1. Manuel Antônio de Almeida
Memórias de um Sargento de Milícias
Em vez de salões aristocráticos e dos
ambientes sofisticados, como aqueles que
aparecem em A Moreninha, por exemplo,
a ação do romance Memórias de um
Sargento de Milícias se passa nas ruas e
casebres do Rio de Janeiro do "tempo do
rei" (D. João VI), com seu povo alegre e
seus tipos pitorescos - as comadres, os
moleques, os soldados, as mulatas...
A linguagem usada pelo autor é marcada
pelo tom coloquial, próxima da fala do
povo. A descrição de cenas e festas
populares - batizados, procissões, folias
etc... - dá ao romance um toque de
realismo e de documentário da vida da
época, que contribuiu para sua grande
aceitação junto ao público.
A figura central, que garante a unidade
das inúmeras ações que se sucedem num
ritmo bastante dinâmico, é Leonardo,
filho enjeitado de Leonardo Pataca e
Maria da Hortaliça, criado pelos
padrinhos: uma parteira (comadre) e um
barbeiro (compadre).
O narrador, que frequentemente
interrompe a narrativa para comentar as
ações das personagens, focaliza a vida
agitada de Leonardo, seus casos com a
mulata Vidinha, o namoro com Luisinha
(com quem acaba se casando no fim) e
seus planos para escapar das perseguições
do severo major Vidigal.
ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL
1. A novela está dividida em duas
partes bem distintas: a primeira com 23
capítulos e a segunda com 25.
2. Os episódios são quase
autônomos, só ligados pela presença de
Leonardo, dando à obra uma estrutura
mais de novela que de romance, como já
ficou observado.
3. O leitor acompanha o crescimento
do herói com sua infância rica em
travessuras, a adolescência com as
primeiras ilusões amorosas e aventuras, e
o adulto, que, com o senso de
responsabilidade, que essa idade exige,
vai-se enquadrando na sociedade, o que
culmina com o casamento.
4. Para Mário de Andrade, trata-se
de uma novela picaresca de influência
hispânica.
Manuel Bandeira, em uma de suas
crônicas, conta que o grande escritor
espanhol Francisco Ayala leu a novela e,
de tão encantado, traduziu-a para o
espanhol e escreveu no prefácio a palavra
que melhor lhe pareceu qualificá-la: obra-
prima, acrescentando que as Memórias se
inserem na linhagem dos romances
picarescos. E olhe que Ayala é da terra da
ficção picaresca. Ninguém, pois, melhor
qualificado para conferir a láurea.
Não obstante, o nosso pícaro tem
características próprias, que o afastam do
modelo espanhol, como ressalta o critico
Antonio Candido, em "Dialética da
Malandragem": "Digamos então que
Leonardo não é um pícaro saído da
tradição espanhola, mas sim o primeiro
grande malandro que entra na novelística
brasileira, vindo de uma tradição
folclórica e correspondendo, mais do que
se costuma dizer, a certa atmosfera
cômica e popularesca de seu tempo, no
Brasil.
5. Frequentemente identificadas por
suas profissões e caracteres físicos, as
personagens se enquadram na categoria
de planas, não apresentando, portanto,
2. traços psicológicos densos e profundos. O
protagonista da estória (Leonardo), que
foge completamente aos padrões de herói
romântico, é igualmente uma personagem
plana, sem traços psicológicos profundos
que marquem a sua personalidade.
Assim, pois, predomina sempre o sentido
visual e não a percepção psicológica. As
personagens distinguem-se pelo físico de
absoluta nitidez, não falam, e algumas
figuras ficam mudas quase todo o tempo,
como acontece com Luisinha e com o
próprio Leonardo.
6. Na construção da obra, muitas
vezes há falhas que se explicam devido ao
fato de o livro ter sido escrito em meio à
algazarra de uma república de estudantes,
como testemunha o biógrafo de Manuel
Antônio, Marques Rebelo:
a. A amante de Leonardo pai,
na primeira parte, figura como sobrinha
da parteira; na segunda, aparece como
filha desta.
b. Por outro lado, os primos
de Vidinha inicialmente eram três e no
final só aparecem dois.
c. A moça cujo rapto foi
atribuído a José Manuel aparece como
filha de uma viúva, mas, pouco depois, o
mesmo José Manuel foi salvo graças ao
pai da rapariga.
d. Ao contrário do que ocorre
nas obras de "memórias", aqui a narrativa
não é feita em primeira pessoa como
acontece geralmente com esse gênero
literário, mas em terceira pessoa; talvez
porque não se trata realmente de um livro
de memórias.
e. Para Paulo Rónai, que
traduziu a obra para o francês, o título
deveria ser: Como se Faz um Sargento de
Milícias, pois, segundo confessa, teve
tentação de colocar, como titulo, na
tradução francesa -"Comment on Devi ent
un Sargent de la Milice”. Já para Olívio
Montenegro, o título poderia ser: "Cenas
da Vida Carioca".
ESTILO DE ÉPOCA
Tendo surgido em pleno
Romantismo, Memórias de um Sargento
de Milícias apresenta uma narrativa
desembaraçada, com conversações
colhidas ao vivo e uma multidão de
personagens vivos, extraídos da gente do
povo, primando pela originalidade.
Entretanto, podem-se detectar, na obra,
aspectos que traem não só o Romantismo
como o Realismo:
1. Não parece ser muito apropriado
considerar o livro como obra precursora
do Realismo no Brasil, embora seu autor
haja revelado conhecer a "Comédia
Humana", de Balzac, e ter recebido
influências dela. Falta-lhe, sem dúvida, a
intenção realista, apesar da presença de
muitos elementos denunciadores desse
estilo de época, como ressalta José
Veríssimo: “o autor pratica, no romance
brasileiro, o que já é licito chamar obra
psicológica e de meio: a descrição
pontual, a representação realista das
coisas, mas fugindo às cruezas.”
2. Ao contrário do que ocorre no
Romantismo, o cenário não é o dos
palácios reais com festas e diversões ao
gosto dos nobres, nem a natureza; são as
ruas cheias de gente, por onde desfilam
meirinhos, parteiras, devotas, granadeiros,
sacristãos, vadios, brancos, pardos e
pretos: gente do povo, de todas as raças e
profissões. Povo sem nome,
simplesmente designado por “mestre de
reza”, “parteira”, “barbeiro”, “toma-
largura”, etc. Assim, existe, no livro, uma
3. preocupação documental bem ao gosto
realista.
3. Além disso, destacam-se na obra o
sentimento antirreligioso e
anticlericalista, o horror aos padres e o
desprezo pelas beatas, a caricatura e a
ironia, que são ingredientes sabidamente
caracterizadores do estilo realista:
- O Divino Espírito Santo
E um grande folião,
Amigo de muita carne.
Muito vinho e muito pão.
A cena do clérigo, mestre-de-
cerimônias, no quarto de uma cigana
prostituta, em noite de festa e nos trajes
em que o autor o coloca é digna de
mestres do Realismo, como Eça de
Queirós, por exemplo.
Por outro lado, a presença do
Romantismo também é notória na obra:
1. A busca do passado, que é uma
fixação comum no estilo romântico, serve
de ponto de partida para o autor, como se
vê na abertura do livro: "Era no tempo do
rei".
Conforme ressalta Paulo Rónai, “orgulha-
se o autor de não participar dos exageros
românticos, mas, saudoso do passado,
explica o interesse pelos tempos antigos
com a alegação de querer mostrar que os
costumes de outrora não eram superiores
aos de seu tempo. Só mero pretexto: ele
só não admitia os excessos dos
ultrarromânticos.”
2. Como é frequente no
Romantismo, que tem, ao lado de uma
certa tendência para finais tétricos,
propensão para as conclusões açucaradas,
todos os capítulos e a própria novela
terminam num "happy end ', ou final
feliz.
3. A despreocupação com a correção
gramatical e o aproveitamento da fala e
de expressões populares mostram bem a
tendência para a liberalização da
expressão, que é outra conquista do
Romantismo, forjada na esteira do
liberalismo da época, como revelam os
exemplos abaixo:
“A vista disto nada havia a duvidar: o
pobre homem perdeu, como se costuma
dizer, as estribeiras, (...)”
"Quando amanheceu, acordou
sarapantado...."
"- Olá, Leonardo! Por que carga d 'água
vieste parar a estas alturas? Pensei que te
tinha já o diabo lambido os ossos, pois
depois daquele maldito dia em que nos
vimos em pancadaria, por causa do
mestre-de-cerimônias, nunca mais te pus
a vista em cima."
"- Escorropicha essa garrafa que ai resta,
disse-lhe o amigo...”
"- Fui para casa de meu pai... e de
repente, hoje mesmo. brigo lá com a cuja
dele..."
Na onda dessa liberalização, há
verdadeiras incorreções gramaticais,
conforme atestam estes exemplos:
"Naquela família haviam três primos."
"Nas causas de sua imensa alçada não
haviam testemunhas..."
"...ele expôs-me certas coisas... e que eu
enfim não quis dar crédito."
"... Fazia o mestre em voz alta o pelo-
sinal. pausada e vagarosamente, no que o
4. acompanhava em coro todos os
discípulos."
4. Como é comum no Romantismo,
algumas situações são criadas
artificialmente. Revela-o sobretudo o fato
de Leonardo transformado em granadeiro
e posteriormente em Sargento de
Milícias.
Assim, embora apresente características
que lembram os estilos realista e
romântico, Memórias de um Sargento de
Milícias se destaca por sua originalidade,
afastando-se dos padrões da época, como
observou Mário de Andrade, que
considerava essa novela uma obra
isolada.
LINGUAGEM
A linguagem utilizada pelo autor
em toda a novela, embora de cunho
popular e com bastantes incorreções, tem
muito do linguajar tipicamente português,
o que revela, sem dúvida, a marcante
presença da gente lusitana em nossa terra
no "tempo do rei":
"Não quero cá saber de nada..."
"- Pois estoure, com trezentos diabos!"
"... há de ser um clérigo de truz."
"... regulando-se a ouvir modinhas..."
"- E a noiva?.., respondia a outra:
arrenego também da lambisgoia...”
E outras expressões como “tira-te lá”,
“tranco-te essa boca a socos”, etc.
Outras vezes prima por usar
construções bem clássicas:
"... o que o distinguia era ver-se-lhe
constantemente, ora de um dos bolsos, o
cabo de uma tremenda palmatória, ..."
"Coimbra era a sua ideia fixa, e nada lha
arrancava da cabeça."
"... e quando tiver 12 ou 14 anos há de me
entrar para a escola.”
"... e isto era natural a um bom português,
que o era ele."
A ironia e o gosto pela gozação
acompanham a obra do começo ao fim.
"A carruagem era um formidável, um
monstruoso maquinismo de couro,
balançando-se pesadamente sobre quatro
desmesuradas rodas. Não parecia coisa
muito nova; e com mais de dez anos de
vida poderia muito bem entrar no número
dos restos infelizes do terremoto, de que
fala o poeta.”
"Luisinha, conduzida por D. Maria, que
lhe ia servir de madrinha, embarcou num
dos destroços da arca de Noé. a que
chamamos carruagem; (...)"
"Entre os honestos cidadãos que nisto se
ocupavam, havia, na época desta história
um certo Chico-Juca. afamadíssimo e
temível."
"Eis aqui como se explica o arranjei-me, e
como se explicam muitos outros que vão
ai pelo mundo."
5. 1 (UFRS). Considere as seguintes
afirmações a respeito de Memórias de um
Sargento de Milícias, de Manuel Antônio
de Almeida.
I - O campo de abrangência social
focalizado pelo romance, narrado com
linguagem humorística e irônica, é a
classe média urbana do Rio de Janeiro,
sobretudo do centro da cidade, constituída
por homens livres, com relações
interpessoais marcadas pela irreverência e
a desordem.
II - O romance introduz na literatura
brasileira a figura do malandro,
personagem que oscila entre as regras de
conduta social e sua transgressão, entre o
lícito e o ilícito, sem que esse dualismo
receba tratamento moralizante por parte
do autor.
III - É um romance narrado em primeira
pessoa, que privilegia o ponto de vista do
narrador protagonista, Leonardo, e a sua
avaliação crítica da sociedade carioca da
segunda metade do século XIX.
Quais estão corretas?
a) Apenas I.
b) Apenas II.
c) Apenas I e II.
d) Apenas II e III.
e) I, II e III.
2 (UFRS). Assinale a opção que preenche
adequadamente as lacunas do texto a
seguir, na ordem em que aparecem.
Memórias de um Sargento de Milícias é
uma obra de tendência .............. que
apresenta aspectos de transição social
relacionados ..............., podendo ser lida
como ..............., com traços de linguagem
................. .
a) naturalista - ao aumento da imigração
no Brasil - relato documental - subjetiva
b) romântica - ao reinado de D. Pedro II -
narrativa em primeira pessoa - erudita
c) realista - à vinda de D. João VI ao
Brasil - crônica de costumes - coloquial
d) romântica - à abolição da escravatura -
narrativa de costumes - objetiva
e) realista - ao reinado de D. Pedro II -
romance histórico – satírica
3 (PUCSP).
Chegou o dia de batizar-se o
rapaz. (...) Já se sabe que houve nesse dia
função: os convidados do dono da casa,
que eram todos dalém-mar, cantavam ao
desafio, segundo seus costumes; os
convidados da comadre, que eram todos
da terra, dançavam o fado. O compadre
trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o
instrumento favorito da gente do ofício. A
princípio o Leonardo quis que a festa
tivesse ares aristocráticos, e propôs que
se dançasse o minuete da corte. Foi
aceita a ideia, ainda que houvesse
dificuldade em encontrarem-se pares. (...)
O compadre foi quem tocou o minuete na
rabeca. (...) Depois do minuete foi
desaparecendo a cerimônia, e a
brincadeira aferventou, como se dizia
naquele tempo.
Chegaram uns rapazes de viola e
machete: o Leonardo, instado pelas
senhoras, decidiu-se a romper a parte
lírica do divertimento. Sentou-se num
tamborete, em um lugar isolado da sala, e
tomou uma viola. Fazia um belo efeito
cômico vê-lo, em trajes de ofício, de
casaca, calção e espadim, acompanhando
com um monótono zunzum nas cordas do
instrumento o garganteado de uma
modinha pátria. (...)
Foi executada com atenção e
aplaudida com entusiasmo.
O canto do Leonardo foi o
derradeiro toque de rebate para
esquentar-se a brincadeira, foi o adeus às
cerimônias. Tudo daí em diante foi
burburinho que depressa passou à
gritaria, e ainda mais depressa à
6. algazarra, e não foi ainda mais adiante
porque de vez em quando viam-se passar
(...).
No trecho apresentado, do romance
Memórias de um Sargento de Milícias, de
Manuel Antonio de Almeida, há uma
ideia de progressão que enquadra a ação
das personagens entre as formas
convencionais e contidas do
comportamento social e a perda dos seus
limites e medidas. E isso se dá de uma
forma bem expressiva no uso da
gradação. Indique a opção que contém
essa gradação.
a) desafio / fado / minuete
b) burburinho / gritaria / algazarra
c) viola / rabeca / modinha
d) casaca / calção / espadim
e) português / brasileiro / corte
4 (PUCAMP).
(...) era o Leonardo Pataca.
Chamavam assim a uma rotunda e
gordíssima personagem de cabelos
brancos e carão avermelhado, que era o
decano da corporação, o mais antigo dos
meirinhos(*) que viviam nesse tempo. (...)
Fora Leonardo algibebe(**) em Lisboa,
sua pátria; aborreceu-se porém do
negócio, e viera ao Brasil. Aqui
chegando, não se sabe por proteção de
quem, alcançou o emprego de que o
vemos empossado, e que exercia, como
dissemos, desde tempos remotos.
( *) meirinho = funcionário da justiça.
(**) algibebe = vendedor de roupas
baratas; mascate.
(Manuel Antonio de Almeida.
Memórias de um Sargento de Milícias)
Considere as seguintes afirmações:
I. A personagem referida nesse trecho é o
protagonista do romance.
II. O trecho faz referência ao sistema de
favor, ao compadrismo, que integrava as
relações sociais da época.
III. A caracterização física de Leonardo
Pataca obedece ao modelo do herói
romântico.
Em relação ao texto e ao romance, está
correto o que se afirma SOMENTE em
a) I.
b) II.
c) III.
d) I e II.
e) II e III.