As Palavras
Literatura Portuguesa
3
Introdução
Neste trabalho vamos debruçar-nos sobre o estudo de um poema de um autor do séc. XX,
Eugénio de Andrade. O poema estudado, “Palavras”, é um dos mais carismáticos deste autor
contemporâneo e aborda o tema da reflexão sobre o valor polissémico das palavras.
As Palavras
Literatura Portuguesa
4
Análise Formal
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
O poema é constituído por quatro estrofes, duas quintilhas e duas quadras. A maioria
dos versos são soltos/brancos havendo apenas uma rima que é cruzada, pobre e consoante.
Divide-se o poema em duas partes: a primeira que se ocupa das três primeiras estrofes e a
segunda que se ocupa da última; uma divisão lógica pois na primeira parte o “eu” poético
limita-se a descrever as palavras e na segunda e última o “eu” interroga os leitores acerca das
palavras também. Quanto à forma icónica o poema revela-se irregular.
São usadas algumas figuras de estilo como a comparação - “São como um cristal, as
palavras.” ; metáfora – “Secretas vêm, cheias de memória. Inseguras navegam (…).”, “Tecidas
são de luz”, “ (…) são noite.”; antítese – “Tecidas são de luz e são noite.”; enumeração – “(…)
cruéis, desfeitas (…).”, “Desamparadas, inocente, leves (…)”; interrogações retóricas – Quem as
escuta? Quem as recolhe (…) nas suas conchas puras?”.
As Palavras
Literatura Portuguesa
5
Tema e Desenvolvimento do Tema
Este texto de Eugénio debruça-se, como já foi referido, sobre o valor polissémico das
palavras.
No primeiro verso o sujeito poético visa enfatizar a comparação, recorrendo ao
hipérbato, – “São como um cristal, as palavras.” – colocando-a no início do verso. As palavras
são comparadas com um cristal pois estas, tal como os cristais, possuem várias “faces”, quer isto
dizer, podem adquirir vários significados (polissemia). Na primeira estrofe ainda, as palavras são
identificadas como: um punhal o que remete o leitor para a agressividade, morte e
consequentemente dor e sofrimento; um incêndio, o que aponta para a destruição; e finalmente
como orvalho “apenas” que se refere à calma, à suavidade, à brandura.
A segunda estrofe inicia-se com uma alusão às palavras como essenciais e intemporais
pois atravessam os tempos e trazem consigo as histórias e os segredos dos homens; funcionam
como elemento essencial na comunicação entre os seres falantes desde a antiguidade. O resto
da estrofe revela a insegurança que os barcos, que agitam as águas, causam assim como as
palavras, que agitam as pessoas causam insegurança; os beijos também fazem estremecer.
Na estrofe seguinte as palavras são caracterizadas como desamparadas, inocentes e
leves; todas características com sinais de fragilidade, ingenuidade pois por si próprias o
representam qualquer perigo. No entanto podem ser usadas de várias formas (até
ofensivamente ou maliciosamente, etc.). Na metáfora antitética subsequente o sujeito poético
pretende “avisar” da conotação das palavras. Tecido é algo que reveste portanto as palavras são
cobertas com luz (alude à claridade, transparência) mas no entanto são a noite (refere-se à
escuridão, obscuridade). Nos dois versos seguintes reconhece-se que mesmo que as palavras
não sejam intensas, “descoloridas”, ainda assim podem lembrar-nos locais aprazíveis,
“coloridos” por assim dizer.
O eu poético acaba o poema com duas interrogações retóricas onde o papel do leitor é
salientado. Na realidade o autor não pretende que se identifiquem os leitores mas pretende
dizer que cada leitor pode interpretar as palavras de diferentes modos e atribuir-lhes um sentido
de acordo com a sua experiência de vida, de foro pessoal; são os leitores que vão receber as
palavras nas suas conchas puras.
As Palavras
Literatura Portuguesa
6
Conclusão
Deste modo exercitámos um pouco mais a nossa leitura e interpretação de poesia, que
nem sempre é fácil. Tivemos ainda o prazer de analisar um escrito de um poeta coetâneo de
grande valor. De salientar, a beleza do poema e do seu tema. Afinal tudo isto são palavras…