1. SITUANDO O TROVADORISMO
O início das chamadas literaturas de línguas modernas ocorre coma produção
dos poetas da Idade Média, conhecidos como trovadores. O termo trovador origina-
se de trobadour, que significava “achar”, “encontrar”. Cabia ao poeta “encontrar” a
música e adequá-la aos versos. Neste período as composições eram basicamente
compostas para serem cantadas ao som de instrumentos como a lira, a cítara,
harpa ou viola, daí serem chamadas de cantigas ou trovas. Os artistas
medievais eram classificados em:
•Trovador – geralmente nobre, possuidor de uma cultura erudita, não recebia por
suas composições;
•Jogral – compositor, saltimbanco ou ator que recebia por suas apresentações;
•Segrel – fidalgo decaído que se apresentava nas cortes, em troca de dinheiro,
juntamente com seu jogral. Pode ser considerado um trovador profissional;
•Menestrel – artista que servia a uma determinada corte;
•Jogralesa ou soldadeira – moça que acompanhava os artistas dançando, cantando
e tocando castanholas.
O primeiro texto literário português que se tem registro é a “Cantiga da
Guarvaia” ou “Cantiga da Ribeirinha” (1189 ou 1198), cantiga de amor de autoria
de Paio Soares de Taveirós. Segundo consta, esta cantiga teria sido inspirada por D.
Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, mulher muito cobiçada e que se tornou amante de D.
Sancho, o segundo rei de Portugal. )
I CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL
O séculos XI e XII são marcados pelo feudalismo, no plano político-
econômico e pelo espírito teocêntrico (Deus como o centro de todas as coisas), no
plano religioso. A sociedade medieval, composta basicamente pelo clero,
nobreza e camponeses, estava estruturada numa relação de suserania e
vassalagem, através da qual os vassalos (povo) serviam e obedeciam ao
suserano (senhor feudal) em troca de proteção e assistência econômica. Tal
estrutura era mantida graças ao Teocentrismo, que difundia a ideia de destino,
fazendo com que o povo aceitasse sua posição subalterna sem contestação,
uma vez que esta era ordem divina. Este dois traços histórico-culturais irão influenciar
toda a produção literária trovadoresca, não só na poesia, mas também na prosa.
2. II- PRODUÇÃO LITERÁRIA
2.1 – CANTIGAS
O que conhecemos da poesia trovadoresca, anterior ao aparecimento da
escrita, está contido em obras conhecidas como cancioneiros, manuscritos antigos
encontrados a partir do final do século XVIII. Os três mais importantes são:
• CANCIONEIRO DA AJUDA OU DO REAL COLÉGIO DOS NOBRES – reúne 310
composições, das quais 304 são cantigas de amor ,foi organizado por D. Dinis e é o
mais antigo de todos. Encontra-se na Biblioteca da Ajuda, em Portugal.
•CANCIONEIRO DA VATICANA – reúne 1205 poesias, de autoria de 163 trovadores.
Conserva-se ainda hoje na Biblioteca do Vaticano, em Roma.
•CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL – também conhecido por Cancioneiro
de Colocci-Brancuti , em homenagem a um de seus antigos possuidores. É o mais
completo de todos, contendo 1647 cantigas de todos os gêneros. Encontra-se na
Biblioteca Nacional de Lisboa, em Portugal. Há ainda, segundo alguns estudiosos, as
Cantigas de Santa Maria, um cancioneiro de poesias religiosas composto por
426produções acompanhadas das respectivas músicas. Toda esta produção poética
dividi-se em:
a) De amor
I- Líricas
b) De amigo
Cantigas
a) De escárnio
II- Satíricas
b) De maldizer
CANTIGAS LÍRICAS:
CANTIGAS DE AMOR - nesta cantiga, o eu lírico é masculino e o autor é
geralmente de boa condição social. É uma cantiga mais "palaciana", desenvolve-se
em cortes e palácios.
Quanto à temática, o amor é a fonte eterna, devendo ser leal, embora
inatingível e sem recompensa. O amante deve ser submetido à dama, numa
vassalagem humilde e paciente, honrando-a com fidelidade, sempre.
O nome da mulher amada vem oculto por força das regras de mesura
(boa educação extrema/amor cortês) ou para não comprometê-la (geralmente, nas
cantigas de amor o eu lírico é um amante de uma classe social inferior à da
dama).
A beleza da dama enlouquece o trovador e a falta de correspondência
gera a perda do apetite, a insônia e o tormento de amor. Além disso, a coita
amorosa (dor de amor) pode fazer enlouquecer e mesmo matar o enamorado.
3. NAS CANTIGAS DE AMOR, de origem provençal (Provença região sul da
França), o trovador, posicionando-se num plano inferior – como um vassalo, canta
o sofrimento pelo amor não correspondido e a qualidades de uma mulher
idealizada e inatingível, a quem chama de “minha senhor”.
“Senhor fremosa, pois me non queredes creer a coita en que me tem
amor, por meu mal é que tan bem parecedes por meu mal vos filhei por
senhor e por meu mal tan muito bem oí dizer de vós, por meu mal vos vi
pois meu mal é quanto bem vós havedes.”
(Martim Soares, século XIII)
CANTIGAS DE AMIGO - Procuram mostrar a mulher dialogando com sua
mãe, com uma amiga ou com a natureza, sempre preocupada com seu amigo
(namorado). Ou ainda, o amigo é o destinatário do texto, como se a mulher desejasse
fazer-lhe confidências de seu amor. (Mas nunca diretamente a ele. O texto é
dialogado com a natureza, como se o namorado estivesse por perto, a ouvir as
juras de amor). Geralmente destinam-se ao canto e à dança.
A linguagem, comparando-se às cantigas de amor é mais simples e menos
musical, pois as cantigas de amigo não se ambientam em palácios e sim em
lugares mais simples e cotidianos.
Conforme a maneira como o assunto é tratado, e conforme o cenário onde se dá o
encontro amoroso, as cantigas de amigo recebem denominações especiais:
-Alvas (quando se passam ao amanhecer):
Levantou-s'a velida (a bela) / Levantou-s'à alva; / e vai lavar camisas / e no alto (no
rio) / vai-las lavar à alva (de madrugada). (D. Dinis).
-Bailias (quando seu cenário é uma festa onde se dança):
E no sagrado (local sagrado, possivelmente à frente de uma igreja), em Vigo / bailava
corpo velido (uma linda moça) amor ei! (Martim Codax).
- Romarias (sobre visitas a santuários, enquanto as "madres queymam candeas"):
Pois nossas madres van a San Simon / de Val de Prados candeas queimar (pagar
promessas) / nós, as menininhas, punhemos d'andar (vamos passear). (Pero de
Viviães).
- Barcarolas ou Marinhas (falam do temor de que o "amigo" vá às expedições
marítimas; do perigo de que ele não volte mais.
Vi eu, mia madr' , andar / as barcas e no mar, / e moiro de amor! - (Nuno Fernandes
Torneol).
- Pastorelas (quando seu cenário é o campo, próximo a rebanhos):
Oi (ouvi) oj'eu ua pastor andar, / du (onde) cavalgava per ua ribeira, / e o pastor
estava i senlheira, (sozinha) / a ascondi-me pola escuitar...
(Airas Nunes de Santiago)
4. Originárias da Península Ibérica, as Cantigas de Amigo apresentam um eu
lírico feminino, embora fossem produzidas por homens. Nelas a mulher canta a
ausência do “amigo” que está afastado, geralmente a serviço do rei ou em
guerras. Ao contrário das primeiras, que refletiam a corte, as Cantigas de Amigo
descrevem um ambiente pastoril, a moça, ao cantar seus sentimentos, dialoga
com a mãe, a amiga e elementos da natureza.
“Ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo!e ai deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,se vistes meu amado!e ai Deus, se verrá cedo!Se
vistes meu amigo,o por que eu sospiro!e ai Deus, se verrá cedo!...”
(Martim Codax, século XIII)
Produzidas com o objetivo de satirizar as pessoas e os costumes da época, as
Cantigas de Escárnio continham uma sátira indireta, marcada por ambiguidades e
sutilezas, dificultando a identificação da pessoa atacada.
“Ua dona, nom digu’eu qual,non agoirou ogano mal polas oitavas de
Natal:ia por as missa oir e ouv’un corvo carnaçal,e non quis da casa sair...”
(Joan Airas de santiago, século XIII)
Já as Cantigas de Maldizer continham ataques diretos, sem a
preocupação de ocultar a identidade da pessoa satirizada, apresentando
muitas vezes expressões de baixo nível e obscenidades.
“Ai, don fea! Fostes-vos queixar porque vos nunca louv’en meu
trobar;mais ora quero fazer un cantar en que vos loarei toda via;e vedes
como vos quero loar:dona fea, velha e sandía...”
(Joan Garcia de Guilhade, século XIII)
CANTIGAS SATÍRICAS:
-GÊNERO SATÍRICO: em que o objetivo é criticar alguém, ridicularizando esta
pessoa de forma sutil ou grosseira; a este gênero pertencem as cantigas de
escárnio e as cantigas de maldizer.
São composições que expressam melhor a psicologia do tempo, aonde vêm à
tona assuntos que despertam grandes comentários na época, nas relações sociais dos
trovadores; são sátiras que atingem a vida social e política da época, sempre
num tom de irreverência; são sátiras de grande riqueza, uma vez que se
apresentam num considerável vocabulário, observando-se, muitas vezes o uso de
trocadilhos; fogem às normas rígidas das cantigas de amor e oferecem novos
recursos poéticos.
Os principais temas das cantigas satíricas são: a fuga dos cavaleiros da guerra,
traições, as chacotas e deboches, escândalos das amas e tecedeiras, pederastia
(homossexualismo) e pedofilia (relações sexuais com crianças), adultério e amores
interesseiros e ilícitos.
Obs.: Tanto nas cantigas de escárnio quanto nas de maldizer, pode ocorrer diálogo.
Quando isso acontece, a cantiga é denominada tensão (ou tenção). Pode
mostrar a conversa entre a mãe a moça, uma moça e uma amiga, a moça e a
natureza, ou ainda, a discussão entre um trovador e um jogral, ambos tentando provar
que são mais competentes em sua arte.
5. CANTIGAS DE ESCÁRNIO
Apresentam críticas sutis e bem-humoradas sobre uma pessoa que, sem
ter nome citado, é facilmente reconhecível pelos demais elementos da sociedade.
Exemplo:
Ai, dona fea, fostes-vos queixar / que vos nunca louv' en [o] meu cantar; / mais ora
quero fazer um cantar / en que vos loarei toda via; / e vedes como vos quero loar; /
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, se Deus me perdon, / pois avedes [a] tan gran coraçon / que vos eu loe, en
esta razon / vos quero loar toda via; / e vedes qual será a loaçon / dona fea, velha e
sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei / en meu trobar, pero muito trobei; / mais ora já un bon
cantar farei, / en que vos loarei toda via; / e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha
e sandia!
(Loarei: louvarei / Sandia: louca / Avedes tan gran coraçon: tendes tanto desejo /
loaçon: louvor)
CANTIGAS DE MALDIZER
Neste tipo de cantiga é feita uma crítica pesada, com intenção de ofender
a pessoa ridicularizada. Há o uso de palavras grosseiras (palavrões, inclusive) e
cita-se o nome ou o cargo da pessoa sobre quem se faz a sátira. Exemplo:
Maria Peres se mãefestou (confessou) / noutro dia, ca por pecador (pois pecadora) / se
sentiu, e log' a Nostro Senhor / pormeteu, pelo mal em que andou, / que tevess' um
clérig' a seu poder, (um clérigo em seu poder) / polos pecados que lhi faz fazer / o
demo, com que x'ela sempr'andou. (O demônio, com quem sempre andou)
Mãefestou-se, ca (porque) diz que s'achou / pecador mui't,(muito pecadora) porém,
rogador / foi log' a Deus, ca teve por melhor / de guardar a El ca o que a guardou / E
mentre (enquanto) viva diz que quer teer / um clérigo, com que se defender / possa
do demo, que sempre guardou
E pois (depois) que bem seus pecados catou / de sa mor' ouv (teve) ela gram pavor / e
d'esmolnar ouv' ela gram sabor (teve grande prazer em esmolar) / E logo entom um
clérico filhou (agarrou ) / e deu-lhe a cama em que sol jazer (sozinha dormia) / E diz
que o terrá mentre (terá enquanto) viver / e esta fará; todo por Deus filhou. (E isso
fará, pois tudo aceitou por Deus).
E pois que s'este preito ( pacto) começou, / antr'eles ambos ouve grand'amor. / Antr'el
(entre) á sempr'o demo maior / atá que se Balteira confessou. / Mais pois que viu o
clérigo caer, / antre'eles ambos ouv'i (teve nisso) a perder / o demo, dês que (desde
que) s'ela confessou.
6. 2.2 – PROSA
A prosa medieval, posterior à poesia, é representada basicamente pelas
NOVELAS DE CAVALARIA, narrativas de cunho cavaleiresco e religioso que
contavam as aventuras de grandes reis e seus cavaleiros. Destacam-se entre
elas a História de Merlim, José de Arimateia, a Demanda do Santo Graal e Amadis de
Gaula. Havia também outros textos em prosa, assim divididos:
• Hagiografias – biografia de santos.
• Livros de Linhagens ou Nobiliários – relatos genealógicos de famílias nobres.
• Cronicões - livros de crônicas.
Costuma-se afirmar, didaticamente, que o Trovadorismo termina com a
nomeação de Fernão Lopes para o cargo de cronista-mor da Torre do Tombo,
em 1418, marcando o início do Humanismo.
AS NOVELAS DE CAVALARIA
Nem só de poesia viveu o Trovadorismo. Também floresceu um tipo de prosa
ficcional, as novelas de cavalaria, originárias das canções de gesta francesas
(narrativas de assuntos guerreiros), onde havia sempre a presença de heróis
cavaleiros que passavam por situações perigosíssimas para defender o bem
e vencer o mal.
Sobressai nas novelas a presença do cavaleiro medieval, concebido segundo
os padrões da Igreja Católica (por quem luta): ele é casto, fiel, dedicado, disposto
a qualquer sacrifício para defender a honra cristã. Esta concepção de cavaleiro
medieval opunha-se à do cavaleiro da corte, geralmente sedutor e envolvido em
amores ilícitos. A origem do cavaleiro-herói das novelas é feudal e nos remete às
Cruzadas: ele está diretamente envolvido na luta em defesa da Europa Ocidental
contra sarracenos, eslavos, magiares e dinamarqueses, inimigos da cristandade.
As novelas de cavalaria estão divididas em três ciclos e se classificam
pelo tipo de herói que apresentam. Assim, as que apresentam heróis da mitologia
greco-romana são do ciclo Clássico (novelas que narram a guerra de Troia, as
aventuras de Alexandre, o grande); as que apresentam o Rei Artur e os cavaleiros da
Távola Redonda pertencem ao ciclo Arthuriano ou Bretão (A Demanda do Santo Graal);
as que apresentam o rei Carlos Magno e os doze pares de França são do ciclo
Carolíngeo (a história de Carlos Magno).
Geralmente, as novelas de cavalaria não apresentam uma autoria. Elas
circulavam pela Europa como verdadeira propaganda das Cruzadas, para
estimular a fé cristã e angariar o apoio das populações ao movimento. As novelas
eram tidas em alto apreço e foi muito grande a sua influência sobre os hábitos e os
costumes da população da época. As novelas Amandis de Gaula e A Demanda do
Santo Graal foram as histórias mais populares que circulavam entre os portugueses.
7. GÊNEROS EM PROSA DO PERÍODO MEDIEVAL:
l Hagiografias: relatos da vida dos santos da Igreja, geralmente em latim.
l Cronicões: anotações de datas e acontecimentos históricos, em sequência
cronológica.
Nobiliários ou Livros de Linhagens: árvores genealógicas das famílias nobres,
elaboradas com o intuito de resolver problemas de heranças e de evitar "casamentos
em pecado".
Novelas de Cavalaria: narrativas das aventuras dos cavaleiros medievais.
Originaram-se da
prosificação das "canções de gesta" (guerra) e aglutinavam-se em três ciclos:
1) ciclo clássico, em que os heróis eram "emprestados" da literatura clássica
(Ulisses, Enéias);
2) ciclo carolíngio, versando sobre as aventuras de Carlos Magno e os Doze Pares de
França.
Algumas dessas novelas foram trazidas para o Brasil no período da colonização, e seus
heróis alimentam ainda hoje a literatura de cordel nordestina.
3) ciclo bretão ou arturiano, o mais fecundo de todos, com as histórias sobre o
Reino de Camelot, o Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Três são as
novelas remanescentes desse ciclo: José de Arimateia, História de Merlim e
A Demanda do Santo Graal.
4)
Resumo da novela Amadis de Gaula:
Amadis é o fruto dos amores clandestinos de Elisena e do rei Perion, que o
abandonam às águas do mar. Salvo por uma família que não lhe sabe a origem, vem a
ser escolhido para pajem da infanta Oriana, a quem a rainha apresenta com estas
palavras: "Amiga, este é o donzel que vos servirá". O donzel guarda tais palavras no
coração, e desde aí a sua vida desdobra-se num longo "serviço" inteiramente
consagrado à amada. Durante muito tempo, a timidez inibiu-o de se declarar. Depois,
o amor entre os dois foi um segredo cuidadosamente guardado. Ninguém sabia que
era por Oriana que Amadis se arriscava a combates assombrosos com gigantes ou
monstros. O cavaleiro invencível quase deixa cair a espada das mãos ao ver, da arena
de combate, a "senhora" na assistência; e quando, por um mal-entendido, ela o acusa
injustamente de infidelidade, resolve deixar o mundo e fazer-se ermitão. O longo
serviço de Amadis teve no entanto a sua recompensa carnal porque, quando uma
aventura propícia deixa os dois namorados a sós na floresta, escreve o autor, "naquela
erva e em cima daquele manto, mais por graça e comedimento de Oriana que
pordesenvoltura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa donzela do
mundo".
(SARAIVA, Antonio José et alius. História da Literatura Portuguesa. 14ª ed. Porto, Porto
Ed. Ltda.,1955)