Mortalidade por causas externas e raça/cor da pele: uma das expressões das de...
Mulheres Negras e Miomas Uterinos
1. VERA CRISTINA DE SOUZA
SOB O PESO DOS TEMORES:
Mulheres Negras, Miomas Uterinos e
Histerectomia.
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para a obtenção do título
de Doutora em Ciências Sociais – Antropologia,
sob a orientação da Profa. Dra. Josildeth Gomes
Consorte.
PUC - SÃO PAULO
2002
2. FOLHA DE APROVAÇÃO
Banca examinadora:
Dra. Josildeth Gomes Consorte (orientadora)
Dra Elza Berquó
Dra. Maria Helena Villas Boas Concone
Dra. Regina Maria Giffoni Marsiglia
Dra. Ronilda IYakemi Ribeiro
3. AGRADECIMENTOS
À professora Josildeth Gomes Consorte, minha orientadora, que me
acompanhou no decorrer destes cinco anos com muita dedicação.
Às professoras Maria Helena Villas Boas e Regina Marcílio, pelas sugestões
feitas por ocasião do exame de qualificação.
Aos colegas do Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Àlvaro
Comin, Alexandre Moralles, Miriam Dolhnikoff, Osmar Ribeiro, Oneida Maria
Borges.
Aos colegas da UNISA – Universidade de Santo Amaro - Valéria Gionannetti,
José Fernando Siqueira da Silva, Osmar dos Santos C. Mota, Neusa Maria
Carvalho Sairaif, Maria Lúcia Garcia Mira, Fátima França, Nely Barcelar,
Carlos Gianazzi.
Aos funcionários do Centro de Saúde de Vila Morais, em particular às Dras.
Maria Carmo Garcia; Andréia Baroni; Jacilda Cabral; Maria Eugênia Santos e
Silvana Aparecida Lopes, responsável geral.
Um agradecimento especial à todas as minhas entrevistadas.
Á Dra. Fátima Oliveira, pela constante atenção e amizade.
Ao Helio Santos, pela disponibilidade de todas as horas.
Ao Joel Zito Araújo, pelo zelo com que conduziu a produção do vídeo e pela
grande manifestação de amizade.
À Marcio Ivan Nóbrega, Vilma Lorena, Delma Araújo, Rosana Cardone, Ana
Paula Silva, Luis Ramires; Marise Edson; e Rene Decol,
Eu não poderia deixar de reconhecer a importância das militantes negras que
araram o terreno para que o tema desenvolvido aqui pudesse se efetivar. Cito
algumas delas, correndo o risco de omitir nomes: Edna Roland; Dida Pinho;
Sueli Carneiro, Maria Aparecida Cidinha da Silva; Fátima Oliveira; Maria
Aparecida Bento; Dulce Pereira; Abigail Páscoa; Marta Oliveira, Diva Moreira;
Conceição Leal; Luiza Bairros Zélia Amador de Deus; Maria Inês Barbosa;
Vera Triunpho.
Um agradecimento muito especial à Dra. Elza Berquó, com a qual tive o
prazer de conviver ao longos dos anos, com quem muito aprendi, e, na
impossibilidade de expressar meus sinceros sentimentos, resumo em
duas palavras: um exemplo, um ídolo.
4. Agradeço a Fundação Carlos Chagas pela bolsa de estudos concedida e
de um modo particular a Fundação MacArthur que, desde o início do
Programa de Formação de Pesquisadoras Negras do Cebrap, muito
contribuiu para que eu pudesse chegar até aqui. Agradeço também pelo
financiamento concedido para a produção do vídeo que faz parte deste
estudo. Ao CNPq, presto meus agradecimentos.
5. SUMÁRIO
CAPÍTULO PG.
1. INTRODUÇÃO 01
1.1. Mioma uterino e histerectomia 04
1.1.1. Mioma uterino 04
1.1.2. Práticas alternativas para a prevenção do mioma uterino 05
1.2. Histerectomia 05
1.2.1. Formas de tratamento dos miomas uterinos 05
1.2.2. Indicação da histerectomia 06
1.2.3. Efeitos colaterais da histerectomia 07
1.2.4. Formas de tratamento consideradas menos invasivas 08
1.3. Brancas e negras diante da miomatose 09
1.4. As razões que me conduziram ao doutorado 11
1.5. Apresentação do trabalho 13
2. O ESTADO DA ARTE DOS ESTUDOS QUE TRATAM DA SAÚDE DA
15 POPULAÇÃO NEGRA
2.1. Considerações gerais 15
2. 2. Origens e trajetória do movimento negro 15
2.3. O movimento social negro 16
2.4. O movimento feminista e a saúde da mulher 18
2.5. Introdução do recorte por cor/raça 19
2.6. A importância da identificação racial na área de saúde 20
2.7. Doenças raciais/étnicas 21
2.8. A influência dos fatores sócio-econômicos 23
2.9. Mortalidade 25
2.10. O panorama atual da saúde da população negra 26
2.11. Ações governamentais 26
6. 2.12. Principais reivindicações 27
3. A QUESTÃO RACIAL NO CONTEXTO DOS ESTUDOS SOBRE 29
A SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA
3.1. O item cor 29
3.2. Raça ou etnia? 30
3.3. A importância do item cor na área de saúde 32
3.4. Particularidades do estudo 34
3.5. A auto-classificação de cor/raça 35
3.6. A percepção da discriminação racial 36
3.6.1. As 14 mulheres auto-declaradas “morenas” 38
3.6.2. As 35 mulheres auto-declaradas pardas e as duas negras 41
3.7 Discussão das doenças raciais/étnicas vista como ato discriminatório 45
4. METODOLOGIA 48
4.1. Primeira etapa - a pesquisa de campo 48
4.1.1. Coleta de dados sobre diagnóstico de miomatose e cor junto
ao Serviço de Ginecologia do Centro de Saúde de Vila Morais
(Fase 1) 48
4.1.2. A pesquisa domiciliar com 102 mulheres (Fase 2) 52
4.1.2.1. Bloco I – Conhecimento geral da saúde da mulher 53
4.1.2.2. Bloco II – Conhecimento sobre miomas uterinos 53
4.1.2.3. Bloco III – Histerectomia 54
4.1.2.4. Bloco IV – Vida reprodutiva e dados pessoais 54
4.1.3. Entrevistas com mulheres histerectomizadas (Fase 3) 55
4.2. Segunda etapa – o vídeo e as oficinas 55
4.2.1. A produção do vídeo educativo (Fase 1) 55
4.2.1.1. Ficha técnica e conteúdo 55
4.2.1.2. A apresentação do vídeo e a realização das oficinas 56
(Fase 2)
4.3. Terceira etapa – O retorno às pesquisas domiciliares e a confecção do
vídeo final
4.3.1. Retorno a campo (Fase 1) 57
4.3.2. A produção do vídeo “Sob o peso dos temores” (Fase 2) 58
7. 5. O DESCONHECIMENTO SOBRE MIOMAS E HISTERECTOMIA 59
5.1. Análise dos resultados 59
5.1.1. Perfil socioeconômico: os níveis de escolaridade e a inserção
de brancas e negras no mercado de trabalho 59
5.1.2. O acesso de mulheres brancas e negras aos serviços públicos
de saúde 62
5.1.3. As razões que conduziram mulheres brancas e negras ao
serviço de ginecologia do Centro de Saúde de Vila Morais 65
5.2. As representações dos problemas de saúde: um primeiro olhar 70
5.2.1. As mulheres sem diagnóstico de mioma 71
5.2.2. As mulheres com diagnóstico de miomatose 75
5.2.2.1 Quadros de Saúde que antecederam o diagnóstico
de miomatose 76
5.2.3. As mulheres histerectomizadas 81
5.2.3.1 Situação socioeconômica 81
5.3. O conhecimento sobre a miomatose e práticas adotadas para o
tratamento 83
5.3.1. O conhecimento da histerectomia 84
5.4. O acesso aos serviços de saúde e as conseqüências para a saúde
da mulher 91
5.5. A relação médico-paciente 93
5.6 Tradição cultural 97
5.7. Religião 99
5.7.1. As experiências junto ao universo religioso das entrevistadas 102
5.7.1.1. O Centro Espírita Irmão X 102
5.7.1.2. Igreja Deus é Amor 102
5.7.1.3. Igreja Universal do Reino de Deus 103
5.7.1.4. Igreja Assembléia de Deus 104
5.7.1.5. A Igreja Católica Santa Margarida Maria 105
6. SAÚDE, DOENÇA: OS MIOMAS E A HISTERECTOMIA
NAS REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES 106
6.1. As representações sociais de saúde 108
6.2. A saúde enquanto função social 109
6.3. A saúde enquanto uma função econômica 111
8. 6.4. As representações sociais da doença 112
6.5. As representações sociais dos miomas uterinos — seus locais
de construção 117
6.5.1 A construção da malignidade dos miomas nas relações de
amizade 119
6.5.2. A construção da malignidade dos miomas na relação familiar 119
6.5.3. A construção da malignidade do mioma no Centro de Saúde 120
6.6. Os tumores e as imagens da televisão 121
6.7. As representações sociais da histerectomia 126
6.8. A histerectomia e a saúde orgânica 127
6.9. A histerectomia e a saúde emocional 128
6.10. A reação diante do sentimento de exclusão social 131
7. O AUDIO-VISUAL E AS OFICINAS 133
7.1. A dinâmica das oficinas 134
7.1.1. A apresentação do vídeo “Conversando sobre miomas uterinos”
134
7.1.2. As reações das entrevistadas diante das informações 135
7.2. A análise 136
7.2.1. Conhecimento adquirido: o que as participantes aprenderam
sobre o mioma e suas formas de tratamento 136
7.2.1.1. Grupo 1 — Mulheres que não tinham conhecimento da
miomatose até a participação nas oficinas 136
7.2.1.2. Grupo 2 — Mulheres que não apresentavam
diagnóstico de mioma, mas tinham algum
conhecimento sobre a doença antes das oficinas 137
7.2.1.3. Grupo 2A — Mulheres que tinham suspeita de
miomatose 137
7.2.1.4. Grupo 3 — Mulheres que tinham diagnóstico de
miomatose 138
7.2.1.5. Grupo 4 — Mulheres que tinham indicação de
histerectomia 139
7.2.1.6. Grupo 5 — Mulheres já histerectomizadas 139
7.2.2. Medidas que as mulheres se dispuseram a tomar após
participarem das oficinas: 140
9. 7.2.2.1. Grupo 1 e 2 — Mulheres que não tinham o diagnóstico de
miomatose 140
7.2.2.2. Grupo 2A — Mulheres que tinham suspeita de
miomatose 140
7.2.2.3. Grupo 3 — Mulheres que tinham diagnóstico de
Miomatose 140
7.2.2.4. Grupo 4 — Mulheres que tinham indicação de
histerectomia 141
7.2.2.5. Grupo 5 — Mulheres já histerectomizadas 141
7.3. Breve análise das oficinas 142
7.4. Como as entrevistadas avaliaram as ação educativa 144
8. RESULTADOS DA AÇÃO EDUCATIVA 147
8.1. Considerações gerais 147
8.2. Análise dos dados 149
8.3. O conhecimento adquirido e os novos procedimentos para
o tratamento dos problemas de saúde 151
8.3.1. As mulheres do grupo experimental 152
8.4. O conhecimento adquirido e a nova forma de se relacionar
com as profissionais de saúde 156
8.4.1. As mulheres do grupo de controle 159
8.4.1.1. A insegurança manifestada pelas mulheres dos
grupos experimental e controle 162
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS 163
BIBLIOGRAFIA 163
ANEXOS 177
10. ÍNDICE
(Quadros e Tabelas)
QUADROS PG
QUADRO 1 - Composição da amostra inicial 52
QUADRO 2 - Estimativas de ocorrências de miomatose e histerectomias 52
QUADRO 3 - Problemas de saúde que conduziram
mulheres brancas e negras à consulta ginecológica
no centro de saúde 65
QUADRO 4 - Providências tomadas em relação às
suspeitas de miomatese 75
QUADRO 5 - Período de tempo decorrido entre
entre a tomada de conhecimento do diagnóstico
do mioma e o início da pesquisa 76
QUADRO 6 - Resumo das condições sócio-econômicas
e faixa etária apresentadas pelas mulheres
histerectomizadas 82
QUADRO7/7A - Vida reprodutiva de mulheres brancas e
negras 95
QUADRO 8 - Resumo das representações sociais de saúde 110
QUADRO 9 - Resumo das atitudes tomadas ao se sentirem
doentes 116
QUADRO 10 – Distribuição das 102 entrevistadas
entre os grupos experimental e controle 133
QUADRO 11 - Práticas que afirmaram que adotariam após
as ações educativas, por cor 146
QUADRO 12 - Situação final de miomas e histerectomia 147
QUADRO 13 – Conhecimento sobre miomas e histerectomia
após a participação nas
Oficinas 152
11. TABELAS PG.
TABELA 1 – Auto-classificação da cor 36
TABELA 2 - A percepção de discriminação racial 37
TABELA 3 - Atividades desenvolvidas no mercado de trabalho
versus rendimentos médios mensais 60A
TABELA 4 - Atividades desenvolvidas no mercado de trabalho
versus escolaridade 61A
TABELA 5 - Idade no momento da entrevista 62
TABELA 6 - Mulheres que faziam a prevenção de câncer uterino 69
TABELA 7 - Faixa etária em que receberam o diagnóstico de miomas 77
TABELA 8 - Conhecimento acerca da histerectomia 85
TABELA 9 - Medidas tomadas diante da indicação da histerectomia 91
TABELA 10 - Razões que desestimulam a manter as recomendações
médicas 92
TABELA 11 - Adesão religiosa 100
TABELA 12 - A representação dos miomas enquanto tumores malignos
e seus locais de construção 118
TABELA 13 - A representação da histerectomia 127
TABELA 14 - Comentários sobre o conteúdo e apresentação do vídeo 145
12. RESUMO
Mioma uterino – conhecido também como leiomioma, fibróide do útero ou
fibroma – é um tumor benigno causado pelo crescimento anormal das células
da parede uterina (miométrio). Surge na idade reprodutiva, raramente antes da
menarca e pode regredir na menopausa.
O tratamento dos miomas pode ser clínico, com o uso de medicamentos, ou
cirúrgico, por meio de duas técnicas: a miomectomia, que consiste na retirada
dos tumores e a histerectomia, que remove o útero. Ambas possíveis de serem
realizadas por meio da laparoscopia.
A literatura médica norte-americana afirma que as mulheres negras daquele
país são mais predispostas a desenvolver miomas uterinos do que as mulheres
brancas.
Com o objetivo de verificar se o mesmo ocorria com as mulheres negras
brasileiras, desenvolvi, no ano de 1995, uma pesquisa junto às usuárias,
brancas e negras, de um centro de saúde localizado no Município de São
Paulo, que atende predominantemente a população de baixa renda. Os dados
desse estudo revelaram a maior incidência dos miomas entre as negras e
evidenciaram também que o recurso à histerectomia ocorreu no período da
vida reprodutiva, sendo igualmente mais freqüente entre as negras. Esse
estudo converteu-se em dissertação de mestrado, desenvolvida junto a
PUC/SP e ao Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Frente a esses dados, no ano de 1999, já no doutorado, iniciei, no mesmo
centro de saúde, uma nova pesquisa com a proposta de desenvolver com as
suas usuárias ações educativas que envolveram 102 mulheres, divididas
igualmente por cor, com e sem diagnóstico de miomatose, além de uma
abordagem especial com outras 05 que já se encontravam histerectomizadas.
A metodologia de trabalho utilizada compreendeu duas fases: A primeira, foi
composta por uma pesquisa domiciliar com todas as mulheres a fim de verificar
seus conhecimentos sobre miomas e histerectomia. De posse desses
resultados, que revelaram um acentuado desconhecimento sobre os miomas e
suas formas de tratamento produzi um primeiro vídeo, que contou com a
13. participação de suas respectivas médicas na gravação das informações sobre
essa doença, as formas de tratamento e em especial, da histerectomia. Esse
material foi apresentado e discutido com metade das entrevistadas. Na
segunda fase: após um período de nove meses, retornei às suas residências
com o objetivo de verificar se aquelas que tomaram contato com as
informações transmitidas no vídeo teriam alterado as formas de entender e
lidar com os miomas. Feito isso, produzi um segundo vídeo incorporando, além
das informações sobre a miomatose existentes no primeiro, os depoimentos de
um grupo de entrevistadas acerca de suas experiências com a doença.
Os resultados mais expressivos se referiram às alterações dos
comportamentos de grande maioria das entrevistadas que, após terem sido
expostas às ações educativas, passou a seguir as recomendações médicas,
além da resistência das mulheres, brancas e negras, em aceitarem a existência
das doenças raciais/étnicas por avaliarem ter essa discussão uma conotação
discriminatória.
14. ABSTRACT
Uterine myoma—also known as uterine fibroid or fibroma—is a benign tumor
caused by the abnormal growth of cells in the uterine wall and can be located in
the external wall, in the internal wall or within the uterine muscles. The
treatment of myomas may be clinical or surgical: myomectomy, which removes
the myomas but keeps the uterus and hysterectomy, which removes the uterus.
The US medical literature indicates that myomas have a higher incidence
among black women. Within the larger cultural context that Brazilians believe
they live in a “racial democracy”, it is difficult to study racial differences in
disease in Brazil due to a general lack of data. Medical reports typically do not
contain any indication of racial identity. Because most doctors and health staff
are unaware of the relationship between race and health, they do not consider it
important or relevant to write down the racial characteristics of the patients.
In 1995, I conducted field research among the users of a health center located
in the City of São Paulo, which predominantly serves the surrounding low-income
population with the purpose of investigating whether uterine myomas,
as in the US case, had a higher prevalence among black women. This study
refers to my master’s dissertation, conducted at the Catholic University of São
Paulo (PUC/SP) and the Brazilian Center of Analysis and Planning.
The data reveal a higher incidence of myomas among black women also
showed that the use of hysterectomy occurred in the period of reproductive life,
and that it was more frequent among black women.
So, in 1999, I conducted, at the same health center where I had collected my
previous research, a new study with the purpose of applying among the users a
program of educational outreach. I conducted a survey of 102 women who were
equally divided by race and who had been diagnosed myomas and not. In
addition I worked with five women histerectomy who had been histerectomy.
The objective was to investigate how they dealt with the medical treatment they
had been assigned. Then, with the results in hand, I produced a first video with
the participation of the doctors who provided information on myomas. This
material was presented to and discussed with the interviewees. The second
phase took place nine months later, when I returned to the homes of all
interviewed women and applied a follow-up questionnaire, whose aim was to
verify if, upon contact with the information given by the video, they had changed
the way they understood myomas and, for those with a diagnosis, how they
handled their treatment. Following this, I produced a second video, which
included, in addition to the information on the myomas, testimonies of a group
of interviewees.
The more significant results gleaned in the first phase of my research were that
women had an overwhelming lack of information about myomas and the ways
to treat them. The results of the educational outreach with the videos
demonstrated this was an effective practice. The most significant results
15. concerned the behavior changes seen in the interviews as most of the
interviewees begun to follow the medical recommendations after they went
through the Educational Actions. Another important finding was that these
women, both black and white, thought that associating any kind of illness to a
racial group was discriminatory.
16. 1. INTRODUÇÃO
O presente estudo discute os resultados obtidos por meio de uma
proposta de ações educativas para usuárias de um serviço público de saúde,
que teve como fim avaliar o alcance da difusão de informações para a redução
da histerectomia em razão de miomas uterinos.
Ao iniciar esta apresentação, percebo-me fazendo um prazeroso
exercício de retrospecção. Quando decidi dar continuidade à minha formação
acadêmica e profissional e dedicar-me à investigação das doenças
raciais/étnicas, mais exatamente a prevalência de miomas uterinos em
mulheres negras, estava assumindo comigo mesma, e com as demais
mulheres brasileiras, principalmente as de baixa renda, um compromisso
especial, repleto de estimulantes desafios.
Tanto quanto apresentar a metodologia científica utilizada para a
conquista de meus objetivos, julgo ser relevante relatar, primeiramente, algo
que os instrumentos de coleta por si só não podem alcançar.
Refiro-me às trilhas que percorri e às inúmeras, diversas e intensas
emoções que vivenciei para chegar à conclusão desta tese de doutorado.
Considero este o momento ideal para refletir sobre elas.
Para tratar especificamente da ocorrência de miomatose em mulheres
negras precisei, desde o início, empreender um exercício pautado na
obstinação, que, porém, com muito esforço, produziu resultados vitoriosos.
Obstinação porque, no Brasil, a busca de informações sobre esse particular –
doenças raciais/étnicas – é extremamente difícil. E vitorioso porque cada
passo, por menor que fosse, significava uma conquista e, mais do que isso,
reforçava o sentimento de que estava seguindo o caminho correto. Precisei
também de muito empenho para manter o equilíbrio das emoções – conforme
instrui a metodologia de pesquisa em Ciências Sociais – em virtude de
17. desempenhar, simultaneamente, os papéis de investigador e de objeto da
investigação.
Tudo começou em 1992, quando, por iniciativa e sob a coordenação da
Profa. Dra. Elza Berquó, teve início, no Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento, o programa Saúde da População Negra, destinado à formação e
aperfeiçoamento de pesquisadoras negras para o desenvolvimento de estudos
voltados à esse fim, do qual tive o privilégio de participar. Este programa
contou com o financiamento da The John D. and Catherine T. MacArthur
(Estados Unidos, 1992-1996), da British Embassy Council (Inglaterra, 1994-
1995) e da Novib – Nethertands Organization for International Development
Cooperation (Holanda, 1997-1998).
Para o aprofundamento do estudo posterior sobre miomatose e
histerectomia, também conduzido pelo Cebrap, contei ainda, nos anos de 1997
e 1998, com uma bolsa de estudos concedida pela Fundação Carlos Chagas.
Ao longo de sete anos (1992-1999) como bolsista desse programa,
participei de várias atividades, destacando-se a produção de materiais
educativos1 e a realização de seminários e workshops2, sempre dedicados à
reflexão sobre as doenças prevalentes na população negra.
Nesse período, com o acesso à literatura médica estrangeira,
especialmente norte-americana, tomei conhecimento dos resultados de
estudos e pesquisas que revelavam uma prevalência de miomas uterinos em
mulheres negras. Interessou-me, então, investigar se tal fato também se
verificava entre as mulheres negras brasileiras e, em caso positivo, quais
seriam suas razões e conseqüências.
Assim, sempre contando com o apoio e o estímulo da Dra. Elza Berquó,
decidi ir em busca dessas respostas, as quais, em um primeiro momento, não
me pareciam tão difíceis de serem obtidas. Com o passar do tempo, porém,
revelaram-se extremamente complexas.
1 Vídeo Eu, Mulher Negra, Cebrap, 1994; Cadernos de Pesquisa Cebrap, n° 2, 1994; Cartilha Anemia
Falciforme/Anime-se e Informe-se – Cebrap e Fala Preta, 1996; Livreto População Negra em Destaque,
1998.
2 Seminários: Alcances e Limites da Predisposição Biológica, Cebrap (1994); Social versus Biológico,
Cebrap (1993); Mulher Negra Excluída da Epidemiologia, Cebrap e Coletivo Feminista Sexualidade e
Saúde (1994); Mulher Negra em Destaque, Cebrap e Neinb – Núcleo de Estudos Interdisciplinares do
Negro Brasileiro, entre outros.
18. Tal complexidade deriva do fato de se tratar de uma investigação cujo
eixo principal é a particularidade racial, mais especificamente a saúde da
mulher negra, uma vez que no Brasil há uma dificuldade generalizada em se
admitir a existência de discriminação racial entre brancos e negros.
Como conseqüência, desconhece-se a existência das diferenças
raciais/étnicas no tocante à saúde, chegando-se a interpretar a preocupação
com a inclusão do item cor nos estudos ou nas informações sobre saúde da
população como uma atitude desnecessária e até racista.
Exemplo disso são os documentos de saúde onde, embora exista um
campo para anotação da cor do paciente – conquista do movimento social
negro e demais pesquisadores envolvidos com essa questão – essa
informação raramente é preenchida pelos profissionais da área médica ou
administrativa.
Ao continuar minha busca, deparei-me ainda com outra dificuldade,
dessa vez relacionada à identificação racial, a saber: foi necessário considerar
a insistente indagação feita por muitos: quem é negro no Brasil? 3, já que
fazemos parte de uma sociedade que, além de multirracial, é miscigenada.
Na última década o debate sobre a questão racial extrapolou os fóruns
de discussão da militância negra e ocupou o espaço acadêmico, merecendo
ser citadas as disciplinas oferecidas no Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da PUC-SP pela Prof.a. Dra. Josildeth Gomes Consorte,
momentos em que brancos e negros, esses em sua maioria, têm-se reunido
em uma atividade intelectual regular para discutir identidade e cultura negra.
Assim, no que concerne à investigação sobre a relação existente entre
miomatose e cor/raça, após ter recorrido sem sucesso à bibliografia
especializada em saúde reprodutiva, parti em busca de informações junto a
consagrados médicos ginecologistas que atuam no país, sendo que apenas
um4, dentre sete profissionais entrevistados, relatou-me que, embora não
tivesse feito um estudo cuidadoso nesse sentido, observara, ao longo de sua
3 Sobre esse assunto, entendo que ser ou não ser negro é uma questão de identidade racial, uma posição
de cunho individual. Todavia, no Brasil, conforme inúmeros estudos, independente de sua opinião,
aqueles identificados como negros pela sociedade, na maioria das vezes, sofrem discriminação racial.
4 José Carlos Riechelmann, médico ginecologista-obstetra e sexologista.
19. experiência profissional, que os casos mais graves e constantes de miomas
uterinos estavam entre as mulheres negras. Os demais profissionais
contatados desconheciam esse dado.
20. 1.1. Mioma uterino e histerectomia
1.1.1. Mioma uterino
Mioma uterino também conhecido como leiomioma, fibróide do útero ou
fibroma – é um tumor benigno causado por crescimento anormal das células da
parede uterina (miométrio). É considerado um tumor comum no universo
feminino, acometendo cerca de 20 a 25% das mulheres. Embora apresente
crescimento lento, desenvolve-se com maior intensidade no período
gestacional. Surge na idade reprodutiva, geralmente em mulheres com idade
superior a 30 anos. São raros antes da menarca e podem regredir na
menopausa Se cuidados devidamente, dificilmente acarretarão problemas para
a saúde geral e reprodutiva da mulher (LETHABY, VOLLENHOVEN e
SOWTER, 2001).
Há várias explicações para a sua origem, mas não se sabe ao certo qual
a causa. Admite-se que fatores genéticos têm contribuição importante para o
seu desenvolvimento.
Os miomas uterinos variam quanto ao tipo, forma, peso e tamanho.
Localizam-se, na parede externa, na parede interna ou no interior da
musculatura uterina. Mediante o exame da ultra-sonografia do útero é possível
confirmar o diagnóstico e localizar o tumor evidenciando, inclusive, seu tipo.
As formas de tratamento indicadas variam de acordo com a localização,
o tamanho, os sintomas e as complicações que apresentam. Embora sejam
denominados “tumores silenciosos” - uma vez que há a possibilidade de
durante o período de sua evolução as mulheres permanecerem assintomáticas
- os sintomas mais comuns são alteração de peso corporal, hemorragia e dores
pélvicas. (LETHABY, VOLLENHOVEN e SOWTER, 2001).
Nos Estados Unidos, os miomas têm sido muito associados à
infertilidade e são mais freqüentes em mulheres negras, embora isso seja
pouco documentado, (GROFF et al, 2000).
Para EGWUATU (1989), as razões de tal prevalência são a alta
incidência de infecções pélvicas não tratadas, já que tais infecções causam
21. irritação da parede uterina (miométrio), provocando o desenvolvimento do
tumor.
1.1.2. Práticas alternativas para a prevenção do mioma uterino
Segundo afirmação de profissionais de saúde, existem práticas
alternativas para a prevenção do mioma e a manutenção do equilíbrio
hormonal.
O desequilíbrio entre a produção hormonal do estrógeno e a da
progesterona pode ser responsável pela ocorrência do mioma uterino. Fatores
como condições materiais de vida - qualidade dos alimentos consumidos,
controle do estresse, prática de atividades físicas, são altamente eficazes.
Neste sentido, para auxiliar na prevenção do mioma uterino; os
especialistas sugerem:
a) alimentos ricos em vitaminas A, B e C e em fibras;
b) evitar alimentos gordurosos, álcool, chocolate e carnes vermelhas;
c) manter o baixo peso;
d) fazer exercícios físicos para eliminação do estresse;
e) consumir chá de ervas medicinais. (LARK, Susan, 1996)
1.2. Histerectomia
1.2.1. Formas de tratamento dos miomas uterinos
O tratamento dos miomas pode ser clínico ou cirúrgico. O clínico,
consiste na observação da evolução do tumor e, caso necessário, no uso de
medicamentos. O cirúrgico poderá ocorrer, via duas técnicas: miomectomia e
histerectomia. Para tanto, poderão ser utilizadas as técnicas da “cirurgia
tradicional a céu aberto” e laparoscopia.
A miomectomia a céu aberto ou laparoscópica retira apenas o mioma,
conservando o útero, garantindo à mulher, se desejado, a possibilidade de
22. engravidar. A histerectomia, por sua vez, compreende a remoção do útero,
acarretando, portanto, o fim definitivo da capacidade reprodutiva.
A histerectomia abdominal - também conhecida como histerectomia
completa é mais comumente indicada. Neste tipo de cirurgia a extração do
útero é acompanhada pela remoção do colo e do canal uterino e,
freqüentemente, dos dois ovários. Além de bastante complicada requer o
tempo médio de cinco dias de internação hospitalar e sua recuperação dá-se
em torno de seis a quarenta e oito semanas. (MANSON, 1996).
A histerectomia completa deve ser indicada para os casos de doenças
malignas como o câncer de útero e de ovário, sendo o seu uso para as
doenças benignas é condenável. Por outro lado, mesmo nas situações não
cancerígenas, e mediante a gravidade do quadro clínico que a paciente
apresentar, poderá ser recomendada como meio de redução da mortalidade,
como é o caso das hemorragias abundantes e incontroláveis.
No que se refere à histerectomia vaginal, essa apresenta vantagens
sobre a abdominal porque ovários certamente serão conservados, o tempo de
permanência da paciente no hospital é inferior e o de recuperação também,
podendo ainda ter seus efeitos reduzidos se for feita mediante laparoscopia. Na
realização da histerectomia vaginal o abdômen tende a sair de seu lugar. Por
esse motivo, é comum a prescrição da reposição hormonal meses antes da
cirurgia, a fim de que o abdômen possa voltar a posição correta. (MANSON,
1996).
1.2.2. Indicação da histerectomia
A indicação da histerectomia é matéria de polêmica entre os
profissionais de saúde. Segundo normas estabelecidas pelo Colégio Americano
de Obstetrícia, a histerectomia somente deve ser indicada para os casos
malignos como os cânceres de útero e de ovário ou nas situações em que,
mesmo que benignas, apresentem risco de vida para a mulher, como por
exemplo nas hemorragias crônicas e incontroláveis. Nos demais casos o
tratamento deve ser terapêutico ou, se necessitar de intervenção cirúrgica,
dever ser tentada as menos invasivas.
23. No caso dos miomas, a histerectomia só deve ser indicada quando o
tumor atinge tamanho igual ou superior a doze semanas de gravidez, em casos
de anemia grave e incontrolável ou devido à dores intensas – situações em que
os medicamentos ou os recursos cirúrgicos menos invasivos mostrem-se
ineficazes.
1.2.3. Efeitos colaterais da histerectomia
Segundo CHRISTIANSEN (1994), os efeitos colaterais advindos da
histerectomia - tenha sido abdominal ou vaginal - podem trazer complicações
para a saúde física e emocional da mulher.
Na maioria dos casos o pós operatório compreende as seguintes
situações:
a) Recuperação: O processo de restabelecimento da mulher
histerectomizada é longo e doloroso. Podem variar entre leves e agudos
acompanhando a mulher durante todo o período de convalescência.
Atingem constantemente a região abdominal e o corpo de maneira geral
- cabeça, pernas e costas. Além dos problemas na bexiga e no reto,
b) Estados depressivos - São comuns os casos de depressão.
Freqüentemente a mulher histerectomizada necessita de apoio
terapêutico devido a vários fatores - a impossibilidade de constituir ou
aumentar sua prole, entender ou sentir que está incapacitada para a vida
sexual, sentimento de amputação do corpo e da perda da feminilidade
entre outros;
c) Falta do hormônio - Mediante a remoção dos ovários inicia-se
abrupta e precocemente a menopausa com sérias conseqüências para a
saúde da mulher, como ondas de calor, ressecamento da vagina,
alteração da libido, osteoporose e problemas cardíacos;
d) Além da esterilidade, a histerectomia pode apresentar também sérias
conseqüências para a saúde física e emocional da mulher, sendo ainda uma
importante causa de mortalidade feminina. Logo, esse recurso cirúrgico é uma
conduta que deveria ser reservada para os chamados “casos excepcionais”,
24. tão-somente quando a miomectomia estivesse contra-indicada. (AGUIAR e
OLIVEIRA, 2000)5.
No entanto, pesquisas norte-americanas realizadas recentemente
investigaram que a ocorrência da histerectomia devido aos casos dos miomas
poderia ser evitada. Apontam que é comum esta cirurgia ser indicada sem
antes se tentar tratamentos alternativos ou a investigação rigorosa das causas
que justificassem os seus problemas de saúde. (Obstetrics & Gynecology,
2000)
1.2.4. Formas de tratamento consideradas menos invasivas
Segundo a literatura médica, existem outras técnicas para o tratamento
e remoção do mioma uterino, algumas delas descobertas recentemente, que
podem ser utilizadas de acordo com o quadro clínico que a mulher apresentar,
ou seja em função da localização, tamanho e desejo de ter filhos. No entanto,
há por parte dos profissionais de saúde controvérsias quanto a eficácia e a
indicação entre elas:
1. Miomectomia laparoscópica: consiste em introduzir uma pequena
câmara na região abdominal permitindo, desta forma, o exame de todo o
útero. È eficazmente superior a miomectomia (cirurgia que extrai os
tumores conservando o útero), que, embora seja uma excelente
alternativa cirúrgica, pode apresentar complicações no ato cirúrgico
devido ao grande sangramento, incomum na laparoscopia, além de uma
recuperação mais rápida, disseca o mioma (PALOMBA; PELLICANO e
AFFINITO. 2001)
5 Depoimentos prestados pelas médicas Regina Aguiar, Profa. do Departamento de Ginecologia e
Obstetrícia da UFMG, e Fátima Oliveira, ambas da Regional Minas Gerais da Rede Saúde.
25. 2. Histerectomia laparoscópica - introduz uma câmara no abdômen que
disseca o mioma e também o útero, tornado, no entretanto, a mulher
estéril. A vantagem desta opção é que a sua recuperação é mais rápida
do que a histerectomia vaginal ou abdominal, sendo imediato o recesso
dos sintomas de dores e hemorragia. (YOUNG e COHEN, 1997).
3. Via lazer - também conhecida como eletrosurgical - mediante um
tubo fino e com luz intensa em uma de suas extremidades, é possível
através de sua onda de calor cortar ou vaporizar o tecido uterino
dissecando o tumor. (BAGLEY, Grant; 1996)
4. Endometrial ablation - é um procedimento rápido (cerca de 20 a 30’)
e eficaz que utiliza-se da técnica via lazer. Dependendo da localização
e do
tamanho é possível, mediante uma só intervenção, remover determinado
número de miomas. No entanto, não é recomendada para mulheres que
desejam engravidar pois podem causar infertilidade (LEYLAND, BAE, e VILOS,
1996)
5. Radioterapia - Permite a ampla localização dos tumores e sua total
remoção mediante a introdução um pequeno cateter sobre os tumores
com a finalidade de disseca-lo. Nessa intervenção, não é necessário ser
usado anestesia geral, mas somente um sedativo. E ainda, a
reincidência dos tumores não ocorre em período inferior a cinco anos.
Os efeitos resultantes deste tratamento é considerado superior aos
apresentados pela laparoscopia, uma vez que essa requer o uso da
anestesia geral, além de impossibilitar a localização e total extração
dos miomas. (GOODWIN, 1997)
6. Embolização: Técnica cirúrgica considerada pouco invasiva que
consiste em desviar o fluxo de sangue que irriga e ‘alimenta’ o mioma
reduzindo o seu tamanho e volume tendo ainda a propriedade de
preservar a fertilidade. Estudos revelam que tem sido pouco recorrente
as complicações pós-cirúrgica. (SHASHOUA et al, 2002)
26. 1.3. Brancas e negras diante da miomatose
Determinada a buscar respostas à minha indagação inicial – Seriam os
miomas uterinos prevalentes entre as mulheres negras brasileiras? – decidi, no
ano de 1993, iniciar o mestrado em Ciências Sociais, por entender que, para
proceder a essa investigação seria necessário refletir sobre um espectro mais
amplo da saúde reprodutiva das mulheres negras, no âmbito da academia. Foi
seguindo esse caminho que, em 1995, sob a coordenação da Profa. Dra.
Josildeth Gomes Consorte, apresentei, junto ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da PUC-SP, a dissertação de mestrado intitulada Mulher
Negra e Miomas: Uma Incursão na Área da Saúde, Raça e Etnia.
Esse trabalho teve início com a seleção de um grupo de mulheres
brancas e outro de negras que no mês de fevereiro de 1994 tiveram, por meio
de exame de ultra-sonografia, diagnóstico de miomas uterinos. Em fevereiro de
1995, realizei com elas entrevistas domiciliares, com o intuito de investigar as
questões relacionadas aos seus miomas naquele período de um ano.
Na ocasião, constatei que havia passado pelo Centro de Saúde, em
fevereiro de 1994, 583 mulheres, das quais 361 brancas e 197 negras6.
Desses totais, 83 (23,0%) mulheres brancas e 82 (41,6%) negras
apresentavam miomas uterinos, números que revelaram a maior incidência
desses tumores entre as mulheres negras entrevistadas.
Constatei ainda uma maior recidiva dos sintomas7 e reincidência de
miomas8 entre as mulheres negras, verificando-se que 62,1% delas e apenas
14,4% das brancas voltaram ao Centro de Saúde com queixas de novos
miomas. Do total de brancas que retornaram, 6,0% tiveram novos miomas
diagnosticados por um novo exame de ultra-som, em contraposição a 21,9% do
total de mulheres negras em idêntica situação.
Segundo RIECHELMANN (1995), a periodicidade correta de uma
consulta ginecológica para uma mulher que apresenta mioma é de, no mínimo,
uma vez por ano. No entanto, os dados mostraram que as mulheres brancas
6 Havia 25 fichas de matrículas em que não constava a cor da usuária.
7 Recidiva dos sintomas: manifestação dos sintomas provenientes dos miomas anteriormente
diagnosticados.
8 Reincidência dos miomas: ocorrência de novos miomas identificados por comparação entre dois ou mais
exames da ultra-sonografia.
27. faziam uma consulta aos serviços de ginecologia num prazo médio de 3,8
anos, enquanto as negras o faziam a cada 4,7 anos.
A desinformação sobre a doença e suas formas de tratamento era
comum para a grande maioria das entrevistadas. Desconheciam o significado
da recidiva dos sintomas e da reincidência dos miomas. Não sabiam também
que a miomectomia, embora seja uma intervenção cirúrgica, mantém o útero, e
não estavam inteiradas das conseqüências que uma histerectomia teria em sua
vida reprodutiva. Imaginavam que, neste caso, somente “parte do útero” seria
extraída e que poderiam engravidar se desejassem9.
Parte dos profissionais de saúde afirma que o mioma uterino é uma
doença familiar (OLIVEIRA, 1995). De fato, os dados do referido estudo
mostraram que as entrevistadas eram irmãs ou filhas de mulheres com
miomas, e que as condutas adotadas para o tratamento desses tumores eram
semelhantes entre elas e, freqüentemente, distintas das recomendações feitas
pela médica que as assistia.
Para todos os casos de miomas, a forma de tratamento mais indicada foi
o acompanhamento clínico, com o uso de medicamentos. Nos casos em que
houve agravamento do quadro, procedeu-se à miomectomia ou à
histerectomia.
Chamou-me então a atenção o fato de que, do total de mulheres que se
submeteram à histerectomia, 3,6% eram brancas e 15,9% eram negras.
A maior incidência da histerectomia entre as mulheres negras
relacionada aos fatores até aqui mencionados instigaram-me ainda mais.
O alto índice de histerectomia entre as negras ocorreu, segundo a
profissional de saúde que as atendeu, devido à gravidade de seus quadros
clínicos, atribuída ao fato de terem abandonado o tratamento médico e à baixa
freqüência às consultas ginecológicas, circunstâncias que devem ser
examinadas levando-se em conta as dificuldades de acesso aos serviços
públicos de saúde.
9 Interessante notar que, no estudo ora desenvolvido, este desconhecimento relacionado às
conseqüências fatais da histerectomia na capacidade reprodutiva não esteve presente entre as
entrevistadas.
28. 1.4. As razões que me conduziram ao doutorado
A apresentação da pesquisa, objeto da referida dissertação, passou a
ser requisitada com freqüência, sendo sempre bem acolhida nos vários fóruns
de discussão que tratavam da saúde da mulher.
Animada com sua visibilidade, nutria naquela época a expectativa de
que o estudo pudesse, de alguma forma, contribuir para que trabalhos mais
abrangentes sobre o assunto fossem realizados. Porém, até o momento, como
mostrarei adiante, poucas ações foram implementadas nesse sentido10.
Pude então entender melhor, me aproximar e compartilhar do rol de
dificuldades enfrentadas pelas consagradas integrantes do movimento social
negro, que vêm, ao longo dos anos, se esmerando para mostrar a existência
das desigualdades raciais/étnicas no tocante à saúde.
Segundo os depoimentos de algumas delas, mesmo considerando os
modestos avanços obtidos até o presente, a implementação de políticas de
saúde voltadas à população negra esbarra em questões de fundo, relacionadas
à identidade racial, e na ausência ou não preenchimento do quesito cor nos
documentos de saúde, o que inviabiliza conhecer, por meio do levantamento de
dados, as causas pelas quais adoecem ou falecem os negros11.
Assim, profundamente incomodada com essa situação e contando mais
uma vez com o apoio da coordenadora do projeto Saúde da População Negra,
iniciei em 1997 o doutoramento, propondo agora um projeto de ação educativa
com base em uma nova pesquisa.
Essa nova pesquisa, objeto do presente trabalho, desenvolveu-se no
mesmo centro de saúde em que foi realizada a anterior, o Centro de Saúde de
Vila Morais, trata do mesmo tema, mulheres negras, miomas uterinos e
histerectomia e pretendeu levar adiante as preocupações da dissertação de
10 Em novembro de 1997, participei de uma importante Mesa Redonda em Brasília/DF — Saúde da
População Negra Brasileira, na qual pela primeira vez o Ministério da Saúde propunha estudar o tema,
ocasião em que expus os dados acima.
11 A esse respeito ver OLIVEIRA, Fátima. Os múltiplos significados do fatalismo genético. Alcances e
Limites da Predisposição Biológica. Cadernos de Pesquisa Cebrap, no. 02, 1994.
29. mestrado, cujo objetivo específico era verificar a incidência desses tumores
entre brancas e negras.
A prevalência dos miomas uterinos entre as negras, a acentuada
ocorrência da histerectomia, o descumprimento das orientações médicas, a
elevada desinformação sobre o assunto e suas conseqüências receberam
agora um tratamento mais refinado.
A produção de um vídeo e a realização de oficinas cumpriram também o
propósito de informar, alertar, sensibilizar e orientar as usuárias do serviço de
ginecologia do Centro de Saúde de Vila Morais sobre a epidemiologia dos
miomas uterinos, o caráter irreversível da histerectomia e suas possíveis
conseqüências negativas para a saúde física e emocional da mulher.
Esse estudo fundamentou-se na hipótese central de que a informação
tem a capacidade de alterar comportamentos.
A reflexão teórica respaldou-se ainda em duas suposições. A primeira
levava a presumir que, ainda que as entrevistadas possuíssem formas culturais
específicas de entender e lidar com a saúde/doença, o fato de procurarem os
serviços oferecidos pela medicina alopática significava que nela depositavam
crédito, ou seja, confiavam no “saber” médico. A segunda permitia imaginar
que, de posse das informações acerca dos miomas, das formas de tratamento,
da histerectomia e das conseqüências do descumprimento das orientações
médicas, não somente as mulheres com o diagnóstico da doença, como
também as demais, sentir-se-iam estimuladas a manter os devidos cuidados
com a saúde ginecológica. Em ambos os casos, estariam colocando em prática
uma atividade preventiva, com o objetivo de reduzir a ocorrência da
histerectomia.
Além disso, havia a necessidade de informar as entrevistadas sobre a
prevalência dos miomas e da histerectomia entre as negras. Dada a
metodologia empregada, que permitia uma proximidade com as entrevistadas,
acreditava ser possível transmitir a todas tal informação, o que, como será
visto, não ocorreu de modo satisfatório.
1.5. Apresentação do trabalho
30. O trabalho está dividido em nove capítulos. Após esta introdução,
seguem os capítulos dois e três, que tratam de aspectos relativos à saúde da
população negra, os demais que cuidam da análise dos dados obtidos na
pesquisa e as considerações finais.
Capítulo 1 - Introdução
Capítulo 2 – O estado da arte dos estudos que tratam da saúde da
população negra
Apresenta dois momentos distintos: 1o levantamento da produção de
estudos e pesquisas voltados à saúde da população negra junto aos setores do
movimento social negro e acervo bibliográfico; 2º investigação das propostas de
políticas públicas e as ações governamentais viabilizadas neste campo.
Capítulo 3 – A questão racial no contexto dos estudos sobre a saúde da
população negra brasileira.
Trata das dificuldades em lidar com o conceito de raça/etnia presentes
nos estudos sobre o negro brasileiro.
Capítulo 4 – Metodologia
Apresenta a metodologia utilizada nas duas etapas que compõem a
pesquisa de campo.
Capítulo 5 – O conhecimento dos miomas e da histerectomia.
Analisa os resultados da pesquisa domiciliar realizada com 102
mulheres, brancas e negras, com e sem diagnóstico, que constituíram a
amostra, acerca do seu conhecimento sobre miomatose e histerectomia e com
outras cinco mulheres que já havia se submetido a essa cirurgia.
Capítulo 6 – Saúde, doença: os miomas e a histerectomia nas
representações das mulheres.
Traz uma reflexão sobre as representações sociais de miomatose e a
histerectomia, a partir dos relatos das entrevistadas.
Capítulo 7 – O áudio visual e as oficinas.
Ocupa-se das discussões ocorridas por ocasião das apresentações do
vídeo e nas oficinas.
31. Capítulo 8 – Avaliação do projeto de ação educativa
Verifica o impacto das ações educativas sobre o comportamento das
mulheres com e sem diagnóstico de miomatose que estiveram expostas
àquelas informações.
Compara os comportamentos destas mulheres com o das que não
assistiram ao vídeo nem participaram das oficinas.
Capítulo 9 – Considerações finais.
32. 2. O ESTADO DA ARTE DOS ESTUDOS QUE TRATAM DA SAÚDE DA
POPULAÇÃO NEGRA
2.1. Considerações gerais
O estudo das doenças raciais/étnicas encontra sua origem na junção de
reivindicações parciais de dois movimentos sociais anteriores: o movimento
negro e o movimento de mulheres. Do movimento negro, herdou
principalmente sua base conceitual e política e do movimento de mulheres, um
olhar atento para a saúde da mulher em geral e da mulher negra em particular.
A presente reflexão foi desenvolvida com base em dados extraídos de
estudos e pesquisas realizados a partir da segunda metade da década de
1980, que versam sobre a saúde da população negra.
Nesse sentido, passarei a expor as reivindicações e propostas de
políticas públicas feitas pelo movimento de mulheres negras e demais
pesquisadores da área.
2. 2. Origens e trajetória do movimento negro
Para PEREIRA (1981), os estudos sobre o negro no Brasil podem ser
divididos em três fases distintas: o negro como expressão de raça, como
expressão de cultura e como expressão social.
Segundo o autor, a primeira fase – o negro como expressão de raça -
caracterizou-se por uma imagem negativa e patológica do “homem de cor”
perante os outros grupos raciais que formam a população. Essa fase, em que
as noções se fundamentam na idéia de raça, foi respaldada em larga medida
pela Antropologia Física que hierarquizava os grupos raciais. No Brasil, esse
momento rompe o século XIX e vai até o início do século XX. A segunda fase –
o negro enquanto expressão de cultura – iniciou-se na década de 1920 e teve
como característica o fato de que os atributos raciais eram colocados em plano
secundário, cedendo lugar às peculiaridades culturais. A terceira fase – o negro
33. enquanto expressão social - iniciou-se após o fim da Segunda Guerra Mundial
e tratou o conceito de raça como realidade empírica, sendo marcada por uma
revisão de toda a problemática social, política e científica sobre a variedade
fenotípica dos diferentes grupos humanos.
A partir da segunda metade da década de noventa, SANTOS (2001)
aponta o surgimento de uma nova fase: a da cidadania, onde os estudos e
pesquisas sobre a temática racial, impulsionados pelo Movimento Social Negro,
passam a focar problemas específicos voltados para a área da educação,
trabalho e políticas públicas. No que se refere ao campo da saúde, observa-se,
no mesmo período, uma significativa, ainda que insuficiente, produção de
trabalhos sobre o assunto.
Como conseqüência, ainda que timidamente, a sociedade começa a
perceber mudanças no que diz respeito às políticas voltadas para a população
negra.
2.3. O movimento social negro
A partir da década de 1920, firma-se no Brasil uma imprensa negra, de
cunho político, que denunciava as práticas de discriminação racial e a situação
de inferioridade sócio-econômica dos negros. Apresentava-se como um veículo
político e posicionava-se em relação ao modo pelo qual o negro deveria se
comportar na sociedade para que tivesse o reconhecimento social do branco.
Naquela época, destacaram-se os jornais O Clarim d’Alvorada (1924 a
1932) e a Voz da Raça (1933 a 1937) (PAHIN, 1993)
Em 1931, surge a Frente Negra Brasileira, que chegou a se registrar
como partido político e foi extinta em 1937, no início do governo Vargas
(CUNHA, 1992).
Durante o Estado Novo (1937 a 1945), o movimento negro passou por
uma fase de grande silêncio, quando todos os movimentos sociais foram
reprimidos pelo autoritarismo político do período. Porém, em 1944, já na fase
autoritária final, foi fundado por Abdias Nascimento, referência maior do
Movimento Social Negro contemporâneo, o Teatro Experimental do Negro
34. (TEN). O grupo contou com a figura de porte do intelectual negro bahiano,
Guerreiro Ramos e teve, no princípio, um perfil cultural, politizando-se em
seguida, impulsionado pelos novos ventos democratizantes do pós-guerra.
CHOR (1996) comenta o entendimento de Guerreiro Ramos a respeito
do TEN, para o qual ele seria "uma elite de intelectuais de cor" com a tarefa de
estreitar a distância entre o "negro legal" e o "negro real" .
Essa expressão, segundo Guerreiro Ramos, sintetizava a diferença
existente entre a igualdade formal de direitos com a realidade que de fato parte
dos negros vivenciavam em seus cotidianos.
Quando da emergência e funcionamento do TEN (anos 40 e 50), o
momento mundial era de combate ao racismo em escala planetária.
Na década de 1950, a UNESCO - United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization iniciou uma série de estudos12 no Brasil para
investigar como se dava a inserção dos negros na sociedade e, sobretudo,
identificar as barreiras à sua ascensão social (SOUZA, 1995).
Em continuação à movimentação da militância negra nos anos 1930
(Frente Negra Brasileira) e nos anos 1940/1950 (Teatro Experimental do
Negro), irrompe, na década de 70, o MNU - Movimento Negro Unificado,
retomando uma tendência interrompida nos anos 1960, especialmente
marcados pelo rompimento da democracia em 1964.
Todavia, antes do MNU ser criado em 1978 em São Paulo, “já estava em
atuação nas principais cidades brasileiras um sem-número de entidades
culturais negras”. (GUIMARÃES, 2001). Em 1974 são fundadas duas entidades
importantes do movimento negro: o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras
(IPCN) no Rio de Janeiro e o bloco afro Ilê Aiyê em Salvador. Em 1976, no Rio
de Janeiro, surge a Escola de Samba Quilombo e em Salvador é criado o
Centro de Pesquisas das Culturas Negras.
O MNU surge em sintonia com o forte movimento de redemocratização
do final dos anos 70 e, neste sentido, acompanha a atuação que já tivera o
TEN em 1944. Define sua linha de atuação inicial em três vertentes:
12 Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, entre
outros, participaram da iniciativa da UNESCO.
35. 1.Denunciar o racismo e o preconceito racial; 2.Denunciar o mito da
democracia racial e 3.Buscar a construção de uma identidade racial.
(GUIMARÃES, 2001)
Os anos 1980 foram marcados por uma movimentação impulsionada
pela redemocratização do país. Nessa década são criados os primeiros órgão
públicos voltados para a população negra: os conselhos estaduais (São Paulo,
Rio Grande do Sul e Bahia) e a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao
Ministério da Cultura.
Após 1988, ano em que se celebrou o centenário da abolição e no qual
se estabeleceu uma nova ordem constitucional, surgem novas entidades
negras – com maior enfoque em conquistas sociais, ao invés de ênfase nas
denúncias. São as organizações não-governamentais - ONGs, apelidadas de
NEGRONGs. Há um sem-número delas atuando de forma dinâmica em todo o
pais, das quais destacam-se o Geledés – Instituto da Mulher Negra, O Fala
Preta e o Crioula, entidades mais voltadas para os direitos de cidadania da
mulher negra. Destaca-se ainda o Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas (Ceap) e o Centro de Estudos das Relações do Trabalho e
Desigualdades (Ceert).
A redemocratização em curso no país e o surgimento de novos partidos
políticos também ampliou o espaço para o movimento negro apresentar suas
reivindicações, verificando-se uma maior atuação de negros nesse setor o que
culminou com a eleição de alguns candidatos negros (CUNHA, 1992).
2.4. O movimento feminista e a saúde da mulher
A partir dos anos 1970, muitas foram as discussões em torno da
participação política, econômica e social da mulher na sociedade, sendo um
grande marco o Ano Internacional da Mulher, declarado pela ONU -
Organização das Nações Unidas em 1975.
Na década de 1980, o movimento feminista iniciou uma luta pela
atenção específica à saúde da mulher e tinha como objetivo discutir, propor e
reivindicar políticas públicas, além de produzir estudos voltados à saúde da
população feminina, sem que naquele momento fizesse parte de suas reflexões
36. a variável cor/raça. A partir de então, as mulheres negras passam a discutir a
especificidade racial/étnica no tocante à saúde. (ARAÚJO, 2001).
Em 1985, com base em uma reivindicação do movimento de mulheres,
foi criado o PAISM – Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, que
oferecia às mulheres o direito de assistência à saúde curativa e preventiva,
mas não contemplava as questões relativas à saúde da mulher negra.
(OLIVEIRA, 1994).
No final da década de 1980 foram implantados serviços destinados à
saúde da mulher, voltados especialmente para o planejamento familiar, a
prevenção da mortalidade materna e a assistência à gestante de alto risco. Não
obstante, permanecia o hiato entre a defesa dos interesses de gênero, pelo
movimento feminista, e a luta pró-cidadania da população negra.
Em 1988 surgiram as primeiras organizações de mulheres negras, que
fundiam os ideais do movimento feminista e do movimento negro, voltando-se
para os problemas da discriminação social, econômica, educacional e política
da mulher negra (CARNEIRO, 1994).
2.5. Introdução do recorte por cor/raça
Em paralelo á trajetória dos movimentos de mulheres brancas e negras
surgem, no mesmo período, uma série de estudos e pesquisas que incorporam
a variável cor/raça.
Na segunda metade da década de 1980, o NEPO – Núcleo de Estudos
de População, da Universidade Estadual de Campinas iniciou importantes
projetos de investigação demográfica acerca da população negra, os quais
tornaram-se referências imprescindíveis. (OLIVEIRA, 1995)13
A partir de então, vários pesquisadores e centros de pesquisa passaram
a realizar estudos sobre a saúde da população negra.
13 Destacam-se os títulos: Estudo da Dinâmica Demográfica da População Negra no Brasil (BERQUÓ,
BERCOVICH e GARCIA, 1987), Fecundidade da Mulher Negra: Constatações e Questões (BERCOVICH,
1987); Mortalidade Infantil da População Negra Brasileira (TAMBURO, 1987), Nupcialidade da População
Negra (BERQUÓ, 1987); O Quadro de Discriminação Racial da Mortalidade Adulta Feminina no Brasil
(CUNHA, 1990).
37. Um estudo sobre nupicialidade mostrou que o índice de mulheres
brancas casadas era maior que o de pardas e pretas, sendo maior a proporção
de homens pretos unidos com mulheres brancas ou pardas, contrastando com
o menor número de mulheres pretas casadas com homens pardos ou brancos
(BERQUÓ, 1987).
Outro estudo que comparou a fecundidade de mulheres brancas, pardas
e pretas, revelou que, até 1960, dentre os três grupos, a fecundidade de
mulheres pretas era sistematicamente menor, o que foi atribuído "à menor
proporção de mulheres pretas que se unem" e "à menor proporção de
mulheres prolíficas, mesmo as que estão unidas" (BERCOVICH, 1987).
Um estudo acerca da mortalidade intra-uterina por cor mostra que as
proporções de gravidezes entre pardas e pretas são semelhantes (1,92 e 1,91
respectivamente), e que as primeiras apresentam maior número de nascidos
vivos que as segundas, principalmente devido ao menor número de abortos
espontâneos (0,24 contra 0,31), uma vez que os níveis da natimortalidade são
semelhantes (0,06 contra 0,07) (MORELL e SILVA, 1988).
Sobre amamentação, constatou-se que as mulheres pretas, em razão de
suas condições sócio-econômicas, utilizam predominantemente a mamadeira
para alimentar as crianças pequenas, em detrimento do aleitamento materno,
forma mais indicada como fonte de alimento e proteção contra doenças e
amplamente utilizada nos países pobres, inclusive na África (RÉA, 1988).
A necessidade de trabalhar fora de casa, entre outros fatores, explica a
maior utilização da mamadeira entre as pretas e as pardas, que recorrem
pouco ao aleitamento materno por apresentarem situação econômica precária,
embora não tão severa quanto a das pretas.
Todavia, verificou-se que as mulheres pretas apresentam melhores
índices de aleitamento no início da vida dos bebês (até o quarto mês), quando
os fatores de ordem biológica mais interferentes – estabelecimento da sucção
apropriada para um suprimento adequado de leite, não turgescência e
esvaziamento correto das mamas, não existência de mastites ou rachaduras
impeditivas da prática de amamentar seriam mais superáveis por estas do que
pelas brancas. É a partir do quarto mês, aproximadamente, quando as
38. questões sociais passam a ter maior peso, que as brancas conseguem maior
sucesso na lactação (RÉA, 1988).
2.6. A importância da identificação racial na área de saúde
A identificação racial14 é de suma importância nos serviços de saúde
para o estabelecimento de "diagnósticos e prognósticos, na prevenção e no
acompanhamento condigno, sobretudo das doenças atualmente consideradas
raciais/étnicas" (OLIVEIRA, 1994).
Existem doenças que incidem mais sobre uma determinada raça do que
sobre outra, assim como mais sobre um sexo do que sobre outro:
"Assim como existe uma patologia dos sexos, uma patologia das
idades, temos também uma patologia favorecida pelo fator racial.
São conhecidas as suscetibilidades e também a relativa imunidade
especial de certas raças para determinadas doenças." (ROMEIRO,
1968).
2.7. Doenças raciais/étnicas
Doenças raciais/étnicas são definidas como aquelas patologias que os
grupos raciais – branco, negro, amarelo e indígena, ou étnicos – judeus,
ciganos, etc. apresentam com exclusividade ou prevalência. São ainda as
doenças que se caracterizam por uma evolução diferenciada nos distintos
grupos populacionais, independentemente ou com pouca interferência das
condições sócio-econômicas.15
Segundo ZAGO (1993), as manifestações das doenças dependem das
interações de dois fatores: genéticos e ambientais, sendo que em alguns tipos
de doenças pode prevalecer ora o fator genético (como, por exemplo, na
anemia falciforme), ora o fator ambiental (como nas infecções). Entre as
doenças predominantemente genéticas e as predominantemente ambientais
14 O uso dos conceitos cor, raça e etnia será tratado no Capítulo 3.
15 Definição construída e extraída do Programa Saúde da População Negra, conduzido pela Área
População e Sociedade do CEBRAP, 1992, sob a coordenação de Elza Berquó. Ver também, Cadernos
de Pesquisa CEBRAP, nº 2, 1994.
39. situam-se as doenças resultantes destes dois fatores, como a febre reumática,
o diabetes melito e a doença coronariana cardíaca.
Dentre as doenças genéticas, a anemia falciforme é a mais comum no
Brasil. Trata-se de uma anemia hereditária prevalente na população negra.
Apresenta-se de modo variado entre os portadores. Existem aqueles que
manifestam a doença na forma grave e aqueles que a apresentam na forma
benigna, quase sem conseqüências. Portanto, dependendo do caso, o
indivíduo portador desta doença pode falecer na fase infantil ou então
sobreviver até a vida adulta, sem complicações graves. Esta variação depende
da interação dos fatores genéticos e ambientais, representados pelas
condições sócio-econômicas no sentido amplo, ou seja, higiene, qualidade de
alimentação, acesso a assistência médica (ZAGO, 1993).
Cada grupo populacional apresenta distintamente incidência e
prevalência de doenças, de acordo com os fatores ambientais, genéticos e a
interação entre eles. (ZAGO, 1993).
Várias são as doenças genéticas que se manifestam de modo diferente
em diversos grupos humanos: Uma delas:
“é uma forma de porfiria, que afeta os brancos na África do Sul com
uma freqüência cerca de trezentas vezes maior que entre as outras
populações de caucasóides. A fibrose cística, extremamente
freqüente em populações européias, sua incidência é máxima no
norte da Europa e vai diminuindo em direção ao sul, sendo
extremamente rara entre negros e orientais. A doença de Tay-
Sachs, que é uma anormalidade genética observada entre judeus
ashkenazi, é extremamente rara em outros grupos de judeus.
Também as hemoglobinopatias têm uma distribuição muito
heterogênea em diferentes populações humanas. Por exemplo, as
talassemias são muito freqüentes em povos mediterrâneos e do
sudoeste da Ásia, sendo raras ou ausentes em outras populações.
Por outro lado, a anemia falciforme é muito freqüente em algumas
populações africanas e praticamente inexistente na Europa e na
Ásia”. (ZAGO, 1993)
40. Ao comparar doenças de fundo genético entre as populações negra e
branca dos Estados Unidos, ZAGO (1994) mostra que a hipertensão arterial é
mais freqüente e mais grave em negros, podendo sua causa ser justificada
pelos seguintes fatores: estresse sociocultural, constituição genética, hábitos
alimentares, peso corporal (obesidade).
Ainda segundo o autor, os casos de diabetes melito tipo I, mais grave,
são mais freqüentes em brancos do que em negros, enquanto o tipo II é
prevalente nestes. O albinismo é uma anormalidade genética. O mais comum é
o albinismo óculo-cutâneo tirosinase-negativa, que acomete igualmente negros
e brancos, mas a tirosinase-positiva é duas vezes maior em negros. A
deficiência de lactase, que resulta em intolerância ao leite, é mais comum em
negros. Algumas malformações congênitas apresentam-se predominantemente
em negros e outras em brancos, de acordo com os fatores genéticos e
ambientais: a anencefalia aparece mais em brancos do que em negros, e a
hipoplasia do pulmão é prevalente em negros. O câncer dermatológico é mais
freqüente na população branca, embora ocorram determinados tipos de
cânceres prevalentes em negros. A sobrevivência de negros com câncer é
menor do que a de brancos, o que, segundo OLIVEIRA (1993), parece estar
diretamente relacionado com as condições sócio-econômicas.
Ainda com relação aos cânceres, ARAÚJO (1993) aponta que as
mulheres negras norte-americanas apresentam o dobro de incidência de
câncer no colo do útero em relação às mulheres brancas, sendo que o
desenvolvimento deste câncer está associado às condições de pobreza. Já as
mulheres brancas apresentam maior predisposição para desenvolver o câncer
de mama, porém, "na última década, de 12% a 15% das mulheres negras com
câncer de mama apresentam uma média de sobrevida cinco vezes menor que
as mulheres brancas", o que pode ser justificado, segundo a autora, pelo
precário acesso aos serviços de saúde de boa qualidade.
São também características da população negra as síndromes
hipertensivas na gravidez e a mortalidade materna (OLIVEIRA, 2001).
2.8. A influência dos fatores sócio-econômicos
41. Segundo afirma OLIVEIRA (2001):
“[Embora] sejam poucas (e de fato são) as doenças que podem ser
catalogadas como raciais ou étnicas, na população negra elas
atingem precocemente um número expressivo de pessoas, e suas
decorrências na morbimortalidade em si já justificariam uma
atenção especial. Além disso, todas elas são doenças que têm uma
interferência muito íntima na saúde reprodutiva da mulher negra e
na diminuição da vida produtiva de negros em geral”.
A precariedade das condições de vida atua negativamente sobre a
situação de saúde da população em geral, porém, como se sabe, os negros,
em sua maioria, residem nas áreas mais carentes de políticas públicas
essenciais, como saneamento básico, escolas e instituições de saúde, além de
apresentarem baixa qualificação profissional e renda mensal aquém do mínimo
necessitado.
Tal situação é ainda mais prejudicada pela existência explícita ou velada
de práticas racistas na sociedade brasileira, o que contribui acentuadamente
para a manutenção ou a piora da baixa estima e do risco de adoecimento físico
e mental (OLIVEIRA, 2000).
Estudos revelam que o câncer do colo do útero é duas vezes mais
freqüente em mulheres negras que nas brancas. Várias pesquisas atestam que
este tipo de câncer é diretamente proporcional às condições de pobreza,
confirmando que a precariedade das condições sócio-econômicas compromete
efetivamente a saúde da população negra (OLIVEIRA, 2001).
Uma pesquisa sobre demografia e saúde constata a desigualdade
social, econômica, de risco reprodutivo e de acesso aos serviços de saúde
existentes entre a população negra e a branca, evidenciando aspectos que
reforçam a especificidade da questão (PERPÉTUO apud OLIVEIRA, 2000).
Os dados demostram que:
1. a condição sócio-econômica das mulheres negras é
significativamente inferior à das brancas, em especial no que se
refere ao acesso a bens e serviços e nível educacional;
42. 2. a proporção de mulheres negras sob risco reprodutivo é muito maior
que as brancas, com maior índice de gravidez na adolescência e
mulheres com 3 filhos ou mais;
3. as negras têm um conhecimento precário sobre a fisiologia
reprodutiva e registram uma fecundidade maior que as brancas.
Apenas 20% sabem localizar o período fértil (em contraste com 37%
das brancas);
4. as negras têm acesso precário à anticoncepção, sendo o dobro das
brancas o percentual de negras que nunca usou anticoncepcional ou
que passou a usar método contraceptivo somente após ter tido 2 ou
mais filhos.
2.9. Mortalidade
No Brasil, os negros morrem mais precocemente em todas as faixas
etárias, em decorrência de causas que são geralmente previníveis e evitáveis
(OLIVEIRA, 2001).
Particularmente em relação á mulher negra, quando se considera a
mortalidade por cor, verifica-se que a mortalidade de mulheres pretas é maior
que a das pardas, e maior ainda que a das brancas, relação também
encontrada na mortalidade infantil, o que pode ser justificado pelas precárias
condições de vida e saúde em que vive a maioria da população negra
(CUNHA,1990).
Comparando-se a mortalidade proporcional por faixa etária da mulher
negra com o homem branco, constata-se que o percentual de óbitos antes dos
50 anos é de 40,7% na mulher negra e de 39% no homem branco,
contradizendo a afirmativa de que mulheres vivem mais que homens. Para as
mesmas doenças, apresentadas por negras e brancas, verifica-se que a
mortalidade das negras é maior. (BARBOSA, 2001).
43. A mortalidade infantil das crianças negras é elevada e vem registrando
uma piora. Já em 1960, a mortalidade de crianças brancas era 44% menor do
que a de crianças pardas e 33% menor do que a de crianças pretas. Em 1980,
verificou-se a diminuição na mortalidade infantil de brancos, pardos e pretos,
especialmente para brancos (36%). Para as crianças pretas observou-se a
"diminuição da vantagem do subgrupo preto, que caiu de 7% para apenas 3%
em 1980”. Em relação à escolaridade, a população negra, em sua maioria,
apresenta níveis inferiores aos da população branca. Quanto maior o nível de
escolaridade da mãe, menor o nível de mortalidade das crianças menores de
um ano, de modo que também nesta relação é maior a mortalidade infantil de
pretos, seguida pela de pardos (TAMBURO,1987).
A mesma autora, ao estudar a mortalidade infantil no estado de São
Paulo, utilizando-se dos dados do censo de 1991 e de estatísticas do registro
civil, associando-os às variáveis cor/raça e a condições sócio-econômicas,
verificou, entre outros resultados, a acentuada dificuldade de acesso de mães
negras ás consultas de pré-natal, maior proporção de mulheres que
apresentam nenhum ou baixos níveis de escolaridade, maior mortalidade de
crianças negras vítimas de doenças infecciosas, parasitárias e respiratórias e a
maior ocorrência de óbitos decorrentes da falta de assistência médica.
O baixo peso ao nascer também se acentua para essas crianças, o que,
como aponta a autora, pode ser conseqüência da desnutrição e de doenças
maternas, como a hipertensão e diabetes, não controladas no período
gestacional. (TAMBURO, 2001)
2.10. O panorama atual da saúde da população negra
Conforme a avaliação de (OLIVEIRA, 2001), ainda que na última década
sejam crescentes no Brasil as discussões acerca das doenças raciais/étnicas
relacionadas a população negra, esse debate, quer no interior das ONGs, quer
no meio acadêmico, – exceto para a anemia falciforme - ainda não recebeu das
escolas de medicina, o reconhecimento científico.
2.11. Ações governamentais
44. No campo político, registram-se algumas iniciativas do governo
(OLIVEIRA, 2001):
1. Definição do quesito cor pelo Ministério da Saúde, desde março de
1996, para a padronização de informações sobre raça e cor dos
cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país.
2. Realização da Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra pelo
Ministério da Saúde e do GTI – Grupo de Trabalho Interministerial
para Valorização da População Negra, em abril de 1996.
3. Inclusão do quesito cor na Norma de Ética em Pesquisa Envolvendo
Seres Humanos, outubro de 1996 pela Resolução 196/96.
4. Organização da Pré-conferência Cultura & Saúde da População
Negra (Brasília, setembro de 2000), promovida pela Fundação
Cultural Palmares e pelo Ministério da Saúde, como parte das
atividades preparatórias do governo brasileiro para a III Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância.
5. Implantação de medidas no campo da saúde e dos direitos sexuais e
reprodutivos com perspectivas de benefícios para as mulheres
negras: o quesito cor na Norma Técnica sobre Prevenção e
Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra
Mulheres e Adolescentes; a reinstalação do Comitê Nacional de
Mortalidade Materna e a notificação compulsória dos óbitos maternos
(1997). Inclusão do quesito cor nas declarações de óbito.
6. Aprovação do Programa de Anemia Falciforme do Ministério da
Saúde (PAF/MS) em agosto de 1996, uma diretriz completa para a
atenção à anemia falciforme, com oferta do diagnóstico neonatal e
ampliação do acesso aos serviços de diagnóstico e tratamento.
Porém, como afirma OLIVEIRA (2001), as ações governamentais até
aqui empreendidas são, contudo, insuficientes para atender à demanda por
políticas e serviços de saúde, uma vez que a maior parte ainda está em
projeto.
45. 2.12. Principais reivindicações
Uma análise das principais reivindicações do movimento negro no que
tange às políticas públicas na área de saúde permite elencar as seguintes
medidas que, embora sem contemplação, traduzem necessidades prioritárias:
1. implementação de políticas de educação continuada em saúde da
mulher, em particular sobre saúde reprodutiva da mulher negra;
2. inclusão de orientações específicas sobre saúde da mulher negra no
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM);
3. observação de cuidados especiais com a anticoncepção hormonal e
o DIU (Dispositivo Intra-uterino) em mulheres portadoras de
hipertensão, diabetes, miomas e anemia falciforme;
4. dedicação de atenção especial ao risco de hipertensão arterial,
especialmente, das mulheres negras por parte dos serviços de
saúde, sobretudo durante o pré-natal;
5. capacitação e formação de lideranças comunitárias sobre a saúde da
população negra pelo Ministério da Saúde;
6. incorporação de conteúdos que tratem da saúde da população negra
nos treinamentos, capacitação e aperfeiçoamento do Ministério da
Saúde;
7. desenvolvimento de estudos nas escolas de medicina voltados para
as especificidades da população negra. (OLIVEIRA, 2001).
Neste sentido, a autora aponta a urgência da elaboração de um Plano
Nacional de Atenção à Saúde da População Negra, que defina as diretrizes de
ação a partir da inclusão do recorte racial/étnico, a fim de proporcionar uma
abordagem diferenciada de determinadas doenças e contemplar as
repercussões do racismo na saúde da população negra.
46. 3. A QUESTÃO RACIAL NO CONTEXTO DOS ESTUDOS SOBRE A SAÚDE
DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA
No Brasil, são grandes as dificuldades em torno da identificação racial
da população negra. O fato de sermos um país mestiço, que nunca adotou
oficialmente uma linha demarcatória de cor, torna subjetiva a classificação e a
auto-classificação dessa variável (CONSORTE, 1995).
Tais dificuldades são invariavelmente vivenciadas por pesquisadores de
qualquer área temática quando pretendem considerar em seus estudos o
recorte racial/étnico.
A categoria cor, entre nós, geralmente vem associada à idéia de raça, o
que torna o tema complexo até mesmo do ponto de vista conceitual, aspecto
reconhecido por estudiosos da área e que foi definido por SANTOS (2001)
como um “terreno movediço”.
Por um lado, a não sistematização do item cor pelo IBGE - Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística e o não cruzamento com outras variáveis
impossibilita uma avaliação evolutiva e comparativa das condições de vida da
população negra. Além disso, as categorias de cor utilizadas para definir a
população negra nos Censos (parda e preta) são bastante discutíveis.
(CARNEIRO, 1990).
Por outro lado, a não-identidade racial existente entre os negros acentua
essa problemática.
3.1. O item cor
O item cor foi introduzido no censo demográfico realizado no país, em
1872, no qual a classificação da população compreendia as categorias branca,
preta e parda. No recenseamento de 1890, as alternativas de cor foram
mantidas.
47. Em 1940, foram adotadas as opções: branca, preta, amarela e parda
(esta última destinava-se aos que não se enquadrassem nos três primeiros
grupos). Os censos de 1950 e 1960 adotaram os mesmos critérios utilizados
em 1940.
No censo de 1970, foi omitido o quesito cor, que retornou em 1980, com
as mesmas variáveis de classificação de 1940 (BERQUÓ, 1988).
Em 1976, a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
incluiu pela primeira vez o quesito cor no Suplemento de Mobilidade Social e
Cor, utilizando dois critérios para sua identificação: diante de uma pergunta
aberta, o recenseado classificava sua cor livremente; depois, de acordo com as
categorias preestabelecidas: branca, parda, preta e amarela (ARAÚJO, 1987).
Os dois últimos censos, de 1991 e 2000, utilizaram cinco categorias para
a identificação de cor: branca, parda, preta, amarela e indígena e valeram-se
da auto-identificação. Contudo, o grande número e a variedade de cores
mencionadas nas respostas, presentes já no Censo de 1980, evidenciam as
dificuldades dos brasileiros para se auto-classificar em relação á sua cor
(SANTOS, 2001).
O IBGE em 1980 contabilizou mais de uma centena de cores: lilás, ouro,
rosada, saraúba, encerada, branca suja, morena roxa, negrota, queimada,
sapecada e turva são alguns exemplos do que SANTOS (2001) denomina de
"exacerbado arco-íris brasileiro".
3.2. Raça ou etnia?
No Brasil, pensa-se em raça ou em cor? Ou, ainda: se reconhece raça
ou etnia?
Como foi dito, embora aqui a idéia de raça geralmente venha associada
à categoria cor, em boa parte das vezes os termos são agregados, passando-se
a ter uma noção de cor/raça.
Os conceitos de raça e etnia no país são bastante polêmicos, tanto na
academia, quanto nos centros de pesquisas e entidades do movimento negro.
48. Por vezes, o conceito de raça é tomado em sua acepção biológica, em outras,
aparece como uma categoria social (OLIVEIRA, 1995).
A noção de etnia, embora ainda pouco discutida no que diz respeito aos
negros brasileiros, também gera polêmica. Segundo CONSORTE (1987):
”Para a ideologia dominante, os negros não constituem grupos
étnicos, não possuem territórios específicos, não falam a língua dos
seus antepassados e, freqüentemente, ignoram tudo a respeito da
história dos seus maiores"
Para CONSORTE (1998), enquanto a idéia de raça se identifica cada
vez mais com o passado, dando ênfase aos aspectos físicos, o conceito de
etnia emerge vinculado ao futuro, pautado na noção de pertencimento e na
comunhão de valores.
Na conceitualização de raça, todavia, residem dificuldades reconhecidas
pela maioria dos estudiosos da temática racial brasileira. Trata-se de uma
discussão complexa, como reconhece SANTOS (2001), entre outros.
No meio acadêmico, o tema tem em NOGUEIRA (1985) o enfoque que
desmembra o “preconceito de origem” considerado típico dos Estados Unidos,
do “preconceito de marca”, mais comum no Brasil. Por esse entendimento,
seria negro, nos Estados Unidos, quem tivesse “origem” africana,
independentemente do matiz da pele. Aqui, a cor da pele (marca) cuidaria de
definir o indivíduo em termos raciais.
Todavia, esse texto não traduz inteiramente o que acontece em um país
de dimensões continentais, constituído por várias culturas, como o Brasil.
Como se sabe, uma pessoa classificada como morena no nordeste tem grande
chance de ser considerada negra no interior de Santa Catarina ou no Rio
Grande do Sul.
SCHWARTZMAN16 (1999), admite que essa possibilidade levantada por
Nogueira talvez explique a ausência de uma “pesquisa sistemática no Brasil
sobre o tema da origem, ao passo que o conceito de marca tem prevalecido,
apesar das limitações que possam ter os dados existentes a este respeito”.
16 Simon Schwartzman, foi presidente do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no período
de maio de 1994 a janeiro de 1999.
49. Como afirma, tendo em vista a preparação do Censo de 2000, tentou-se
aperfeiçoar o quesito cor, buscando introduzir a variável origem, o que
atenderia melhor aos pesquisadores que trabalham com dados de população.
Para tanto, como teste, fez-se uso da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de
julho de 1998. Pretendia-se verificar se os respondentes que se classificavam
como pretos ou pardos identificavam-se como negros ou descendentes de
africanos; assim como saber se aqueles auto-classificados como brancos se
vinculavam a etnias específicas. Dessa forma, poder-se-ia vincular as
respostas à pergunta básica sobre cor. Analisando o teste, assim se
manifestou:
“Os resultados confirmam que o Brasil não tem linhas de
demarcação nítidas entre populações em termos de características
étnicas, lingüísticas, culturais ou históricas, o que faz com que
qualquer tentativa de classificar as pessoas de acordo com estas
categorias esteja sujeita a grande imprecisão.” (SCHWARTZMAN,
1999)
Conclui, o autor, pela impossibilidade de substituir o modelo vigente
(marca) por um outro, que aponte a origem, "porque só uma parcela da
população ‘preta’ ou ‘parda’ se identifica como de origem africana ou negra".
(SCHWARTZMAN, 1999)
Fica assim evidenciado que as dificuldades para se estudar a questão
racial negra vêm de longe e estão cristalizadas, o que torna o tema das
doenças raciais/étnicas ainda mais complexo.
3.3. A importância do item cor na área de saúde
Um exemplo significativo, que permite compreender como a
problemática racial se manifesta na prática é o não preenchimento do item cor
nos documentos de saúde, que dificulta ou até mesmo inviabiliza saber, como
afirma OLIVEIRA (1994), de que adoecem ou falecem os negros no Brasil.
Segundo ela:
“ ... é fundamental que se entenda que o ‘quesito cor’ ou a
identificação racial é um item necessário e indispensável nos
50. serviços de saúde. Não apenas porque facilita e serve para
diagnosticar ou prevenir as doenças atualmente consideradas
étnicas, mas sobretudo porque possibilita saber também como é o
estado de saúde da população negra; ajuda a precisar mais o
descaso, a omissão, a dificuldade de acesso, o racismo subjacente
e intricado à marginalização de classe. (OLIVEIRA, 1994)
Há de se considerar também as limitações manifestadas pela própria
população negra no entendimento dessa questão. Como já indicado, pude
presenciar essa dificuldade em minhas pesquisas domiciliares: Com o objetivo
de introduzir as entrevistadas na discussão acerca das doenças raciais/étnicas
perguntava se já havia ouvido falar na anemia falciforme17 — por tratar-se da
doença racial de maior visibilidade — e suas respostas foram amplamente
negativas. Diante disso, explicava-lhes em que consiste essa anomalia, assim
como as informava acerca de sua particularidade racial/étnica.
Todas as entrevistadas entendiam que a discussão acerca da existência
das doenças raciais/étnicas era uma manifestação discriminatória. No grupo de
mulheres brancas dizia-se:
A necessidade de vincular a variável cor/raça ao binômio saúde/doença,
levou, no início da década de 1990, entidades do movimento social negro a se
mobilizarem para reivindicar junto à prefeitura de São Paulo que essa
informação fosse incluída e preenchida nos documentos de saúde dos órgãos
institucionais, o que resultou na publicação da portaria n.º 696/9018, que
17 Anemia falciforme é uma doença genética e hereditária, mais freqüente na população negra. A esse
respeito ver o vídeo Eu, Mulher Negra, Cebrap, 1994; Cadernos de Pesquisa Cebrap, no.2, 1994; Cartilha
Anemia Falciforme/Anime-se e Informe-se - Cebrap e Fala Preta, 1996; Livreto População Negra em
Destaque, 1998.
18 A portaria 696/90 foi baixada durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, então do Partido dos
Trabalhadores, pelo secretário municipal de saúde, Dr. Eduardo Jorge. Porém, nas gestões seguintes, de
Paulo Maluf e Celso Pitta, esse projeto foi silenciado, retornando somente no ano de 2000, no final da
gestão de Celso Pitta.
51. oficializava a inclusão do item cor no Sistema de Informação da Secretaria
Municipal de Saúde (Cadernos Cefor, 1992).
Não obstante, se, de um lado, pesquisadores e militantes da questão
racial entendiam ser necessário considerar o item cor nos documentos de
saúde, de outro, parte dos funcionários e profissionais de saúde, além de não
compreenderem a razão da inclusão, chegavam a considerar essa atitude
discriminatória (Cadernos Cefor, 1992).
Diante desse impasse, o movimento social negro promoveu palestras,
campanhas e importantes seminários para conscientizar a população e tornar
pública a importância do item cor nos documentos de saúde. Entre as
iniciativas estava aquele que se tornou um marco, O Quadro Negro de Saúde –
Implantação do Quesito Cor no Sistema Municipal de Saúde, pois defendia que
a identificação de cor/raça nos prontuários médicos dos usuários do Sistema
Municipal de Saúde em São Paulo seguisse a mesma classificação de cor/raça
utilizada pelo IBGE no censo de 1980, ou seja, branca, parda, preta e amarela
e que esse dado fosse coletado mediante auto-classificação.
Segundo depoimentos dos organizadores da campanha, os resultados
de todo esse esforço, até o final de 1992, foram positivos, ainda que
permanecessem as resistências por parte de profissionais de saúde e
funcionários para considerar o quesito cor. No entanto, já no início de 1993, no
preenchimento do prontuário dos pacientes passou-se a desconsiderar as
normas da auto-classificação.
Embora essa discussão tenha sido relegada pelo governo municipal, o
movimento social negro permaneceu empenhado na defesa das questões de
saúde, como mencionado no capítulo anterior.
Em fevereiro de 2000, o assunto voltou a ser analisado pela gestão
municipal. O vereador Carlos Neder, após entendimentos com o movimento
social negro, apresentou à Câmara dos Vereadores o Projeto de Lei 35/2000,
que tem como um de seus objetivos implementar programas e ações de saúde
específicos para a saúde da população negra.
52. No mês seguinte, realizou-se o seminário Quesito Cor, na Câmara
Municipal dos Vereadores, que contou com a participação de membros do
movimento social negro, pesquisadores, acadêmicos e população em geral.
Para ROLAND (2000):
“A reivindicação da introdução do chamado ‘quesito cor’ nos
instrumentos de coleta de informações oficiais tem se constituído
numa das principais bandeiras do Movimento Negro no Brasil. Até
agora, ainda que com críticas, foi geralmente aceito o método
utilizado pelo IBGE. Dilemas e obstáculos têm impedido uma
possível reelaboração das classificações raciais oficiais.” 19
3.4. Particularidades do estudo Ações Educativas para a Prevenção
da
Histerectomia
Antes de iniciar a discussão específica sobre as ações educativas para a
prevenção da histerectomia20, objeto desse trabalho, é necessário dizer que as
etapas que contaram com a participação das entrevistadas, exceto para as
situações relacionadas com a histerectomia, transcorreram de modo bastante
prazeroso e intenso.
Esse ambiente amistoso, porém, foi influenciado negativamente pela
abordagem da identificação racial, que suscitou algum constrangimento. Ao
serem solicitadas a atribuir sua cor/raça, as mulheres brancas e negras, essas
últimas, embora em número reduzido, mostraram-se bastante incomodadas. As
primeiras questionavam-me: “... mas por que você está me perguntando a
minha cor? O que tem a ver a cor da pessoa com saúde ou doença? Sou
branca, ora!” E as negras: “... nossa, que pergunta! Sou como você, parda.
Mas por que você precisa anotar essas coisas aí?”21
19 Trecho extraído do Seminário Quesito cor, publicado em “Cidadania Ativa — Propostas para uma São
Paulo Saudável e Solidária, Vereador Carlos Neder (PT). Edna Roland é presidente da Fala Preta —
Organização de Mulheres negras — e foi a relatora oficial da III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, convocada pela ONU, em 2001 na África
do Sul.
20 A discussão a respeito da histerectomia encontra-se nos capítulos seguintes.
21 No que se refere aos depoimentos das entrevistadas, embora tenha primado por ser fiel ao seu
conteúdo, precisei fazer algumas alterações gramaticais para garantir sua total compreensão.
53. O constrangimento inicial, manifestado pelas entrevistadas, pode ser
justificado, como mostra SANTOS (2001), pela complexidade da questão racial:
“ a invisibilidade da questão racial deve ser interpretada aqui como um fato que
não se nota, não se discute nem se deseja notar ou discutir. É como se não se
existisse”.
Felizmente, esse clima de mal-estar esteve presente somente nos
primeiros momentos da pesquisa, sendo amenizado à medida em que a
entrevista seguia, já que essa era uma pergunta inicial do questionário de
campo. No decorrer do trabalho, brancas e negras, no entanto, revelariam
posições acentuadamente antagônicas sobre a questão racial.
3.5. A auto-classificação de cor/raça
Para a coleta da informação relacionada com a variável cor/raça apliquei
a mesma metodologia utilizada pelo IBGE no Censo de 2000, a auto-identificação,
oferecendo às entrevistadas as cinco categorias de cor já
mencionadas: branca, parda, preta, amarela e indígena. Além disso, mediante
a experiência positiva obtida em estudos anteriores22, decidi fazer minha
própria classificação para contrapor à declaração feita por elas.
Das 102 participantes desse estudo, 51 atribuíram para si a cor/raça
branca — e foram assim consideradas por mim. Embora, na totalidade dos
casos, a auto-atribuição de cor das mulheres brancas correspondesse à minha
avaliação, em determinadas entrevistadas as características físicas
evidenciavam alguma mestiçagem, sempre atribuída por elas a algum ancestral
de origem indígena. Porém, levando-se em conta os critérios de classificação
racial existentes em nossa sociedade, poderiam ser identificadas como
mulheres brancas e, como apontado, assim se reconheciam.
Das 51 mulheres negras, 35 classificaram-se como pardas, 02 como
pretas e 14 como morenas. Estas últimas, alegando terem a cor da pele mais
22 Pesquisa Saúde Reprodutiva da Mulher Negra. Área População e Sociedade, Cebrap, 1992; SOUZA,
Vera Cristina, Mulher Negra e Miomas: Uma Incursão na Área da Saúde, Raça/Etnia. Dissertação de
Mestrado. PUC/SP, 1995.
54. clara e os cabelos ondulados, recusaram-se a se enquadrar na categoria
parda23.
Todas elas justificavam ser filhas de pais ou mães brancos, sendo
comum entre elas a expressão “não puxei minha mãe” ou “não puxei meu pai”
se um ou outro fosse negro.
Dessa forma, três delas se declararam “morenas café-com-leite”, cinco,
“morenas-mestiças” e seis, “morenas-jambo”.
Não obstante, dada a importância da relação cor/raça neste estudo,
mantive meu critério de avaliação de cor, incluindo as morenas “café-com-leite,
mestiças e jambo” no grupo de mulheres negras24. Em certos momentos deste
trabalho porém, suas representações serão analisadas à parte.
Diferentemente das morenas, duas das 35 entrevistadas, que se auto-declararam
pardas, queixaram-se por não haver a categoria negra dentre as
opções apresentadas, uma vez que era assim que se consideravam. A tabela
abaixo mostra como as entrevistadas se auto-identificaram.
TABELA 1 – AUTO-CLASSIFICAÇÃO DA COR PELAS ENTREVISTADAS
CATEGORIA UTILIZADA
PARA A ANÁLISE DOS
DADOS
AUTO-CLASSIFICAÇÃO
BRANCA PARDA PRETA MORENA*
TOTAL
Brancas
Negras
51 00 00 00
00 35 02 14
51
51
TOTAL 51 35 02 14 102
* 3 “morenas café-com-leite” ; 5 “morenas--jambo” e 06 “morenas–mestiças”.
Como dito, utilizei-me das mesmas categorias de cor/raça utilizadas pelo
IBGE — branca, parda, preta, amarela e indígena. Porém, para a análise de
23 A esse respeito, ver HARRIS, M, and CONSORTE, J. "Who are the Whites? Imposed Census
Categories and the Racial Demography of Brazil", Social Forces, december, 1993.
24 Entendo que somente as características físicas não são suficientes para que a pessoa se identifique
como negra, já que ser negro é, a meu ver, sentir-se negro. No entanto, o fato das integrantes desse
grupo não se saberem negro não faz com que não sofram discriminação racial, como comprovam
inúmeros estudos.
55. dados, como é amplamente adotado pelos estudiosos da questão racial negra,
agrupei as pardas e pretas, considerando-as como negras.
3.6. A percepção da discriminação racial25
Como mostra SANTOS (2001), no Brasil a discriminação racial pode ser
classificada em função da forma como acontece:
“No Brasil, observamos três tipos básicos de discriminação
cometidos contra os negros descendentes: (a) o padrão, aquele de
todo o dia — o qual a sociedade já assimilou. Muitos nem o notam
mais... (b) o ostensivo, que, apesar de ter um componente de
habitualidade, choca e fere as pessoas... (c) o sofisticado. Notá-lo,
muitas vezes, é difícil em virtude de variações e das circunstâncias
em que ocorre.” (SANTOS, 2001)
A tabela abaixo mostra que 49.0% das entrevistadas concordavam com
a existência do racismo em nossa sociedade, sendo que dessas 72.0% eram
negras, contra apenas 28.0% brancas, incluindo-se 05 mulheres auto-classificadas
como morenas. Essas últimas, justificavam suas opiniões a esse
respeito mediante o contato com amigas, vizinhas ou até mesmo parentes que
passaram por essas situações.
TABELA 2 – A PERCEPÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL
AUTO-IDENTIFICAÇÃO HÁ RACISMO
NO BRASIL
NÃO HÁ RACISMO
NO BRASIL
TOTAL
Branca
%
14
28.0
37
71,2
51
50,0
Negra
%
31
62,0
06
11,5
37
36,3
Morena
%
05
10.0
09
17.3
14
13,7
TOTAL
%
50
49,0
52
51,0
102
100,0
25 Cabe precisar que discriminação racial, não se confunde com racismo ou preconceito racial. É pela
externalização do racismo e/ou do preconceito racial que advém a discriminação racial. A esse respeito
ver SILVA Jr, Hédio. Limites Constitucionais da Criminalização da Discriminação. Dissertação de
Mestrado. PUC-SP, 2000.
56. Para as 52 mulheres restantes, partidárias da crença na democracia
racial, foram comuns, como será mostrado adiante, os seguintes
posicionamentos:
“essas coisas existem somente nos Estados Unidos, é só ligar a
televisão e ver. Aqui não tem disso. Você pode ver no próprio
Centro, uma das melhores médicas que tem lá é de cor. Aqui,
branco e negros andam para cima e para baixo livremente; aqui não
tem essas coisas de um ser melhor do que o outro” (Teresa -
branca, 38 anos, casada, com filhos, sem diagnóstico, ginásio
incompleto, dona de casa).
3.6.1. As 14 mulheres auto-declaradas “morenas”
No que tange especificamente a esse grupo de mulheres, que não se
consideravam brancas, nem tão pouco negras, entendi ser necessário, ainda
que brevemente, traçar seus perfis sócio-econômicos, a fim de verificar se suas
características físicas diferenciadas influenciavam as variáveis relativas a
mercado de trabalho e escolaridade.
A análise mostra que essas mulheres apresentavam as mesmas
características sociais das demais mulheres negras: em sua maioria
apresentavam baixos níveis de escolaridade26 — seis tinham o primário
completo, sete o ginásio incompleto e uma havia concluído o segundo grau. No
que se refere à inserção no mercado de trabalho, sete estavam
desempregadas, quatro eram empregadas domésticas diaristas, duas eram
camelôs e uma era auxiliar de escritório.
Eram mulheres jovens, entre 24 e 29 anos, que tinham algum vínculo
religioso ou eram simpatizantes de alguma religião (nove afirmaram ser
evangélicas e cinco católicas).
26. Optei por não considerar a nova classificação de escolaridade atribuída pelo Ministério da Educação
(nível básico, fundamental e médio) porque a análise do desmembramento do modelo antigo (primeiro e
segundo graus) associado às variáveis cor/raça mostraria haver diferenças importantes na trajetória social
e econômica de mulheres brancas e negras.