Liberdade
Texto
de
Apoio
Jorge
Barbosa,
2011
APRESENTAÇÃO
Este
texto
analisa
o
conceito
de
liberdade
face
aos
constrangimentos,
à
sociedade
e
às
possibilidades
de
escolha.
Por
outro
lado,
assume,
finalmente,
a
liberdade
como
libertação,
seguindo
a
perspectiva
de
Espinosa.
Introdução
A liberdade ocupa um lugar de primeira grandeza nas reflexões dos filósofos.
Com efeito, ela é o princípio e o fim de toda a filosofia. Que a liberdade se situe
no princípio da filosofia, isso é uma evidência: filosofar é pensar por si
mesmo, isto é, exercer livremente o seu juízo, submeter todas as questões a
um exame livre, recusar qualquer autoridade estranha à razão. A filosofia
certifica a liberdade pelo próprio exercício de pensar. Mas a liberdade não está
só no princípio da filosofia. Ela está também no centro da sua reflexão e dos
seus debates. É que a liberdade é o ideal que a filosofia procura e se propõe, na
prática, realizar.
O facto de a liberdade estar no princípio e no fim de toda a filosofia
testemunha a sua inscrição no coração das preocupações essenciais da
humanidade. Pois para todos os homens a liberdade é encarada como o
primeiro de todos os bens. E se a liberdade é, antes de tudo o mais,
apreendida como uma exigência e um direito inalienável, é porque é ela que
dá sentido e valor à vida humana. “Renunciar à sua liberdade é renunciar à
sua qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos seus deveres”,
escreve Rousseau (Du contrat social, Livre I, ch. IV). É por isso que chega a
ser preferível a morte a uma existência privada de liberdade. A simples
palavra liberdade possui um poder de sugestão e de mobilização extrema.
Ora, é precisamente porque a liberdade possui esse poder que compete à
filosofia a tarefa de a pensar, de submeter a sua existência a exame. Com
efeito, é próprio de um pensamento livre só submeter-se à exigência mais
grandiosa: a exigência da verdade.
Liberdade
e
Constrangimentos
O que é a liberdade? A definição mais geral e mais imediata que pode ser dada
é a de ausência de condicionamentos ou constrangimentos à acção. É livre
aquele que não sofre constrangimentos e não é impedido na sua acção. Neste
sentido muito lato, podemos falar por exemplo de “queda livre” como de uma
queda que obedece à sua própria lei, sem encontrar obstáculos exteriores. “A
liberdade é a ausência de todos os impedimentos da acção, não contidos na
natureza e qualidade intrínseca do agente”, escreve Hobbes (De la liberté et de
la nécessité). É neste sentido que podemos dizer que um homem preso não é
livre de se mover. Pelo contrário, seria absurdo dizer que, uma vez que não
pode voar como um pássaro, o homem não tem liberdade de movimentos.
Podemos, todavia, notar que, precisamente no exercício da sua liberdade, o
homem tem procurado sempre ultrapassar os seus próprios limites. Exemplo
disto mesmo é o mito de Ícaro e todas as companhias de aviação que
negoceiam com esta nossa ambição de superar os nossos próprios limites
naturais. É que, muitas vezes, a liberdade só se revela a si mesma em todo o
seu esplendor através da superação dos obstáculos que encontra e das
interdições que se lhe opõem.
Talvez seja tomando, primeiro, consciência do que não quer que o homem
toma consciência do que quer. Por esta razão, a primeira definição de
liberdade, a sua definição mais simples é uma definição simplesmente
negativa: ser livre é não ser-se impedido de fazer o que se quer.
Os obstáculos que a liberdade encontra, nesta perspectiva, são de dois tipos:
• Uns são naturais;
• Os outros são humanos
Pode acontecer que não possa fazer o que quero porque um obstáculo natural
se me opõe, ou porque alguém me impede. Quero dar um passeio a pé, por
exemplo, mas sou forçado a desistir da ideia, porque uma tempestade
bloqueou a estrada, ou porque alguém me proibiu, por entender que devo
fazer outra coisa. Neste exemplo, pode ver-se que as condicionantes ou
constrangimentos que me são impostos por outrem não produzem o mesmo
efeito sobre a minha liberdade que aqueles que me opõem à natureza. Contra
a natureza, eu posso agir, ou converter o meu projecto inicial num outro, sem
perder a minha liberdade: ficar em casa a ver televisão, por exemplo. Contra a
vontade do outro, não renuncio à minha vontade, mas mantenho-a seja na
revolta ou na submissão. É, por conseguinte, na relação com o outro que a
liberdade se constrói e se problematiza. A minha liberdade – ou a minha não-
liberdade – define-se antes de mais em confronto com a dos outros. É, de
resto, o que originariamente quer dizer a palavra livre: ser livre significou
inicialmente não ser escravo. Por oposição ao escravo, tratado como utensílio
animado, segundo a definição de Aristóteles (Política, Vol. IV), o homem livre
dispõe livremente da sua pessoa e participa, enquanto cidadão, na vida
pública. A liberdade, historicamente, foi sobretudo um estatuto, isto é, uma
condição social e política garantida por um conjunto de direitos e de deveres.
Liberdade
e
Sociedade
A questão da liberdade é um problema para o ser humano, na justa medida
em que vive em sociedade. A minha liberdade acaba onde começa a dos
outros: esta fórmula, por pouco sedutora que seja, coloca o problema da
coexistência das liberdades, mas não a resolve, como muitos ainda pensam.
Na verdade, onde começa a liberdade de uns e onde acaba a dos outros? O que
é que pode fazer fronteira entre a minha liberdade e a do outro? Se todos os
homens nascem livres e iguais em direitos, se não há, por natureza, nem
senhores nem escravos, como proteger a liberdade de uns sem restringir a dos
outros? Rousseau esforçou-se verdadeiramente por responder a esta pergunta
na sua obra O Contrato Social. “Encontrar uma forma de associação que
defenda e proteja de toda a força a pessoa e os bens de cada associado, e,
através da qual, cada um, unindo-se a todos, só obedeça, no entanto, a si
mesmo e se mantenha tão livre quanto antes” (O Contrato social, Livro I, cap.
8), constitui a formulação do problema que encontra a sua solução no
contrato social, através do qual cada um aceita livremente submeter-se à
vontade geral. A liberdade é, então, obediência à lei que promulgamos para
nós próprios, enquanto membros de uma associação de cidadãos livres.
Liberdade, neste sentido, é autonomia.
No entanto, esta perspectiva, por muito sedutora que seja, levanta alguns
problemas e algumas objecções.
Em primeiro lugar, se os homens fizessem sempre aquilo que devem, não
haveria necessidade de leis. A lei contém em si mesma a possibilidade de
transgressão e a necessidade de recurso à força. Perante a hipótese de um
cidadão que se recusasse a obedecer e que tivesse de ser constrangido a
respeitar as leis, Rousseau defende, numa fórmula paradoxal, que teríamos de
o “obrigar a ser livre”, o que significa que, se o constrangimento externo for
legítimo, então não deve ser suprimido. É o que distingue, aliás, o domínio do
direito, do domínio da moral: a obrigação jurídica remete para um
constrangimento externo; a obrigação moral – ou o dever – para um
constrangimento interno. A lei e a sanção que a acompanha são uma condição
de liberdade; mas poderemos dizer que são a mesma coisa? Que a lei é
liberdade?
Em segundo lugar, se é legítimo que a sociedade legitime e regulamente as
liberdades, onde param os limites da sua acção? Será, por exemplo, legítimo
proibir o consumo de produtos tóxicos, se esse consumo não prejudicar
ninguém, a não ser o próprio? A liberdade, numa perspectiva positiva, não
será o poder fazer o que se quer, dentro dos limites do que a lei permite?
Decidir livremente a respeito da condução da nossa vida é uma exigência que,
embora seja historicamente muito recente – pelo menos na sua actual
formulação –, é absolutamente fundamental. O sentido e a dignidade da vida
humana dependem dessa possibilidade.
Escolha
e
Liberdade
A liberdade, para o ser humano, remete, por conseguinte, para o poder de
decidir livremente, para o poder de fazer e de escolher o que se julga ser o
melhor. A espontaneidade não basta, portanto, para qualificar o acto livre. Um
movimento espontâneo, isto é não sujeito a constrangimentos, pode ser
simplesmente um movimento mecânico ou de hábito. Acendo maquinalmente
um cigarro, por exemplo. Nada, nem ninguém me impede disso. No entanto,
este gesto espontâneo e maquinal não significa nada, do ponto de vista da
liberdade. A liberdade só intervém quando a reflexão suspende, ainda que só
temporariamente, a acção. O acto livre é o acto que resulta de uma escolha,
após deliberação1. (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro III, 7).
É, por conseguinte, na experiência da escolha que se descobre a liberdade.
Toda a escolha supõe a ideia do possível, como é evidente. Sem possível, não
há liberdade: com efeito, não há liberdade, se estivermos limitados a uma
única opção, ou se só uma opção for considerada possível. Se não nos é
possível voar como os pássaros, então essa possibilidade não existe e o
problema da liberdade não se coloca. Mas há ainda uma segunda razão, talvez
1
Sartre
(filósofo
do
Séc.
XX)
defende
que
a
deliberação
é
posterior
à
decisão
de
escolha,
servindo
apenas
para
justificar
a
escolha
feita.
mais importante, para que toda a escolha implique a ideia de possível. É que o
homem é um ser capaz de se projectar no futuro e de perseguir finalidades.
Por isso, a escolha, dentro de possibilidades reais ou imaginadas, é uma
questão fundamental para o ser humano. O que é que vou fazer da minha
vida? Que profissão devo seguir? Vou casar-me? Vou ter filhos? Em que
partido vou votar? Ninguém pode substituir ninguém na resposta a estas
perguntas. Este tipo de questões são o que põe em jogo a liberdade do sujeito,
podendo, por isso, gerar alguma ansiedade ou até angústia.
Não admira que, por vezes, possa parecer mais fácil delegar em outros a
resposta a estas perguntas. A submissão à autoridade, o conformismo são
attitudes que testemunham esta dificuldade que o ser humano experimenta ao
exercer a sua liberdade.
Escolher é, então, ajuizar, de entre várias possibilidades, aquela que é a
melhor. Todavia, ser livre não se restringe a esta acção de julgar; implica
também a acção. Mais uma vez, encontramos uma dificuldade: ao nível da
acção, a liberdade é bem mais complexa do que ao nível do juízo, pois não é
raro termos de constatar a nossa impotência ou insuficiência para realizar o
que julgávamos ser o melhor. Nestes casos, enfrentamos duas instâncias
contrárias, a do bem que julgamos, e a do mal que realizamos. Seremos livres
de querer, quando somos empurrados pelo desejo de realizar o mal, apesar de
ajuizarmos bem? Lutero, um dos fundadores do protestantismo cristão,
acredita que não. Baseando-se na ideia de que Deus conhece, desde sempre e
para sempre, todo o nosso passado, presente e futuro, não nos seria possível
alterar o que quer que fosse desse destino já traçado. Mesmo assim, Lutero
defende que, não sendo livres, somos de qualquer modo culpados: só a graça
de Deus nos pode salvar. Sem entrar no debate teológico, muito menos na
ideia tão marcadamente metafísica de tempo de Lutero2, ele levanta um
problema sério: será que sou livre de fazer o que quero, sendo influenciado
por um passado de hábitos, por uma educação e até pela hereditariedade?
Como diz Aristóteles na Ética a Nicómaco “a não ser que recusemos ao
homem ser o princípio e o gerador das suas acções, como o é dos seus filhos”,
2
Como
diz
Kant,
podemos
sempre
encarar
a
causalidade
fora
do
tempo,
como
uma
categoria
de
inteligibilidade
(uma
causalidade
lógica,
fora
do
tempo,
a
priori):
a
liberdade
situar-‐se-‐ia
nessa
causalidade
inteligível,
mais
do
que
desenhada
no
tempo.
a liberdade é um assunto que não pode ser abandonado, só por suscitar
algumas dúvidas em espíritos mais inquietos. Podemos admitir, talvez, que
não somos livres no momento de agir, porque aprendemos maus hábitos, mas
éramos livres de os aprender ou não, diz Aristóteles. Voltamos, assim, à
questão da escolha. Poderíamos ter escolhido no passado de forma diferente
do que fizemos?
Espontaneamente, temos tendência em responder a essa pergunta
positivamente, afirmando a nossa crença no livre arbítrio, entendido, agora,
como poder absoluto de começar algo. Eu fiz esta escolha, mas podia ter feito
outra: esta é, muitas vezes, a nossa mais íntima convicção, de resto, geradora
de sentimentos de culpa, de remorsos, de vergonha, etc. Mas uma crença, já o
sabemos, não prova nada. Não basta crer-se livre para se ser livre. A crença no
livre arbítrio pode, no final de contas, não passar de uma ilusão. Ora, a iliusão
é precisamente aquilo que nos faz tomar os nossos desejos pela realidade. A
que desejo corresponde o desejo de livre arbítrio? Segundo Nietzche, esta
crença corresponde ao desejo de nos libertarmos da presença de Deus, da
hereditariedade, da sociedade, etc., para nos tornarmos finalmente
responsáveis pelos nossos actos.
Assim, espartilhados entre a crença no livre arbítrio e o sentimento da nossa
impotência, entre o orgulho e humildade, ficamos divididos e sem certezas. A
consciência entregue à livre escolha parece condenada a ser uma consciência
fragmentada e infeliz.
A
Liberdade
como
Libertação
Colocar a questão da liberdade sob a forma de livre arbítrio acaba por nos
encerrar no seguinte dilema: ou o homem é livre, absoluta e imediatamente,
ou não o é, não pode sê-lo e nunca o será. Para sair deste dilema é necessário
deixarmos de opor liberdade a necessidade.
“Eu digo que esta coisa é livre, na medida em que age só pela necessidade da
sua natureza, e não-livre aquela coisa que é determinada por outra a existir e a
agir” (Espinosa, Carta a Schuller). Para Espinosa, a liberdade não consiste
em tentar, em vão, libertar-se da necessidade. A liberdade consiste, pelo
contrário, em realizar a sua própria natureza, que, para o homem, é
compreender e pensar. “Chamo livre ao homem, na medida em que vive sob o
comando da razão, porque, nessa mesma medida, ele é determinado a agir por
causas que podem ser conhecidas adequadamente (…), mesmo que essas
causas o determinem necessariamente a agir”. (Espinosa, Tratado Político,
Cap. II).
Quanto melhor o homem conhece e compreende a natureza – de que faz parte
– mais ele desenvolve a potência que lhe é própria, mais ele é livre. Uma
liberdade deste género não é dada à partida, não é imediata, nem nunca
absoluta. Ela desenvolve-se e cresce: é libertação. Ser livre é, com efeito,
libertar-se de preconceitos de pré-juízos, é compreender as coisas. Ora, um
dos primeiros preconceitos a que o ser humano adere é justamenet o do livre
arbítrio, que resulta do facto de os “homens serem conscientes dos seus
desejos e desconhecedores das causas que os determinam” (Carta a Schuller).
Assim, clarificar os determinismos – sejam eles de natureza física, social,
histórica ou psicológica – é o único meio eficaz de os dominar, e, por
conseguinte, de fazer crescer a liberdade. Negá-los é, pelo contrário, condenar
os homens a sofrer a sua influência e, ao mesmo tempo, produzir neles o
sentimento mortífero de impotência perante o mundo e perante os outros.