TREINAMENTO - BOAS PRATICAS DE HIGIENE NA COZINHA.ppt
Ensino de arte em contexto multietário
1. NARRATIVA ESTÉTICO-PEDAGÓGICA
A ABORDAGEM TRIANGULAR EM UM CONTEXTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL
MULTIETÁRIA
Carolina T. Pires, mestranda
Departamento de Artes Plásticas - ECA-USP
Orientadora: Profa. Dra. Maria Christina de Souza Lima Rizzi
RESUMO
A produção artística das crianças pequenas revela muito, tanto de suas realidades cotidianas
quanto de seus universos interiores. Espelham traços de personalidade, sentimentos, percepção do
mundo e se realizam como jogo, como brincadeira. Produzir a partir das linguagens expressivas
permite que as crianças dêem forma aos seus intentos, que ganham consciência e compreensão, pois a
relação com a manifestação concreta dos mesmos permite que a eles sejam atribuídos sentido e
significado (OSTROWER, 1987). Por outro lado, ler e contextualizar suas próprias produções, as de
outras crianças com quem convivem e também obras de consagrados artistas, amplia a visão de mundo
dos pequenos, sensibilizando o olhar, nutrindo a imaginação e, por isso, expandindo suas
possibilidades de criar (VYGOTSKY, 1984; BARBOSA, 2011).
Este projeto propõe uma reflexão realizada a partir de um trabalho desenvolvido com um
grupo multietário de crianças, de 2 a 5 anos, numa escola de educação infantil em Cotia, SP, que teve
como eixo central a utilização da Abordagem Triangular para o ensino da Arte, sistematizada por Ana
Mae Barbosa, para proporcionar às crianças uma experiência (DEWEY, 2010) que permeasse a leitura,
a contextualização e o fazer artístico e que se refletiu em claro enriquecimento, não apenas de suas
colocações a cerca de suas percepções e leituras de mundo (FREIRE, 1988), mas também de suas
brincadeiras e da qualidade de suas produções plásticas.
PALAVRAS-CHAVE: ARTE-EDUCAÇÃO; ABORDAGEM TRIANGULAR; EDUCAÇÃO
INFANTIL MULTIETÁRIA
ABSTRACT
The art works of young children reveals a lot, not only about their daily realities, but also
about their inner universes. They reflect their personalities , feelings, their perceptions of the world and
are materialized as a game, as play. Work with the expressive languages allows kids to give shape to
their wishes, that can become conscious, once materialized in concrete objects that respresents them
and make possible that their meanings can be understood (OSTROWER, 1987). On the other hand,
read and contextualize their own production, the prodution of other kids they are related to, as well as
the art work of well known artists, expand their world view, make their observation it more sensitive,
nourish their imagination and, because of that, amplifies their possibilities to criate (VYGOTSKY,
1984; BARBOSA, 2011).
This project brings up a reflexion that came from a work developed with a multiage group of
kids, from 2 to 5 years old, in a kindergarten school in Cotia, SP. It had as a fundamental axle the
Triangular Proposal to Art Teaching, systemized by Ana Mae Barbosa, and had as main purpose to
offer the children an experience (DEWEY, 2010) that included the reading, contextualizing and art
making and that has reflected in a clear enrichment, not only of their verbal manifestations of their
perceptions and world reading (FREIRE, 1988), but also of their play and the quality of their art works.
1. Introdução
Os contextos multietários, em instituições de educação infantil, são ambientes
onde crianças de até 7 anos1
têm a oportunidade de interagir e se relacionar, sem
serem separadas por idades, em seu cotidiano na escola. São espaços que reproduzem
hoje, de certa forma, a convivência orgânica e natural que se estabelecia nos grandes
núcleos familiares que ilustram nosso passado; compostos por muitos filhos, primos e
1 As Escolas Waldorf ainda trabalham com o Ensino Fundamental a partir dos sete anos.
2. parentes de diversas idades e que se dava, principalmente, nos espaços públicos das
cidades.
No presente trabalho pretendo trazer reflexões a respeito de possibilidades
para a utilização dos conhecimentos propostos pela Abordagem Triangular para o
Ensino da Arte, sistematizada por Ana Mae Barbosa, em um contexto atual de uma
escola multietária. Levo em consideração, especialmente, a riqueza que a convivência
respeitosa em um ambiente de diversidade proporciona e como esta se manifesta na
qualidade das produções visuais das crianças.
Para este fim, apresentarei características e exemplos do cotidiano multietário
no qual estou inserida, ilustrados pelo projeto mais recente realizado com o grupo do
qual sou professora, onde trabalhamos os Livros.
2. O contexto multietário e a riqueza da diversidade
O ser humano é um ser social, que se desenvolve e expande seus
conhecimentos na interação com seus pares e com a sociedade na qual está inserido,
sendo produto de seu tempo e de sua cultura. (VYGOTSKY, 1991) Uma vez que
passa a estabelecer relações, estas nutrem sua experiência desencadeando um
acelerado processo de desenvolvimento.
A interação cotidiana entre crianças de diferentes idades e características se
traduz, para elas, na possibilidade de conviver com a diversidade, de ampliar seu
potencial de aprendizado e de se relacionar de acordo com suas afinidades, interesses
e escolhas. A faixa etária deixa de ser um limitador e desta maneira, seus horizontes
sociais se ampliam e se enriquecem. Irmãos, amigos de idades variadas, meninos e
meninas; todos têm espaço para interagir, se assim o desejarem.
Muito acontece
à partir das próprias
crianças, consideradas
sujeitos agentes em seu
desenvolvimento social
e pessoal (JAMES,
2009).
No dia a dia na
escola, uns estimulam e
incentivam os outros.2
Os menores aprendem
com os maiores por
imitação e assim suas
referências se ampliam.
Os maiores, que
espontaneamente zelam pelos pequenos, têm oportunidades para ressignificarem o
que já aprenderam ensinando os que ainda não sabem e, com isso, consolidando seus
conhecimentos. Em um cenário como este, as zonas de desenvolvimento proximal das
crianças são “multiplicadas”, a partir das inúmeras interações possíveis entre elas,
assim como seus campos de experiência e aprendizado (VYGOTSKY, 1991).
Estes, por sua vez, compõe o material psíquico a partir do qual elas criam e
brincam sendo que, quanto mais rico em experiências for o ambiente em que estão
2
Foto 1: Atividade: Desenhos com areia. Crianças: Lara e Pedro (2 anos), Manuel (3 anos), Ana
Beatriz e Laís (4 anos) e Maria Carolina (5 anos).
3. inseridas, mais subsídios terão para sustentar e frutificar sua imaginação, fantasia e
criação (VYGOSTKY, 2009).
Uma dinâmica como essa também proporciona oportunidades para o exercício
do respeito pelo tempo e pelas particularidades de cada um, e a qualidade das
vivências por ela geradas só se torna possível com uma mediação acolhedora e firme
por parte dos educadores.
Um atento e intenso trabalho de “resolução de conflitos” é feito entre os
pequenos - trabalho que é considerado, pela equipe pedagógica da qual faço parte,
como “o mais importante a ser realizado” num contexto como este, aproveitando os
desafios e aprendizados proporcionados por um contexto de diversidade para
estimular a todos a se perceber e a perceber os outros, a se conscientizar seus
sentimentos, a aprender a comunicá-los e a respeitar as diferenças e os jeitos de ser de
cada um.
Tenho conhecimento de poucas escolas que trabalham hoje em dia com esta
metodologia multietária, sendo possível encontrar, dentre elas, diferentes
configurações e formatos para a realização da mesma3
.
A instituição em que trabalho4
, uma escola de educação infantil particular, se
localiza no município de Cotia, na Granja Vianna, Grande São Paulo. Completando
12 anos em janeiro próximo, tem atualmente nela matriculadas cerca de 90 crianças,
distribuídas entre os períodos da manhã e tarde, em grupos que contemplam idades de
1 ano e meio a seis anos5
, com uma média de 12 a 16 crianças por grupo. Para a
realização satisfatória do trabalho que se propõe desenvolver, cada grupo conta com a
presença de 2 a 3 adultos6
, dependendo da quantidade e características das crianças
que dele fazem parte, o que possibilita um acompanhamento mais individualizado e
aprofundado das necessidades das mesmas.
3. A arte e as linguagens expressivas em um contexto multietário
As crianças pequenas são exploradoras curiosas do mundo em que vivem.
Têm em si grande entusiasmo pelo novo, pelo inusitado, pelas descobertas e é desta
maneira que se relacionam, em um primeiro momento, com as linguagens expressivas
e com a prática artística. O encontro com os materiais e suas possibilidades
proporcionam a elas grande encantamento e também bons desafios: descobrir formas
e movimentos, elaborar, construir, ordenar, equilibrar, produzir; trabalhando com as
cores, com as texturas, com as dimensões.
Conforme vão crescendo e se aprofundando no universo das representações
simbólicas, as linguagens expressivas passam a dar voz às suas experiências, atuando
como veículo para a tradução de suas percepções e compreensões do meio na qual
estão inseridas. Passam a ser substrato para a concretização de suas fantasias e
brincadeiras, para a elaboração e conscientização de seus desejos e de suas
características.
Todos estes processos podem ser enriquecidos através de estímulos e
oportunidades para a sensibilização da percepção e do olhar dos pequenos para o
3 Por exemplo: a Te-arte, a Grão-de-Chão, a Casa Redonda e os Jardins Waldorf, todas na Grande
São Paulo, cada uma do “seu jeito”.
4
Escola de Educação Infantil Bilíngue Kid‟s Home ( www.escolakidshome.com.br )
5 Em geral os critérios para o ingresso nestes grupos multietários se relaciona mais com algumas
características específicas observadas em cada criança – como, por exemplo, a capacidade de andar e
se locomover com firmeza e autonomia – do que com a idade cronológica propriamente dita.
6
Uma média de 5 a 7 crianças por adulto; 1 professora e 1 ou 2 assistentes.
4. mundo que os cerca. Este trabalho pode ser realizado de diversas maneiras.
Utilizando-se do meio imediato no qual as crianças estão inseridas, profundamente
carregado de significados para elas; instigando sua curiosidade a respeito do mesmo,
estimulando-as a perceber as características do ambiente, de seus habitantes, a
estabelecer relações e associações com suas próprias experiências; e, em especial,
orquestrando situações para que possam traduzir suas percepções plasticamente,
concretizando-as através de linguagens diversas.
Nesta ação criadora o ato de dar forma, como diz Ostrower (1987) é formar-
se. É não apenas encontrar, mas construir sentido e significado para as experiências
vividas e para suas repercussões nas formas de ser de cada um.
Nesta fase da vida, que muitos autores denominam “primeira infância”, os
alicerces que estruturam a essência de cada ser, sua personalidade, seus valores,
hábitos e padrões de comportamento, estão sendo formados. Isto, por sua vez, não
apenas justifica e reforça a importância de um trabalho minucioso, apurado e bem
feito com as crianças pequenas, como revela a oportunidade de realização de
significativas intervenções sociais, realizadas grão a grão.
Para tanto, encontro grande respaldo nos conhecimentos sistematizados por
Ana Mae Barbosa na Abordagem Triangular para o Ensino da Arte que, dentro do
contexto da educação infantil, pode ser trabalhada não apenas relacionando-a com o
que, formalmente, denominamos arte. Busco, através dos caminhos que propõe: o ler,
o contextualizar e o fazer, maneiras de relacionar-me com a vida, com a realidade das
crianças e, para isso, também me inspiro no que Paulo Freire (2009) chamou de
leitura do mundo. Uma relação profunda com vida é sempre grande inspiração para a
produção artística.
A partir desta compreensão, percebo os conceitos que estruturam a
Abordagem Triangular profundamente enraizados na prática diária com as crianças,
sendo possível trabalhar com elas tanto a partir de obras de arte e manifestações
culturais e artísticas diversas, como através da relação com as formas, cores e
movimentos que permeiam sua realidade cotidiana, presentes na natureza com a qual
convivem, nas construções que estruturam seu espaço e, em especial, através do
intercambio com a produção de seus pares.
Segundo Machado (2011, p.68) “a Abordagem Triangular não estabelece o
que fazer nem aponta como fazer. Desenha um cenário de campos de conhecimento
inter-relacionados, um terreno no qual o ensino e a aprendizagem podem ocorrer”.
Na educação infantil, as dimensões do fazer, do ler e do contextualizar podem
ser encontradas integradas e permeando a experiência dos pequenos em diversos
âmbitos, neste cotidiano tão rico em descobertas, como é o das crianças.
Nos momentos específicos “de ateliê”7
, no entanto, propostas são feitas,
materiais são oferecidos e a generosidade das crianças nos aponta claramente quando
o que vivenciam está sendo, de fato, uma experiência (DEWEY, 2010). A expressão
do seu envolvimento permeia não apenas o momento da atividade, onde uma
concentração acima da média absorve cada um plenamente, estendendo o tempo; mas
transborda para a vida e se reflete nas brincadeiras, nas conversas, nos
agradecimentos feitos por elas e na manifestação do desejo que tal experiência possa
se repetir, ainda que transformada em algo mais.
A ação criadora, nesta faixa etária, extrapola os espaços de atividades dirigidas
e se faz presente nas brincadeiras, nos faz-de-conta e em muitos outros momentos do
cotidiano. Desta maneira, o trabalho com a arte e com as manifestações culturais, para
7
Momento dedicado a atividades direcionadas, com as linguagens expressivas.
5. se configurar como experiência
significativa para as crianças
pequenas, precisa ser ofertado
considerando suas
características e habilidades; de
forma lúdica e integrada às
suas realidades8
.
Na escola em que
trabalho, dada suas
peculiaridades, tais atividades
são realizadas estimulando que,
em meio a um grupo
heterogêneo, com crianças de,
aproximadamente, 1 anos e
meio a 6, cada um busque interagir com as propostas sugeridas “do seu jeito”9
- de
acordo com suas possibilidades, competências e vontades - respeitando os tempos de
cada um e incentivando assim o autoconhecimento e as trocas naturais entre as
“infinitas formas de se fazer a mesma coisa”10
.
Naturalmente os tempos
de concentração, competências
e características delas variam
muito e, por isso, há sempre
uma proposta extra preparada
para os que terminam a
atividade mais rapidamente –
cantos temáticos, brinquedos,
brincadeiras etc. - que é
realizada pela assistente de
grupo enquanto a professora
continua a atividade primeira
com os que nela permanecem.
Estes, em geral, conseguem se
aprofundar mais no trabalho que estão desenvolvendo.
A interação de diversas idades em um ateliê traz alguns desafios como, por
exemplo, „elaborar e preparar as propostas levando em conta os diversos estágios de
desenvolvimento encontrados no grupo‟ e „conseguir proporcionar oportunidades de
experiências que sejam significativas para todos‟.
Quando estes propósitos são atingidos com qualidade, proporcionam
significativos benefícios para as crianças que, entre outras coisas, encontram abertura
e espaço para vivenciarem seus tempos e ritmos de forma mais orgânica e flexível,
não pautada por um “padrão de normalidade”, comumente encontrado em
agrupamentos etários.
Em um ambiente multietário, elas vivenciam uma rica e variada gama de
estímulos com os quais podem dialogar e interagir livremente. Estes se manifestam,
especialmente, na maneira como cada um desenvolve “do seu jeito” as atividades
8
Foto 2: Pintura do muro de azulejo. Crianças (da esquerda para a direita): Nicholas (5anos), Bruno
(4), Maria Carolina (5), Manuel (3), Duda (2), Bia (2), Pedro (2), Laís (4), Georgia (5), Guiherme (2).
9
Expressão comumente verbalizada para e, por conseqüência, pelas crianças.
10
Foto 3: Desenhos com areia. Crianças: Guilherme (2 anos), Nicholas e Geórgia (5 anos). No plano
de fundo, Manuel (3), brincando após finalizar seu trabalho.
6. propostas, colaborando para a expansão das já mencionadas zonas de desenvolvimento
proximal (VYGOTSKY, 1991) e tornando-se ali, enquanto exemplo, também um
„professor‟ para todos os outros, adultos e crianças.
As crianças, nestes contextos, observam bastante umas às outras, e muito
aprendem a partir dessas trocas. Por outro lado, também são estimuladas a cultivar o
hábito de buscarem respostas próprias para os desafios propostos e para suas próprias
perguntas, exercitando seu autoconhecimento e trabalhando sua autonomia e
autoconfiança desde cedo.
Para que isso se concretize é fundamental uma postura aberta e acolhedora por
parte dos educadores, orquestrando uma atmosfera de respeito e liberdade de ser,
manifestadas como posturas que se complementam e se potencializam; e que são
essenciais, em especial em um espaço de expressão e criação como o de um ateliê de
artes.
Embora as possibilidades e exemplos sejam inúmeros, no presente trabalho
optei por focar no intercâmbio de experiências proporcionadas a partir das ações e
produções de crianças de idades diversas convivendo juntas e em como este
intercâmbio influencia não apenas na maneira como se relacionam com seu próprio
‘fazer’, mas em como a essência destas trocas se manifesta em seus trabalhos com as
linguagens visuais. Mais especificamente, utilizo como exemplo concreto um projeto
realizado ao longo de 2011, com o grupo de crianças do qual sou professora, no qual
estou trabalhamos o tema dos livros.
Este grupo é composto por 13 crianças de 2 a 5 anos, como ilustra a tabela
abaixo:
IDADE TOTAL DE CRIANÇAS MENINAS MENINOS
2 anos 5 3 2
3 anos 1 1 0
4 anos 4 2 2
5 anos 3 2 1
4. O Projeto dos Livros
Anualmente desenvolvemos na escola um projeto relacionado à fruição e
produção literária com as crianças, que culmina em um evento, realizado sempre no
mês de setembro, junto aos festejos de
entrada da primavera.
Nele, os trabalhos realizados pelas
crianças ao longo do projeto são colocados
em exposição e as famílias são convidadas
a apreciarem não apenas os livros de seus
filhos, mas também as produções de outras
crianças, podendo assim compreender a
riqueza criativa que se encontra pulsando
naquele ambiente social, com a qual os
seus convivem e do qual são parte
integrante.11
11
Foto 4: Feira do Livro 2011, realizada no dia 24 de Setembro. Livros produzidos pelas crianças de
meu grupo.
7. No cotidiano da escola, os livros estão muito presentes e, por isso, o trabalho
com eles se torna profundamente significativo para os pequenos. Em todos os espaços
há uma mini-biblioteca. Quase que diariamente há contação de histórias. Uma vez por
semana, teatro. Às terças-feiras as crianças podem levar seus livros preferidos para
compartilhar com seus amigos e contá-los, “do seu jeito” nas rodas de história e
também nas rodinhas que elas próprias organizam nos momentos livres. Desta
maneira, o trabalho com os livros pode ser considerado um projeto contínuo no
contexto da escola; operando em ciclos, cujo marco anual é a Feira do Livro.
Não apenas as narrativas servem de alimento para a imaginação dos pequenos.
As ilustrações dos livros disponibilizados, que são escolhidos a dedo pelas
professoras, nutrem seu imaginário visual, ampliando seu referencial imagético e, por
consequência, enriquecendo também suas produções plásticas. Os livros, neste
âmbito, podem ser considerados retratos poéticos de realidades diversas; reflexos de
olhares e possibilidades de expressão distintas que expandem a visão de mundo das
crianças e contribuem tanto para a formação de seus valores como para a
multiplicação de suas formas de se comunicar.
As atividades deste projeto, em 2011, iniciaram-se formalmente em março, tão
logo as crianças mostraram-se adaptadas em seus novos grupos, após o retorno das
férias e inicio do ano letivo. Nesta época intensificamos o trabalho com as narrativas
dos finais de semana12
nas rodas de conversa e iniciamos a proposição e realização
periódica de jogos teatrais e de jogos de sequências narrativas (cada criança inventa
uma parte de uma história)13
. Também começamos a estimular as produções de
tirinhas e pequenos livretos,14
que depois de prontos, eram compartilhados com o
grupo.
Todo o percurso que culminou na produção de um livro mais elaborado foi
planejado a partir do conhecimento dos três momentos da Abordagem Triangular,
intercalando experiências de leitura, contextualização e produção.
A primeira se encontrava
presente no cotidiano do projeto e
abarcava não apenas o contato e
interação com os livros
profissionais, de autores e
ilustradores diversos, com os
quais as crianças puderam
estruturar suas concepções de
„livro‟, enriquecer profundamente
seus repertórios visuais e de
narrativas; mas também, e de
forma bastante especial, através
do contato e interação com o
material produzido por elas
próprias.
Este refletiu muito de suas pesquisas, das conversas que tivemos em roda, dos
assuntos que despontavam enquanto focos de interesse do grupo como um todo.
12
Atividade realizada após os finais de semana, que estimulam as crianças a narrar oral ou visualmente
suas memórias e fatos marcantes dos finais de semana, e que tinham por objetivo não apenas a partilha
com o grupo e o aprendizado das questões relativas a temporalidade, sequência e etc.
13
Realizadas por Erica Martinelli Munhoz, estudante de Letras (FFLCH-USP) e professora de teatro;
minha assistente durante o primeiro semestre de 2011.
14
Foto 5: Criando livretos. Crianças: Lara (2) e Bruno (4).
8. Permeou-o também a percepção do desenvolvimento de cada criança, enquanto
representantes de diversas “etapas do desenvolvimento humano” ali materializadas,
ajudando-as a compreender seu próprio percurso de aprendizado. Esta riqueza de
estímulos ampliava as referências do grupo como um todo e grandes saltos puderam
ser observados a partir de tais interações.
Com estes livros foi
possível realizar ações bastante
interessantes com os pequenos no
que diz respeito a percepção das
características de cada criança e
como estas se expressavam em
suas produções. Com o passar do
tempo, os vínculos entre elas foram
se estreitando e o “jeito” de cada
um, manifestado em seus trabalhos,
começou a ser reconhecido pelos
demais.
E diziam uns para os outros:
_ “Tudo bem que eu gosto de fazer princesa e ele gosta de fazer robô.” (Ana Beatriz,
4 anos)
_ “O dele é bem colorido, e o meu é só um pouco, não é?” (Bruno, 4 anos)
_ “Não „tá‟ errado não. Eu „tô‟ fazendo do meu jeito.” (Laís, 4 anos)
Além da apreciação dos aspectos formais dos livros – cores, formas, figuras,
materiais utilizados - e das interpretações de significado e compreensão das histórias,
que já vinham acontecendo, os mais velhos passaram a observar e perceber os traços
dos desenhos associando-os as características, gostos, interesses, gênero e idade de
seus autores. Identificavam as narrativas associando-as a experiências do cotidiano na
escola, às brincadeiras realizadas, aos fatos relatados nas rodas, contextualizando-as.
Todo esse movimento de leituras e contextualizações dos trabalhos pôde ser
percebido se refletindo em suas produções e na crescente desenvoltura com a qual se
relacionavam com as propostas,
literalmente soltando sua imaginação
na construção e ilustração de
narrativas que refletiam suas
experiências e interesses.
Esta evolução foi
possibilitando que também as
atividades pudessem ser
gradualmente mais elaboradas, com o
aumento das opções de suporte e
materiais e ampliação das
possibilidade de escolha e utilização
dos mesmos.
O ápice deste processo se deu durante a produção da ultima leva de livros, que
foi exposta no dia 24 de Setembro deste ano. Esta contava com uma mesa repleta de
materiais variados: papéis coloridos, espelhados, camurças, tintas, canetinhas,
9. tesouras, colas, etc. que puderam ser
utilizados com liberdade pelas crianças, de
acordo com as idéias que surgiam.
Com os menores, optamos por
trabalhar com estímulos sensoriais a partir
desta diversidade de materiais: exploramos
as texturas dos suportes, brilho e
opacidade; fizemos colagens, desenhos e pinturas.
Com os maiores,
trabalhamos à partir de uma história
por eles inventada. Esta foi
registrada por escrito, dividida em
partes e ilustrada, página por
página.
Foram realizados trabalhos
únicos, riquíssimos em detalhes,
completamente personalizados,
cujas imagens ilustram, com maior
propriedade, o que aqui as palavras
se esforçam para traduzir.
O exemplo a seguir é o
trabalho de Manuel, de 3 anos.
“A história da minhoca.”
“Ela morava no deserto.”
10. “Lá tinha o sol que brilha.”
“Elas comiam para todas as
minhoquinhas nascerem e serem fotes
e ficavam muito grandes desse
tamanho.”
“Elas comiam terra, comida. Comiam
flores.”
“E quando chegava a noite elas voltavam
para suas casinhas, comiam a comida e
dormiam.”
11. “De noite tinha a lua com um
pouco de água e sal.”
5. Considerações Finais
Um ambiente de criação
se favorece pela postura de tolerância e aceitação dos indivíduos que dele fazem parte
e se enriquece através da convivência da diversidade, que, por sua vez, torna mais
perceptível o valor de cada ser como único.
Em um contexto escolar, uma ação aparentemente simples como misturar
crianças de diversas idades em sua convivência diária, pode resultar em grandes
transformações e oportunidades de aprendizado.
Apesar de simples, para que tenham, a partir dela, bons resultados, todo um
trabalho se faz necessário, em especial no que diz respeito à qualificação e
treinamento da equipe de professoras que precisa, de fato, estar aberta para acolher
cada criança por inteiro e, a partir desta aceitação, poder trabalhar com ela suas
necessidades e desafios, em prol de colaborar para a sua formação.
Na condição de artista e educadora, identifico o quanto o trabalho com a arte e
as linguagens expressivas, em um contexto como esse, é fundamental ao processo
educativo. Em um ambiente de liberdade criativa, cada ser pode se manifestar em sua
inteireza e vivenciá-la. Por outro lado, o contato com manifestações artísticas e
culturais diversas enriquece os campos da experiência e nutre o repertório visual e a
imaginação de todos nós, adultos e crianças, aprendizes e educadores.
Para tal, reforço a compreensão e reconhecimento da colaboração que as
pesquisas em arte e educação tem para a construção de um processo educativo mais
integral, que tenha condições de trabalhar os indivíduos em toda a sua complexidade e
inteireza.
Referências bibliográficas
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para professores / Lev Semionovich Vigotski; apresentação e comentários Ana Luiza
Smolka; tradução Zoia Prestes. – São Paulo: Ática, 2009