1. Episódio “A Tempestade”
Os Lusíadas, Luís de Camões
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Mas neste passo,assi prontosestando,
Eis o mestre,que olhandoosaresanda,
O apitotoca: acordam, despertando,
Os marinheirosdüae doutrabanda.
E, porque o ventovinharefrescando,
Os traquetesdasgáveastomarmanda.
- «Alerta(disse) estai,que oventocrece
Daquelanuvemnegraque aparece!»
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Não eramos traquetesbemtomados,
Quandodá a grande e súbitaprocela.
- «Amaina(disse omestre agrandes
brados),
Amaina(disse),amainaagrande vela!»
Não esperamosventosindinados
Que amainassem,mas,juntosdandonela,
Em pedaçosa fazemcum ruído
Que o Mundo pareceuserdestruído!
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O céu fere comgritosnistoa gente,
Cum súbitotemore desacordo;
Que,no romperda vela,anau pendente
Toma grão suma d'água pelo bordo.
- «Alija(disse omestre rijamente),
Alijatudoao mar,não falte acordo!
Vãooutros dar à bomba,não cessando;
À bomba,que nosimosalagando!»
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Corremlogoos soldadosanimosos
A dar à bomba;e, tantoque chegaram,
Os balançosque osmares temerosos
Deram à nau,num bordoos derribaram.
Três marinheiros,durose forçosos,
A menearoleme nãobastaram;
Talhaslhe punham, düae doutra parte,
Semaproveitardoshomensforçae arte.
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Os ventoseramtaisque não puderam
Mostrar maisforça d'ímpetocruel,
Se pera derribarentãovieram
fortíssimaTorre de Babel,
Nosaltíssimosmares,que cresceram,
A pequenagranduradumbatel
Mostra a possante nau,que move espanto,
Vendoque se sustémnasondastanto.
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A nau grande,emque vai Pauloda Gama,
Quebradolevaomasto pelomeio,
Quási toda alagada;a gente chama
Aquele que asalvaro mundoveio.
Não menosgritosvãosao ar derrama
Toda a nau de Coelho,comreceio,
Conquantoteve omestre tantotento
Que primeiroamainouque desse ovento.
2. Episódio “A Tempestade”
Os Lusíadas, Luís de Camões
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Agora sobre as nuvensossubiam
As ondasde Neptunofuribundo;
Agora a verparece que deciam
As íntimasentranhasdoProfundo.
Noto,Austro,Bóreas,Áquilo,queriam
Arruinara máquinado Mundo;
A noite negrae feiase alumia
Cos raiosemque o Pólotodo ardia!
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As Alcióniasavestriste canto
Juntoda costa brava levantaram,
Lembrando-se de seupassadopranto,
Que as furiosaságuaslhe causaram.
Os delfinsnamorados,entretanto,
Lá nascovas marítimasentraram,
Fugindoà tempestade e ventosduros,
Que nemno fundoosdeixaestarseguros.
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Nuncatão vivosraiosfabricou
Contra a ferasoberbadosGigantes
O grão ferreirosórdidoque obrou
Do enteadoasarmas radiantes;
Nemtantoo grão Tonante arremessou
Relâmpadosaomundo,fulminantes,
No grão dilúviodondesósviveram
Os dousque emgente as pedras
converteram.
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Quantosmontes,então,que derribaram
As ondasque batiamdenodadas!
Quantasárvoresvelhasarrancaram
Do ventobravoas fúriasindinadas!
As forçosasraízesnão cuidaram
Que nunca perao céu fossemviradas
Nemas fundasareiasque pudessem
Tanto os maresque emcima as
revolvessem.
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VendoVascoda Gama que tão perto
Do fimde seudesejose perdia,
Vendoorao mar até o Infernoaberto,
Ora com nova fúriaao Céusubia,
Confusode temor,davidaincerto,
Onde nenhumremédiolhe valia,
Chama aquele remédiosantoe forte
Que o impossíbil pode,destasorte:
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- «DivinaGuarda,angélica,celeste,
Que os céus,o mar e terra senhoreias:
Tu, que a todo Israel refúgiodeste
Por metade daságuas Eritreias;
Tu, que livraste Pauloe defendeste
Das Sirtesarenosase ondasfeias,
E, guardaste,cos filhos,osegundo
Povoadordoalagadoe vácuo mundo:
3. Episódio “A Tempestade”
Os Lusíadas, Luís de Camões
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Se tenhonovosmedosperigosos
Doutra Cilae Caríbdis jápassados,
Outras Sirtese baxosarenosos,
OutrosAcroceráuniosinfamados;
No fimde tantoscasos trabalhosos,
Porque somosde Ti desamparados,
Se este nossotrabalhonão te ofende,
Mas antesteuserviçosópretende?
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Oh ditososaquelesque puderam
Entre as agudaslançasAfricanas
Morrer, enquantofortessustiveram
A santa Fé nas terrasMauritanas;
De quemfeitosilustresse souberam,
De quemficammemóriassoberanas,
De quemse ganhaa vidacom perdê-la,
Doce fazendoamorte as honras dela!»
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Assi dizendo,osventos, que lutam
Comotouros indómitos,bramando,
Mais e maisa tormentaacrecentavam,
Pelamiúdaenxárciaassoviando.
Relâmpadosmedonhosnãocessavam,
Ferostrovões,que vêmrepresentando
Cair o Céudoseixossobre aTerra,
ConsigoosElementosteremguerra.
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Mas jáa amorosaEstrelacintilava
Diante doSol claro,no horizonte,
Mensageiradodia,e visitava
A terra e o largo mar, com ledafronte.
A Deusaque nosCéusa governava,
De quemfoge oensíferoOrionte,
Tanto que o mar e a cara armada vira,
Tocada juntofoi de medoe de ira.
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- «Estasobras de Baco são, por certo
(Disse),masnãoseráque avante leve
Tão danada tenção,que descoberto
Me será sempre omal a que se atreve.»
Istodizendo,dece aomar aberto,
No caminhogastandoespaçobreve,
Enquantomanda as Ninfasamorosas
Grinaldasnascabeças pôr de rosas.
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Grinaldasmandapôr de várias cores
Sobre cabeloslourosaporfia.
Quemnão diráque nacem roxasflores
Sobre ouro natural,que Amorenfia?
Abrandardetermina,poramores,
Dos ventosa nojosacompanhia,
Mostrando-lhe asamadasNinfasbelas,
Que maisfermosasvinhamque asestrelas.
4. Episódio “A Tempestade”
Os Lusíadas, Luís de Camões
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Assi foi;porque,tantoque chegaram
À vistadelas,logolhe falecem
As forçascom que dantespelejaram,
E já como rendidoslhe obedecem;
Os pése mãos parece que lhe ataram
Os cabelosque osraiosescurecem.
A Bóreas,que dopeitomaisqueria,
Assi disse abelíssimaOritia:
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- «Nãocreias,feroBóreas,que te creio
Que me tiveste nuncaamorconstante,
Que brandura é de amor maiscertoarreio
E não convémfurora firme amante.
Se já não põesa tanta insâniafreio,
Não esperesde mi,daqui emdiante,
Que possamais amar-te,mastemer-te;
Que amor, contigo,emmedose converte.»
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Assi mesmoa fermosaGalateia
Diziaao feroNoto,que bemsabe
Que dias há que em vê-lase recreia,
E bem crê que comele tudoacabe.
Não sabe o bravotanto bemse o creia,
Que o coração nopeitolhe nãocabe;
De contente de verque a dama o manda,
Poucocuida que faz,se logoabranda.
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Destamaneiraas outras amansavam
Subitamente osoutrosamadores;
E logo à lindaVénusse entregavam,
Amansadasas irase os furores.
Ela lhe prometeu,vendoque amavam,
Sempiternofavoremseusamores,
Nas belasmãostomando-lhehomenagem
De lhe seremleaisestaviagem.
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Já a manhã clara dava nosouteiros
Por onde o Gangesmurmurandosoa,
Quandoda celsagáveaos marinheiros
Enxergaramterra alta,pelaproa.
Já fora de tormentae dos primeiros
Mares, o temorvão dopeitovoa.
Disse alegre opilotoMelindano:
- «Terraé de Calecu,se não me engano.
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«Esta é,por certo,a terra que buscais
Da verdadeiraÍndia,que aparece;
E se do mundomaisnãodesejais,
Vossotrabalholongoaqui fenece.»
Sofreraqui não pôde o Gama mais,
De ledoemverque a terra se conhece;
Os giolhosnochão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deusagardeceu.
5. Episódio “A Tempestade”
Os Lusíadas, Luís de Camões
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As graças a Deusdava, e razão tinha,
Que não somente aterra lhe mostrava
Que,com tantotemor,buscandovinha,
Por quemtantotrabalhoexprimentava,
Mas via-se livrado,tãoasinha,
Da morte,que no mar lhe aparelhava
O ventoduro,férvidoe medonho,
Comoquemdespertoude horrendosonho.