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SALUD E INTERCULTURALIDAD EN AMÉRICA LA- Rural Obrigatório, fazia parte do centro de saúde lo-
TINA: ANTROPOLOGÍA DE LA SALUD Y CRÍTICA cal, recém-inaugurado. A odontóloga era a substituta
INTERCULTURAL. Juárez GF, editor. Quito: Edi- do médico titular, que estava ausente e nada tinha in-
ciones Abya-Yala/La Paz: AECI/Cuenca: Univer- formado à sua equipe sobre o enfermo. O doente já ti-
sidad de Castilha-La Mancha/Madrid: Fundación nha sido consultado pelo médico que lhe receitara um
para la Cooperación y Salud Internacional Carlos complexo vitamínico e antiinflamatório. Passados dias,
III; 2006. 450 pp. o doente parecia ter piorado. Conforme informou a es-
ISBN: 978-84-8427-481-0 posa, uma quéchua, há dez dias que seu marido estava
prostrado, tiritando de febre, com urina escura, expec-
O antropólogo Gerardo Fernández Juárez (Universidad torando sangue. Não havia condições no momento de
de Castilla-La Mancha) retorna com uma nova coletâ- transportar o enfermo para um hospital mais próximo.
nea de textos, por ele organizados, que exploram a te- A equipe médica não sabia o que fazer. A situação tor-
mática da interculturalidade. Assim como no trabalho nava-se ainda mais grave porque a esposa, desespe-
anterior, Salud e Interculturalidad en América Latina. rada, não confiava nas intenções da equipe de saúde.
Perspectivas Antropológicas 1, o objetivo geral do traba- Não permitia que seu marido fosse deslocado para
lho é apresentar um conjunto de artigos que discutem outro local. Perto do paciente, sobre uma mesa, havia a
a perspectiva intercultural em saúde tanto no nível te- presença de remédios e objetos cerimoniais utilizados
órico quanto, principalmente, prático. O principal fio nas práticas rituais Kallawayas. Procurando uma solu-
condutor dos textos reunidos refere-se às questões de ção de emergência, Juárez resolveu telefonar para um
diferença e relativismo cultural. amigo médico em La Paz, solicitando auxílio. Distante,
Desnecessário é ressaltar a importância da pesqui- o amigo não tinha condições de socorrê-lo.
sa sobre o significado e a prática da interculturalidade Refletindo sobre essa experiência, Juárez inicial-
tanto para os diversos profissionais da saúde quanto mente duvida sobre o significado e importância da in-
para os cientistas sociais. Uma das questões centrais terculturalidade. Seria um termo “snob” dos antropólo-
dessa temática diz respeito ao papel que a “medicina gos? A situação vivenciada por ele não revelava antes de
tradicional” (“folk”, no dizer de Kleinman) ocupa no mais nada uma questão de pobreza? A impossibilidade
sistema de cuidados à saúde e se ela deve ser ou não de atender ao enfermo não evidenciava a falta tanto de
mesclada com o setor profissional biomédico. Essa é distribuição equitativa da riqueza quanto do impulso
sem dúvida uma pergunta básica para a constituição econômico da região? Mas, continuando sua narrativa,
dos serviços de saúde, para o entendimento de siste- observa que o enfermo, no dia seguinte àquela noite,
mas plurais de cuidados à saúde e cuja resposta não é começou a apresentar sintomas de melhora. Ele esta-
simples. va sendo tratado por médicos Kallawayas sem que a
O livro está dividido em três grandes blocos: o pri- equipe de saúde suspeitasse. Um pouco mais tarde, ao
meiro, o menor deles, analisa teoricamente o fenôme- recordar a sua tentativa desesperada de telefonar para
no da interculturalidade aplicada à saúde; o segundo se um amigo médico, Juárez afirma que “me senti ridícu-
centra nas questões práticas interculturais derivadas de lo y a la vez me di cuenta de mi indómita arrogancia al
processos migratórios na Espanha e suas implicações haberme creído responsable de solución alguna por en-
nas políticas de saúde; por último, em maior quantida- cima de la capacidad demostrada de los propios kalla-
de de artigos, encontramos vários relatos etnográficos wayas” (p. 11).
sobre concepções indígenas de saúde e enfermidade Os estudos sobre saúde e interculturalidade de-
– particularmente na Bolívia, México, Peru e Equador frontam-se com inúmeras dificuldades, começando
– e suas relações com os procedimentos assistenciais pelo próprio termo - “interculturalidade” – que parece
e terapias do setor biomédico. Esses artigos destacam não ter uma univocidade de significado entre os cien-
vários aspectos relacionados aos processos de saúde, tistas sociais e, principalmente, entre os profissionais
enfermidade e assistência na América Latina, tais como de saúde. O reconhecimento e o estudo das “diferen-
questões de maternidade, do “susto”, da “vergüenza”, de ças”, como ressalta o antropólogo Eduardo Menéndez
hospitais e remédios “tradicionais”, entre outras. (um dos autores da coletânea), pode assumir diversas
Os 28 artigos que compõem a coletânea trazem um conotações a depender do referencial teórico-metodo-
bom repertório de experiências e fonte para reflexões lógico adotado pelo pesquisador.
instigantes. Nesse sentido, são ricos quanto ao relato Embora o termo tenha sido criado na década de
de diversas experiências de profissionais e pesquisado- 1990, a temática central da interculturalidade é antiga.
res que se defrontam com o relativismo cultural dos sa- Não podemos esquecer que as reflexões sobre relações
beres e práticas em saúde. Em linhas gerais, é possível interculturais que são efetivadas entre diferentes gru-
resumir a perspectiva pela qual Gerardo Fernández Ju- pos sociais constituem um núcleo central da disciplina
árez organiza a coletânea por meio do seu relato apre- antropológica. No campo da saúde essa temática tem
sentado na introdução do livro, Un Teléfono de Urgen- sido objeto de atenção desde, pelo menos, os traba-
cias y ... Casi Perder la Fe. lhos de Rivers. Durante o século XX, estudiosos como
Juárez conta-nos um episódio de doença ocorrido Róheim, Janzen, Gilbert Lewis, Eisenberg, Fabrega e
durante o seu trabalho de campo com populações in- Leslie, entre muitos outros, trataram das dimensões
dígenas da Bolívia. Relata que em uma noite acompa- simbólicas da interculturalidade sob diferentes matizes
nhou uma equipe de saúde para tratar de um enfermo de análise. Afinal, os significados dos termos “cultura” e
em um pequeno povoado Kallawaya. A equipe, sob a “etnicidade” são complexos e há muitas possibilidades
coordenação de uma odontóloga, recém-egressa da para se entender e usar esses conceitos. Contudo, as re-
universidade e que cumpria o Serviço Social de Saúde flexões atuais desenvolvidas nesse campo apresentam
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(11):2723-2727, nov, 2008
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algumas características que diferem, em certas medi- desenvolver mudanças culturais entre os profissionais
das, dos estudos mais “clássicos”. O mundo contempo- que, sem perder suas respectivas habilidades, possam
râneo – alguns diriam “globalizado”, outros “pós-mo- lidar com análises qualitativas e etnográficas associa-
derno” – tem colocado novos conjuntos de problemas das às abordagens clínicas e epidemiológicas. Embora
na concepção e gestão de sistemas plurais de cuidados reconheçam os aspectos controvertidos do RAP (rapid
médicos. Os fenômenos migratórios e os diferentes ti- assessment procedures), os autores consideram que é
pos de gestão da saúde e tratamento de enfermidade um instrumento particularmente útil nas equipes mul-
em populações indígenas, como no caso da América tidisciplinares para coletar grandes quantidades de
Latina, têm requerido dos profissionais de saúde uma dados sobre contextos culturalmente diversos. “Son los
maior sensibilidade para lidar com as diferenças cul- riesgos de una metodología poderosa pero que debería
turais, mas também têm levantado uma variedade de estar siempre sometida a algún tipo de acreditación o
problemas a respeito dos princípios, alcances e limites validación neutral y critica en relación con el eventual
das práticas interculturais. A coletânea organizada por uso político de los datos, o con las implicaciones econó-
Juárez explicita e discute muita dessas questões. micas que ello pueda representar en un contexto de polí-
Para podermos melhor caracterizar o atual inte- ticas de desarrollo” (p. 27).
resse nos estudos interculturais é necessário observar No texto seguinte, Enrico Perdiguero (Universi-
inicialmente o crescente interesse de um número cada dad Miguel Hernández, España) observa que muitos
vez maior de profissionais de saúde que atuam concre- dos modelos teórico-metodológicos utilizados pelas
tamente nesta área. São usualmente profissionais mais ciências sociais e da saúde não compreendem a ex-
preocupados no desenvolvimento de ações do que pro- tensão do inegável pluralismo terapêutico e assisten-
priamente em teorizá-las. Quando essas experiências cial existente no mundo globalizado. Conclui que os
são relatadas, há uma maior ênfase nos aspectos mais estudos antropológicos sobre Medicinas Alternativas
práticos das ações, na identificação de um conjunto de e Complementares (MAC) têm apresentado importan-
problemas voltados para situações sócio-econômicas tes contribuições para superar a rigidez dos modelos
que limitam o desenvolvimento das formulações e ges- de análises centrados em serviços sanitários. O texto
tões de sistemas plurais de cuidados à saúde. Alguns de Eduardo Menéndez (CIESA, México), por sua vez,
textos da presente coletânea refletem essa tendência. questiona seriamente as concepções de intercultura-
Embora ainda limitada, a expansão das práticas lidade dominantes na história deste conceito. Esboça
interculturais em saúde tem contribuído para colocar os diferentes momentos pelos quais atravessou tais
novas perspectivas teórico-metodológicas nos estudos concepções, concluindo que é necessário “desarrollar
contemporâneos sobre esta temática. Em termos ge- reflexiones y propuestas metodológicas respecto del su-
rais, cabe mencionar em primeiro lugar o fato de que jeto de estudio y de la metodología a desarrollar para su
atualmente há uma forte preocupação em problema- estudio en términos de relaciones sociales, económicas y
tizar determinados conceitos e premissas epistemo- culturales. Sin embargo esto casi no se da entre nosotros
lógicas que estavam implícitos em muitas abordagens [antropólogos latino-americanos], ya que aplicamos los
sobre relações culturais. Conceitos como “diferenças”, instrumentos y metodología desarrollados por las antro-
“autonomia”, “assimilação” e “integração” – centrais pologías de los países centrales a partir de la situacio-
para o entendimento da interculturalidade – têm sido nalidad de las mismas. De tal manera que no se género
objetos de maior reflexão crítica. Em segundo lugar, há una reflexión y modificación respecto de una relación
um maior distanciamento de premissas etnocêntricas que incluye aspectos decisivos en términos intercultura-
e hegemônicas que caracterizaram, muitas vezes de les ” (p. 63).
forma implícita, esses estudos. Em terceiro lugar, po- Como revelam os textos apresentados na coletâ-
demos observar uma crescente ênfase para os com- nea, os desafios e problemas concretos sobre intercul-
ponentes mais propriamente interativos e políticos turalidade merecem cuidadosa reflexão e devem ser
nos trabalhos desenvolvidos nessa área. Assim, parece pensados segundo as situações em particular. Nesse
haver uma tendência contemporânea em “relativizar” sentido, todos os artigos chamam a atenção para o fato
o peso dos aspectos simbólicos que definiam, em larga de que o objetivo da atenção terapêutica (“tradicional”
medida, as questões da interculturalidade. Nesse sen- ou não) é proporcionar de forma digna o “bem-estar do
tido, ao voltar-se para os aspectos mais processuais e paciente”. Nesse aspecto, é importante que os pesqui-
práticos dessas questões, os estudos contemporâneos sadores e profissionais da saúde não caiam facilmente
tendem a dar maior relevo aos processos sócio-econô- em estereótipos que detêm a reflexão e comunicação
micos e políticos que envolvem as ações interculturais. intercultural. Como observa Michael Knipper, um dos
Em síntese, prestam mais atenção à dinâmica da vida autores da coletânea, “es necesario dinamizar tanto las
cotidiana. mentes como las estructuras. Pero mientras en el campo
A presente coletânea ressalta tais ordens de ques- de la medicina la categoría ‘cultura’ no deje de ser perci-
tões e apresenta diferentes quadros de referências te- bido como algo exótico, apto para excluirlo, por ejemplo,
órico-metodológicas para lidar com a temática das en ‘sistemas’ e instituciones paralelas a la ‘medicina aca-
interculturas, tornando o livro ainda mais instigante. démica’, queda mucho por hacer” (p. 427).
De certa forma, os três capítulos iniciais estabelecem
alguns pontos de partida na discussão sobre o signifi- Paulo César Alves
Departamento de Sociologia, Universidade Federal da Bahia, Sal-
cado de interculturalidade e as formas de se adquirir
vador, Brasil.
um conhecimento mais apropriado deste fenômeno. O paulo.c.alves@uol.com.br
primeiro deles – de Xavier Allué et al., pesquisadores da
Universitat Rovira i Virgili de Tarragona e do Hospital 1. Juárez GF. Salud e interculturalidad en América
Universitari Joan XXIII, abre a discussão privilegiando Latina. Perspectivas antropológicas. Quito: Abya-
o “conhecimento local” como indispensável para uma Yala; 2004.
boa prática de saúde. Para esses autores, é necessário
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(11):2723-2727, nov, 2008