encontra no seu dia a dia.
Por terem consciência de suas possibilidades de participação plena e dos
impedimentos criados pelo próprio homem e por sentirem no próprio cotidiano os
efeitos da desinformação e do preconceito, as pessoas com deficiência
resolveram se unir em movimentos de reivindicação e esclarecimento, ou seja, em
movimentos sociais, cujo objetivo é a luta pela igualdade de oportunidades. Essa
igualdade, preconizada pelas Normas Sobre a Equiparação de Oportunidades
para Pessoas com Deficiência (ONU)4, tem sido incansavelmente citada. Porém,
na maioria das vezes, não passa de uma lei de papel para um cidadão de papel,
parafraseando Gilberto Dimenstein.
E foi para fazer valer a lei, tirando do papel e trazendo para o real os
direitos, que as pessoas com deficiência iniciaram uma luta que, se apenas
deflagrada, já permite um novo olhar sobre essa população.
No final do ano de 1978 encontramos, pela iniciativa individual de um
parlamentar5, a primeira tentativa significativa de garantia de direitos às pessoas
com deficiência, tentativa essa com efeitos minorizados pela não participação das
bases interessadas. A própria pessoa com deficiência esteve ausente do
processo, o que não permitiu um resultado mais contundente.
Até 1986, com o objetivo de organizar uma proposta que envolvesse as
pessoas com deficiência, seus direitos e garantias para a nova Constituição
Federal, entidades de deficientes estiveram reunidas para a elaboração de um
documento a ser apresentado às comissões. Entre essas entidades podemos citar
a FEBEC- Federação Brasileira de Entidades de Cegos, a ONEDEF –
Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, a FENEIS –
Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (entre outras). Esse
documento, com quatorze itens apontados foi acatado em sua quase totalidade,
4
ONU, 1994
5
Emenda n.12 de 17 de outubro de 1978 - Deputado Thales Ramalho
4
passando seu conteúdo a fazer parte da Constituição Federal de 1988. Apesar
dessa inclusão no texto constitucional, a grande maioria dos itens depende de
regulamentação sendo para isso necessária força dos movimentos organizados,
cujo poder de pressão e mobilização impulsionará o processo.
Atualmente, entre os movimentos sociais organizados e que abrangem
pessoas com deficiência e pessoas ligadas à deficiência por motivos variados
(pessoais, profissionais), podemos destacar na realidade brasileira duas formas de
organização: os Conselhos de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência
(CDDPDs) e as Organizações Não Governamentais (ONGs).
Através do estudo do funcionamento, organização e objetivos dessas duas
formas de mobilização da população portadora de deficiência, pode-se traçar um
quadro que permitiu analisar a real participação da própria pessoa com deficiência
nos movimentos, sejam eles reivindicatórios ou de prestação de serviços.
CONSELHOS - UMA FORMA DEMOCRÁTICA DE LUTA POR DIREITOS
Um estudo sobre a luta pela conquista da cidadania da pessoa com
deficiência teve a obrigatoriedade de passar pelo conhecimento dos “Conselhos
de Defesa de Direitos da Pessoa com Deficiência” que estão sendo organizados
nas várias esferas da administração pública, ou seja, federal, estadual e municipal.
O estudo teve como objetivo a realização de uma análise comparativa dos
Conselhos. Tal análise justifica-se pela necessidade de uma avaliação da
capacidade de atuação dos Conselhos, especialmente porque se supõe que eles
devam estar voltados para permitir a conquista da cidadania plena, ápice da
inclusão social, garantindo a igualdade de oportunidades de participação e
atendimento a necessidades de caráter coletivo.
O procedimento consistiu em coletar e analisar os textos legais de
implantação dos Conselhos com a finalidade de analisar potenciais influências
destes na construção da cidadania do deficiente no âmbito da sociedade
brasileira. Essa análise foi feita a partir de textos legais, sendo realizado um
5
estudo comparativo dos dispositivos, especialmente no que tange aos objetivos,
composição e procedimento de escolha dos representantes.
1) QUANTO AOS OBJETIVOS:
De maneira geral, os objetivos constantes nas Leis e Decretos analisados
dão uma idéia de organização voltada para a defesa de direitos da pessoa com
deficiência, luta pela melhoria da qualidade de vida, pela transmissão de
informações corretas à população como um todo e à própria população de
pessoas com deficiência, proposição e fiscalização de Políticas Públicas, bem
como manter a Administração Pública informada sobre as necessidades e as
ações voltadas para essa população específica.
2) QUANTO À COMPOSIÇÃO:
A formação do corpo de conselheiros é bastante diversificada. Enquanto
alguns Conselhos têm a participação maciça de representantes de órgãos
governamentais, deixando pouco espaço para a sociedade civil, outros têm como
corpo de conselheiros exclusivamente pessoas com deficiência, cuja função é
estabelecer contatos com os órgãos governamentais responsáveis pela
implementação das políticas requeridas pelo Conselho. Interessante salientar que
alguns Conselhos facultam a participação de pessoas com deficiência mental
enquanto outros ou não têm essa população incluída ou autorizam apenas seus
representantes legais. Também o número de conselheiros é bastante
diversificado, indo de um total de oito titulares e oito suplentes até um total de
quarenta membros. O que pode ser observado é que, quanto maior o número de
conselheiros, menor a participação de pessoas com deficiência.
3) QUANTO AO PROCEDIMENTO DE ESCOLHA DOS CONSELHEIROS:
Na representação da área governamental, a forma adotada é a indicação
pelos Secretários ou pelo próprio Administrador, seja ele o Prefeito, o Governador
ou outra autoridade governamental. Quanto às instituições, não existe uma forma
determinada de escolha dos representantes. No que tange às pessoas com
6
deficiência existe em alguns textos a determinação para que a escolha seja feita
em assembléias realizadas por categorias.
Pela análise realizada, pode-se observar que os CDDPDs constituem uma
tentativa de dar à pessoa com deficiência o direito a voz e voto. Sendo que os
Conselhos devem caracterizar-se pela possibilidade de participação plena das
pessoas com deficiência como conselheiros, quando estarão discutindo e
propondo políticas públicas, é importante garantir a qualquer pessoa o direito a
voz, limitando-se o direito ao voto ao corpo de conselheiros.E, ainda que esse fato
dê uma certa abertura à participação da pessoa com deficiência é importante que
essa participação seja permitida nos momentos de tomada decisão.
Outro ponto interessante a ressaltar é que ainda é grande o preconceito
existente em relação ao portador de deficiência mental. Considerado incapaz de
decidir suas necessidade e estabelecer prioridades, os textos legais limitam a
participação dessas pessoas através de seus representantes legais, um equívoco
a ser esclarecido, pois nem sempre o representante defende os interesses de seu
representando, ainda que legalmente esteja falando por ele.
Finalizando, podemos afirmar que os Conselhos constituem a marca de um
processo histórico democrático. A participação da sociedade civil interessada na
discussão de seus problemas e na proposição de soluções faz parte de um
processo participativo do próprio cidadão, em parceria com o Estado, o que
contraria qualquer orientação governamental autoritária. É, porem, importante
garantir que os Conselhos estejam acima de qualquer interesse do próprio
Governo ou de facções partidárias, constituindo um espaço democrático de
discussão em torno de questões de interesse comum aos seus membros e à
própria sociedade como um todo.
Entretanto, um ponto deve ser ressaltado: muitas iniciativas de solucionar
questões relacionadas a pessoas com deficiência não tiveram êxito pela exclusão
dos interessados nas discussões. As soluções, discutidas nas mais altas esferas e
dentro dos próprios CDDPDs por técnicos, chegam às pessoas com deficiência
como soluções mágicas, o que muitas vezes não constitui a verdade. Dessa
7
forma, inúmeras decisões passam para ao arquivo, permanecendo engavetadas e
dando a impressão de um trabalho intenso.
Muito ainda se deverá caminhar para chegar ao ideal retratado por
ADUAN6, que afirma:
“O Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoas Portadora de
Deficiência, composto por mulheres e homens cujas vidas demonstram que a
deficiência pode tornar-se eficiência, honra a cidade por suas ações coerentes e
merece, além de nossos elogios, o nosso agradecimento pela contribuição que dá
ao fortalecimento de nossos cidadãos.”
ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS – ORGANIZANDO A SOCIEDADE
CIVIL
As organizações não governamentais (ONGs) constituem hoje um
importante canal de organização da sociedade civil que procura, dessa forma,
suprir as lacunas deixadas pelo atendimento governamental nas mais variadas
áreas de atuação.
Segundo Scherer-Warrem7, as “ONGs atuam politicamente de acordo com
a lógica transformadora dos movimentos sociais” devendo, por isso, ser
consideradas e analisadas como movimentos que têm a possibilidade de exercer
a função de defesa e garantia de direitos.
A partir da década de 80, as associações DE e PARA deficientes passaram
a representar um papel fundamental que veio possibilitar a participação das
pessoas com deficiência (ou seus representantes) nos movimentos
reivindicatórios.
A análise documental das ONGs permitiu perceber como essas
organizações refletem a idéia que elas incorporam da pessoa com deficiência e
das necessidades dessa população.
O estudo, avaliando quem são os atores que impulsionam os movimentos
que elas representam, permitiu perceber a participação de pessoas com
deficiências como um indicador importante da legitimidade e representatividade
6
Wanda Engel Aduan, Secretária Municipal de Desenvolvimento Social – Cidade do Rio de
Janeiro- 1997-GESTÃO Prefeito Luiz Paulo F. Conde
7
1999, p.80
8
dessas instituições. Entretanto, ainda está longe de ser ideal o reconhecimento
das associações como organizações de apoio e assessoramento pelos órgãos
responsáveis pela elaboração e execução das políticas de atendimento. Grande
parte das pessoas com deficiência continuam não fazendo parte dessas
associações. Exemplificando, podemos afirmar que, em relação à pessoa com
deficiência mental, apenas um documento menciona a possibilidade de
participação como membro da diretoria. Dessa forma, as associações, ainda com
resquícios de assistencialismo e paternalismo, permitem denunciar em parte o
descrédito de que a pessoa com deficiência possa ser gerenciadora de suas
próprias ações.
“Esse assistencialismo cria a imagem do portador de deficiência como uma
pessoa incapaz de tomar conta de seu próprio destino e fazer suas próprias
reivindicações reforçando ainda mais o estereótipo já existente de que ou somos
incapazes ou “apesar de tudo” somos um “exemplo de vida.” 8
A VOZ DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E DOS DIRIGENTES – O ECOAR DOS
DIREITOS
A imagem que a sociedade faz de uma pessoa determina a atitude que se
espera dela e a sua própria auto imagem. Uma pessoa estigmatizada terá poucas
chances de mostrar seus atributos, uma vez que a imagem que a sociedade faz
dela não é coincidente com aquilo que ela pode fazer ou dizer. Assim vamos
encontrar em Goffman9:
“...um indivíduo que poderia ser facilmente recebido na relação social cotidiana,
possui um traço que pode se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra,
destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um
estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto.”
A pessoa com deficiência tem sido vítima desse estigma. Tidos como
desviantes, desiguais, incapacitados, tiveram sua imagem freqüentemente ligada
a situações que exigiam assistencialismo, pena, repulsa ou qualquer outro
8
Nascimento, SD.
9
1982, p14
9
sentimento de desvalorização do seu lado humano, constituído pela imagem do
indivíduo que pensa, escolhe, consegue estabelecer diretrizes e metas para sua
própria vida.
Essa imagem estigmatizada determinou a formação da identidade da
pessoa com deficiência. E a partir da imagem que a sociedade criou e solidificou
sobre a população de pessoas com deficiência foram organizadas todas as ações.
Nesse processo de estigmatização, as pessoas com deficiência mental são as
mais prejudicadas.
Se ao longo da história as pessoas com deficiência mental foram vistas
como incapazes. “eternas crianças” apenas merecedoras de cuidados e proteção,
hoje essa imagem se modifica e se pode perceber um grupo de pessoas em
busca da cidadania, buscando sua reordenação dentro da organização social,
aumentando a distância entre o paradigma da exclusão e o paradigma da inclusão
de forma muito evidente.
Analisando assim, não seria um disparate dizer que a pessoa com
deficiência mental tem plena consciência de suas necessidades e pode indicar os
caminhos para a solução das injustiças às quais está exposta, bastando apenas
dar a ela a oportunidade de fazer uso de sua voz nas discussões para que possa
apontar suas necessidades a partir do respeito às diferenças.
Quando se busca escutar a sociedade e pessoas que estão de alguma
forma ligadas aos movimentos sociais voltados para as pessoas com deficiência,
fica clara a idéia de que a pessoa com deficiência mental não está apta a
participar de um processo reivindicatório. Essa idéia está presente na organização
da maioria dos movimentos que envolvem as pessoas com deficiência e vem
prejudicando sistematicamente essa população. A manutenção desse preconceito
e a não oportunidade para participar efetivamente tem colocado as pessoas com
deficiência mental em um círculo fechado de atuação, do qual algumas pessoas
não deficientes têm amplo controle. A pessoa com deficiência mental, não
conseguindo ser ouvida ou sequer levada a sério, conforma-se e acomoda-se
numa situação de dependência que, longe de ser positiva, permite a infantilização
extremada, transformando homens e mulheres em eternas crianças, cuja atuação
10
fica restrita a atividades sem qualquer significado ou utilidade, numa ação inócua e
improdutiva.
AUTO-ADVOCACIA – UMA NOVA PROPOSTA PARA PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA MENTAL
A partir da década de 80 podemos observar o crescimento, nos países
desenvolvidos, do movimento pela auto-advocacia iniciado pelas pessoas com
deficiência mental.
O termo AUTO-ADVOCACIA representa o envolvimento da própria pessoa
com deficiência mental na defesa de seus direitos e na expressão de suas
necessidades. E é com essa idéia que o movimento visa equipar as pessoas com
deficiência mental para que possam ser gerentes de sua própria vida, fazendo
valer a sua opinião nas decisões que lhe dizem respeito e que, na grande maioria
das vezes, irão determinar a sua cidadania.
O movimento de auto-advocacia surge revestido da idéia de organização de
grupos para exercer pressão e realizar conquistas, embasado em movimentos que
lutam pelos direitos humanos e garantias de grupos minoritários. São iguais que
se unem para defender interesses comuns e estabelecer políticas de atendimento
de cunho coletivo.
O movimento de auto-advocacia representa a luta pela cidadania, num
movimento praticado por pessoas com deficiência mental, individualmente ou em
grupos: indivíduos e grupos que, apoiando-se mutuamente, buscam melhoria de
vida e garantia de direitos para todos que se encontram nas mesmas condições,
não limitando as ações a um grupo diferenciado, devendo o movimento ser aberto
a todo aquele que queira participar, ainda que haja muita dificuldade inicial. O
estigma da incapacidade, porém, que esteve presente durante séculos na
realidade dessa população, deixou uma profunda marca difícil de ser combatida. O
descrédito e a impossibilidade de exercer o direito de participação ativa constituem
ainda uma realidade a ser combatida.
11
“Pessoas com deficiência mental necessitam de tempo e um suporte forte para
desenvolver habilidades para participar no processo democrático que envolve o
trabalho de um grupo. O movimento People First tem mostrado que até as
pessoas com deficiências mais graves podem participar. Alguns oferecem apoio
com a sua presença. Outros, como pessoas com Síndrome de Down, são
membros de comitês e secretarias dos grupos e competentes expositores.”10
Ainda hoje, as barreiras que se impõem a esse movimento são muitas e
dificultam a concretização do objetivo das pessoas com deficiência mental em
firmar-se como capazes de estabelecer suas próprias diretrizes de vida, como
qualquer pessoa. Entretanto, quando se toma ciência das oportunidades que o
movimento vem dando a esse grupo de pessoas no sentido de configurar-se como
cidadãos participantes, é impossível negar a sua importância para o processo de
inclusão social. Podemos afirmar que, estimuladas e apoiadas, as pessoas com
deficiência mental conseguem mostrar a importância de terem voz própria para
expor suas necessidades e expectativas, deixando claro que muitas vezes,
quando são representadas, não vêem representados também seus anseios de
cidadania. Quando têm a oportunidade de expor suas expectativas,
diferentemente daquilo que supõe o senso comum, as pessoas com deficiência
mental anseiam por oportunidades de trabalho, de estudo e de convivência em
condições de igualdade em relação a outras pessoas. E a forma como isso pode e
deve ser feito precisa ser estabelecida através delas próprias, pois só a elas é
possível a real experiência de serem pessoas com deficiência mental, que
lidam na vida diária com a atitude das outras pessoas nas mais variadas
situações. Só a elas é possível a avaliação da sensação de ser um adulto tratado
como criança eterna, sem possibilidade de ter seus direitos de participação
respeitados.
No trabalho de auto-advocacia, as pessoas com deficiência mental
conseguem ganhar aquilo que mais necessitam: o respeito como seres
humanos. Longe do assistencialismo, do paternalismo, da infantilização, essas
pessoas querem ser vistas como adultos que podem (e devem) defender seus
diretos e ter seus deveres no dia a dia como qualquer outra pessoa.
10
Williams & Shoultz,1982: p.64
12
Como foi dito ao início, os movimentos sociais em defesa dos direitos das
pessoas com deficiência vêm assumindo um papel cada vez mais importante e
significativo, cuja finalidade é advogar a garantia dos direitos fundamentais
básicos e os serviços necessários para assegurar uma inclusão social ampla.
A despeito da constatação bastante positiva da existência dessas
organizações, os atores desses movimentos, apesar de reconhecerem a
importância de incentivá-los, apontam ao mesmo tempo a necessidade de mudar
a natureza paternalista, assistencialista, fragmentada e corporativista dos próprios
movimentos a fim de ampliar a participação das pessoas com deficiências no
âmbito dos mesmos. Essa natureza individualista, paternalista e assistencialista
dos movimentos é mais crítica quando se trata de portadores de deficiência
mental. Conforme aponta Glat11:
“O poder exercido pelos especialistas sobre as pessoas com deficiência mental é
de natureza autocrática e paternalista. Mesmo nas associações e movimentos em
prol dos direitos dos excepcionais, a participação destes, conforme foi discutido, é
praticamente inexistente.”
A autora aponta ainda que o paternalismo e o autoritarismo frente às
pessoas com deficiência mental estão institucionalizados:
“Esse poder se manifesta de diversas maneiras: em termos administrativos,
decidindo sobre a alocação de recursos e política institucional; em termos clínicos,
determinando o tipo de tratamento e os métodos educacionais que o cliente
receberá; em termos acadêmicos, formulando as teorias e concepções a respeito
da natureza e causa das deficiências, assim como a formação da próxima
geração de especialistas.”12
Tem-se, assim, uma visão da interferência excessiva de pessoas sem
deficiência nos processos decisórios, em particular profissionais a quem se atribui
a tarefa de decidir sobre fatos muitas vezes até corriqueiros, sem consultar a
própria pessoa com deficiência mental.
Acrescente-se aos profissionais que atuam com a deficiência mental os
familiares dessas pessoas. Na maioria das vezes imbuídas de muita abnegação e
11
1989; 24.
12
Glat,1989;p.24
13
voltadas para a preservação da pessoa frente à sociedade, não permitem que a
pessoa participe do processo de amadurecimento do qual ela pode ser capaz,
impedindo sua manifestação nos momentos de decisão sobre seu próprio destino,
sobre as coisas que lhe são agradáveis (ou não), sobre as responsabilidades que
lhe vão caber para que possa exercer seu direito de participação. Os familiares
parecem agir sem qualquer intenção danosa, mas com a clara intenção de
resguardar. Entretanto, os portadores de deficiência mental:
“...continuam calados em seu canto, passivamente recebendo o que lhe é
oferecido pelo conjunto de pessoas – profissionais e familiares – que atuam como
intermediários em sua relação com o mundo exterior. Cristaliza-se assim um
círculo vicioso: não se dá espaço para o deficiente mental falar – ele fica calado –
continua-se falando por ele, pois ele não tem nada a dizer.”13
Além disso, o que se pode verificar é que, apesar do pleno conhecimento
que se tem da importância do processo educacional na formação do cidadão
participante, quando se trata da educação para a cidadania de pessoas com
deficiência mental essa visão parece dificultada. A interação entre os movimentos
educacionais e os movimentos sociais, ainda não tem o sentido abrangente que
se postula. A educação, que deveria dar à pessoa com deficiência mental a
possibilidade de uma visão universal de ser, estar e fazer que a libertasse do
assistencialismo, limita-se a um número significativo de ações particulares, cujo
objetivo é resolver problemas imediatos e individuais, muito distante do caráter
universal e social .
Olshansky14 afirma que muito do que se é depende da qualidade e
freqüência de oportunidades. Isso aponta para a necessidade de abrir espaços
para que a pessoa com deficiência mental possa participar, ela mesma, do
processo de construção de políticas de atendimento com caráter não
segregacionista.
A falta de oportunidade de participação constatada no âmbito dos
movimentos permite questionar seriamente se as pessoas com deficiência mental
não estão sendo subestimadas em sua capacidade de participação. Não seriam
13
Glat-1989:p.25
14
(apud Glat,1989:p.25)
14
os próprios movimentos (e as pessoas neles envolvidas) os responsáveis pela não
concessão de oportunidades à essa população para que venham a participar de
discussões e com isso conseguir desenvolver um processo de integração/inclusão
muito mais concreto do que o que se tem presenciado? Negar o direito de
participação nos movimentos instituídos na sociedade é negar que as pessoas
com deficiência mental possam estar integradas, o que acaba por se transformar
em uma idéia conflitante e incoerente. Principalmente porque, no movimento de
auto-advocacia, tem-se a confirmação das possibilidades de participação coerente
e segura por parte dessa população.
No Brasil, estamos distantes da idéia de auto-advocacia da pessoa com
deficiência mental. Ainda que muito tenha sido conquistado, que o país tenha uma
das mais modernas e completas legislações, muito falta para permitir a
participação plena dessa população específica.
E, em tempos de inclusão e de propostas de sociedade inclusiva, constitui
uma atitude conflitante negar a um cidadão a oportunidade de tomar suas próprias
decisões. Pelo contrário, muito longe da idéia de incluir socialmente está a postura
de não dar voz aos maiores interessados e àqueles que terão sua vida
definitivamente determinada pelas atitudes que possam vir a ser tomadas. Se hoje
se propagam as idéias de uma democracia participativa, determinada esta pela
Constituição Federal, apontando para a concretização de um processo de
construção de uma sociedade mais justa, como deixar de lado e negar o direito de
participação a parcela da população constituída pelos portadores de deficiência
mental que até hoje colhe as conseqüências de posturas preconceituosas?
Se a meta em relação às pessoas com deficiência mental é incluir e
permitir a igualdade de oportunidades sociais, não se pode nem mesmo falar
de uma participação simbólica na qual o indivíduo estaria representado, mas sim
de uma “participação ativa não só nas ações desenvolvidas, mas também na
planificação/concepção das mesmas e nos processos decisórios.” 15
Além disso, esse conceito de participação deve estar definitivamente
atrelado ao conceito de empowerment, o qual, segundo Silva (1998), permitirá
15
Silva,1998: p.194
15
potencializar as possibilidades de participação de uma população anteriormente
passiva. Assim, possibilitando que as pessoas com deficiência mental se sintam
valorizadas e tenham capacidade para constituírem-se como ”agentes causais na
16
procura de soluções para os seus problemas” , permite-se que eles próprios
possam constituir-se em “agentes para a resolução tanto das suas necessidades
imediatas quanto da modificação das suas condições de vida” 17.
Essa posição é importante se levarmos em consideração que as
representações negativas que a própria pessoa com deficiência mental tem de si
são muitas vezes fator de impedimento para uma inclusão ampla, com segurança
e com condições de participação plena. Dar oportunidade de fazer uso de seu
poder para decidir, valorizando habilidades e capacidade de participação, é a
melhor forma de mostrar às pessoas com deficiência mental e à sociedade as
suas potencialidades para modificar os seus contextos de vida18.
A pessoa com deficiência mental deve ter a oportunidade de poder
considerar a ela mesma como um indivíduo do mundo, para que se possa permitir
a participação ativa. É preciso dar a ela a oportunidade de se adaptar ao que
propaga Paulo Freire:
“A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a
imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me
fazem ser não apenas no mundo mas com o mundo e com os outros. Um ser
capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar. É nesse sentido que
mulheres e homens interferem no mundo enquanto outros animais apenas mexem
nele.”19
Ainda buscando Paulo Freire, podemos estender suas colocações sobre as
classes populares às pessoas com deficiência mental:
“Coerente com a minha posição democrática estou convencido de que a
discussão em torno do sonho ou do projeto de sociedade por que lutamos não é
privilégio das elites dominantes nem tampouco das lideranças dos partidos
progressistas. Pelo contrário, participar dos debates em torno do projeto diferente
16
Payne apud Silva,1998:p.196
17
Payne apud Silva,1998:p.196.
18
Silva,1998
19
Freire, 2000:p.42
16
de mundo é um direito das classes populares que não podem ser puramente
“guiadas” ou empurradas até o sonho por suas lideranças.”20
Os movimentos de pessoas com deficiência precisam resgatar, na pessoa
com deficiência mental, nos dirigentes e na sociedade como um todo, o crédito na
pessoa com deficiência como cidadão com deveres e direitos. Garantias
legais existem e já mostraram que, pela simples existência, não são suficientes
para garantir a participação e a equiparação de oportunidades. Dar a voz a essa
população talvez seja a única forma de organizar políticas públicas conscientes e
coerentes com as suas necessidades de participação social.
Com essa postura, demonstra-se que qualquer pessoa pode e deve ser o
guia de sua própria vontade, de seus sonhos, sem limitações. Entretanto, fica no
ar a pergunta exposta pelo Professor Dybwad:
“Não importa perguntarmos se as pessoas estão habilitadas para
expressar-se; cabe, sim, perguntar a nós mesmos: estamos preparados
para ouvi-las ?”21
20
Freire, 2000:p.43
21
(Williams & Shoultz,1984:p.65)
17
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