Relatório Final Comissão Nacional da Verdade - Mortos e desaparecidos 1970 1971
Lesão por inalação de fumaça: mecanismos e tratamento
1. Jornal Brasileiro de Pneumologia 30(6) - Nov/Dez de 2004
Lesão por inalação de fumaça*
Smoke inhalation injury
ROGÉRIO SOUZA (TE SBPT) , CARLOS JARDIM, JOÃO MARCOS SALGE (TE SBPT) ,
CARLOS ROBERTO RIBEIRO CARVALHO (TE SBPT)
A lesão inalatória é hoje a principal causa de morte nos Inhalation injury is the main cause of death in burn
pacientes queimados, motivo pelo qual se justifica o grande patients and has therefore, understandably, been the
número de estudos publicados sobre o assunto. Os mecanismos subject of numerous published studies. The pathogenesis
envolvidos na gênese da lesão inalatória envolvem tanto os of inhalation injury involves both local and systemic
fatores de ação local quanto os de ação sistêmica, o que mechanisms, thereby increasing the repercussions of the
acaba por aumentar muito as repercussões da lesão. injury. The search for tools that would allow earlier
Atualmente, buscam-se ferramentas que permitam o diagnosis of inhalation injury and for treatment strategies
diagnóstico cada vez mais precoce da lesão inalatória e ainda to lessen its deleterious effects is ongoing. In this review,
estratégias de tratamento que minimizem as conseqüências we describe the physiopathological mechanisms of
da lesão já instalada. Esta revisão aborda os mecanismos inhalation injury, as well as the current diagnostic tools
fisiopatológicos, os métodos diagnósticos e as estratégias de and treatment strategies used in patients suffering from
tratamento dos pacientes vítimas de lesão inalatória. Ressalta inhalation injury. We also attempt to put experimental
ainda as perspectivas terapêuticas em desenvolvimento. therapeutic approaches into perspective.
J Bras Pneumol 2004; 30(5) 557-65.
Descritores: Lesão por inalação de fumaça/diagnóstico. Key words: Smoke inhalation injury/diagnosis. Smoke
Lesão por inalação de fumaça/fisiopatologia. Lesão por inhalation injury/pathophysiology. Smoke inhalation injury/
inalação de fumaça/complicações. Queimaduras por complications. Burns, inhalation/therapy. Review literature.
inalação/terapia. Literatura de revisão. Intoxicação por Carbon monoxide. Poisoning/complications.
monóxido de carbono/complicações.
* Trabalho realizado na Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, FMUSP, São Paulo, SP.
Endereço para correspondência: Rogério Souza. R. Afonso de Freitas 556, CEP 04006-052 – São Paulo, SP. Tel: 55-11-3889 7426.
Email: rgrsz@uol.com.br
Recebido para publicação, em 28/4/03. Aprovado, após revisão, em 20/2/04.
557
2. Souza, Rogério et al.
Lesão por inalação de fumaça
INTRODUÇÃO superiores, enquanto que partículas com menos
A lesão inalatória é o resultado do processo de um micrômetro podem atingir os sacos
inflamatório das vias aéreas após a inalação de alveolares. O aumento do fluxo aéreo determinado
produtos incompletos da combustão e é a principal pela taquipnéia também pode levar ao aumento
responsável pela mortalidade (até 77%) dos da taxa de deposição de partículas nas vias aéreas
pacientes vítimas de queimaduras(1, 2). Cerca de mais distais(6).
33% dos pacientes com queimaduras extensas Os gases são divididos em duas categorias, de
apresentam lesão inalatória e o risco aumenta acordo com o mecanismo de lesão: irritantes e
progressivamente com o aumento da superfície asfixiantes. Os gases irritantes causam lesão na
corpórea queimada. A presença de lesão inalatória, mucosa através de reações de desnaturação ou
por si, aumenta em 20% a mortalidade associada oxidação. Podem causar broncoespasmo,
à extensão da queimadura(3). Nos últimos anos traqueobronquite química e até mesmo edema
houve um crescente entendimento dos mecanismos pulmonar. O local de ação dos gases irritantes depende
fisiopatológicos relacionados à lesão inalatória, o em grande parte de sua solubilidade em água. Os
que vem permitindo abordagens cada vez mais gases mais solúveis como a amônia e o dióxido de
particularizadas. enxofre geralmente provocam reações nas vias aéreas
superiores, provocando sensação dolorosa na boca,
nariz, faringe ou mesmo nos olhos. De modo
PRODUÇÃO E CONSTITUIÇÃO DA contrário, os gases pouco solúveis são responsáveis
FUMAÇA pelas lesões mais distais nas vias aéreas e, por serem
A fumaça é a mistura de gases e partículas em pouco irritantes para as vias aéreas superiores, podem
suspensão resultantes da queima de qualquer permitir exposição oligossintomática, aumentando a
combustível. A produção de fumaça depende de chance e a extensão da lesão parenquimatosa. Os
dois processos: pirólise e oxidação. A pirólise é o gases asfixiantes são definidos como aqueles que
fenômeno de liberação de elementos do retiram oxigênio do ambiente. A retirada de oxigênio
combustível causada exclusivamente pela ação do ocorre tanto pela diminuição da fração de oxigênio
calor, através do derretimento ou fervura. A do ar inspirado, como por qualquer outro mecanismo
oxidação é o processo em que o oxigênio reage que impeça a captação e distribuição de oxigênio
quimicamente com moléculas do combustível pelo sistema cardiovascular. Assim, são considerados
quebrando-as em compostos menores que asfixiantes tanto o dióxido de carbono, que diminui
resultam na produção de luz e calor. Como a fração de oxigênio do ambiente, quanto o monóxido
produtos resultantes da oxidação podemos citar de carbono, cuja ligação com a hemoglobina diminui
o monóxido de carbono (CO), dióxido de a oferta de oxigênio aos tecidos(6, 7).
nitrogênio (NO2) e dióxido de enxofre (SO2), além
do carbono elementar. A predominância de um
ou outro processo, além da temperatura, ventilação, MECANISMOS DE LESÃO
e do tipo de material queimado no ambiente levam Para facilitar a compreensão, tanto do quadro
à produção de uma grande quantidade de clínico, quanto do tratamento, após o
elementos constituintes da fumaça, cada qual com esclarecimento dos componentes da fumaça, são
sua toxicidade e mecanismo de lesão peculiar(4, 5). apresentados os quatro mecanismos responsáveis
Os constituintes da fumaça podem ser divididos pela lesão inalatória:
em dois grupos: material particulado e gases. Tanto
um como o outro produzem lesões nas vias aéreas, LESÃO TÉRMICA DIRETA
mas por mecanismos e em territórios diferentes.
A ação decorrente da temperatura da fumaça
O material particulado pode levar à obstrução
inalada raramente provoca lesões nos territórios
das vias aéreas por efeito direto de deposição e
abaixo da laringe. Apesar de ter alta temperatura,
pela indução de broncoespasmo. De acordo com
a fumaça tende a ser seca, o que diminui muito o
o tamanho da partícula, a região de depósito é
potencial de troca de calor. Além disso, as regiões
diferente: partículas maiores que cinco
supralaríngeas têm grande capacidade de troca de
micrômetros tendem a se depositar nas vias aéreas
calor, já que as mucosas encerram grande
558
3. Jornal Brasileiro de Pneumologia 30(6) - Nov/Dez de 2004
quantidade relativa de água. As lesões em vias 250 vezes maior que a do oxigênio. A produção de
aéreas superiores são caracterizadas pela presença carboxihemoglobina, complexo extremamente
de eritema, edema e ulcerações de mucosa, estável, além de causar um decréscimo na saturação
podendo haver sangramento local ou mesmo de oxihemoglobina, causa um desvio da curva de
obstrução da área acometida(8-10). dissociação para a esquerda, diminuindo a liberação
de oxigênio aos tecidos. Além disso, a inibição
competitiva com os sistemas da citocromo oxidase,
INALAÇÃO DO GÁS HIPÓXICO principalmente a do P-450, impede o uso do
Durante a combustão, a concentração de oxigênio para geração de energia. O monóxido de
oxigênio cai progressivamente até o momento em carbono liga-se também à mioglobina, prejudicando
que o fogo se extingue, pelo próprio consumo o armazenamento de oxigênio nos músculos(14-16).
gerado pela combustão. Dependendo do tipo de A toxicidade do cianeto é causada pela inibição da
combustível, o momento de extinção do fogo oxigenação celular, o que causa anóxia tecidual pela
varia. A maior parte do fogo decorrente da inibição reversível das enzimas citocromo oxidase (Fe3+).
combustão de derivados de petróleo se extingue A inibição da via glicolítica aeróbia desvia o metabolismo
em frações de oxigênio entre 13% e 15%, para a via anaeróbia alternativa, produzindo então o
enquanto componentes que contenham oxigênio acúmulo de sub-produtos ácidos(17, 18).
podem permitir a combustão até frações inspiradas O tipo de exposição, o tempo, ou ainda a
menores que 10%. Essa diminuição da fração predominância de um ou mais desses mecanismos
inspirada de oxigênio faz com que as vítimas determinam diferentes evoluções da lesão
passem a referir dispnéia e tontura, que podem inalatória. Na Figura 1 podemos observar a
evoluir para confusão mental, torpor, coma e até evolução dos fenômenos relacionados à lesão
mesmo óbito, em frações ao redor de 5%, inalatória nos diferentes territórios do sistema
consideradas incompatíveis com a vida(11). respiratório frente a diferentes exposições.
TOXINAS LOCAIS DIAGNÓSTICO DA LESÃO INALATÓRIA
Dentre os vários componentes da fumaça, Apresentação clínica
podem causar lesão direta nas vias aéreas a
acroleína, formaldeídos, dióxido de enxofre e Além da história de exposição à fumaça em
dióxido de nitrogênio. A ação lesiva decorre de ambiente fechado, vários sinais e sintomas devem
um processo inflamatório agudo, mediado por levar à suspeita clínica de lesão inalatória(19). Os
polimorfonucleares, principalmente neutrófilos. mais importantes são listados na Tabela 1.
Esse processo pode gerar sintomas, apenas 24 Alguns achados devem levar à suspeita de
horas após a exposição, provocando alterações intoxicação por alguma substância em particular.
de permeabilidade capilar, de fluxo linfático e O monóxido de carbono, por exemplo, tem
de clareamento muco-ciliar, e pode ainda predileção por atingir o sistema nervoso central e
determinar o aparecimento da síndrome de o coração. Portanto, a exposição a este agente pode
desconforto respiratório agudo e de infecções levar a sintomas de cefaléia, alterações visuais e
secundárias (12, 13). confusão mental, e pode evoluir para taquicardia,
angina e arritmias, ou ainda convulsão ou coma.
A busca ativa por intoxicações relacionadas à
TOXINAS SISTÊMICAS lesão inalatória tem particular importância quando
Dois gases têm particular importância, dentre existe o acometimento do sistema nervoso central.
as substâncias de efeito sistêmico, pela alta morbi- Sempre que possível, devem ser pesquisados
mortalidade a que estão associados: o monóxido marcadores sangüíneos ou urinários. No caso do
de carbono e o cianeto. monóxido de carbono, por exemplo, em que os
A intoxicação por monóxido de carbono é uma níveis séricos de carboxihemoglobina podem ser
das causas mais freqüentes de óbito nos pacientes dosados, caracterizando a intoxicação, o
submetidos a lesões inalatórias. Ele possui grande diagnóstico é feito facilmente, desde que a suspeita
afinidade pela hemoglobina, podendo ser de 200 a tenha sido elaborada em vista do quadro
559
4. Souza, Rogério et al.
Lesão por inalação de fumaça
Exposição curta Exposição prolongada
Altas temperaturas Baixas temperaturas
Gases solúveis Gases pouco solúveis
Sintomas precoces Sintomas tardios
Acometimento de Acometimento de região
região supra-glótica traqueo-brônquica
Laringoespasmo Broncoespasmo Edema pulmonar
Edema de vias aéreas Deposição de fuligem Colapso alveolar
superiores
Aumento do
risco de pneumonia Precoce
Tardio
Obstrução de vias aéreas Síndrome da angústia
respiratória aguda
Distúrbio ventilação / perfusão
Risco aumentado de barotrauma
Figura 1 – Evolução da lesão por inalação de fumaça de acordo com a exposição predominante
560
5. Jornal Brasileiro de Pneumologia 30(6) - Nov/Dez de 2004
Broncoscopia
TABELA 1 O exame das vias aéreas superiores e da traquéia
Características clínicas da lesão inalatória é que permite o diagnóstico de lesão inalatória. Os
sinais mais sugestivos de lesão inalatória são a
Sinais Sintomas presença de edema ou eritema, com ulcerações nas
Queimadura de face / Tosse produtiva vias aéreas inferiores ou ainda presença de fuligem
cavidade oral em ramificações mais distais. A ausência destes
Vibrissas chamuscadas Rouquidão
sinais, porém, deve sempre ser analisada tendo-se
Escarro com fuligem ou Dispnéia
escarro abundante em vista o estado hemodinâmico do paciente, uma
Conjuntivite Sibilos vez que pacientes ainda não ressuscitados
Desorientação / coma Lacrimejamento volemicamente podem não apresentar áreas de
Estridor laríngeo eritema ou edema visíveis ao exame broncoscópico
Desconforto respiratório inicial. Com essa ressalva, o exame broncoscópico
tem aproximadamente 100% de acurácia no
diagnóstico de lesão inalatória instalada(21, 22).
clínico. Nas situações em que o diagnóstico não A avaliação cuidadosa das vias aéreas superiores,
possa ser adequadamente realizado através de principalmente nos pacientes sem evidência de lesões
marcadores, seja pela inexistência de padronização mais distais, é de significativa importância durante o
ou pela sua baixa disponibilidade, como no caso exame broncoscópico, pois a presença de edema
da intoxicação por cianeto, institui-se tratamento acentuado na região supraglótica, ou mesmo de
presuntivo baseando-se na suspeita clínica(15). grande quantidade de secreção alta, pode identificar
pacientes com maior risco de obstrução aguda de
Exames de imagem vias aéreas, sendo um dos indicadores de intubação
Inicialmente, a maioria dos pacientes apresenta precoce nos pacientes com suspeita de lesão de vias
radiograma simples de tórax normal, o que faz com aéreas. Deve-se ressaltar porém, que o exame das
que esse exame tenha baixo valor preditivo no vias aéreas superiores não exclui a necessidade de
diagnóstico da lesão inalatória aguda. Já o achado avaliar as inferiores, uma vez que o acometimento
de infiltrado radiológico recente, porém, é sinal de destas pode ocorrer independentemente do
lesão inalatória mais acentuada, sendo marcador de acometimento daquelas.
pior prognóstico. O principal papel do radiograma É importante salientar que as alterações
de tórax está na identificação de novos infiltrados anatômicas evidenciadas pelo exame broncoscópico
durante a evolução da lesão inalatória para as fases precedem as alterações na troca gasosa e, mais ainda,
sub-aguda e crônica, ou ainda na identificação de as alterações radiológicas. Por isso é importante a
quadros mais difusos, como a síndrome da angústia avaliação broncoscópica precoce em todos os
respiratória aguda, por exemplo. Devemos lembrar pacientes com suspeita clínica de lesão inalatória(20).
que a fase crônica da lesão inalatória é caracterizada
pelo aparecimento de infecções respiratórias Análise dos gases arteriais
secundárias, daí a importância do seguimento Conforme mencionado anteriormente, a alteração
radiológico dos pacientes para o correto e mais dos gases arteriais pode ocorrer tardiamente à lesão
precoce possível diagnóstico. inalatória, o que torna importante caracterizar o risco
Se levarmos em consideração que a fase de de lesão inalatória pela história clínica, pelos achados
ressuscitação volêmica e a estabilização da de exame físico e pela endoscopia respiratória. Porém,
patência de vias aéreas são os principais pontos ressaltamos aqui a necessidade de se dosar os níveis
do tratamento inicial do grande queimado, de carboxihemoglobina na suspeita de intoxicação
podemos compreender a ausência de estudos por monóxido de carbono(15). Níveis elevados são
significativos sobre o papel da tomografia de diagnósticos de intoxicação. Deve-se lembrar, porém,
tórax na identificação precoce da lesão que esses níveis vão decaindo ao longo do tempo e
inalatória, em virtude da impossibilidade de se com o tratamento, e podem estar normais quando
proceder ao exame em pacientes ainda dosados em ambiente hospitalar, tardiamente à
instáveis (20). exposição, falseando o diagnóstico. Outra
561
6. Souza, Rogério et al.
Lesão por inalação de fumaça
característica da presença de carboxihemoglobina é vias aéreas aumentada, com diminuição do volume
a superestimação da oxigenação através da oximetria expiratório forçado no primeiro segundo e de sua
de pulso. Os oxímetros convencionais não têm relação com a capacidade vital forçada, assim como
capacidade de diferir os comprimentos de ondas do pico de fluxo expiratório, caracterizando a
gerados pela oxihemoglobina daqueles gerados pela obstrução das vias aéreas, e a evidenciação, na curva
carboxihemoglobina, fornecendo, portanto, valores fluxo-volume, da concavidade característica do
falsamente elevados de saturação de hemoglobina padrão obstrutivo, presente tanto pelo acúmulo de
pelo oxigênio(15). fuligem e secreção, quanto pelo edema de mucosa
das vias aéreas.
O aspecto evolutivo da monitoração da função
Radioisótopos
pulmonar permite não apenas a identificação da
O exame de ventilação/perfusão com Xe133
progressão da lesão, mas também a avaliação da
permite a pesquisa de obstrução em pequenas vias
resposta às medidas terapêuticas instituídas
aéreas, não visualizadas pelo exame broncoscópico.
(estratégia ventilatória, terapia farmacológica ou
Análises seriadas são realizadas após a administração
ainda cuidado fisioterápico).
do radioisótopo, a fim de determinar o tempo total
de retenção do radiofármaco no pulmão. Retenções
maiores que 90 segundos, ou ainda uma TRATAMENTO DA LESÃO INALATÓRIA
heterogeneidade significativa na distribuição do
xenônio, são consideradas como diagnósticos de Manutenção das vias aéreas
lesão inalatória(23). A taxa de exames falso-positivos A identificação de pacientes com alto risco para
e falso-negativos é de 8% e 5% respectivamente, obstrução de vias aéreas superiores, somada à
em geral decorrentes de hiperventilação (falso- intervenção precoce nos quadros com lesão já
negativos) ou da presença de atelectasias ou doença instalada, é um dos pontos principais no
pulmonar obstrutiva crônica (falso-positivos)(24). tratamento dos pacientes com lesão inalatória, e
A cintilografia de inalação-perfusão com Xe133 reduz significativamente a mortalidade dos
é reservada a pacientes com alta suspeita clínica mesmos (11, 20) . Sinais clínicos compatíveis com
de lesão inalatória, mas que apresentem radiograma obstrução secundária à lesão de vias aéreas
de tórax e exame broncoscópico normais. superiores, ou ainda evidências broncoscópicas
desse processo, indicam a intervenção precoce.
Testes de Função Pulmonar O uso de cânulas traqueais de grande calibre
Os testes de função pulmonar, embora ilustrativos facilita a higiene brônquica necessária para
quanto à representação fisiopatológica da lesão, têm controlar o grande aumento na quantidade de
papel adjuvante no diagnóstico da lesão inalatória, secreções respiratórias(25). A traqueostomia oferece
principalmente pela dificuldade em sua aplicação. vantagens tanto ao conforto do paciente quanto
Uma série de fatores acaba por determinar a à facilidade na higiene brônquica, porém, segundo
dificuldade na aplicação dos testes, entre eles a estudos recentes, não diminui o tempo de
presença de dor, baixa colaboração do paciente, ventilação mecânica, a incidência de pneumonia
fraqueza muscular e uso de drogas, como sedativos ou mesmo a mortalidade dos pacientes com lesão
e opióides. Esses fatores diminuem acentuadamente inalatória, não estando, portanto, indicada como
a acurácia dos testes de função pulmonar(22). medida terapêutica geral(26).
De forma geral, os achados que caracteristicamente
podem ser evidenciados pelos testes de função Oxigênio
pulmonar são os seguintes: complacências estática e A reversão dos quadros de intoxicação por
dinâmica do sistema respiratório normal nas fases monóxido de carbono constitui o segundo ponto
iniciais da lesão, evoluindo com queda progressiva ao significativo no tratamento do paciente com lesão
longo do seu desenvolvimento, ou ainda, nas fases inalatória. Em todos os casos de suspeita de
crônicas, em que o processo de reparação pode levar intoxicação, está indicado o uso de altas frações de
a quadros restritivos, caracterizados pela queda na oxigênio, mesmo em pacientes oligossintomáticos.
complacência do sistema respiratório; resistência das O papel do oxigênio nesses casos está tanto no
562
7. Jornal Brasileiro de Pneumologia 30(6) - Nov/Dez de 2004
aumento da reserva de troca gasosa do paciente, estratégias que mantenham o pulmão aberto,
revertendo o efeito da inalação do gás hipóxico, propiciando assim melhor clareamento local das
quanto na tentativa de dissociar o monóxido de secreções, assim como otimização das trocas
carbono de seus sítios de ligação. gasosas.
Um dispositivo bastante útil, infelizmente ainda A adequação da estratégia ventilatória é muito
sub-utilizado em nosso meio, é a máscara facial relacionada à fase em que o paciente apresenta
com reservatório de oxigênio. Esse dispositivo pode insuficiência respiratória. Isto porque, nas fases
oferecer altas frações inspiradas de oxigênio que iniciais, em que a lesão direta das vias aéreas, com
podem se aproximar dos 100%. O uso da máscara edema e sangramento, associada ao aumento das
facial é uma medida simples e bastante eficiente secreções e fuligem, constitui o principal
em ofertar altas frações inspiradas de oxigênio sem mecanismo fisiopatológico envolvido, raramente
a necessidade de assistência ventilatória. são necessárias estratégias ventilatórias muito
Pacientes com doença pulmonar obstrutiva agressivas, como, por exemplo, o uso de altos
crônica associada à retenção de dióxido de níveis de pressão expiratória final positiva.
carbono e pacientes comatosos compõem um Já nos quadros iniciais graves ou nas fases
grupo em que a intubação imediata é a alternativa mais tardias, onde claramente o paciente
mais indicada para aumentar a fração inspirada de apresenta o quadro de síndrome de angústia
oxigênio o mais rapidamente possível, sem os respiratória aguda, faz-se necessário o uso de
potenciais efeitos deletérios de uma retenção maior estratégias de recrutamento alveolar, o uso de
de dióxido de carbono. baixos volumes correntes (28) e ainda a associação
de níveis maiores de pressão expiratória final
Suporte ventilatório positiva. O papel de cada uma dessas estratégias
Esse talvez seja um dos campos com maior especificamente na lesão inalatória ainda não
número de estudos clínicos realizados nos últimos foi estabelecido, porém seu uso em outras
anos com relação a pacientes queimados. causas de síndrome da angústia respiratória
Com o advento da ventilação não-invasiva, a
aguda já evidenciou benefícios em estudos
perspectiva de se evitar a intubação tornou-se
clínicos (29, 30) .
extremamente atrativa, principalmente numa
A ventilação de alta freqüência e o uso de óxido
população onde a intubação é um marcador tão
nítrico constituem as perspectivas atuais no suporte
importante de morbi-mortalidade. A presença de
ventilatório invasivo de pacientes com lesão inalatória.
lesões de face, somada ao risco de diminuição da
Estudos experimentais evidenciaram diminuição da
perfusão tecidual nos pontos de apoio dos
progressão da lesão inalatória com o uso do óxido
diferentes tipos de máscara utilizadas durante a
ventilação não-invasiva, limitou o uso prolongado nítrico, enquanto que estudos clínicos mostraram
da técnica, mas não evitou o desenvolvimento de apenas melhora da oxigenação com o uso da
estudos com o seu uso intermitente como forma técnica(31, 32). Da mesma forma, a ventilação de alta
de se manter o recrutamento alveolar e com isso freqüência foi eficaz em melhorar a oxigenação dos
diminuir a necessidade de intubação traqueal. Essa pacientes com lesão inalatória já nas primeiras horas
evidência, por si, já estimula o uso da técnica, pelo após a aplicação da técnica, embora não tenha sido
menos como ferramenta de suporte fisioterápico, suficiente para evidenciar melhora na sobrevida, ou
na manutenção da abertura das pequenas vias mesmo na taxa de infecção associada à ventilação
aéreas e do tecido alveolar. O desenvolvimento de mecânica nessa população de pacientes(33, 34).
novas interfaces para a aplicação da ventilação Embora ainda iniciais, estudos clínicos na
não-invasiva, com menor comprometimento das tentativa de prevenir a intubação, diminuir a
áreas de apoio, vem trazendo ainda mais progressão da lesão inalatória ou ainda acelerar a
perspectivas para o uso prolongado da ventilação resposta à lesão já instalada são, no momento, a
não-invasiva como forma inicial de suporte maior fonte de expectativa para um melhor
ventilatório para pacientes com lesão inalatória(27). tratamento de grandes queimados.
Caso a intubação traqueal se faça necessária, o Antibioticoterapia
suporte ventilatório invasivo deve se basear em O uso precoce de antibióticos, sem evidência
563
8. Souza, Rogério et al.
Lesão por inalação de fumaça
clara de infecção, não aumentou a sobrevida dos deletérios da intoxicação(38, 39).
pacientes e nem foi capaz de diminuir a incidência Alguns antídotos podem ser utilizados na
de pneumonia, considerada a mais freqüente tentativa de limitar os danos da intoxicação por
complicação infecciosa associada à lesão cianeto: nitratos, que promovem a oxidação da
inalatória. Seu uso, portanto, não é indicado(20, 35). hemoglobina transformando-a em metahemoglobina
A incidência maior de infecções respiratórias que, por sua vez, compete com a citocromo oxidase
dá-se por volta do terceiro dia pós-queimadura. A pelo cianeto; tiossulfato de sódio, que na presença
antibioticoterapia deve ser iniciada com base nos da enzima mitocondrial rodanase transfere o enxofre
achados radiológicos, exame de escarro e na para o íon cianeto formando o tiocianato (que é
leucocitose. Quanto mais tardio o início do quadro, excretado pela urina); e hidroxicobalamina, um agente
maior a chance de infecção por agentes Gram- quelante que reage com o cianeto formando a
negativos. Nos casos mais agudos, o predomínio cianocobalamina(40, 41).
é de agentes Gram-positivos. O papel da
broncoscopia com lavado e escovado na
Perspectivas terapêuticas
identificação dos agentes etiológicos, seja
O avanço no tratamento da lesão inalatória
precocemente, seja para a adequação do esquema
talvez venha a ter um impacto tão significativo na
antibiótico introduzido empiricamente, ainda está
evolução do paciente queimado quanto foi a
por ser determinado.
instituição da ressuscitação volêmica,
principalmente com o desenvolvimento de métodos
Medidas específicas de acordo com a fisiopatologia que permitam a modulação da resposta
predominante inflamatória do sistema respiratório.
Para a lesão térmica, a manutenção das vias Várias substâncias evidenciaram potencial
aéreas é o principal tratamento. É conveniente benefício no manuseio de pacientes com lesão
manter a intubação até a reversão documentada inalatória, entre elas as moléculas anti-adesão
do edema de vias aéreas. (bloqueando a aderência de neutrófilos na
Com relação à inalação do gás hipóxico, a microvasculatura pulmonar), inibidores de
retirada do paciente do local do acidente associada leucotrieno, heparina inalatória e antioxidantes(42-
44)
ao uso de altas frações inspiradas de oxigênio , embora estudos clínicos controlados ainda
interrompe a cascata de eventos secundários à sejam necessários para a adoção dessas novas
hipoxemia(11, 13, 20). formas de tratamento na prática clínica.
Quanto à intoxicação por monóxido de carbono, O ponto central na terapêutica dos pacientes
a meia vida da carboxihemoglobina é de 250 vítimas de grandes queimaduras é a compreensão
minutos em ar ambiente (fração inspirada de da grande resposta inflamatória existente, com suas
oxigênio de 0,21) e de 40 a 60 minutos em repercussões pulmonares e sistêmicas como um
pacientes submetidos a fração inspirada de fenômeno global e não como complicações
oxigênio igual a 1. Portanto, todos os pacientes isoladas.
devem receber oxigênio a 100% já a caminho do
hospital. O uso de terapia hiperbárica é ainda REFERÊNCIAS
motivo de controvérsia; a existência de estudos 1. Ryan CM, Schoenfeld DA, Thorpe WP, Sheridan RL,
que não evidenciaram benefício(36) contrapõe-se a Cassem EH, Tompkins RG. Objective estimates of the
probability of death from burn injuries. N Engl J
evidências de que seu uso possa levar à diminuição Med.1998;338:362-6.
de seqüelas neurológicas (37). Outra forma de 2. Darling GE, Keresteci MA, Ibanez D, Pugash RA, Peters WJ,
aumentar a eliminação de monóxido de carbono é Neligan PC. Pulmonary complications in inhalation injuries
através da hiperpnéia isocápnica, que consiste em with associated cutaneous burn. J Trauma. 1996;40:83-9.
3. Shirani KZ, Pruitt BA Jr, Mason AD Jr. The influence of
hiperventilar os pacientes intubados, oferecendo inhalation injury and pneumonia on burn mortality.
uma fonte suplementar de dióxido de carbono com Ann Surg. 1987;205:82-7.
o objetivo de não promover alcalose respiratória 4. Birky MM, Clarke FB. Inhalation of toxic products from
por hipocapnia. A hiperventilação reduz a meia fires. Bull N Y Acad Med. 1981;57:997-1013.
5. Terrill JB, Montgomery RR, Reinhardt CF. Toxic gases
vida da carboxihemoglobina, diminuindo os efeitos from fires. Science. 1978;200:1343-7.
564
9. Jornal Brasileiro de Pneumologia 30(6) - Nov/Dez de 2004
6. Young CJ, Moss J. Smoke inhalation: diagnosis and 2 9 . Amato MB, Barbas CS, Medeiros DM, Magaldi RB,
treatment. J Clin Anesth. 1989;1:377-86. Schettino GP, Lorenzi-Filho G, et al. Effect of a
7. H a p o n i k E F. C l i n i c a l sm o k e i n h a l a t i o n i n j u r y : protective-ventilation strategy on mortality in the acute
pulmonary effects. Occup Med. 1993;8:430-68. respiratory distress syndrome. N Engl J Med.
8. Oldham KT, Guice KS, Till GO, Ward PA. Activation of 1998;338:347-54.
complement by hydroxyl radical in thermal injury. 3 0 . Ventilation with lower tidal volumes as compared with
Surgery. 1988;104:272-9. traditional tidal volumes for acute lung injury and the
9. Haponik EF, Crapo RO, Herndon DN, Traber DL, Hudson acute respiratory distress syndrome. The acute
L, Moylan J. Smoke inhalation. Am Rev Respir Dis. respiratory distress syndrome network. N Engl J Med.
1988;138:1060-3. 2000;342:1301-8.
1 0 . Ward PA, Till GO. Pathophysiologic events related to 31. Sheridan RL, Hurford WE, Kacmarek RM, Ritz RH, Yin
thermal injury of skin. J Trauma. 1990;30:75-9. LM, Ryan CM, et al. Inhaled nitric oxide in burn patients
11 . Weiss SM, Lakshminarayan S. Acute inhalation injury. with respiratory failure. J Trauma. 1997;42:629-34.
Clin Chest Med. 1994;15:103-16. 3 2 . Musgrave MA, Fingland R, Gomez M, Fish J, Cartotto
1 2 . Herndon DN, Traber DL, Niehaus GD, Linares HA, Traber R. The use of inhaled nitric oxide as adjuvant therapy
LD. The pathophysiology of smoke inhalation injury in patients with burn injuries and respiratory failure. J
in a sheep model. J Trauma. 1984;24:1044-51. Burn Care Rehabil. 2000;21:551-7.
1 3 . Demling RH. Smoke inhalation injury. New Horiz. 33. Reper P, Wibaux O, Van Laeke P, Vandeenen D,
1993;1:422-34. Duinslaeger L, Vanderkelen A. High frequency percussive
1 4 . Piantadosi CA. Diagnosis and treatment of carbon ventilation and conventional ventilation after smoke
monoxide poisoning. Respir Care Clin N Am. inhalation: a randomised study. Burns. 2002;28:503-8.
1999;5:183-202. 3 4 . Mehta S, MacDonald R, Hallett DC, Lapinsky SE, Aubin
1 5 . Ernst A, Zibrak JD. Carbon monoxide poisoning. N Engl M, Stewart TE. Acute oxygenation response to inhaled
J Med. 1998;339:1603-8. nitric oxide when combined with high-frequency
1 6 . Seger D, Welch L. Carbon monoxide controversies: oscillatory ventilation in adults with acute respiratory
neuropsychologic testing, mechanism of toxicity, and distress syndrome. Crit Care Med. 2003;31:383-9.
hyperbaric oxygen. Ann Emerg Med. 1994;24:242-8. 3 5 . Bang RL, Sharma PN, Sanyal SC, Al Najjadah I. Septicemia
1 7 . Shusterman DJ. Clinical smoke inhalation injury: a f t e r b u r n i n j u r y : a c o m p a r a t i ve s t u d y. B u r ns.
systemic effects. Occup Med. 1993;8:469-503. 2002;28:746-51.
1 8 . Mayes RW. ACP Broadsheet No 142: November 1993. 36. Scheinkestel CD. Hyperbaric or normobaric oxygen for
Measurement of carbon monoxide and cyanide in acute carbon monoxide poisoning: a randomised
blood. J Clin Pathol. 1993;46:982-8. controlled clinical trial. Med J Aust. 1999;170:203-10.
19. Haponik EF. Clinical and functional assessment. In: Haponik 3 7 . Weaver LK, Hopkins RO, Chan KJ, Churchill S, Elliott
EF, Munster AM, editors. Respiratory injury: smoke inhalation CG, Clemmer TP et al. Hyperbaric oxygen for acute
and burns. New York: McGraw-Hill; 1990. p.137-78. carbon monoxide poisoning. N Engl J Med.
2 0 . Lee-Chiong TL Jr. Smoke inhalation injury. Postgrad 2002;347:1057-67.
Med. 1999;105:55-62. 3 8 . Fisher JA. Isocapnic hyperpnea accelerates carbon
21. Bingham HG, Gallagher TJ, Powell MD. Early monoxide elimination. Am J Respir Crit Care Med.
bronchoscopy as a predictor of ventilatory support for 1999;159:1289-92.
burned patients. J Trauma. 1987;27:1286-8. 3 9 . Takeuchi A. A simple “new” method to accelerate
22. Haponik EF. Acute upper airway injury in burn patients. clearance of carbon monoxide. Am J Respir Crit Care
Serial changes of flow-volume curves and Med. 2000;161:1816-9.
nasopharyngoscopy. Am Rev Respir Dis. 1987;135:360-6. 4 0 . Langford RM, Armstrong RF. Algorithm for managing
2 3 . Agee RN. Use of 133 xenon in early diagnosis of injury from smoke inhalation. BMJ. 1989;299:902-5.
inhalation injury. J Trauma. 1976;16:218-24. 41. Sauer SW, Keim ME. Hydroxocobalamin: improved
2 4 . Lull RJ, Anderson JH, Telepak RJ, Brown JM, and Utz public health readiness for cyanide disasters. Ann Emerg
JA. Radionuclide imaging in the assessment of lung Med. 2001;37:635-41.
injury. Semin Nucl Med. 1980;10:302-10. 42. Tasaki O. Effect of sulfo Lewis C on smoke inhalation injury
2 5 . Heimbach DM, Waeckerle JF. Inhalation injuries. Ann in an ovine model. Crit Care Med. 1998;26:1238-43.
Emerg Med. 1988;17:1316-20. 4 3 . Demling R, LaLonde C, Ikegami K. Fluid resuscitation
2 6 . Saffle JR, Morris SE, Edelman L. Early tracheostomy with deferoxamine hetastarch complex attenuates the
does not improve outcome in burn patients. J Burn lung and systemic response to smoke inhalation.
Care Rehabil. 2002;23:431-8. Surgery. 1996;119:340-8.
2 7 . Smailes ST. Noninvasive positive pressure ventilation 4 4 . Tasaki O, Mozingo DW, Dubick MA, Goodwin CW, Yantis
in burns. Burns. 2002;28:795-801. LD,Pruitt BA Jr. Effects of heparin and lisofylline on
2 8 . Sheridan RL. Permissive hypercapnia as a ventilatory pulmonary function after smoke inhalation injury in
strategy in burned children: effect on barotrauma, an ovine model. Crit Care Med. 2002;30:637-43.
pneumonia, and mortality. J Trauma. 1995;39:854-9.
565