O documento discute a importância da observação e do registro na formação de educadores. A observação requer silêncio, escuta atenta, olhar cuidadoso e participação diferenciada. O registro permite reflexão sobre a prática, distanciamento para análise e fundamentação teórica, além de avaliação para melhoria contínua. O registro e sua socialização constroem consciência coletiva e conhecimento, tornando o educador um pesquisador da própria prática.
1. O olhar do observador
O olhar do observador
Madalena Freire
A observação é uma ação altamente reflexiva quando o olhar está pautado para buscar
ver o que ainda não sabe. Não é um olhar vago, à espera de descobertas. É um olhar
focalizado para detectar, diagnosticar o saber e o não saber do grupo. Por isso mesmo
ação estudiosa de realidade pedagógica que, por sua vez, demanda esforço, empenho,
disciplina.
Na ação própria do nosso ensinar e na função de observador, é preciso o exercício de:
1. Silenciar: ser capaz de permanecer em silêncio. Dominar o próprio pensamento,
numa interação "barulhenta" e por vezes conflitiva com o outro, mas... dentro de nós
mesmos. A escrita neste momento é o único instrumento para (a futura) interação com o
outro.
2. Escutar: a escuta de falas, reações mais variadas, e por vezes até silenciosas do
grupo assinalam sempre uma comunicação paralela do grupo entre si, e com o
educador. Exercitar a sutileza dessa escuta, buscando desvelar seu significado é um
dos grandes desafios da ação de observar.
3. Ver: olhar o todo, o coletivo, as partes, os individuais, no seu conjunto e nos seus
detalhes. No que cada elemento compõe a parte desse todo, com suas falas, seus gestos,
suas "sacadas", seus silêncios. Aprender a olhar além, sempre, perguntando todo o
tempo, o que está por trás do que se vê? Qual o significado? O que está para ser
desvelado? É neste sentido que o olhar do observador é de "leitor" de realidade
pedagógica.
4. Escrever: a escrita é um instrumento valioso de interação do observador com ele
mesmo, no diálogo com o educador e com o grupo que observa. Ela é o apoio, a âncora
do seu pensar, de sua reflexão. Se a escrita é âncora para o observador na organização
do seu pensar sobre a aula, a pauta da observação nos crivos: aprendizagem, dinâmica
e coordenação são igualmente âncoras para a mesma. O desafio não é "escrever tudo",
mas sim registrar o que é essencial, guiado pela sua pauta.
5. Participar: aprender a participar de modo diferenciado, eis um dos grandes desafios
do observador. Há dois níveis da participação que demandam duas interações distintas.
Uma interação silenciosa, que exige exercício de concentração, atenção, um estar
presente consigo mesmo e com o grupo, pensando a aula. Outra interação mediada
pela linguagem corporal. Suas expressões de espanto, surpresa, seus gestos, sua
postura corporal comunicam ao grupo o que no seu silêncio ele pensa, seu corpo
"fala".
Estes cinco elementos inerentes ao ato de observação, quando assumidos no seu
exercício da aprendizagem cotidiana, possibi-litam em nós o desenvolvimento de
competências cruciais também às funções do educador. Silenciar, escutar, ver, escrever
e participar, enquanto construímos a aula, requer de cada um o exercício de
capacidades como a paciência, a humildade, a tolerância, a generosidade, sem as quais
a construção do conhecimento fica comprometida. Enquanto educadores, na função de
observador, aprendemos esse exercício, por vezes muito delicado, de "observar a dor"
do outro e também as alegrias no partilha-mento da construção de sua aula.
2. O papel do registro na formação do educador
Madalena Freire
"o que diferencia o homem do animal é o exercício do registro da memória humana"
Vygotsky
O educador no seu ensinar, está em permanente fazer, propondo atividades,
encaminhando propostas aos seus alunos.
Por isto mesmo sua ação tem que ser pensada, refletida para que não caia no praticismo
nem no "bomberismo pedagógico".
Esta ação pensante, onde prática, teoria e consciência são gestadas é de fundamental
importância em seu processo de formação.
Contudo, não é todo educador que tem apropriado seus desejos, seu fazer, seu
pensamento na construção consciente de sua prática e teoria.
Como despertá-lo deste sonho alienado, reprodutor mecânico de modismos
pedagógicos?
Como formá-los para que sejam atores e autores conscientes de seu destino pedagógico
e político? Como exigir que já estejam prontos para determinada prática pedagógica se
nunca, ou muito pouco, exercitaram o seu pensar reflexivo e a socialização de suas
idéias?
O registro da reflexão sobre a prática constitui-se como instrumento indispensável à
construção desse sujeito criador, desejante e autor de seu próprio sonho. O registro
permite romper a anestesia diante de um cotidiano cego, passivo ou compulsivo, porque
obriga pensar.
Permite ganhar o distanciamento necessário ao ato de refletir sobre o próprio fazer
sinalizando para o estudo e busca de fundamentação teórica.
Permite também a retomada e revisão de encaminhamentos feitos, porque possibilita a
avaliação sobre a prática, constituindo-se fonte de investigação e replanejamento para a
adequação de ações futuras.
O registro permite a sistematização de um estudo feito ou de uma situação de
aprendizagem vivida. O registro é História, memória individual e coletiva eternizadas
na palavra grafada. É o meio capaz de tornar o educador consciente de sua prática de
ensino, tanto quanto do compromisso político que a reveste.
Mas não é fácil escrever e refletir sobre nossa ação de ensino. No decorrer destes anos,
desde 1979, tanto no acompanhamento da reflexão de educadores, como no meu
exercício permanente de reflexão e registro sobre a minha própria prática, tenho me
certificado da importância desse exercício no processo de apropriação do pensamento.
A seleção, por cada um, do que é relevante ser registrado se faz lenta e gradual. A
princípio não há clareza sobre as prioridades, sobre o que é importante guardar para
3. além da lembrança, as vezes vaga, que pode ser guardada pela memória imediata.
No processo de formação de educadores entendemos ser de extrema importância o
desenvolvimento do registro enquanto ação sistemática e ritual do educador. Nesse
sentido, nossa proposta no curso de formação estrutura-se de forma a propiciar esse
exercício, primeiramente, através da escrita sobre a aula, da sua síntese, que exige o
exercício do registro em dois momentos distintos: primeiro, no ato mesmo da aula e
depois, já distanciado dela.
No primeiro momento, o exercício de observação e escuta subsidiam o registro
apontando para os dados mais relevantes e significativos. Na aula, os educadores em
curso observam as ações de ensino bem como a dinâmica constituída pelo grupo e
acompanham a discussão dos conteúdos tratados.
O registro posterior, longe do espaço/tempo em que ocorreu a ação, caracteriza um
outro e distinto movimento reflexivo. É nesse momento que os dados coletados podem
ser interpretados lançando luzes à novas hipóteses e encaminhamentos, tanto no que diz
respeito as ações de ensino, quanto no que aponta para as necessidades da
aprendizagem. Dessa maneira, o educador, leitor e produtor de significados, cerca com
rigor o seu pensar estudioso sobre a realidade pedagógica.
Mas não basta registrar e guardar para si o que foi pensado, é fundamental socializar os
conteúdos da reflexão de cada um para todos. É fundamental a oferta do entendimento
individual para a construção do acervo coletivo. Como bem pontuava Paulo Freire, o
registro da reflexão e sua socialização num grupo são "fundadores da consciência" e
assim sendo, sem risco de nos enganarmos, são também instrumentos para a construção
de conhecimento.
Nesse aprendizado permanente de escrever e socializar nossa reflexão valendo-nos do
diálogo com outros, sedimenta-se a disciplina intelectual tão necessária a um educador
pesquisador, estudioso do que faz e da fundamentação teórica que o inspira no seu
ensinar.
O registro é instrumento para a construção da competência desse profissional reflexivo,
que recupera em si o papel de intelectual que faz ciência da educação.
Fonte: Espaço Pedagógico