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1. O FRACASSO ESCOLAR EM PERSPECTIVA
1.1. Algumas considerações sobre a realidade educacional
brasileira
O fracasso escolar – aqui entendido como as sucessivas repetências,
excessiva permanência e conseqüente abandono da escola pôr parte de crianças
oriundas, em sua maioria, das classes populares – tem sido um persistente
problema social para aqueles que realmente se interessam e se preocupam com a
educação dos brasileiros, na medida em que impede o exercício da cidadania, o
acesso ao conhecimento e à qualidade de vida pela população, assim como pode
vir a comprometer o desenvolvimento mais amplo da nação e sua inserção no
mercado internacional.
Segundo FLETCHER & RIBEIRO (1987), aproximadamente 53,7 %
das matrículas de crianças na primeira série é de repetentes, contra 57,4 % em
1943, o que demonstra que, em nosso país, a situação de excessiva reprovação de
escolares não mudou com o passar dos anos.
Na década de oitenta, de acordo com BRANDÃO (1983), de cada mil
(1000) crianças matriculadas na primeira série, quatrocentos e trinta e oito (438)
foram promovidas para a segunda série, trezentos e cinqüenta e duas (352) para a
terceira série e duzentos e noventa e sete (297) alunos chegaram à quarta série do
primeiro grau. Ainda em relação à década de oitenta, estimativas apontam que
três (03) milhões de crianças abandonaram a escola primária e secundária,
enquanto seis (06) milhões foram reprovados (AMORIM, Folha de São Paulo,
1990).
Com relação ao fluxo escolar da rede de ensino do estado de São
Paulo, nota-se que, no ano de 1990 (Quadro 1), permanecem altos os índices de
evasão e repetência de alunos, principalmente nas primeiras séries:
QUADRO 1
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Fluxo Escolar da Rede Estadual de Ensino de São Paulo - 1990
Série Transferências Retidos Retidos Promovidos Total
Abandono por por
freqüência avaliação
CBI 56.736 65.792 0 0 622.304 744.832
CBC 72.936 66.886 4.963 260.786 578.837 984.408
a
3 série 8.979 41.331 2.730 107.114 530.851 731.005
Fonte: CIE - Secretaria da Educação de São Paulo - 1991 (extraído de Secretaria da Saúde de
São Paulo, Reflexões sobre uma Atuação Conjunta Saúde Educação frente à Saúde Mental do
Escolar de 1o Grau. 1993)
Uma análise geral dos números acima revela que o índice de alunos
retidos por avaliação e por freqüência é maior que o índice de alunos evadidos da
escola e, mesmo considerando-se as possíveis inadequações estatísticas e o uso
de definições imprecisas (como “retido por freqüência” e “abandono”), tais dados
ilustram a gravidade da problemática do fracasso escolar na realidade
educacional brasileira.
MELLO (1993), numa análise a respeito da expansão quantitativa do
ensino brasileiro e de alguns mitos sobre o fracasso escolar conclui que, na
realidade, não há déficit de vagas no ensino fundamental – argumento usado
freqüentemente para justificar os baixos indicadores educacionais – e adverte
sobre a incapacidade do ensino fundamental brasileiro em escolarizar a
população como um todo, o que resulta no sofrimento de centenas de milhares de
crianças cujas famílias, efetivamente, valorizam a educação formal e esforçam-se
para manter seus filhos nas escolas.
Segundo a autora, a situação de insuficiência de vagas deveu-se à
desqualificada expansão qualitativa do sistema educacional brasileiro nas
décadas de 70 e 80, que acabou por aumentar o número de vagas nas escolas sem
que a qualidade do ensino, nos mesmos patamares, fosse melhorada:
“As políticas de expansão quantitativa e extensão da
escolaridade obrigatória adotadas nas décadas de 70 e 80,
ampliaram o acesso à escola, com base no legítimo princípio
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da democratização de oportunidades, mas não se
empreenderam esforços para responder às questões de
qualidade no ensino que, já naquela época, emergiam em
nosso país”. (p.41)
O acesso ao ensino no Brasil está praticamente universalizado, o que
significa que as crianças efetivamente chegam à escola. Segundo ainda a autora,
pesquisa do IBGE realizada em 1988, indicou que 95% das crianças de cada
geração tiveram acesso à 1a série, em algum momento de suas vidas.
Estudos estatísticos (por exemplo RIBEIRO, 1993) apontam que os
anos de permanência da criança na escola vêm aumentando significativamente e
que os alunos só a abandonam após uma série de repetências, indicando que a
população procura manter-se na escola e que, provavelmente, não são os alunos
ou suas famílias que a desvalorizam. Ainda segundo RIBEIRO (op. cit.), o dado
mais impressionante desses estudos é que, apesar do sistema educacional
brasileiro oferecer, em média, 8,6 anos de escola fundamental, os que conseguem
graduar-se permanecem na escola, em média, 11,7 anos e os evadidos, 6,7 anos.
Por exemplo, se uma criança ingressar na 1 a série aos 7 anos somente sairá
graduado da 8a série aos dezoito (18) anos.
MELLO (op. cit.) considera, ainda, que a mais grave conseqüência do
fracasso escolar é o dano causado à auto-imagem e à auto-estima de milhares de
crianças, as quais definem suas expectativas de desempenho futuro a partir de
uma experiência escolar inicial, marcada por sentimentos de incapacidade e
inadequação.
Coloca, também, que uma das derivações do aumento quantitativo do
acesso às escolas seria a incorporação do conceito de “fracasso escolar” como
algo inerente e natural ao processo educativo e a utilização generalizada da idéia
de que os alunos fracassam porque são “pobres” e porque eles próprios ou suas
famílias não valorizam a escola e o ensino.
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Diante da situação de múltiplas repetências que vêm caracterizando o
fluxo escolar de um grande contingente de alunos das escolas brasileiras, levanta-
se a hipótese de que essas crianças vivem uma história escolar tal que as
desmotivam e às suas famílias, levando-as a sair da escola e, conseqüentemente,
a ingressar precocemente no mercado de trabalho.
Portanto, o mito de que a criança não tem acesso à escola e a
abandona por que ela ou sua família a desvalorizam e ao ensino é falso, quando
defrontado com os dados estatísticos discutidos acima.
1.2. Algumas explicações teóricas para o fracasso escolar
No sentido de se compreender mais profundamente algumas teorias
explicativas sobre o fracasso escolar, julga-se necessário a realização de uma
rápida retrospectiva histórica da educação no Brasil neste século (SÃO PAULO,
1993).
Na década de vinte a escola atendia, prioritariamente, à clientela de
escolares pertencentes à classe dominante da época, ou seja, os filhos da classe
fundiária, da burguesia industrial e da classe média emergente, sendo o ensino
oferecido, em sua maioria, por instituições religiosas. Estatísticas mostram que a
maioria da população brasileira naquele período era de analfabetos.
Nos anos trinta, após a queda da República Oligárquica, ocorrem
intensas mudanças políticas e econômicas no país, advindas da transformação
gradual da sociedade agrária da época para uma sociedade industrial, urbana e
capitalista. A tendência à industrialização e a disseminação da ideologia liberal
representa, para o sistema educacional brasileiro, o pensamento de que a
educação seria dirigida para o desenvolvimento do cidadão e, conseqüentemente,
para a nação, surgindo daí os movimentos de educação popular.
Durante duas décadas (1940 a 1960), a rede de ensino expandiu-se e o
aumento do número de escolas públicas no país e do acesso da população ao
sistema educacional intensificou as preocupações da sociedade e das autoridades
educacionais com a questão da repetência e evasão escolar. Na década de
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cinqüenta, por exemplo, o índice de repetência girava em torno de 14 % e a
maioria dos estudos realizados nesse período atribuem como principal causa do
fracasso escolar os problemas individuais dos alunos. Em meados da década de
cinqüenta, a repetência passou a ser cada vez mais compreendida pelos teóricos
da educação como o resultado de um mecanismo de seletividade existente na
escola pública brasileira.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação n o 4024/61, direcionou-se
para a obrigatoriedade da escola primária, condição considerada essencial para o
ideal democrático vigente; apesar da extensão da escolaridade, os índices de
reprovação continuavam assumindo proporções preocupantes.
Por sua vez, a Lei de Diretrizes e Bases n o 5692 de 1971, alterou a
estrutura do sistema educacional brasileiro, através da criação do curso de
primeiro grau e da união dos cursos primário e ginasial existentes na época; além
disso, estendeu a obrigatoriedade de oferecimento de escolaridade aos cidadãos
de sete a quatorze anos aumentando, assim, os deveres do Estado com o ensino
público. Entretanto, durante essa mesma década, assim como nas seguintes,
persiste o mecanismo de exclusão da clientela escolar através das sucessivas
repetências e do abandono escolar.
Atualmente, como foi dito, o conceito de fracasso escolar vem se
definindo cada vez mais como o processo no qual um grande contigente de
alunos, geralmente pertencentes às camadas sociais desfavorecidas, apresentam
repetências sucessivas, principalmente nas séries iniciais, fazendo com que
permaneçam mais tempo na escola do que o esperado e, conseqüentemente,
desistam de investir em sua escolarização.
No decorrer da história da educação o fracasso escolar foi conceituado
de várias maneiras, assim como muitas teorias pretenderam lançar explicações
sobre a sua natureza.
CARRAHER, CARRAHER e SCHILEMANN (in CARRAHER e
CARRAHER, 1993), classificam as teorias explicativas sobre o fracasso escolar
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em três tipos, de acordo com o foco de atribuição: quando o insucesso é atribuído
ao indivíduo, a uma classe social ou ao sistema social, econômico e político.
Do conjunto de teorias que atribuem a responsabilidade do fracasso
escolar ao indivíduo, CARRAHER et alli (op. cit. ) citam a chamada teoria da
“privação” ou “carência” cultural. Tal teoria parte do princípio de que os
processos psicológicos são determinados por experiências ocorridas nos
primeiros anos de vida, experiências estas que crianças de ambientes culturais
deficientes não teriam oportunidade de vivenciar. De acordo com essa tendência
teórica, crianças de ambientes “desfavorecidos” culturalmente apresentariam
déficits de ordem cognitiva, afetiva e social que resultariam em distúrbios
psiconeurológicos, desvalorização de seu auto - conceito, além de falhas na
aquisição dos conceitos básicos considerados necessários para a alfabetização e o
aprendizado de operações lógico - matemáticas
No que se refere especificamente à linguagem, BERNSTEIN (1961 in
PATTO, 1991) defende a idéia de que é necessário estabelecer sistematicamente
relações entre as experiências anteriores dos alunos e as medidas educacionais
por acreditar – baseado em pesquisas da época – que as crianças de classe baixa
sentem dificuldades em acompanhar o ensino formal e que, invariavelmente,
apresentarão dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita, dentre outras
defasagens: “...a leitura e a escrita serão lentas (...) a capacidade de
compreensão verbal será limitada; a gramática e a sintaxe lhe serão indiferentes
(...) o pensamento tenderá a ser rígido ...” (p.131)
Ainda segundo BERNSTEIN, as dificuldades dos alunos em relação
ao processo de aquisição da leitura e escrita seriam devido à dicotomia existente
entre o código restrito, estilo de linguagem característico das classes
desfavorecidas e o código elaborado, ou seja, a linguagem formal adotada nos
meios escolares. Os alunos da classe baixa, ao se defrontarem com o código
elaborado da escola vivenciariam situações embaraçosas e seriam mais
propensos ao fracasso escolar por não estarem preparados para o tipo de
comunicação verbal exigida pelo sistema educacional.
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Retomando a retrospectiva sobre as teorias explicativas sobre o
fracasso escolar, PATTO (1993) coloca que, ao longo das décadas de sessenta a
setenta, os conceitos de “privação” e “carência” cultural acabaram suplantando a
visão escolanovista da educação como o processo de formação do cidadão; a
função da escola passaria a ser a “cura” ou “reabilitação” de deficiências
manifestadas, prioritariamente, por indivíduos pertencentes às camadas sociais
menos favorecidas. Assim, os valores das classes sociais dominantes seriam
considerados como os mais adequados à promoção de um desenvolvimento
psicológico sadio, em contraposição às supostas falhas ou inadequações
existentes no ambiente cultural das classes sociais empobrecidas, falhas essas
vistas como interferências negativas no desenvolvimento infantil.
Assim, para solucionar o problema de insucesso escolar seria
necessário a elaboração de programas de caráter preventivo e/ou remediativo
das deficiências dos alunos, surgindo as propostas de desenvolvimento de
programas de “educação compensatória” que, segundo PATTO (1993), teriam
como objetivo geral: “... reverter os supostos efeitos nefastos que o ambiente
familiar e vicinal (...) produziriam sobre o desenvolvimento dos membros
jovens das classes exploradas.” (p.213)
No Brasil, por exemplo, foram elaborados programas especiais de
caráter remediativo das deficiências oriundas da “privação cultural” aos quais os
indivíduos supostamente teriam sido submetidos. Dentre os programas de
“educação compensatória” desenvolvidos no país, PATTO (1991) destaca o
trabalho realizado pela Secretaria do Bem - Estar Social da Prefeitura de São
Paulo e o estudo de POPPOVIC e colaboradores que resultou na elaboração do
chamado “Projeto Alfa” (POPPOVIC, 1977).
Em oposição ao movimento da “privação ou carência cultural”, surge
a teoria das “diferenças culturais” a partir da idéia defendida por teóricos das
Ciências Sociais e Antropologia os quais acreditavam ser impossível comprovar a
tese da superioridade de uma cultura em relação à outra. Dessa maneira, os
indivíduos pertencentes à classes sociais menos favorecidas não seriam
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portadores de padrões culturais deficientes e sim diferentes daqueles pertencentes
às classes mais favorecidas.
Para CARRAHER et alii (1993), entretanto, a abordagem que atribui o
fracasso escolar à classe social, parte da idéia de que é a situação sócio-
econômica das classes baixas que determina que seus membros não dêem
importância à educação formal, já que não a valorizam. Sob essa perspectiva, a
educação formal seria desnecessária quando defrontada com o ingresso do
indivíduo no mercado de trabalho para auxiliar o sustento familiar. Portanto, a
escolarização incompleta não poderia ser considerada, na realidade, como um
fracasso, já que o sucesso escolar não seria de fato almejado pelos indivíduos
dessas classes sociais.
A chamada teoria das “diferenças culturais” teve, segundo PATTO
(op. cit.), o mérito de atentar para as condições do ensino, tendência que se
consolidou nas pesquisas educacionais desenvolvidas no final da década de
setenta e início de oitenta.
Influenciados pela Teoria da Reprodução (cujos principais
representantes são Bordieu, Passeron, Stablet, Baudelot e Althusser) concebeu-
se, de acordo com CARRAHER et alii (1993), uma outra explicação sobre a
natureza do fracasso escolar, o qual seria decorrente da seletividade do próprio
sistema educacional, no sentido de que as instituições escolares funcionariam
como “aparelhos ideológicos do Estado” e que acabariam por reproduzir a
estrutura social existente mediante a divulgação da ideologia da classe dominante
e da manutenção das classes oprimidas em níveis educacionais inferiores. Para
essa teoria, a escola nada mais seria do que uma reprodutora da ideologia das
classes dominantes, enfatizando a dominação e a discriminação presentes no
processo de ensino-aprendizagem.
PATTO (1993) acredita que a Teoria da Reprodução contribuiu para
que a educação pudesse ser pensada em seus condicionamentos sociais mais
amplos questionando, inclusive, o mito da neutralidade da atividade educativa.
Mas, para essa autora, apesar de essenciais à reflexão educacional, os estudos
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sobre o caráter reprodutivista da educação não formularam soluções para os
problemas decorrentes do fracasso escolar, pois a escola, de acordo com essa
perspectiva teórica, seria impotente para enfrentar e modificar as desigualdades
presentes na sociedade.
CARRAHER et alii (op. cit.), a partir de reflexões advindas de um
trabalho experimental, dirigem o foco da atribuição do fracasso escolar do
indivíduo para a escola. Portanto, de acordo com esses autores, o fracasso escolar
seria o fracasso da escola. O estudo desenvolvido por esses autores investigou os
contextos culturais de crianças pertencentes às camadas da população mais
pobres, em que a solução para problemas de matemática ocorria naturalmente
para, posteriormente, acompanhar o desempenho dessas mesmas crianças em
situações de educação formal, como na escola.
Uma das conclusões mais importantes a que esse estudo chegou é que
as crianças geralmente utilizam seus próprios métodos para a solução de
problemas matemáticos, os quais, apesar de corretos, acabam sendo rejeitados
pelo ensino formal.
Compartilhando da tese de que o fracasso “escolar” seria, na
realidade, ao fracasso da “escola”, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
(São Paulo, 1993) identifica determinados aspectos intra-escolares que devem ser
considerados:
- aspectos ideológicos, como por exemplo, a crença na existência de
um aluno “ideal” ou a existência de uma reduzida expectativa por parte dos
professores em relação ao potencial de alunos oriundos de classes sociais
desfavorecidas;
- aspectos metodológicos, como por exemplo, a organização do
trabalho centralizado no ensino do professor em detrimento da aprendizagem do
aluno e a repetitividade de algumas da atividades propostas no cotidiano escolar;
- aspectos relacionais, como por exemplo, a postura autoritária do
professor em relação ao aluno e a inadequação das relações entre escola e
comunidade, representada pela família dos alunos;
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- aspectos estruturais, como a precariedade de recursos materiais, o
número excessivo de alunos por turma e a falta de assessoria técnico -
pedagógica para o corpo docente.
De modo geral, outros fatores poderiam ser indicados, desde aqueles
relacionados ao funcionamento geral da escola como os mais diretamente
vinculados à sala de aula.
Cabe aqui destacar a questão da formação inicial e continuada do
professor, como um aspecto a ser seriamente abordado. Os atuais modelos de
formação docente adotados aparentemente pouco têm contribuído para um
prática mais eficaz e aparentemente poucas chances têm oferecido para uma
atuação que possibilite um processo de reflexão sobre os fenômenos ocorridos no
cotidiano escolar.
Embora aqui se reconheça a multideterminação da problemática do
fracasso escolar, parece que a perspectiva explicativa sobre esse fenômeno como
sendo o fracasso da escola é a mais adequada à realidade e a mais superável, já
que permite pensar-se em intervenções mais diretas e objetivas, dentro da
instituição escolar. Tal pressuposto baseia-se na possibilidade de uma atuação
mais positiva por parte daqueles que são elementos fundamentais no processo de
ensino - aprendizagem formal, desenvolvido pela escola: os professores. Desta
maneira, poderá ser vislumbrada a alteração da habitual atribuição de causalidade
do insucesso escolar ao aluno, no processo adequadamente chamado de
“culpabilização da vítima” (RYAN, 1976, citado em COLLARES & MOYSÉS,
1993b).
1. 3. A patologização do fracasso escolar
O fenômeno do fracasso escolar é de tamanha complexidade e
multideterminação que acaba por envolver profissionais de outras áreas de
atuação, além da educação, como por exemplo, os profissionais da área de saúde.
Os escolares com rendimento acadêmico sofrível e histórico de
múltiplas repetências vêm sendo considerados portadores de distúrbios ou
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problemas de aprendizagem e constituem-se em uma das maiores clientelas dos
consultórios médicos – especialmente nos setores de pediatria e neuropediatria –
das instituições públicas de saúde, segundo estimativa dos órgãos oficiais (SÃO
PAULO, 1992).
A esse respeito, COLLARES & MOYSÉS (1986, p.10), pesquisadoras
que, vêm ao longo dos últimos anos, se dedicando ao estudo da temática da
relação entre a área de saúde e educação, evidenciam que “o setor saúde
incorpora a educação aplicando-lhe seu raciocínio clínico tradicional,
privilegiando relações causais lineares e explicações fisiopatológicas ...”.
Segundo as autoras, a incorporação do raciocínio clínico aos problemas de
aprendizagem desencadeia o que pode ser chamado de medicalização do
fracasso escolar, ou seja, “a busca de causas e soluções médicas ao nível
organicista e individual para problemas eminentemente sociais.” (p.10)
Nesse sentido, o envio excessivo de alunos para os serviços de saúde,
em busca de solução para supostos distúrbios ou problemas de aprendizagem,
representa o que pode ser denominado de medicalização do fracasso escolar. De
acordo com VALLA & HOLLANDA (in VALLA & STOTZ, 1994, p.63):
“Médicos e professores acabam achando que os problemas dos alunos da escola
pública acontecem ou por ‘deficiência mental’ ou por ‘desajuste emocional’ de
cada um...”
Uma ressalva deve ser feita quanto à participação do médico na
situação de encaminhamento de alunos considerados portadores de dificuldades
de aprendizagem. Pode-se pensar que o médico participa dessa situação
inescrupulosamente, porém, de acordo com as autoras acima citadas, o médico
não está sendo inescrupuloso ao participar do processo de medicalização do
fracasso escolar já que, de modo geral, parece estar pouco consciente dessa
problemática, em função de uma formação acadêmica que, na maioria das vezes,
desprestigia o conhecimento sobre o escolar, até mesmo nas especializações em
pediatria.
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Por outro lado, ainda de acordo com COLLARES & MOYSÉS (1992),
a expressão “distúrbio de aprendizagem” é freqüentemente usada por professores
sem que ao menos consigam explicitar o seu sentido ou os critérios para a sua
utilização. Quando recorrem a esse conceito, os docentes parecem se referir a
uma “doença” presente no aluno.
Assim, o uso de termo “distúrbio de aprendizagem” remete à idéia de
“doença que acomete o aluno ... em nível individual, orgânico” (COLLARES &
MOYSÉS, 1992, p.31) e, na medida em que partem do pressuposto de que o
fracasso escolar é decorrente de problemas individuais e orgânicos, devem ser
encontradas soluções individuais e médicas, reforçando a necessidade de se
encaminharem os alunos considerados como tendo insucesso acadêmico, para
instituições de saúde.
Todavia, o processo de medicalização do fracasso escolar não tem se
limitado apenas ao encaminhamento de alunos considerado portadores de
distúrbios de aprendizagem para avaliação médica.
Observa-se, também, a ocorrência da chamada “psicologização” da
aprendizagem e do fracasso escolar. O termo “psicologização”, de acordo com
COLLARES & MOYSÉS (1989), pode ser entendido como o envio de alunos
repetentes aos serviços de Saúde Mental, para que se submetam a uma avaliação
psicológica. É, ainda, em virtude da psicologização que o envio de escolares
amplia-se para o atendimento de outros profissionais, pertencentes ou não à área
de saúde, como por exemplo, fonoaudiólogos, enfermeiros e psicopedagogos.
Segundo COLLARES & MOYSÉS (1993a), a medicalização e a
psicologização nada mais são que produtos de um processo mais amplo, ou seja,
a “patologização” do processo de ensino - aprendizagem, que se manifesta,
comumente, na atribuição do fracasso escolar a fatores como a desnutrição e
disfunções neurológicas (hiperatividade, disfunção cerebral mínima, dislexia, etc)
supostamente presentes no aluno.
Um dos objetivos da patologização parece ser a de lançar a
responsabilidade do desempenho acadêmico insatisfatório sobre o indivíduo,
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isentando o sistema educacional de admitir a sua insuficiência no atendimento à
clientela de escolares, principalmente aqueles oriundos das classes populares.
Assim, através da medicalização, da psicologização ou de qualquer outra
derivação do processo de se patologizar o fracasso escolar, ou seja, de se atribuir
causas orgânicas a problemas não necessariamente biológicos, o rendimento
acadêmico insatisfatório permanece como “culpa” dos alunos, seja pelo fato de
possuírem determinadas características físicas, emocionais e psicológicas não
aceitas pelos padrões de normalidade dominantes em nossa sociedade ou por
pertencerem a uma família que supostamente não valoriza o estudo e não se
importa com sua escolarização.
É importante ressaltar que a produção acadêmica sobre a temática da
medicalização do fracasso escolar e da inter-relação entre as áreas de saúde e
educação em relação aos alunos considerados portadores de distúrbios de
aprendizagem é ainda escassa e incipiente.