Psicanalista defende que deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia. Isso implica ter curiosidade, aventurar-se, arriscar mais, lamentar menos e não ficar tentando se proteger das inevitáveis tristezas.
1. Contardo Calligaris: 'Não quero ser feliz.
Quero é ter uma vida interessante'
Psicanalista defende que deveríamos nos preocupar em
tornar interessante nossa vida de todo dia. Isso implica ter
curiosidade, aventurar-se, arriscar mais, lamentar menos e
não ficar tentando se proteger das inevitáveis tristezas.
Dagmar Serpa (Revista Claudia Online – 21-Jul-2-14)
Mais do que buscar permanentemente felicidade máxima, como num arrebatamento
mágico, deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia.
É o que defende o doutor em psicologia clínica e psicanalista Contardo Calligaris. Uma
rápida olhada em sua biografia mostra que ele não só prega como pratica. Italiano de
Milão, depois de mais de duas décadas em conexão direta com o Brasil, já morou
também na Inglaterra, Suíça, França e nos Estados Unidos e fez muitas viagens.
Aos 65 anos, atingiu a marca de oito casamentos - desde 2011, está com a atriz Mônica
Torres - e teve um filho francês. Além de atender no seu consultório, nos Jardins, em São
Paulo, já escreveu mais de dez livros, incluindo dois romances.
Criou até uma série para TV, Psi, no canal a cabo HBO. Diz que, semanalmente, abre
mão de "parecer inteligente aos olhos dos pares" e publica toda quinta-feira uma coluna
no jornal Folha de S.Paulo. Mais de 100 delas estão no livro Todos os Reis Estão Nus
(Três Estrelas). Filmes, fatos, casos de amigos, tudo vira pretexto para traduzir um pouco
das teorias da psicanálise, filosofar e provocar reflexão. "Não sou de dourar a pílula",
avisa. Não estranhe, portanto, se sentir um impulso diferente ao terminar de ler esta
entrevista.
O que é felicidade hoje?
Não gosto muito da palavra felicidade, para dizer a verdade. Acho que é, inclusive, uma
ilusão mercadológica. O que a gente pode estudar são as condições do bem-estar. A
sensação de competência no exercício do trabalho, já se sabe, é a maior fonte de bem-
estar, mais que a remuneração. Nós temos um ideal de felicidade um pouco ridículo.
Um exemplo é a fala do churrasco. Você pega um táxi domingo ao meio-dia para ir ao
escritório e o taxista diz: "Ah, estamos aqui trabalhando, mas legal seria estar num
churrasco tomando cerveja". Talvez você ou o taxista sofram de úlcera, e não haveria
prazer em tomar cerveja. Nem em comer picanha.
Mesmo que não vissem problema, pode ser que detestassem as pessoas que estariam lá
e não se divertiriam. Em geral, somos péssimos em matéria de prazer. Por exemplo,
estamos sempre lamentando que nossos filhos seriam uma geração hedonista, dedicada
a prazeres imediatos, quando, de fato, vivemos numa civilização muito pouco hedonista.
Por isso, nos queixamos de excessos e nos permitimos prazeres medíocres ou muito
discretos.
Mas continuamos acreditando que ser feliz é ter esses prazeres que não nos
permitimos. E agora?
2. Ligamos felicidade à satisfação de desejos, o que é totalmente antinômico com o próprio
funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação. Nenhum objeto pode nos
satisfazer plenamente.
O fato de que você pode desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio,
uma joia ou uma viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem,
aquela mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará conta
de que está na hora de desejar outra coisa. Esse mecanismo sustenta ao mesmo tempo
um sistema econômico, o capitalismo moderno, e o nosso desejo, que não se esgota
nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz.. Quero é ter uma vida interessante.
Mas isso inclui os pequenos prazeres?
Inclui pequenos prazeres, mas também grandes dores. Ter uma vida interessante
significa viver plenamente. Isso pressupõe poder se desesperar quando se fica sem
alguma coisa que é muito importante para você. É preciso sentir plenamente as dores:
das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse ideal de felicidade
que tenta nos poupar de tudo o que é ruim.
Livro: Todos os Reis Estão Nus (Calligaris, Editora Três Estrelas, 2014)
O que adianta garantir uma vida longa se não for para vivê-la de verdade? É isso
que temos de nos perguntar?
Quem descreveu isso bem foi (o escritor italiano) Dino Buzatti, no romance O Deserto dos
Tártaros. Conta a história de um militar que passa a vida inteira em um posto avançado
diante do deserto na expectativa de defender o país contra a invasão dos tártaros, que
nunca chegam. Mas tem um lado simpático na ideologia do preparo. É que está
subentendida a ideia de que um dia a pessoa viverá uma grande aventura. Mas o que
acontece, em geral, é que a preparação é a única coisa a que a gente se autoriza.
Então, pelo menos há um desejo de viver uma aventura?
Mas os sonhos estão pequenos. A noção de felicidade hoje é um emprego seguro, um
futuro tranquilo, saúde e, como diz a música dos aniversários, muitos anos de vida. Acho
estranho quando vejo alguém de 18 anos que, ao fazer a escolha profissional, leva em
conta o mercado de trabalho, as oportunidades, o dinheiro... Isso nem passaria pela
cabeça de um jovem dos anos 1960.
A julgar pela quantidade de fotos colocadas nas redes sociais de pessoas
sorridentes, elas têm aproveitado a vida e se sentem felizes. Ou, como você aborda
em uma crônica, hoje mais importante do que ser é parecer feliz?
O perfil é a sua apresentação para o mundo, o que implica um certo trabalho de
falsificação da sua imagem e até autoimagem. Nas redes sociais, a felicidade dá status.
Mas esse fenômeno é anterior ao Facebook. Se você olhar as fotografias de família do
final do século 19, início do 20, todo mundo colocava a melhor roupa e posava seriíssimo.
Ninguém estava lá para mostrar que era feliz. Ao contrário, era um momento solene. É a
partir da câmera fotográfica portátil que aparecem as fotos das férias felizes, com todo
mundo sempre sorridente.
E a gente olha para elas e pensa: "Eu era feliz e não sabia".
Não gosto dessa frase porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente
nunca deveria lamentar nada, em particular as próprias decisões. Acredito que, no fundo,
a gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas circunstâncias.
Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que existe isso.
As escolhas ao longo da vida geram insegurança e medo. Em relação a isso, você
diz que há dois tipos de pessoa: os "maximizadores", que querem ter certeza antes
3. de que aquela é a opção certa, e a turma do "suficientemente bom". O segundo
grupo sofre menos?
Tem uma coisa interessante no "maximizador": é como se ele acreditasse que existe o
objeto mais adequado de todos, aquele que é perfeito. Mas é claro que não existe.
A busca da perfeição não gera frustração, pois sempre haverá algo que a gente
perdeu?
Freud dizia que o único objeto verdadeiramente insubstituível para a gente é o perdido. E
não é que foi perdido porque caiu do bolso. Ele fala daquilo que nunca tivemos. Então, faz
sentido que nossa relação com o desejo seja esta: imaginamos existir algo que nunca
tivemos, mas que teria nos satisfeito totalmente. Só não sabemos o que é.
Como nos livrar desse sentimento?
Temos de tornar cada uma de nossas escolhas interessante. Isso só é possível quando
temos simpatia pela vida e pelos outros - o que parece básico, mas não é no mundo de
hoje. Não por acaso, o grande espantalho do nosso século é a depressão. A falta de
interesse pelo mundo e pelos outros é o que pode nos acontecer de pior.
Complica ainda mais o fato de, como você já abordou, enfrentarmos um dilema
eterno: desejamos a estabilidade e também a aventura. Então, entramos em uma
relação ou um emprego, mas sofremos porque nos sentimos presos e achamos que
estamos deixando de viver grandes aventuras. Isso tem solução?
Não sei se tem solução. A gente vive mesmo eternamente nesse conflito. Agora, como
cada um o administra é outra história. Pode-se optar por uma espécie de inércia
constante, que será sempre acompanhada da sensação de que você está realmente
desperdiçando seu tempo e sua vida, porque toda a aventura está acontecendo lá fora e,
a cada instante, você está perdendo os cavalos encilhados que passam e não passarão
nunca mais. Viver dessa maneira não é uma das opções. Mas você pode também, em
vez disso, permitir se perder.
Permitir se perder no sentido de transformar a vida em uma eterna aventura?
Mas também nesse caso você terá coisas a lamentar. Eu, pessoalmente, fui mais por
esse caminho. Mas o preço foi muito alto. Por exemplo, eu não estive presente na morte
de nenhum dos meus entes próximos, porque morava em outro país e sempre chegava
atrasado, no avião do dia seguinte. Hoje, por sorte, meu filho - que é grande, tem 30 anos
- vive perto de mim. Por acaso, ele decidiu vir para o Brasil. Mas não o vi crescer
realmente.
Para ser feliz, enfim, o segredo é não buscar a felicidade?
Isso eu acho uma excelente ideia. A felicidade, em si, é realmente uma preocupação
desnecessária. Se meu filho dissesse "quero ser feliz", eu me preocuparia seriamente.
Preferia que dissesse o quê?
Só gostaria que ele me dissesse: "Estou a fim de..." A partir disso, qualquer coisa é válida.
O que angustia é ver falta de desejo nas pessoas, em particular nos jovens. Agora, se ele
está a fim de algo, mesmo que isso pareça muito distante do campo do possível dentro da
vida que leva, eu acho ótimo.
Fonte: http://mdemulher.abril.com.br/bem-estar/reportagem/viver-bem/contardo-calligaris-
nao-quero-ser-feliz-quero-ter-vida-interessante-791759.shtml