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A MEMÓRIA E A IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DO FOCO NARRATIVO EM
MAUS

Renata Minami do Nascimento (IC) e Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Orientadora)

Apoio: PIVIC Mackenzie


Resumo

Este trabalho insere-se no campo da investigação literária, tendo como objeto de estudo o romance
gráfico Maus, escrito e ilustrado pelo quadrinista norte-americano Art Spiegelman, que conta a
história da violência nazista contra o povo judeu na II Guerra Mundial. A narrativa privilegia o ponto de
vista do pai do autor, Vladek Spiegelman, que sobreviveu parcialmente ao campo de concentração de
Auschwitz. Neste artigo, propomos uma leitura da obra pelo viés do foco narrativo, com o intuito de
desvelar a identidade dos narradores, construída a partir das memórias narradas por Vladek e
filtradas por Art, no desencadeamento do processo catártico de ambos, que se dá em um
emocionante relato (auto)biográfico por meio de dois códigos – a imagem e a palavra. A
complexidade da narrativa, portanto, também dos personagens, revela-se no trato da representação
linguística e psicológica de Vladek, das crises existenciais de Art, na construção das narrativas
pictóricas e textuais de encaixe, no uso estratégico da antropomorfização para construir um universo
capaz de representar o horror do que foi o Holocausto. Os recursos de expressão alocados para a
construção da narrativa gráfica e o virtuosismo de Spiegelman no manejo dessa linguagem
legitimaram Maus como arte, depois do longo ostracismo a que as histórias em quadrinhos foram
condenadas pelo meio acadêmico.

Palavras-chave: Maus; foco narrativo; dialogismo.



Abstract

This work falls into the category of literary investigation, with the objective of studying the graphic
novel Maus, written and illustrated by the North American graphic novelist Art Spiegelman. It tells the
story of Nazi violence against the Jewish people during the Second World War. The narrative favors
the point of view of the author's father, Vladek Spiegelman, a survivor of the Auschwitz concentration
camp. In this article, we propose a reading of the novel influenced by the narrative focus, with the
intention of disclosing the identity of the story-tellers. This identity is constructed from the memories
related by Vladek and filtered by Art, triggering the cathartic process of both characters, which stems
from an emotional (auto) biographical account through the medium of two codes - image and word.
The complexity of the narrative, however, and also of the characters, is revealed in the following ways:
the linguistic and psychological representation of Vladek; the existential crises of Art; the construction
of embedded pictorial and textual narratives; and the strategic use of anthropomorphized characters to
create a universe capable of representing the horror of the Holocaust. The expressive methods
employed in the construction of the graphic narrative and the virtuosity of Spiegelman's use of this
language legitimizes Maus as a work of art, despite the lengthy ostracism that sequential art has
received from academia.

Key-words: Maus; narrative focus; dialogism.




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1.     INTRODUÇÃO

As histórias em quadrinhos, doravante também referidas como HQs, foram desconsideradas
pelo meio acadêmico por um longo período, mas com o surgimento do romance gráfico, no
século XX, vimos nascer um novo gênero literário voltado para adultos, com temas e
personagens complexos, enredos bem trabalhados e uma narrativa visual e textual muito
elaborada.

O corpus desse trabalho é o romance gráfico Maus, de Art Spiegelman, biografia que conta
como Vladek, pai do autor, sobreviveu ao Holocausto.

Nossos objetivos são analisar o foco narrativo construído no supracitado romance gráfico,
identificar e caracterizar os narradores e suas vozes, buscando resolver a questão de como
a memória (portanto, os traumas) colabora(m) no processo de reconstrução da identidade
evidenciado a partir da voz de dois narradores (Art e Vladek).

Para a realização dessa pesquisa, serão utilizadas as formulações a respeito das estruturas
narrativas, de Tzvetan Todorov, como pilares teóricos para a análise das interações e
sobreposições narrativas que compõem o romance gráfico Maus, dado que ela se constrói
por meio de uma macroestrutura – constituída pela relação entre o presente e o passado
(por meio do flashback e das narrativas de encaixe) – e de uma microestrutura – constituída
pelas diversas vozes que perpassam tais estruturas narrativas.

Prestando suporte ao conteúdo da semiótica levantado para a realização desse trabalho, os
estudos e teorias acerca da linguagem e da criação das histórias em quadrinhos serão
vastamente utilizados, por se tratar de um texto verbo-pictórico. Além disso, serão
analisadas as relações entre a imagem e a palavra na composição da narrativa. Para tanto,
a escolha de um quadrinista completo e de excelência como o Will Eisner se fez óbvia, pois
ele é tido como o responsável pela criação do gênero literário em que Maus se enquadra –
graphic novel.

O trabalho se constrói através da análise qualitativa das vozes dos narradores, tanto no
tocante às propriedades narrativas textuais, quanto gráficas. Para corroborar os aspectos
analisados, foram selecionadas imagens do livro que estão inseridas ao longo do texto.

Neste artigo, analisamos o foco narrativo de Maus, dividindo-o entre a narrativa
autobiográfica construída por Art Spiegelman e o relato biográfico de seu pai, tendo como fio
condutor de tais análises a questão da constituição da identidade desses narradores.




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2.        REFERENCIAL TEÓRICO

As histórias em quadrinhos, antes marginalizadas pelo meio acadêmico, ganham uma nova
visibilidade com o surgimento da graphic novel ou romance gráfico.

A classificação de Maus como um romance gráfico é o primeiro passo para a
problematização desse quadrinho, pois apesar de tal termo ter sido empregado pela
primeira vez em uma publicação há 31 anos, é recente a boa acolhida no mercado, com
relação à sua distribuição e sua circulação.

Ao Will Eisner, célebre ilustrador e quadrinista falecido em 2005, é conferida a criação do
termo graphic novel por ele ter sido o primeiro a utilizá-lo em seu livro “Contrato com Deus”
(A Contract with God) e a tratar do assunto com um rigor, pode-se dizer, acadêmico. Sobre
tal gênero dos quadrinhos, Spiegelman utiliza uma metáfora visual que resume de forma
eficiente o supracitado conceito – ele afirma “que faz [quadrinhos] para ler com marcador de
páginas, e não em banheiro1”.

Vindo de encontro com esse mundo reduzido das HQs, que predominou até a primeira
metade dos anos 70 nos Estados Unidos, as novelas gráficas passaram a se ocupar em
fazer uma história com uma narrativa mais complexa, polifônica, com episódios longos, com
um rebuscamento intelectual dos temas, personagens, enredo e diálogos e, por fim, um
trabalho com textos e ilustrações “na direção de uma expressividade mais assumidamente
pessoal” (PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio, 2006, p. 89).

Will Eisner, em seu livro Narrativas Gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos,
considera as graphic novels como a evolução das HQs, uma vez que elas têm “uma
necessidade de sofisticação literária por parte do escritor e do artista maior do que nunca”
(2008, p. 7). O renomado quadrinista norte-americano ainda salienta que “os quadrinhos
procuraram tratar de assuntos que até então haviam sido considerados como território
exclusivo da literatura, do teatro ou do cinema. Autobiografias, protestos sociais,
relacionamentos humanos e fatos históricos” (EISNER, 2008, p. 8), esses são alguns dos
temas que passaram a fazer parte do universo das HQs.

É desse contexto que emerge a obra Maus: A história de um sobrevivente, romance gráfico
autobiográfico que foi escrito e ilustrado pelo quadrinista Art Spiegelman, que, antes de




1
    LUNA, Pedro de. Art Spiegelman abre seu baú. JB Online, Rio de Janeiro, 28 mar 2008. Disponível em: <

http://www.jblog.com.br/quadrinhos.php?itemid=7844>. Acesso em: 10 out 2009.



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iniciar seu projeto (auto)biográfico sobre o Holocausto, era um quadrinista conhecido por
seus trabalhos no meio underground2.

A graphic novel conta a vida e os percalços de Vladek Spiegelman, pai do autor da obra, um
judeu polonês sobrevivente do Holocausto e ex-prisioneiro do famoso campo de
concentração de Auschwitz. Não obstante a triste história de seu pai, Spiegelman vai além e
acaba por retratar em seu livro sua conturbada relação com Vladek e o peso de carregar a
história do povo judeu mesmo sem tê-la vivido.

Art Spiegelman é tido, nos Estados Unidos, como um dos maiores quadrinistas da história
da arte sequencial norte-americana, justamente pela criação de Maus que é considerado um
divisor de águas no processo de legitimação dos quadrinhos ao patamar de arte, além de
ser visto como um dos melhores trabalhos da literatura sobre o Holocausto. Seus
quadrinhos sempre tiveram um cunho político-pessoal com um humor, quando existente,
ácido e uma constante representação da sordidez do mundo.

Spiegelman é um artista com uma capacidade ilustrativa completamente variada que se
molda à necessidade de expressão do quadrinho. Sobre o estilo escolhido em Maus, Will
Eisner pontua que: “O visual, acima de tudo, transmitia de maneira bastante apropriada a
impressão de que a arte havia sido criada num campo de concentração. Isso é narrativa
gráfica.” (2008, p. 160).

Segundo Stephen Tabachnick (1993, p. 121), esse aspecto estilístico de Maus se dá,
primeiramente, porque a ilustração é em preto-e-branco, o que nos leva a retomar o
uniforme utilizado pelos prisioneiros dos campos de concentração, os jornais e os filmes em
preto-e-branco sobre a Segunda Guerra Mundial (e produzidos durante esse período
histórico) e sobre o episódio do Holocausto, além de não permitir que o leitor se evada da
aspereza amarga do que foi esse Genocídio3 – as cores facilitariam a evasão.



2
    “Os quadrinhos adultos americanos, conhecidos como ‘underground comix’, começaram [...] a se popularizar

nos anos 60. Eram HQs com conteúdo altamente subversivo, que lidavam com política, sexo, rock, drogas e [...]

que faziam parte da contracultura e contestação hippie típica da década de 60. Afinal, eram tempos de ’amor

livre’ e guerra do Vietnã. [...] Porém, o Underground Comix não era necessariamente um sucesso de vendas

capaz de se igualar aos quadrinhos mais comerciais. Não havia apoio financeiro das editoras [...]” (REAME;

YANAZE;             REGIS,           2005,          p.         2-3.         Disponível         em:          <

http://www.fanboy.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=666>. Acesso em: 10 out 2009.)

3
    Tal palavra foi cunhada por Raphael Lemkin, advogado polonês de origem judia, pioneiro no campo do direito

internacional. Utilizou o termo ao se referir ao assassinato em massa de armênios pelos turcos em 1915. Esse

crime e o Holocausto nunca foram considerados judicialmente genocídio, apesar de se enquadrarem em seu



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Spiegelman, no entanto, não se atém somente às ilustrações em seu livro, ele faz uso de
diagramas, mapas e fotos (reais) para tornar seu relato ainda mais pessoal, verossímil e
histórico.

No tocante a Maus, ele levou 13 anos para ser finalizado, mas o trabalho diferenciado
rendeu muito méritos a Spiegelman, pois, Tabachnick (1993, p. 154-162) ressalta em seu
artigo que Maus ganhou nove prêmios, dentre eles os que mais se destacam são o The Will
Eisner Comic Industry Award4 e o Prêmio Pulitzer de Literatura, em 1992, – Maus foi o único
romance gráfico até hoje a receber essa láurea – com o acréscimo ‘especial’, pois o comitê
do prêmio decidiu que a categoria existente, “quadrinho de jornal” (newspaper cartoon), não
era apropriada para o livro, que foi considerado Literatura.

Aliás, o enquadramento de Maus em uma categoria é algo problemático desde o início, pois,
apesar de ser uma graphic novel, é a autobiografia de Art Spiegelman e a biografia de seu
pai. O Jornal norte-americano The New York Times o colocou na categoria de livros de
ficção mais vendidos, o que levou Art Spiegelman a redigir uma carta ao jornal solicitando
que seu livro passasse para a categoria de não-ficção, uma vez que se trata da narração de
fatos pessoais e não de uma história qualquer, fruto de sua imaginação.

Maus se apresenta os conflitos da relação entre pai e filho, o questionamento sobre o
próprio fazer artístico (metacomic), o receio de uma estereotipação do pai como judeu, a
insegurança de Art quanto à possibilidade de não conseguir fazer um livro que relatasse
com autenticidade o que foi o Holocausto para seu pai, por ele não ter vivido tal horror e não
poder sequer imaginar em seus piores pesadelos como teria sido.

Pensando nas questões relacionadas ao “eu” em Maus, é imprescindível tratar do foco
narrativo; afinal, é desta instância que o “eu” se constrói na história.

Como dito anteriormente, em Maus, há dois narradores, Art e Vladek Spiegelman, que
podem ser reconhecidos, segundo a classificação de Friedman retomada por Ligia Leite em
seu livro O foco narrativo, como “narrador-protagonista”. Leite (2002, p. 43) define essa
categoria afirmando que “o NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao estado
mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que
exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos”. Tanto Art, quanto Vladek


conceito. (SCHWEIGHÖFER, Kerstin. Conferência na Holanda debateu o que é genocídio. Deutsch Welle,

Alemanha, 09 dez. 2008. Disponível em: < http://www.dw-world.de/dw/article/0,,3860170,00.html>. Acesso em:

18 nov. 2010.

4
    Também conhecido apenas como Eisner Award e é tida como a premiação máxima dos quadrinhos

americanos. Foi criada em resposta à descontinuidade do Kirby Awards em 1987.




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narram os fatos ocorridos ao longo da narrativa a partir de suas percepções de mundo,
sendo que cada um protagoniza as histórias por eles narradas.

Os dois narradores revezam suas vozes ao longo do livro, fazendo com que o romance
gráfico se construa sobre a estrutura da narrativa de encaixe, pois há uma narrativa do
passado (história de Vladek) inserida em outra narrativa do presente (história de Artie).

Tzvetan Todorov, filósofo e linguista búlgaro, pontua sobre esse tipo de narrativa que


                              [...] o encaixe é uma explicitação da propriedade mais profunda de toda narrativa.
                              Pois a narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa. Contando a história de
                              uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se
                              reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada é ao mesmo tempo a
                              imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes
                              ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente. Ser a
                              narrativa de uma narrativa é o destino de toda narrativa que se realiza através do
                              encaixe. (2006, p. 126)




                              Figura 1: Exemplo gráfico da inserção da narrativa de

                              encaixe. (SPIEGELMAN, 2007, p. 101)

A narrativa principal5 se inicia com a fala de Art Spiegelman traçando um sumário: “Fui
visitar meu pai em Rego Park. Não o via fazia tempo. Não éramos muito próximos” (2005, p.
13). A narrativa secundária se inicia com o interesse de Art pela vida do pai, dizendo: “Eu
quero [ouvir sua história]. Comece pela mamãe... Como a conheceu?” (2005, p. 14).

Por se tratar de uma autobiografia, Art narra a história de parte de sua vida de um lugar no
presente, o que leva a uma predominância dos tempos verbais do pretérito perfeito (falei,
tentei), do imperfeito (fazia, davam) e do mais-que-perfeito do indicativo (envelhecera,
casara). Sua narrativa é intercalada pela narrativa em flashback de Vladek, ora para Art

5
    A narrativa de Art Spiegelman será referida, nesse trabalho, como a principal apenas porque é ela quem inicia o

romance gráfico, englobando a narrativa de Vladek, que é, portanto, considerada secundária.




                                                                                                                 6
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sanar alguma dúvida proveniente do relato de seu pai, ora para trazer o leitor de volta ao
presente da narrativa de Vladek (mas passado da narrativa de Art). Essa intercalação da
narrativa de encaixe dinamiza o relato dos dois narradores e torna-o mais verossímil, pois o
autor rompe com o fluxo cronológico da história narrada para, em geral, trazer uma situação
de metacomic6, como é exemplificado no quadrinho abaixo:




                                  Figura 2: Vladek interrompe sua narrativa para




Enquanto na narrativa de Art teremos questões relacionadas ao fazer artístico dos
quadrinhos e à dificuldade de ele se relacionar com o pai e com o peso do Holocausto, na
de Vladek teremos uma narrativa em flashback, repleta de fotos, diagramas, mapas e
ilustrações esquemáticas de como se constituíam os bunkers ou de como consertar um
coturno, por exemplo. Foram analisadas as visões de cada narrador, levando em conta suas
particularidades.

Por se tratar de uma autobiografia, o narrador-protagonista desta narrativa é também o autor
da obra, fato revelado e assumido a partir do uso constante da metacomic.

O que o narrador-protagonista dessa história traz são os conflitos de um judeu sueco
naturalizado norte-americano, filho de judeus poloneses parcialmente sobreviventes ao
Holocausto. Dizemos parcialmente, pois Artie, em uma conversa com sua esposa Françoise,
quando esta diz “não. Tudo por que ele [Vladek] passou. É um milagre ter sobrevivido.”,
responde “Arrã. Mas de certo modo não sobreviveu” (2007, p. 250), ou seja, o próprio
narrador admite a morte parcial em vida de seu pai.

6
    No concernente à metalinguagem em histórias em quadrinhos, optamos por chamá-las metacomic ao invés de

metaquadrinho, pois este é definido, segundo Eisner em Quadrinhos e arte seqüencial (2010, p. 65), como

aquele quadrinho que ocupa uma página inteira, também chamado de superquadrinho. Por metacomic pode-se

entender aquele quadrinho que expõe uma situação do fazer quadrinhos.




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Além disso, nos é relatado que a mãe de Artie, Anja, cometeu suicídio muitos anos depois
de sua passagem por Auschwitz. Este caso é contado em uma narrativa encaixada na
narrativa principal (ver figura 1), que se trata de um quadrinho escrito e ilustrado por Art,
publicado em uma revista underground. Em Prisioneiro do planeta inferno: história de um
caso, temos Artie como um narrador-protagonista que relata em detalhes o suicídio de sua
mãe       utilizando-se,      para      tanto,   de     ilustrações    marcadamente          pertencentes      ao
expressionismo alemão7, como pode ser observado nas figuras 3 e 4. Há a predominância
dos tempos verbais do pretérito perfeito e do imperfeito do indicativo, pois relata um fato já
ocorrido e acabado.




                       Figura      3:   Ernst-Ludwig     Figura 4: Art Spiegelman trabalha

                       Kirchner,        autorretrato,    com a estética do expressionismo

                                                         alemão em Prisioneiro do planeta

Nessa história, Artie se sente culpado pela morte materna, considerando-se um assassino,
apesar de ponderar quem (ou quais) poderia(m) ser o(s) verdadeiro(s) culpado(s): Hitler?
Depressão da menopausa? Ela mesma? Tais questionamentos vêm à luz em um único
quadrinho que concentra todas essas indagações se entrecruzando, o que sugere a
avalanche de pensamentos e sentimentos que afligiam Spiegelman naquele momento.




7
    Influenciada pela filosofia de Nietzsche e pela teoria de Freud, esta estética caracteriza-se pela manifestação

da subjetividade psicológica e emocional, expressa por meio de contraste de cores fortes, traços marcantes e

imagens distorcidas – produtos do inconsciente.



                                                                                                                 8
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                                     Figura 5: Art fica submerso

                                     em seus pensamentos.


O quadrinho termina com Artie afirmando que a culpada era a própria mãe que o deixou
louco [“deu curto nos meus circuitos... Cortou minhas terminações nervosas... E cruzou
meus fios!...” (2007, p. 105)], matando sua sanidade ao cometer um crime pelo qual ele iria
se sentir responsável, o que a tornaria, portanto, a verdadeira assassina.

Porém, Spiegelman não acusa somente sua mãe, ele também acusa o pai de assassinato,
mas por motivos distintos. Enquanto Anja é uma homicida por ter cometido suicídio, Vladek
o é por ter aniquilado os diários em que Anja relatava o que foi o Holocausto para ela. Nos
dois casos, é a morte da mãe (física em um, memorial em outro) que funciona como
elemento desencadeador da tensão de Art.




                   Figura 6: Art acusa a     Figura 7: Art acusa o pai de

                   mãe de ser assassina      matar   as   memórias   da   mãe




No caso de Vladek, ele se diferencia de Artie, porque, enquanto este se preocupa com suas
crises existenciais, aquele se ocupa de sua condição de sobrevivente, vivendo à sombra do
Holocausto e representando, como já dito anteriormente, o estigma do judeu. Vladek quer



                                                                                              9
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economizar em todos os aspectos possíveis, é racista (há uma seqüência de quadros que
ilustram Vladek achando que iria ser roubado por um negro, apenas por ele ser negro) e
desconfia de todos com quem convive, achando que querem roubar seu dinheiro ou lhe
causar algum dano. Apesar de Vladek ter se casado, após a morte de Anja, com Mala,
conhecida da família na Polônia e também sobrevivente do Holocausto, ele reclama para
Artie que ela só pensa em dinheiro e que apenas aguarda sua morte para poder ter acesso
à herança.

Esse comportamento desconfiado e materialista – estigma da judeidade8 – é justificado por
Vladek como culpa de Hitler que, durante a II Guerra Mundial, o privou de comida, bebida,
roupas, calçados, itens de primeira necessidade: “[...] Desde Hitler, não gosto de jogar nada
fora” (SPIEGELMAN, 2007, p. 238). Art, porém, põe em dúvida se Auschwitz foi realmente o
responsável por esse jeito de Vladek, dizendo que “[...] muita gente aqui é sobrevivente. Os
tais Karp, por exemplo, talvez sejam pirados, mas é de um jeito diferente do Vladek.”
(SPIEGELMAN, 2007, p. 182).

No tocante à narrativa de Vladek, em flashback, há um fato lingüístico que diferencia seu
modo de narrar do de Artie: aquele, por ser um judeu polonês radicado nos Estados Unidos,
tem sua fala transcrita por meio de um português precário, ou seja, os verbos normalmente
estão no infinitivo (apesar de haver várias ocorrências de conjugação no pretérito perfeito e
no imperfeito do indicativo), há uma confusão entre artigos definidos femininos e
masculinos, além de haver uma recorrente elipse dos artigos indefinidos. Dessa forma,
Vladek, no presente, portanto, na narrativa de Art, tem sua fala sempre transcrita com um
português de estrangeiro. Quando entramos na narrativa em flashback, porém, Vladek
passa a ter suas falas de diálogos transcritas num português adequado às normas
gramaticais, não obstante, as intromissões do narrador, que fala de um tempo no presente,
continuam a se dar por meio de um português notadamente de estrangeiro, como pode ser
observado na figura abaixo.




8
    Segundo a postulação da historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco (2010, p. 18): “ser judeu,

portanto, não é como ser cristão, porque, mesmo que um judeu abandone sua religião, ele continua a fazer parte

do povo judeu e, portanto da história desse povo: é a sua judeidade, sua identidade de judeu sem deus, por

oposição à judaidade dos que permanecem religiosos”.



                                                                                                             10
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                                Figura 10: A diferença lingüística na

                                representação   da   fala   de   Vladek   no

                                passado e no presente. (SPIEGELMAN,



Isso se dá porque no flashback, Vladek está na Polônia, falando polonês, por isso não há
uma motivação para haver o falar de estrangeiro. Por meio dessa diferenciação lingüística,
percebemos os diferentes tempos de onde o narrador-protagonista fala.

A narrativa de Vladek apresenta, portanto, um relato extremamente objetivo, porém muito
descritivo com um caráter documental. Os capítulos do segundo volume de Maus
descrevem os meses vividos em Auschwitz, período de busca por comida, camas, abrigo,
roupas, etc. Nessa perspectiva, impressiona, além do supracitado caráter documental da
obra, o distanciamento que Vladek mantém das mortes e horrores vivenciados.
Enclausurado em sua própria experiência, essa desconexão emocional dos perigos e dos
assassinatos lá testemunhados, aprofundam o relato recriado por Spiegelman.



MÉTODO

A pesquisa teórica deu sustentação ao exame do romance gráfico Maus, mediante a análise
das narrativas visual e textual, com predominância da última, devido ao objetivo de
investigar o foco narrativo da obra.

A seleção das imagens utilizadas no trabalho seguiu o critério da necessidade de
demonstrar como alguns aspectos da narrativa textual se construíam na narrativa visual.
Além disso, foram consultados referenciais teóricos que permitiram que a investigação fosse
realizada, corroborando ou fornecendo embasamento teórico para a pesquisa.



RESULTADOS E DISCUSSÃO

Spiegelman parece vivenciar um processo catártico enquanto está escrevendo e ilustrando
seu livro, pois com as entrevistas com seu pai, Art descobre a história de sua família,


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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011


portanto sua gênese, e aproxima-se de Vladek de quem ele sempre foi distante (fato
relatado no início da HQ), ou seja, essa autobiografia passa a ser, mais do que uma ponte
entre pai e filho, um espelho da vida de Art que o leva a questionar o seu ser e o fazer
artístico, conduzindo-o a uma jornada rumo ao autoconhecimento.

A auto-análise do ser em Art Spiegelman é o fio condutor do fazer, porque é por ter uma
identidade sabidamente fragmentada que Art quer criar sua autobiografia, como uma
espécie de acerto de contas com sua história e com a de seus pais. O autor sente-se inferior
a seu irmão Richieu, porque enquanto aquele nasceu no pós-guerra, este não sobreviveu ao
Holocausto, o que o levou a ser o filho ideal para seus pais, pois se tornou apenas uma
lembrança e uma “grande foto meio apagada”, na parede do quarto de seus pais – “Dá
medo ter ciúmes de um irmão que é só uma foto” (2007, p. 175).

O fazer se dá pelo desejo inicial de Art de construir um livro que contasse a história de
sobrevivência de seu pai. Para transformar esse relato em quadrinhos Art Spiegelman opta
pela antropomorfização parcial, ou seja, retrata todas as personagens com a cabeça de um
animal, mas com corpos humanos. Para isso decidiu que cada povo, cada etnia, deveria ser
um espécie diferente. A metáfora mais óbvia foi também a mais adequada – os judeus são
ratos e os alemães são gatos.

O autor de Maus não lançou mão da tão conhecida metáfora apenas porque é senso
comum que os gatos perseguem os ratos. Segundo Paulo Pato (2007, p. 126), Spiegelman
opta por essa metáfora porque os nazistas se referiam aos judeus como ratos e também
porque ela representa a eterna luta do mais fraco contra o mais forte, o que demonstra que,
nessa HQ, as personagens afastam-se da iconicidade, pois desempenham uma função
simbólica. Maus possui um evidente recorte semiótico, pois cada personagem assume um
papel determinado no universo da trama, em que a imagem representada é vista como
reflexo ou expressão de um contexto histórico e social, representando os conflitos ocorridos
na II Guerra Mundial e, particularmente, no Holocausto, que demonstram, na perspectiva
bakhtiniana, “um vasto espaço de luta entre as vozes sociais”.

                       [...] toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é
                       um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem
                       deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa
                       medida, uma outra realidade (BAKHTIN, 2004, p. 31).



Justificando a escolha pela antropomorfização, Tabachnick (1993, p. 158) explica que
Spiegelman achou que um estilo realista, ilustrando pessoas ao invés de animais, seria
injusto, pois ele não viveu a história contada, o que faria com que ele não a retratasse com
autenticidade; além disso, Spiegelman receou que, retratando todos como humanos,
passaria a impressão de um panfletário “lembre-se dos seis milhões de judeus mortos no



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Universidade Presbiteriana Mackenzie


Holocausto”. Então, optou pela antropomorfização. O quadrinista declarou também que a
antropomorfização passava a idéia de que os humanos foram rebaixados à condição dos
animais, além de o Holocausto ter sido um episódio terrível demais para ser reproduzido
sem máscaras.

A metáfora proposta por meio da antropomorfização transcende a ilustração das
personagens como animais e alcança o ato da nominação. Spiegelman escolheu como título
da obra o nome Maus9, que, traduzido do alemão, quer dizer rato. Ao entrarmos no livro,
percebemos que o autor manteve a metáfora inclusive nos títulos de alguns capítulos, como,
por exemplo, o quinto capítulo da primeira parte que se chama “Buraco de ratos”; o capítulo
seguinte, “A ratoeira” e, por fim, o primeiro capítulo da segunda parte, “Mauschwitz”.

Ainda sobre o fazer de Spiegelman, há um quadrinho em que a antropomorfização e a
metacomic se encontram, levando ao máximo as duas categorias, pois o narrador-
protagonista se questiona sobre como representar sua esposa, Françoise, que é uma
francesa convertida ao judaísmo. O questionamento se dá tanto na esfera textual, quanto na
pictórica. Segundo Pato (2007, p. 128-129), as escolhas de animais para simbolizar as
diferentes nacionalidades



                               [...] deixam transparecer uma dinâmica de referências e contrastes em relação aos
                               vários discursos ideológicos historicamente construídos pelas nacionalidades,
                               demonstrando que as imagens precisam ser vistas a partir de um contexto de um
                               processo discursivo e não mimético – neutro e transparente.


Na figura 8 (abaixo), Françoise já aparece retratada como rata, mas vemos Art
experimentando outros animais para ela, pois, Spiegelman não deseja criar um retrato de
sua esposa, e sim instituir um símbolo que representasse mais do que sua esposa, os
franceses, considerando, para tanto, os longos anos de anti-semitismo que existiram na
França. Ao contrário, Françoise deseja ser retratada de forma que mantenha sua
individualidade, repudiando ser enquadrada em um estereótipo, porque deseja manter sua
história, independentemente da história da França.

Nessa perspectiva, podemos considerar que, em se tratando de dialogismo,

                               [...] a posição da qual se narra e se constrói a representação ou se comunica algo
                               deve nortear-se em face de um universo de sujeitos isônomos, investidos de plenos

9
    Uma curiosidade sobre o título da obra é que, apesar de ela ter sido traduzida para cerca de 30 línguas, o título

continua sendo Maus em todas, não tendo sido nunca traduzido. (COZER, Raquel. “Desenhar é sempre uma

luta”,    diz    Art   Spiegelman.     Folha    Online.    São    Paulo,     01   dez.    2009.    Disponível    em:

<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u659470.shtml>. Acesso em: 20 ago. 2010).




                                                                                                                  13
VII Jornada de Iniciação Científica - 2011


                       direitos, um mundo de consciências individuais caracterizado por forte grau de
                       autonomia e vida própria, pois a consciência do autor não transforma a consciência
                       dos outros – das personagens – em objetos de sua própria consciência e de seu
                       discurso [...]. (BEZERRA, 2005, p. 195).




                  Figura 8: Antropomorfização e metacomic se confluem em um quadro para

                  sanar a dúvida “Como desenhar Françoise?” (2007, p. 171)



Para retratar o disfarce de um judeu em um polonês e reforçar a relação simbólica entre as
representações das nacionalidades e as faces de animais, Spiegelman brinca com sua
própria metáfora e, para isso, coloca uma máscara de porco no rato.

Dessa forma, ele torna a diferença evidente e, para Vladek se disfarçar de polonês com
sucesso, faz uso desse artifício externo, a máscara, o que acaba por ser mais uma bem
sucedida ironia do quadrinista judeu naturalizado americano.




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Universidade Presbiteriana Mackenzie




                          Figura 9: Art se vale de uma máscara de

                          porco para disfarçar as diferenças fenotípicas

                          dos judeus e dos demais, no caso, dos

A antropomorfização de Spiegelman ao visar o rebaixamento do homem à condição de
animal irracional objetiva elucidar a sordidez do que foi o Holocausto para Vladek
Spiegelman, destruindo a idéia de que a representação da personificação dos animais
constitui uma fábula. Spiegelman produz, dessa forma, um texto sincronizado com as
imagens relatando a maior barbárie do século XX, porém em quadrinhos, o que o leva a
questionar a validade de sua criação, expondo mais uma vez sua identidade ainda
fragmentada.

No segundo capítulo do segundo livro de Maus, Spiegelman prossegue com a fragmentação
do eu, iniciando uma concatenação de idéias que funde a morte do pai, com sua estadia em
Auschwitz, com a realização do livro, com a vida pessoal de Artie, com o Holocausto e o
sucesso da graphic novel. Como Spiegelman faz ao longo de todo o livro, as narrativas
visual e textual caminham juntas. Sendo assim, temos nessa cena um Art Spiegelman
humano, vestindo uma máscara de rato, cercado por moscas, debruçado em sua mesa de
desenho. O último quadrinho da página nos mostra o porquê das moscas: Art está em cima
de um monte de corpos de judeus mortos. O sucesso do livro em torno da temática do
Holocausto deprime o autor-narrador que já não sabe mais o motivo de ter feito seu livro e
se sente mais um a tratar do genocídio dos judeus e ganhar notoriedade com isso, o
responsável por tornar a tragédia de sua família em um sucesso de público e crítica –
Spiegelman demonstra que o seu eu é, na verdade, um constante conflito entre o ser e o
fazer, constituindo uma identidade fragmentada porque incapaz de lidar, no presente, com o
passado seu, de seu povo e de sua família.

Já, no caso de Vladek, ele expõe, ao longo da narrativa, sua fragilidade com relação às suas
memórias por meio da tentativa de esquecê-las. Por isso queima os diários de Anja num
momento de muita tristeza: “Depois que Anja morre tive que fazer ordem em tudo... Esses
papéis tinha memória demais. Queimei.” (SPIEGELMAN, 2007, p. 161). Ele também conta,
ao ser indagado por Artie se ele ainda guardava alguma carta trocada com um francês com


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VII Jornada de Iniciação Científica - 2011


o qual ele ficou preso, que as queimou junto com os cadernos de Anja e explica tristemente
que “tudo coisas do guerra tentei tirar do cabeça para sempre... Até você reconstruir isso
tudo com suas perguntas” (SPIEGELMAN, 2007, p. 258).

Aqui, o emprego do verbo “reconstruir” é revelador na fala de Vladek, pois este acredita ter
destruído todas as memórias de suas vivências do Holocausto quando, em um ato único,
queima os cadernos e as cartas com as memórias dos fatos e pessoas desse período;
também acredita que é Artie através de suas perguntas quem reconstrói as lembranças da
guerra, como se essas fossem dissociáveis dele. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que,
para Vladek, o testemunho, ainda que fragmentado, limitado, paradoxal, é uma forma de
reviver o passado, mesmo que de forma fragmentária e imperfeita.

É por meio do relato de Vladek que temos uma narrativa que constrói a figura do herói
épico. Spiegelman alcança essa construção ao ilustrar a história de sobrevivência de seu
pai, mas não de uma sobrevivência ordinária, e sim de uma sobrevivência ao maior
genocídio da história.

Vladek representa a síntese entre a subjetividade da história individual e o sentido épico da
história coletiva. A passagem do plano exclusivamente individual para a esfera do coletivo
dá-se por meio de uma peripécia que é a instauração do regime nazista. A partir daí, a
personagem se revela um novo homem, pois passa a lutar pelo bem comum – apesar de
aparentemente se tratar de uma luta pela sobrevivência do indivíduo Vladek, este se apóia e
ajuda outros judeus nessa luta de um povo contra um regime autoritário – com as armas de
um herói extraordinário, ou seja, pela sapiência, pela inteligência, pela capacidade de
argumentar (e no caso específico de Vladek, pelo seu conhecimento básico de língua
inglesa).

Este, ao sobreviver ao Holocausto, não representa um indivíduo sobrevivente, mas a vitória
do povo judeu, no aspecto tocante à judeidade, ao nazismo, representando, portanto, não
mais um herói qualquer, mas um herói coletivo, porque portador dos anseios e valores de
um povo, de uma cultura.

Esse herói épico, que enfrentou Auschwitz e superou Hitler, encerra seu relato biográfico da
guerra de forma ingênua e frágil, dizendo, após seu reencontro com Anja, “Mais, não precisa
contar. Nós foi muito feliz, e vive feliz, feliz para sempre” (SPIEGELMAN, 2007, p. 296),
Spiegelman demonstra que seu pai edita e altera suas memórias, na medida em que molda
certos relatos e lembrança de forma equivocada. Dizemos ingênua porque Spiegelman nos
deixa saber que Anja nunca superou o que testemunhou nos campos de concentração,
tanto que cometeu suicídio em 1968.




                                                                                              16
Universidade Presbiteriana Mackenzie


Após uma pausa, Vladek pede para que a gravação seja encerrada e diz: “Estou cansado
de falar, Richieu. Chega de histórias por hoje...” (SPIEGELMAN, 2007, p. 296). Com essa
frase dita por Vladek, Spiegelman corrobora a idéia de imperfeição da memória diante da
convalescença do pai, da passagem do tempo e do trauma do que foi vivenciado nos
campos nazistas. Parece que os narradores, Vladek e Art, não mais conseguiriam buscar
uma lógica de discurso capaz de narrar os horrores que nem as palavras nem a memória
conseguiriam reviver de forma coerente.

Vladek não se constitui um eu fragmentado, como Art, mas constitui um eu destruído pelo
horror da guerra que, mesmo depois de ter acabado, tirou as vidas daqueles que não
puderam suportar as memórias.



CONCLUSÃO

Após a realização da pesquisa, concluímos que o metacomic e a antropomorfização foram
os aspectos mais estudados, porque eles revelam a subjetividade do processo de criação
elaborado por Spiegelman, demonstrando uma riqueza antropológica tanto na esfera textual,
quanto na gráfica, característica das graphic novels.

Por meio da análise do foco narrativo de Maus, objetivou-se construir a compreensão da
identidade que emerge nessa narrativa dialógica e polifônica, chegando a um entendimento
do sujeito que mediante a forma atinge a esfera da representação social do drama vivido
pelo povo judeu no Holocausto e dos reflexos dessa tragédia nos sobreviventes e em seus
descendentes.



REFERÊNCIAS

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Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

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fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e
Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2005.

COZER, Raquel. “Desenhar é sempre uma luta”, diz Art Spiegelman. Folha Online. São
Paulo,            01             dez.            2009.             Disponível              em:
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                                                                                            17
VII Jornada de Iniciação Científica - 2011


DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução Fábio Landa. São Paulo: Editora
UNESP, 2002.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. Tradução Luís Carlos Borges. 4. ed. São
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___________. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. Tradução
de Leandro Luigi Del Manto. 2. ed. São Paulo: Devir, 2008.

KIRSCHNER,              Ernst-Ludwig.      Auto-retrato.              Disponível         em:       <
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SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. Tradução Antonio de Macedo
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TABACHNICK, Stephen E. Of Maus and memory: the structure of Art Spiegelman’s graphic
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TODOROV, Tzevetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Debates,
14).



Contatos: renataminami@yahoo.com.br e aurora.pos@mackenzie.br



                                                                                                   18

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Renata minami

  • 1. Universidade Presbiteriana Mackenzie A MEMÓRIA E A IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DO FOCO NARRATIVO EM MAUS Renata Minami do Nascimento (IC) e Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Orientadora) Apoio: PIVIC Mackenzie Resumo Este trabalho insere-se no campo da investigação literária, tendo como objeto de estudo o romance gráfico Maus, escrito e ilustrado pelo quadrinista norte-americano Art Spiegelman, que conta a história da violência nazista contra o povo judeu na II Guerra Mundial. A narrativa privilegia o ponto de vista do pai do autor, Vladek Spiegelman, que sobreviveu parcialmente ao campo de concentração de Auschwitz. Neste artigo, propomos uma leitura da obra pelo viés do foco narrativo, com o intuito de desvelar a identidade dos narradores, construída a partir das memórias narradas por Vladek e filtradas por Art, no desencadeamento do processo catártico de ambos, que se dá em um emocionante relato (auto)biográfico por meio de dois códigos – a imagem e a palavra. A complexidade da narrativa, portanto, também dos personagens, revela-se no trato da representação linguística e psicológica de Vladek, das crises existenciais de Art, na construção das narrativas pictóricas e textuais de encaixe, no uso estratégico da antropomorfização para construir um universo capaz de representar o horror do que foi o Holocausto. Os recursos de expressão alocados para a construção da narrativa gráfica e o virtuosismo de Spiegelman no manejo dessa linguagem legitimaram Maus como arte, depois do longo ostracismo a que as histórias em quadrinhos foram condenadas pelo meio acadêmico. Palavras-chave: Maus; foco narrativo; dialogismo. Abstract This work falls into the category of literary investigation, with the objective of studying the graphic novel Maus, written and illustrated by the North American graphic novelist Art Spiegelman. It tells the story of Nazi violence against the Jewish people during the Second World War. The narrative favors the point of view of the author's father, Vladek Spiegelman, a survivor of the Auschwitz concentration camp. In this article, we propose a reading of the novel influenced by the narrative focus, with the intention of disclosing the identity of the story-tellers. This identity is constructed from the memories related by Vladek and filtered by Art, triggering the cathartic process of both characters, which stems from an emotional (auto) biographical account through the medium of two codes - image and word. The complexity of the narrative, however, and also of the characters, is revealed in the following ways: the linguistic and psychological representation of Vladek; the existential crises of Art; the construction of embedded pictorial and textual narratives; and the strategic use of anthropomorphized characters to create a universe capable of representing the horror of the Holocaust. The expressive methods employed in the construction of the graphic narrative and the virtuosity of Spiegelman's use of this language legitimizes Maus as a work of art, despite the lengthy ostracism that sequential art has received from academia. Key-words: Maus; narrative focus; dialogism. 1
  • 2. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 1. INTRODUÇÃO As histórias em quadrinhos, doravante também referidas como HQs, foram desconsideradas pelo meio acadêmico por um longo período, mas com o surgimento do romance gráfico, no século XX, vimos nascer um novo gênero literário voltado para adultos, com temas e personagens complexos, enredos bem trabalhados e uma narrativa visual e textual muito elaborada. O corpus desse trabalho é o romance gráfico Maus, de Art Spiegelman, biografia que conta como Vladek, pai do autor, sobreviveu ao Holocausto. Nossos objetivos são analisar o foco narrativo construído no supracitado romance gráfico, identificar e caracterizar os narradores e suas vozes, buscando resolver a questão de como a memória (portanto, os traumas) colabora(m) no processo de reconstrução da identidade evidenciado a partir da voz de dois narradores (Art e Vladek). Para a realização dessa pesquisa, serão utilizadas as formulações a respeito das estruturas narrativas, de Tzvetan Todorov, como pilares teóricos para a análise das interações e sobreposições narrativas que compõem o romance gráfico Maus, dado que ela se constrói por meio de uma macroestrutura – constituída pela relação entre o presente e o passado (por meio do flashback e das narrativas de encaixe) – e de uma microestrutura – constituída pelas diversas vozes que perpassam tais estruturas narrativas. Prestando suporte ao conteúdo da semiótica levantado para a realização desse trabalho, os estudos e teorias acerca da linguagem e da criação das histórias em quadrinhos serão vastamente utilizados, por se tratar de um texto verbo-pictórico. Além disso, serão analisadas as relações entre a imagem e a palavra na composição da narrativa. Para tanto, a escolha de um quadrinista completo e de excelência como o Will Eisner se fez óbvia, pois ele é tido como o responsável pela criação do gênero literário em que Maus se enquadra – graphic novel. O trabalho se constrói através da análise qualitativa das vozes dos narradores, tanto no tocante às propriedades narrativas textuais, quanto gráficas. Para corroborar os aspectos analisados, foram selecionadas imagens do livro que estão inseridas ao longo do texto. Neste artigo, analisamos o foco narrativo de Maus, dividindo-o entre a narrativa autobiográfica construída por Art Spiegelman e o relato biográfico de seu pai, tendo como fio condutor de tais análises a questão da constituição da identidade desses narradores. 2
  • 3. Universidade Presbiteriana Mackenzie 2. REFERENCIAL TEÓRICO As histórias em quadrinhos, antes marginalizadas pelo meio acadêmico, ganham uma nova visibilidade com o surgimento da graphic novel ou romance gráfico. A classificação de Maus como um romance gráfico é o primeiro passo para a problematização desse quadrinho, pois apesar de tal termo ter sido empregado pela primeira vez em uma publicação há 31 anos, é recente a boa acolhida no mercado, com relação à sua distribuição e sua circulação. Ao Will Eisner, célebre ilustrador e quadrinista falecido em 2005, é conferida a criação do termo graphic novel por ele ter sido o primeiro a utilizá-lo em seu livro “Contrato com Deus” (A Contract with God) e a tratar do assunto com um rigor, pode-se dizer, acadêmico. Sobre tal gênero dos quadrinhos, Spiegelman utiliza uma metáfora visual que resume de forma eficiente o supracitado conceito – ele afirma “que faz [quadrinhos] para ler com marcador de páginas, e não em banheiro1”. Vindo de encontro com esse mundo reduzido das HQs, que predominou até a primeira metade dos anos 70 nos Estados Unidos, as novelas gráficas passaram a se ocupar em fazer uma história com uma narrativa mais complexa, polifônica, com episódios longos, com um rebuscamento intelectual dos temas, personagens, enredo e diálogos e, por fim, um trabalho com textos e ilustrações “na direção de uma expressividade mais assumidamente pessoal” (PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio, 2006, p. 89). Will Eisner, em seu livro Narrativas Gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos, considera as graphic novels como a evolução das HQs, uma vez que elas têm “uma necessidade de sofisticação literária por parte do escritor e do artista maior do que nunca” (2008, p. 7). O renomado quadrinista norte-americano ainda salienta que “os quadrinhos procuraram tratar de assuntos que até então haviam sido considerados como território exclusivo da literatura, do teatro ou do cinema. Autobiografias, protestos sociais, relacionamentos humanos e fatos históricos” (EISNER, 2008, p. 8), esses são alguns dos temas que passaram a fazer parte do universo das HQs. É desse contexto que emerge a obra Maus: A história de um sobrevivente, romance gráfico autobiográfico que foi escrito e ilustrado pelo quadrinista Art Spiegelman, que, antes de 1 LUNA, Pedro de. Art Spiegelman abre seu baú. JB Online, Rio de Janeiro, 28 mar 2008. Disponível em: < http://www.jblog.com.br/quadrinhos.php?itemid=7844>. Acesso em: 10 out 2009. 3
  • 4. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 iniciar seu projeto (auto)biográfico sobre o Holocausto, era um quadrinista conhecido por seus trabalhos no meio underground2. A graphic novel conta a vida e os percalços de Vladek Spiegelman, pai do autor da obra, um judeu polonês sobrevivente do Holocausto e ex-prisioneiro do famoso campo de concentração de Auschwitz. Não obstante a triste história de seu pai, Spiegelman vai além e acaba por retratar em seu livro sua conturbada relação com Vladek e o peso de carregar a história do povo judeu mesmo sem tê-la vivido. Art Spiegelman é tido, nos Estados Unidos, como um dos maiores quadrinistas da história da arte sequencial norte-americana, justamente pela criação de Maus que é considerado um divisor de águas no processo de legitimação dos quadrinhos ao patamar de arte, além de ser visto como um dos melhores trabalhos da literatura sobre o Holocausto. Seus quadrinhos sempre tiveram um cunho político-pessoal com um humor, quando existente, ácido e uma constante representação da sordidez do mundo. Spiegelman é um artista com uma capacidade ilustrativa completamente variada que se molda à necessidade de expressão do quadrinho. Sobre o estilo escolhido em Maus, Will Eisner pontua que: “O visual, acima de tudo, transmitia de maneira bastante apropriada a impressão de que a arte havia sido criada num campo de concentração. Isso é narrativa gráfica.” (2008, p. 160). Segundo Stephen Tabachnick (1993, p. 121), esse aspecto estilístico de Maus se dá, primeiramente, porque a ilustração é em preto-e-branco, o que nos leva a retomar o uniforme utilizado pelos prisioneiros dos campos de concentração, os jornais e os filmes em preto-e-branco sobre a Segunda Guerra Mundial (e produzidos durante esse período histórico) e sobre o episódio do Holocausto, além de não permitir que o leitor se evada da aspereza amarga do que foi esse Genocídio3 – as cores facilitariam a evasão. 2 “Os quadrinhos adultos americanos, conhecidos como ‘underground comix’, começaram [...] a se popularizar nos anos 60. Eram HQs com conteúdo altamente subversivo, que lidavam com política, sexo, rock, drogas e [...] que faziam parte da contracultura e contestação hippie típica da década de 60. Afinal, eram tempos de ’amor livre’ e guerra do Vietnã. [...] Porém, o Underground Comix não era necessariamente um sucesso de vendas capaz de se igualar aos quadrinhos mais comerciais. Não havia apoio financeiro das editoras [...]” (REAME; YANAZE; REGIS, 2005, p. 2-3. Disponível em: < http://www.fanboy.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=666>. Acesso em: 10 out 2009.) 3 Tal palavra foi cunhada por Raphael Lemkin, advogado polonês de origem judia, pioneiro no campo do direito internacional. Utilizou o termo ao se referir ao assassinato em massa de armênios pelos turcos em 1915. Esse crime e o Holocausto nunca foram considerados judicialmente genocídio, apesar de se enquadrarem em seu 4
  • 5. Universidade Presbiteriana Mackenzie Spiegelman, no entanto, não se atém somente às ilustrações em seu livro, ele faz uso de diagramas, mapas e fotos (reais) para tornar seu relato ainda mais pessoal, verossímil e histórico. No tocante a Maus, ele levou 13 anos para ser finalizado, mas o trabalho diferenciado rendeu muito méritos a Spiegelman, pois, Tabachnick (1993, p. 154-162) ressalta em seu artigo que Maus ganhou nove prêmios, dentre eles os que mais se destacam são o The Will Eisner Comic Industry Award4 e o Prêmio Pulitzer de Literatura, em 1992, – Maus foi o único romance gráfico até hoje a receber essa láurea – com o acréscimo ‘especial’, pois o comitê do prêmio decidiu que a categoria existente, “quadrinho de jornal” (newspaper cartoon), não era apropriada para o livro, que foi considerado Literatura. Aliás, o enquadramento de Maus em uma categoria é algo problemático desde o início, pois, apesar de ser uma graphic novel, é a autobiografia de Art Spiegelman e a biografia de seu pai. O Jornal norte-americano The New York Times o colocou na categoria de livros de ficção mais vendidos, o que levou Art Spiegelman a redigir uma carta ao jornal solicitando que seu livro passasse para a categoria de não-ficção, uma vez que se trata da narração de fatos pessoais e não de uma história qualquer, fruto de sua imaginação. Maus se apresenta os conflitos da relação entre pai e filho, o questionamento sobre o próprio fazer artístico (metacomic), o receio de uma estereotipação do pai como judeu, a insegurança de Art quanto à possibilidade de não conseguir fazer um livro que relatasse com autenticidade o que foi o Holocausto para seu pai, por ele não ter vivido tal horror e não poder sequer imaginar em seus piores pesadelos como teria sido. Pensando nas questões relacionadas ao “eu” em Maus, é imprescindível tratar do foco narrativo; afinal, é desta instância que o “eu” se constrói na história. Como dito anteriormente, em Maus, há dois narradores, Art e Vladek Spiegelman, que podem ser reconhecidos, segundo a classificação de Friedman retomada por Ligia Leite em seu livro O foco narrativo, como “narrador-protagonista”. Leite (2002, p. 43) define essa categoria afirmando que “o NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos”. Tanto Art, quanto Vladek conceito. (SCHWEIGHÖFER, Kerstin. Conferência na Holanda debateu o que é genocídio. Deutsch Welle, Alemanha, 09 dez. 2008. Disponível em: < http://www.dw-world.de/dw/article/0,,3860170,00.html>. Acesso em: 18 nov. 2010. 4 Também conhecido apenas como Eisner Award e é tida como a premiação máxima dos quadrinhos americanos. Foi criada em resposta à descontinuidade do Kirby Awards em 1987. 5
  • 6. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 narram os fatos ocorridos ao longo da narrativa a partir de suas percepções de mundo, sendo que cada um protagoniza as histórias por eles narradas. Os dois narradores revezam suas vozes ao longo do livro, fazendo com que o romance gráfico se construa sobre a estrutura da narrativa de encaixe, pois há uma narrativa do passado (história de Vladek) inserida em outra narrativa do presente (história de Artie). Tzvetan Todorov, filósofo e linguista búlgaro, pontua sobre esse tipo de narrativa que [...] o encaixe é uma explicitação da propriedade mais profunda de toda narrativa. Pois a narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa. Contando a história de uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente. Ser a narrativa de uma narrativa é o destino de toda narrativa que se realiza através do encaixe. (2006, p. 126) Figura 1: Exemplo gráfico da inserção da narrativa de encaixe. (SPIEGELMAN, 2007, p. 101) A narrativa principal5 se inicia com a fala de Art Spiegelman traçando um sumário: “Fui visitar meu pai em Rego Park. Não o via fazia tempo. Não éramos muito próximos” (2005, p. 13). A narrativa secundária se inicia com o interesse de Art pela vida do pai, dizendo: “Eu quero [ouvir sua história]. Comece pela mamãe... Como a conheceu?” (2005, p. 14). Por se tratar de uma autobiografia, Art narra a história de parte de sua vida de um lugar no presente, o que leva a uma predominância dos tempos verbais do pretérito perfeito (falei, tentei), do imperfeito (fazia, davam) e do mais-que-perfeito do indicativo (envelhecera, casara). Sua narrativa é intercalada pela narrativa em flashback de Vladek, ora para Art 5 A narrativa de Art Spiegelman será referida, nesse trabalho, como a principal apenas porque é ela quem inicia o romance gráfico, englobando a narrativa de Vladek, que é, portanto, considerada secundária. 6
  • 7. Universidade Presbiteriana Mackenzie sanar alguma dúvida proveniente do relato de seu pai, ora para trazer o leitor de volta ao presente da narrativa de Vladek (mas passado da narrativa de Art). Essa intercalação da narrativa de encaixe dinamiza o relato dos dois narradores e torna-o mais verossímil, pois o autor rompe com o fluxo cronológico da história narrada para, em geral, trazer uma situação de metacomic6, como é exemplificado no quadrinho abaixo: Figura 2: Vladek interrompe sua narrativa para Enquanto na narrativa de Art teremos questões relacionadas ao fazer artístico dos quadrinhos e à dificuldade de ele se relacionar com o pai e com o peso do Holocausto, na de Vladek teremos uma narrativa em flashback, repleta de fotos, diagramas, mapas e ilustrações esquemáticas de como se constituíam os bunkers ou de como consertar um coturno, por exemplo. Foram analisadas as visões de cada narrador, levando em conta suas particularidades. Por se tratar de uma autobiografia, o narrador-protagonista desta narrativa é também o autor da obra, fato revelado e assumido a partir do uso constante da metacomic. O que o narrador-protagonista dessa história traz são os conflitos de um judeu sueco naturalizado norte-americano, filho de judeus poloneses parcialmente sobreviventes ao Holocausto. Dizemos parcialmente, pois Artie, em uma conversa com sua esposa Françoise, quando esta diz “não. Tudo por que ele [Vladek] passou. É um milagre ter sobrevivido.”, responde “Arrã. Mas de certo modo não sobreviveu” (2007, p. 250), ou seja, o próprio narrador admite a morte parcial em vida de seu pai. 6 No concernente à metalinguagem em histórias em quadrinhos, optamos por chamá-las metacomic ao invés de metaquadrinho, pois este é definido, segundo Eisner em Quadrinhos e arte seqüencial (2010, p. 65), como aquele quadrinho que ocupa uma página inteira, também chamado de superquadrinho. Por metacomic pode-se entender aquele quadrinho que expõe uma situação do fazer quadrinhos. 7
  • 8. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 Além disso, nos é relatado que a mãe de Artie, Anja, cometeu suicídio muitos anos depois de sua passagem por Auschwitz. Este caso é contado em uma narrativa encaixada na narrativa principal (ver figura 1), que se trata de um quadrinho escrito e ilustrado por Art, publicado em uma revista underground. Em Prisioneiro do planeta inferno: história de um caso, temos Artie como um narrador-protagonista que relata em detalhes o suicídio de sua mãe utilizando-se, para tanto, de ilustrações marcadamente pertencentes ao expressionismo alemão7, como pode ser observado nas figuras 3 e 4. Há a predominância dos tempos verbais do pretérito perfeito e do imperfeito do indicativo, pois relata um fato já ocorrido e acabado. Figura 3: Ernst-Ludwig Figura 4: Art Spiegelman trabalha Kirchner, autorretrato, com a estética do expressionismo alemão em Prisioneiro do planeta Nessa história, Artie se sente culpado pela morte materna, considerando-se um assassino, apesar de ponderar quem (ou quais) poderia(m) ser o(s) verdadeiro(s) culpado(s): Hitler? Depressão da menopausa? Ela mesma? Tais questionamentos vêm à luz em um único quadrinho que concentra todas essas indagações se entrecruzando, o que sugere a avalanche de pensamentos e sentimentos que afligiam Spiegelman naquele momento. 7 Influenciada pela filosofia de Nietzsche e pela teoria de Freud, esta estética caracteriza-se pela manifestação da subjetividade psicológica e emocional, expressa por meio de contraste de cores fortes, traços marcantes e imagens distorcidas – produtos do inconsciente. 8
  • 9. Universidade Presbiteriana Mackenzie Figura 5: Art fica submerso em seus pensamentos. O quadrinho termina com Artie afirmando que a culpada era a própria mãe que o deixou louco [“deu curto nos meus circuitos... Cortou minhas terminações nervosas... E cruzou meus fios!...” (2007, p. 105)], matando sua sanidade ao cometer um crime pelo qual ele iria se sentir responsável, o que a tornaria, portanto, a verdadeira assassina. Porém, Spiegelman não acusa somente sua mãe, ele também acusa o pai de assassinato, mas por motivos distintos. Enquanto Anja é uma homicida por ter cometido suicídio, Vladek o é por ter aniquilado os diários em que Anja relatava o que foi o Holocausto para ela. Nos dois casos, é a morte da mãe (física em um, memorial em outro) que funciona como elemento desencadeador da tensão de Art. Figura 6: Art acusa a Figura 7: Art acusa o pai de mãe de ser assassina matar as memórias da mãe No caso de Vladek, ele se diferencia de Artie, porque, enquanto este se preocupa com suas crises existenciais, aquele se ocupa de sua condição de sobrevivente, vivendo à sombra do Holocausto e representando, como já dito anteriormente, o estigma do judeu. Vladek quer 9
  • 10. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 economizar em todos os aspectos possíveis, é racista (há uma seqüência de quadros que ilustram Vladek achando que iria ser roubado por um negro, apenas por ele ser negro) e desconfia de todos com quem convive, achando que querem roubar seu dinheiro ou lhe causar algum dano. Apesar de Vladek ter se casado, após a morte de Anja, com Mala, conhecida da família na Polônia e também sobrevivente do Holocausto, ele reclama para Artie que ela só pensa em dinheiro e que apenas aguarda sua morte para poder ter acesso à herança. Esse comportamento desconfiado e materialista – estigma da judeidade8 – é justificado por Vladek como culpa de Hitler que, durante a II Guerra Mundial, o privou de comida, bebida, roupas, calçados, itens de primeira necessidade: “[...] Desde Hitler, não gosto de jogar nada fora” (SPIEGELMAN, 2007, p. 238). Art, porém, põe em dúvida se Auschwitz foi realmente o responsável por esse jeito de Vladek, dizendo que “[...] muita gente aqui é sobrevivente. Os tais Karp, por exemplo, talvez sejam pirados, mas é de um jeito diferente do Vladek.” (SPIEGELMAN, 2007, p. 182). No tocante à narrativa de Vladek, em flashback, há um fato lingüístico que diferencia seu modo de narrar do de Artie: aquele, por ser um judeu polonês radicado nos Estados Unidos, tem sua fala transcrita por meio de um português precário, ou seja, os verbos normalmente estão no infinitivo (apesar de haver várias ocorrências de conjugação no pretérito perfeito e no imperfeito do indicativo), há uma confusão entre artigos definidos femininos e masculinos, além de haver uma recorrente elipse dos artigos indefinidos. Dessa forma, Vladek, no presente, portanto, na narrativa de Art, tem sua fala sempre transcrita com um português de estrangeiro. Quando entramos na narrativa em flashback, porém, Vladek passa a ter suas falas de diálogos transcritas num português adequado às normas gramaticais, não obstante, as intromissões do narrador, que fala de um tempo no presente, continuam a se dar por meio de um português notadamente de estrangeiro, como pode ser observado na figura abaixo. 8 Segundo a postulação da historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco (2010, p. 18): “ser judeu, portanto, não é como ser cristão, porque, mesmo que um judeu abandone sua religião, ele continua a fazer parte do povo judeu e, portanto da história desse povo: é a sua judeidade, sua identidade de judeu sem deus, por oposição à judaidade dos que permanecem religiosos”. 10
  • 11. Universidade Presbiteriana Mackenzie Figura 10: A diferença lingüística na representação da fala de Vladek no passado e no presente. (SPIEGELMAN, Isso se dá porque no flashback, Vladek está na Polônia, falando polonês, por isso não há uma motivação para haver o falar de estrangeiro. Por meio dessa diferenciação lingüística, percebemos os diferentes tempos de onde o narrador-protagonista fala. A narrativa de Vladek apresenta, portanto, um relato extremamente objetivo, porém muito descritivo com um caráter documental. Os capítulos do segundo volume de Maus descrevem os meses vividos em Auschwitz, período de busca por comida, camas, abrigo, roupas, etc. Nessa perspectiva, impressiona, além do supracitado caráter documental da obra, o distanciamento que Vladek mantém das mortes e horrores vivenciados. Enclausurado em sua própria experiência, essa desconexão emocional dos perigos e dos assassinatos lá testemunhados, aprofundam o relato recriado por Spiegelman. MÉTODO A pesquisa teórica deu sustentação ao exame do romance gráfico Maus, mediante a análise das narrativas visual e textual, com predominância da última, devido ao objetivo de investigar o foco narrativo da obra. A seleção das imagens utilizadas no trabalho seguiu o critério da necessidade de demonstrar como alguns aspectos da narrativa textual se construíam na narrativa visual. Além disso, foram consultados referenciais teóricos que permitiram que a investigação fosse realizada, corroborando ou fornecendo embasamento teórico para a pesquisa. RESULTADOS E DISCUSSÃO Spiegelman parece vivenciar um processo catártico enquanto está escrevendo e ilustrando seu livro, pois com as entrevistas com seu pai, Art descobre a história de sua família, 11
  • 12. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 portanto sua gênese, e aproxima-se de Vladek de quem ele sempre foi distante (fato relatado no início da HQ), ou seja, essa autobiografia passa a ser, mais do que uma ponte entre pai e filho, um espelho da vida de Art que o leva a questionar o seu ser e o fazer artístico, conduzindo-o a uma jornada rumo ao autoconhecimento. A auto-análise do ser em Art Spiegelman é o fio condutor do fazer, porque é por ter uma identidade sabidamente fragmentada que Art quer criar sua autobiografia, como uma espécie de acerto de contas com sua história e com a de seus pais. O autor sente-se inferior a seu irmão Richieu, porque enquanto aquele nasceu no pós-guerra, este não sobreviveu ao Holocausto, o que o levou a ser o filho ideal para seus pais, pois se tornou apenas uma lembrança e uma “grande foto meio apagada”, na parede do quarto de seus pais – “Dá medo ter ciúmes de um irmão que é só uma foto” (2007, p. 175). O fazer se dá pelo desejo inicial de Art de construir um livro que contasse a história de sobrevivência de seu pai. Para transformar esse relato em quadrinhos Art Spiegelman opta pela antropomorfização parcial, ou seja, retrata todas as personagens com a cabeça de um animal, mas com corpos humanos. Para isso decidiu que cada povo, cada etnia, deveria ser um espécie diferente. A metáfora mais óbvia foi também a mais adequada – os judeus são ratos e os alemães são gatos. O autor de Maus não lançou mão da tão conhecida metáfora apenas porque é senso comum que os gatos perseguem os ratos. Segundo Paulo Pato (2007, p. 126), Spiegelman opta por essa metáfora porque os nazistas se referiam aos judeus como ratos e também porque ela representa a eterna luta do mais fraco contra o mais forte, o que demonstra que, nessa HQ, as personagens afastam-se da iconicidade, pois desempenham uma função simbólica. Maus possui um evidente recorte semiótico, pois cada personagem assume um papel determinado no universo da trama, em que a imagem representada é vista como reflexo ou expressão de um contexto histórico e social, representando os conflitos ocorridos na II Guerra Mundial e, particularmente, no Holocausto, que demonstram, na perspectiva bakhtiniana, “um vasto espaço de luta entre as vozes sociais”. [...] toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade (BAKHTIN, 2004, p. 31). Justificando a escolha pela antropomorfização, Tabachnick (1993, p. 158) explica que Spiegelman achou que um estilo realista, ilustrando pessoas ao invés de animais, seria injusto, pois ele não viveu a história contada, o que faria com que ele não a retratasse com autenticidade; além disso, Spiegelman receou que, retratando todos como humanos, passaria a impressão de um panfletário “lembre-se dos seis milhões de judeus mortos no 12
  • 13. Universidade Presbiteriana Mackenzie Holocausto”. Então, optou pela antropomorfização. O quadrinista declarou também que a antropomorfização passava a idéia de que os humanos foram rebaixados à condição dos animais, além de o Holocausto ter sido um episódio terrível demais para ser reproduzido sem máscaras. A metáfora proposta por meio da antropomorfização transcende a ilustração das personagens como animais e alcança o ato da nominação. Spiegelman escolheu como título da obra o nome Maus9, que, traduzido do alemão, quer dizer rato. Ao entrarmos no livro, percebemos que o autor manteve a metáfora inclusive nos títulos de alguns capítulos, como, por exemplo, o quinto capítulo da primeira parte que se chama “Buraco de ratos”; o capítulo seguinte, “A ratoeira” e, por fim, o primeiro capítulo da segunda parte, “Mauschwitz”. Ainda sobre o fazer de Spiegelman, há um quadrinho em que a antropomorfização e a metacomic se encontram, levando ao máximo as duas categorias, pois o narrador- protagonista se questiona sobre como representar sua esposa, Françoise, que é uma francesa convertida ao judaísmo. O questionamento se dá tanto na esfera textual, quanto na pictórica. Segundo Pato (2007, p. 128-129), as escolhas de animais para simbolizar as diferentes nacionalidades [...] deixam transparecer uma dinâmica de referências e contrastes em relação aos vários discursos ideológicos historicamente construídos pelas nacionalidades, demonstrando que as imagens precisam ser vistas a partir de um contexto de um processo discursivo e não mimético – neutro e transparente. Na figura 8 (abaixo), Françoise já aparece retratada como rata, mas vemos Art experimentando outros animais para ela, pois, Spiegelman não deseja criar um retrato de sua esposa, e sim instituir um símbolo que representasse mais do que sua esposa, os franceses, considerando, para tanto, os longos anos de anti-semitismo que existiram na França. Ao contrário, Françoise deseja ser retratada de forma que mantenha sua individualidade, repudiando ser enquadrada em um estereótipo, porque deseja manter sua história, independentemente da história da França. Nessa perspectiva, podemos considerar que, em se tratando de dialogismo, [...] a posição da qual se narra e se constrói a representação ou se comunica algo deve nortear-se em face de um universo de sujeitos isônomos, investidos de plenos 9 Uma curiosidade sobre o título da obra é que, apesar de ela ter sido traduzida para cerca de 30 línguas, o título continua sendo Maus em todas, não tendo sido nunca traduzido. (COZER, Raquel. “Desenhar é sempre uma luta”, diz Art Spiegelman. Folha Online. São Paulo, 01 dez. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u659470.shtml>. Acesso em: 20 ago. 2010). 13
  • 14. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 direitos, um mundo de consciências individuais caracterizado por forte grau de autonomia e vida própria, pois a consciência do autor não transforma a consciência dos outros – das personagens – em objetos de sua própria consciência e de seu discurso [...]. (BEZERRA, 2005, p. 195). Figura 8: Antropomorfização e metacomic se confluem em um quadro para sanar a dúvida “Como desenhar Françoise?” (2007, p. 171) Para retratar o disfarce de um judeu em um polonês e reforçar a relação simbólica entre as representações das nacionalidades e as faces de animais, Spiegelman brinca com sua própria metáfora e, para isso, coloca uma máscara de porco no rato. Dessa forma, ele torna a diferença evidente e, para Vladek se disfarçar de polonês com sucesso, faz uso desse artifício externo, a máscara, o que acaba por ser mais uma bem sucedida ironia do quadrinista judeu naturalizado americano. 14
  • 15. Universidade Presbiteriana Mackenzie Figura 9: Art se vale de uma máscara de porco para disfarçar as diferenças fenotípicas dos judeus e dos demais, no caso, dos A antropomorfização de Spiegelman ao visar o rebaixamento do homem à condição de animal irracional objetiva elucidar a sordidez do que foi o Holocausto para Vladek Spiegelman, destruindo a idéia de que a representação da personificação dos animais constitui uma fábula. Spiegelman produz, dessa forma, um texto sincronizado com as imagens relatando a maior barbárie do século XX, porém em quadrinhos, o que o leva a questionar a validade de sua criação, expondo mais uma vez sua identidade ainda fragmentada. No segundo capítulo do segundo livro de Maus, Spiegelman prossegue com a fragmentação do eu, iniciando uma concatenação de idéias que funde a morte do pai, com sua estadia em Auschwitz, com a realização do livro, com a vida pessoal de Artie, com o Holocausto e o sucesso da graphic novel. Como Spiegelman faz ao longo de todo o livro, as narrativas visual e textual caminham juntas. Sendo assim, temos nessa cena um Art Spiegelman humano, vestindo uma máscara de rato, cercado por moscas, debruçado em sua mesa de desenho. O último quadrinho da página nos mostra o porquê das moscas: Art está em cima de um monte de corpos de judeus mortos. O sucesso do livro em torno da temática do Holocausto deprime o autor-narrador que já não sabe mais o motivo de ter feito seu livro e se sente mais um a tratar do genocídio dos judeus e ganhar notoriedade com isso, o responsável por tornar a tragédia de sua família em um sucesso de público e crítica – Spiegelman demonstra que o seu eu é, na verdade, um constante conflito entre o ser e o fazer, constituindo uma identidade fragmentada porque incapaz de lidar, no presente, com o passado seu, de seu povo e de sua família. Já, no caso de Vladek, ele expõe, ao longo da narrativa, sua fragilidade com relação às suas memórias por meio da tentativa de esquecê-las. Por isso queima os diários de Anja num momento de muita tristeza: “Depois que Anja morre tive que fazer ordem em tudo... Esses papéis tinha memória demais. Queimei.” (SPIEGELMAN, 2007, p. 161). Ele também conta, ao ser indagado por Artie se ele ainda guardava alguma carta trocada com um francês com 15
  • 16. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 o qual ele ficou preso, que as queimou junto com os cadernos de Anja e explica tristemente que “tudo coisas do guerra tentei tirar do cabeça para sempre... Até você reconstruir isso tudo com suas perguntas” (SPIEGELMAN, 2007, p. 258). Aqui, o emprego do verbo “reconstruir” é revelador na fala de Vladek, pois este acredita ter destruído todas as memórias de suas vivências do Holocausto quando, em um ato único, queima os cadernos e as cartas com as memórias dos fatos e pessoas desse período; também acredita que é Artie através de suas perguntas quem reconstrói as lembranças da guerra, como se essas fossem dissociáveis dele. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, para Vladek, o testemunho, ainda que fragmentado, limitado, paradoxal, é uma forma de reviver o passado, mesmo que de forma fragmentária e imperfeita. É por meio do relato de Vladek que temos uma narrativa que constrói a figura do herói épico. Spiegelman alcança essa construção ao ilustrar a história de sobrevivência de seu pai, mas não de uma sobrevivência ordinária, e sim de uma sobrevivência ao maior genocídio da história. Vladek representa a síntese entre a subjetividade da história individual e o sentido épico da história coletiva. A passagem do plano exclusivamente individual para a esfera do coletivo dá-se por meio de uma peripécia que é a instauração do regime nazista. A partir daí, a personagem se revela um novo homem, pois passa a lutar pelo bem comum – apesar de aparentemente se tratar de uma luta pela sobrevivência do indivíduo Vladek, este se apóia e ajuda outros judeus nessa luta de um povo contra um regime autoritário – com as armas de um herói extraordinário, ou seja, pela sapiência, pela inteligência, pela capacidade de argumentar (e no caso específico de Vladek, pelo seu conhecimento básico de língua inglesa). Este, ao sobreviver ao Holocausto, não representa um indivíduo sobrevivente, mas a vitória do povo judeu, no aspecto tocante à judeidade, ao nazismo, representando, portanto, não mais um herói qualquer, mas um herói coletivo, porque portador dos anseios e valores de um povo, de uma cultura. Esse herói épico, que enfrentou Auschwitz e superou Hitler, encerra seu relato biográfico da guerra de forma ingênua e frágil, dizendo, após seu reencontro com Anja, “Mais, não precisa contar. Nós foi muito feliz, e vive feliz, feliz para sempre” (SPIEGELMAN, 2007, p. 296), Spiegelman demonstra que seu pai edita e altera suas memórias, na medida em que molda certos relatos e lembrança de forma equivocada. Dizemos ingênua porque Spiegelman nos deixa saber que Anja nunca superou o que testemunhou nos campos de concentração, tanto que cometeu suicídio em 1968. 16
  • 17. Universidade Presbiteriana Mackenzie Após uma pausa, Vladek pede para que a gravação seja encerrada e diz: “Estou cansado de falar, Richieu. Chega de histórias por hoje...” (SPIEGELMAN, 2007, p. 296). Com essa frase dita por Vladek, Spiegelman corrobora a idéia de imperfeição da memória diante da convalescença do pai, da passagem do tempo e do trauma do que foi vivenciado nos campos nazistas. Parece que os narradores, Vladek e Art, não mais conseguiriam buscar uma lógica de discurso capaz de narrar os horrores que nem as palavras nem a memória conseguiriam reviver de forma coerente. Vladek não se constitui um eu fragmentado, como Art, mas constitui um eu destruído pelo horror da guerra que, mesmo depois de ter acabado, tirou as vidas daqueles que não puderam suportar as memórias. CONCLUSÃO Após a realização da pesquisa, concluímos que o metacomic e a antropomorfização foram os aspectos mais estudados, porque eles revelam a subjetividade do processo de criação elaborado por Spiegelman, demonstrando uma riqueza antropológica tanto na esfera textual, quanto na gráfica, característica das graphic novels. Por meio da análise do foco narrativo de Maus, objetivou-se construir a compreensão da identidade que emerge nessa narrativa dialógica e polifônica, chegando a um entendimento do sujeito que mediante a forma atinge a esfera da representação social do drama vivido pelo povo judeu no Holocausto e dos reflexos dessa tragédia nos sobreviventes e em seus descendentes. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. _________ (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. COZER, Raquel. “Desenhar é sempre uma luta”, diz Art Spiegelman. Folha Online. São Paulo, 01 dez. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u659470.shtml>. Acesso em: 20 ago. 2010 17
  • 18. VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. Tradução Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ___________. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. Tradução de Leandro Luigi Del Manto. 2. ed. São Paulo: Devir, 2008. KIRSCHNER, Ernst-Ludwig. Auto-retrato. Disponível em: < http://artemodernafavufg.blogspot.com >. Acesso em: 20 nov. 2010. LEITE, Ligia Chiappini M. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 2002. LUNA, Pedro de. Art Spiegelman abre seu baú. JB Online, Rio de Janeiro, 28 mar. 2008. Disponível em: < http://www.jblog.com.br/quadrinhos.php?itemid=7844>. Acesso em: 10 out 2009. PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. PATO, Paulo Roberto G. Histórias em quadrinhos: uma abordagem bakhtiniana. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007. REAME; YANAZE; REGIS, 2005, p. 2-3. Disponível em: < http://www.fanboy.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=666>. Acesso em: 10 out 2009. ROUDINESCO, Elizabeth. Retorno à questão judaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. SCHWEIGHÖFER, Kerstin. Conferência na Holanda debateu o que é genocídio. Deutsch Welle, Alemanha, 09 dez. 2008. Disponível em: < http://www.dw- world.de/dw/article/0,,3860170,00.html>. Acesso em: 18 nov. 2010. SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. Tradução Antonio de Macedo Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. TABACHNICK, Stephen E. Of Maus and memory: the structure of Art Spiegelman’s graphic novel of the Holocaust. Word & Image. s/l, v. 9, n. 2, p. 154-162, 1993. TODOROV, Tzevetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Debates, 14). Contatos: renataminami@yahoo.com.br e aurora.pos@mackenzie.br 18