1. A poesia épica clássica
Na poesia épica clássica surge, como eixo fundamental, o tema da viagem.
Assume formas diversas (aos Infernos, por mar, ao interior de si e dos outros).
A Odisseia de Homero e a Eneida de Virgílio narram as viagens de regresso
de Tróia. A primeira de Ulisses, o herói grego que aspira – após a vitória sobre os
troianos – a regressar à sua Ítaca e a Penélope. A segunda de um vencido, Eneias,
para um recomeço e uma nova fundação – a de Roma.
Em ambas as viagens, os heróis se defrontam com inúmeros perigos, um
deles, e os das violentas tempestades.
Existem várias traduções para português, destacamos a de Frederico
Lourenço na Livros Cotovia (Odisseia de Homero). Este tradutor efectuou uma
adaptação para jovens. A Eneida de Virgílio foi traduzida recentemente por Luís
Cerqueira e Outros e editada pela Bertrand Editores.
B – texto de F. Lourenço:
“Trata-se, portanto, de um herói mais “humano”, mais perto de nós que o
colérico e sanguinário Aquiles, ou que o piedoso e cumpridor Eneias. Ulisses
mente, mata, sobrevive; abraça as múltiplas experiências que vêm ao seu
encontro; conhece o canto das Sereias e o leito de Circe; desce ao mundo dos
mortos e recebe, mais tarde (ou mais cedo, pela ordem por que nós lemos a
história), a oferta de nunca morrer: mas, essencialmente, é uma figura a quem as
circunstâncias, e não a sua própria natureza, conferem uma dimensão heróica. É
na superação desesperada dos perigos, nas ameaças que lhe surgem na luta pela
sobrevivência, que nos identificamos com ele – e isto de uma maneira primária,
inexplicável, que determina porque se tenha sempre projectado em Ulisses a
essência do Homem Mediterrânico, logo, pela cultura, do Homem Ocidental.
Daí que se encontrem novos Ulisses em todo o tipo de narrativa posterior,
desde a literatura ao cinema. E aqui não é só a Os Lusíadas ou a Ulysses de James
Joyce que me quero referir. Ulisses é a matriz de grande parte das narrativas
modernas de consumo rápido, quer falemos de Indiana Jones ou de ficção
científica. Aliás, o autor espanhol Arturo Pérez-Reverte chegou a justificar o seu
estatuto de bestseller internacional dizendo que “a história que eu queria contar
era a história de Ulisses. Todas as minhas personagens são Ulisses, são todos
soldados perdidos em território inimigo e num mar hostil”(Público, Suplemento
Mil Folhas, 2-11-2002).”
Homero, Odisseia, (tradução de Frederico Lourenço), introdução, Lisboa: Livros Cotovia, 2004, p.
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... a narração das viagens de Ulisses pelo próprio, uma opção de eficácia
espantosa, a que Virgílio e Camões não haveriam de permanecer insensíveis.
Homero, Odisseia, (tradução de Frederico Lourenço), introdução, Lisboa:
Livros Cotovia, 2004, p. 19 (observação de F Lourenço sobre a narração de
Ulisses e do aedo Demódoco ao rei dos Feaces nos cantos VII,VIII e IX da
Odisseia)
2. Excerto da Odisseia:
Entre eles quem falou primeiro foi Arete de alvos braços:
reconhecera a capa e a túnica, assim que olhara para as belas
roupas de Ulisses, pois com as suas servas ela própria as tecera.
Então falando dirigiu-lhe palavras apetrechadas de asas:
“Estrangeiro, deixa-me colocar-te primeiro esta pergunta.
Quem és tu? E quem te ofereceu as roupas que vestes?
Não disseste que foi vagueando pelo mar que aqui chegaste?
Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
“seria difícil, ó rainha, narrar os males de modo contínuo,
visto que os deuses celestes mos deram prodigamente.
Mas responderei àquilo que interrogas e perguntas.
Ogígia é uma ilha lá longe no meio do mar.
Aí vive a filha de Atlas, a ardilosa Calipso
de belas tranças, terrível deusa. Nenhum dos deuses
com ela se relaciona, nem nenhum dos homens mortais.
Mas o destino me levou até à lareira da deusa, sozinho;
Pois com o seu relâmpago incandescente Zeus me atingira
a nau veloz, e a estilhaçara no meio do mar cor de vinho.
Foi então que pereceram todos os valentes companheiros,
mas eu fiquei agarrado à quilha da nau recurva e fui levado
durante nove dias. Quando sobreveio a décima noite negra,
fizeram os deuses que eu chegasse à ilha de Ogígia, onde vive
Calipso de belas tranças, terrível deusa. Ela acolheu-me;
com gentileza me estimou e alimentou. Prometeu-me
a imortalidade, para que eu vivesse isento de velhice.
Mas nunca convenceu o coração dentro do meu peito.
Aí fiquei durante sete anos, e sempre humedecia
3. com lágrimas as vestes imortais que me dera Calipso.
Mas quando, volvido o seu curso, chegou o oitavo ano,
foi então que ela me ordenou e incitou a partir,
ou por ordem de Zeus, ou porque assim ela pensara.
Mandou-me embora numa jangada bem atada, e deu-me
muitas coisas: pão, vinho doce, e vestes imortais.
Fez soprar um vento favorável, suave e sem perigo.
Durante dezassete dias naveguei sobre o mar;
No décimo oitavo dia apareceram as montanhas sombrias
da vossa terra: alegrou-se à sua vista o coração deste homem
malfadado: pois na verdade eu estava prestes a sofrer algo
de terrível que contra mim mandara Posídon, Sacudidor da Terra.
Agitou os ventos, assim atacando o meu percurso; encrespou
o mar de modo indizível, a ponto das ondas não deixarem
que eu fosse levado, gemendo sem cessar, pela jangada,
que seria despedaçada pela tempestade. Mas eu atravessei
a nado o grande abismo do mar, até que atingisse
a vossa terra, levado pelo vento e pelo mar.
Mas ao tentar sair da água, as ondas atiravam-me contra a costa,
contra os grandes rochedos, sítio que nada tinha de aprazível.
Recuei e pus-me de novo a nadar, até que cheguei
a um rio, que me pareceu o melhor sítio:
livre de rochas; abrigado do vento.
Reunindo todas as minhas forças, saí da água, e logo
sobreveio a noite imortal, Afastando-me do rio pelo céu
alimentado, deitei-me num canavial, pondo folhas
por cima do corpo, e sobre mim derramou o deus um sono
sem limites.
Homero, Odisseia, (tradução de Frederico Lourenço), introdução, Lisboa: Livros Cotovia, 2004,
Canto VII, 233-283