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Empreendimentos em rede: tendências e desafios
Augusto de Franco, 2013.
Versão Beta, sem revisão.
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FRANCO, Augusto de
Empreendimentos em rede: tendências e desafios / Augusto de Franco. – São Paulo: 2013.
36 p. A4 – (Augusto de Franco 1)
1. Redes sociais. 2. Empresas. 3. Augusto de Franco. I. Título.
http://www.augustodefranco.org
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SSUUMMÁÁRRIIOO
Apresentação
Introdução
As organizações da categoria VESA
É possível viver de um negócio em rede?
Como ajudar pessoas a construir negócios em rede
A transição para a empresa em rede
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AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO
Neste texto vamos examinar por que damos às vezes respostas inconsistentes ou inverídicas para as seguintes perguntas (em vez de falar sobre as tendências e desafios que já percebemos neste momento):
É possível organizar (na prática) um coletivo estável de pessoas em rede ou isso é apenas uma tendência (apontada pela teoria) que só será aplicável no futuro, quando toda sociedade já estiver mais conectada em rede?
Já é possível fazer um negócio em rede? Se sim, é possível fazer um negócio em rede distribuída (ou mais distribuída do que centralizada)?
Um negócio em rede, nas circunstâncias do mundo atual (quer dizer, neste exato momento) é sustentável em termos econômicos?
É possível viver de um negócio em rede? É possível ficar rico (ou ganhar muito dinheiro, ou pelo menos ganhar um bom dinheiro) com um negócio em rede? Ou um negócio assim por enquanto dá apenas, no máximo, para uma sobrevivência (austera)?
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Em que medida um consultor, coacher ou netweaver pode ajudar outras pessoas a organizar negócios em rede se ele mesmo não tem experiência de ter feito negócios em rede que "deram certo"?
É possível criar um ambiente realmente de rede para estimular o surgimento de negócios em rede? Como fazer isso? Um ambiente de rede é um equipamento (por exemplo, uma casa, um laboratório, um local de eventos, de trabalho coletivo, de cocriação)? Um equipamento desse tipo pode ser montado por alguém antes da interação (quer dizer, antes da existência de uma rede de pessoas da qual emergiu tal necessidade)? Um equipamento desse tipo pode ser montado com o objetivo de atrair pessoas para fazer a rede?
Qual o papel do financiamento na estruturação de novos negócios em rede? Quem investe faz parte da rede em igualdade de condições com os investidos (ou detém poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais)? Neste caso, não introduz centralizações deformando a rede?
É possível fazer a transição de uma empresa hierárquica para uma empresa em rede? Isso independe do tamanho da empresa ou do ramo do negócio? Quais os riscos envolvidos nesse processo?
Temos exemplos de empresas que fizeram a transição do seu padrão hierárquico para um padrão de rede (mais distribuída do que centralizada)? Em que medida isso deu certo?
Quais os exemplos de empresas em rede já funcionando que podemos conhecer?
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IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
Com a transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede - e a percepção da emergência de novos fenômenos sociais interativos - muitas pessoas passaram a se interessar pelo tema das redes, pelos mais variados motivos.
Vamos focalizar neste texto o subconjunto crescente daquelas pessoas que, de algum modo, estão interessadas em empreendimentos em rede.
Vejamos alguns exemplos:
Empreendedores em geral (ou seja, pessoas que querem montar um negócio inovador, pessoal de startups idem e, também, gente que quer descobrir outras maneiras mais cooperativas de trabalhar em rede e sobreviver disso);
Consultores de inovação em empresas tradicionais e outras pessoas que se dedicam ao coaching (com ou sem fins lucrativos) com o objetivo de apoiar os que querem organizar novos negócios em rede;
Pessoas que têm responsabilidades de direção em empresas já constituídas, que estão preocupadas com inovação e que
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descobriram que há alguma relação intrínseca entre redes e inovação.
Ouvimos diariamente dessas pessoas muitas perguntas. Neste texto sustento que é sempre melhor falar a verdade apontando realmente quais são as tendências e os desafios.
UMA CONVENÇÃO
Uma convenção preliminar. Doravante neste texto, salvo menção em contrário, a expressão "em rede" será usada para designar "em rede distribuída" ou "em rede mais distribuída do que centralizada".
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Ninguém pode entender o que é rede se não entender a diferença entre descentralização e distribuição. O melhor caminho para entender tal diferença é ler o velho paper On distributed communications, de Paul Baran (Santa Mônica: Rand Corporation, 1964). No mencionado paper sugiro espiar diretamente a figura acima. Entre a monocentralização (o grau máximo de centralização, que no diagrama de Baran aparece como rede centralizada) e a distribuição máxima (todos os caminhos possíveis, correspondendo ao número máximo de conexões para um dado número de nodos - que não aparece no terceiro grafo do diagrama de Paul Baran, por razões de clareza de visualização), existem muitos graus de distribuição. É entre esses dois limites que se realiza a maioria das redes realmente existentes.
Os diagramas de Baran são autoexplicativos. Mas as consequências que podemos deles tirar não são. O primeiro corolário relevante é que a conectividade acompanha a distribuição. Inversamente, quanto mais centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui. O segundo corolário relevante é que a interatividade acompanha a conectividade e a distributividade. Inversamente, quanto mais centralizada é uma rede, menos interatividade ela possui.
Quem quiser saber mais sobre as relações entre a topologia de uma rede e as características de uma empresa deve ler o texto Processos de Rede em Empresas, que está disponível no link http://goo.gl/AwTE08
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AASS OORRGGAANNIIZZAAÇÇÕÕEESS DDAA CCAATTEEGGOORRIIAA VVEESSAA
A primeira pergunta que ouvimos de todas as pessoas interessadas em empreendimentos em rede é a seguinte:
É possível organizar (na prática) um coletivo estável de pessoas em rede ou isso é apenas uma tendência (apontada pela teoria) que só será aplicável no futuro, quando toda sociedade já estiver mais conectada em rede?
Esta é uma pergunta geral que fazem (e se fazem) tanto empresários e gestores de empresas tradicionais curiosos com o tema, quanto pessoas que querem empreender em rede. Costumo dizer que a maior parte das organizações que existem hoje ou que já surgiram em qualquer época na história é composta por organizações em rede. Fazendo uma brincadeira (mas é verdade), digo que essas organizações - que somam bilhões - são da categoria VESA. Diante do espanto do interlocutor esclareço que a sigla significa "Você E Seus Amigos".
As VESAS são organizações em rede (mais distribuída do que centralizada). Não têm chefe, não têm hierarquia. Mas o fato de serem informais não significa que não sejam organizações (formas estáveis, com estrutura característica, de agrupamentos de pessoas).
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Isso é significativo porque essas estruturas do tipo VESA estão presentes em todo lugar, inclusive nas organizações hierárquicas de qualquer setor. Inclusive nas empresas fortemente centralizadas elas estão lá, embaixo de várias camadas de entulho hierárquico (que foram sobrepostas pelos modelos de gestão baseados em comando-e-controle). As pessoas se conhecem, experimentam o coleguismo e se comprazem na convivência, muitas viram amigas e passam a manter relações recorrentes: namoram, vão ao cinema e ao shopping, combinam happy hours, vão ao jogo ou ao show, levam seus filhos para brincar na mesma praça ou no clube ou na praia, frequentam as casas umas das outras, planejam viagens coletivas; enfim: são pessoas interagindo de modo mais distribuído do que centralizado e quando isso acontece... acontecem as redes! Não importa o propósito: a rede é um padrão de organização, não um tipo determinado de entidade que tenha necessariamente um objetivo ou finalidade.
Em termos de quantidade não há nem como comparar essas formas estáveis de sociabilidade horizontal com aquelas que têm topologia centralizada (ou mais centralizada do que distribuída), como as entidades, instituições e organizações formais verticais do Estado, do mercado ou da sociedade civil. É outra ordem de grandeza: as primeiras são dezenas de bilhões enquanto que as segundas não passam de poucas centenas de milhões.
Então não se trata de inventar algo que ainda não existe ou que existe apenas embrionariamente. Não. A maior parte da nossa experiência de relacionamento estável, desde que existe o Homo Sapiens (há pelo menos
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250 mil anos), se deu em estruturas mais distribuídas do que centralizadas, quer dizer, em rede.
A pergunta, então, não é por que as organizações não são em rede e sim por que existem organizações que não são em rede. O problema é que as pessoas ficam procurando "organizações hierárquicas em rede" e aí não podem achar mesmo.
Ora, para "fazer" rede não é preciso fazer quase nada. Deveríamos perguntar, portanto, o que é necessário fazer para impedir que as pessoas se relacionem horizontalmente ou de forma mais distribuída do que centralizada, porque, aí sim, é necessário fazer muita coisa. Capturar, condicionar e direcionar fluxos (me refiro aqui aos fluxos da convivência social) para erigir hierarquias é muito mais difícil do que deixar fluir.
Esclarecido este ponto, podemos passar às questões mais específicas feitas pelos diferentes grupos de pessoas interessadas em empreendimentos em rede.
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ÉÉ PPOOSSSSÍÍVVEELL VVIIVVEERR DDEE UUMM NNEEGGÓÓCCIIOO EEMM RREEDDEE??
Vamos ver agora algumas perguntas feitas por empreendedores, incluindo nessa categoria aquelas pessoas que desejam montar um negócio inovador, passando pelo pessoal de startups idem e por gente que quer descobrir outras maneiras mais cooperativas de trabalhar em rede e sobreviver disso.
Suas três principais perguntas são:
Já é possível fazer um negócio em rede? Se sim, é possível fazer um negócio em rede distribuída (ou mais distribuída do que centralizada)?
Um negócio em rede, nas circunstâncias do mundo atual (quer dizer, neste exato momento) é sustentável em termos econômicos?
É possível viver de um negócio em rede? É possível ficar rico (ou ganhar muito dinheiro; ou, pelo menos, ganhar um bom dinheiro) com um negócio em rede? Ou um negócio assim por enquanto dá apenas, no máximo, para uma sobrevivência (austera)?
Vamos falar a verdade: as tendências e desafios que conseguimos divisar neste momento indicam que sim, que já é possível fazer um negócio em
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rede - sobretudo no sentido estrito e fraco do conceito (ver abaixo) - mas ainda não é possível ganhar muito dinheiro com isso. Negócios em rede, em geral, permitem uma sobrevivência parca nas circunstâncias atuais.
Claro que, antes disso, é preciso entender o que é exatamente um negócio em rede. Estamos tomando aqui as palavras negócio e empreendimento como sinônimos (se o empreendimento for lucrativo).
Em um sentido muito geral, todo negócio é em rede (e digo mesmo: em rede mais distribuída do que centralizada), ainda que não se identifique essa rede (que sempre existe), como "dona" ou autora do negócio. No entanto, olhando apenas a unidade empreendida (o negócio stricto sensu), nem sempre ele é configurado como uma rede: se for, então o negócio (ou empreendimento) é em rede (stricto sensu). A partir daí já podemos divisar alguns elementos importantes para caracterizar um negócio em rede (stricto sensu).
Temos, entretanto, que distinguir negócios em rede (mesmo stricto sensu) no sentido forte do conceito e no sentido fraco do conceito. As quatro primeiras proposições abaixo valem para ambos, as duas últimas apenas para cada um:
1 - Em qualquer sentido, forte ou fraco do conceito, um negócio em rede não pode ser um negócio individual, simplesmente porque não existe rede de um indivíduo. Costumo dizer que, se definimos redes como múltiplos caminhos, então nem uma dupla de nodos - "A interagindo com B" - forma uma rede (porque aí o caminho é único, ainda que transitivo: A <=> B). Então são necessárias pelo menos
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três pessoas (o "átomo-rede"): "A interagindo com B (e B com A, porque por definição há transitividade na interação) e A interagindo com C (idem) e C interagindo com B (idem-idem)".
2 - Ainda num sentido forte ou fraco do conceito, cabe acrescentar que não vale considerar A, B e C como estruturas hierárquicas (organizações centralizadas de pessoas). Redes (sociais) são redes de pessoas. Empreendimentos ou negócios em rede são redes sociais (e não associais ou antissociais, no sentido maturaniano do termo). Então A, B e C só podem ser pessoas (ou redes de pessoas). Redes de empresas (centralizadas) não são redes: uma rede de supermercados não é rede, a Rede Globo não é rede, Herbalife não é rede, uma rede de escolas públicas governamentais não é rede.
3 - Igualmente num sentido forte ou fraco do conceito, também não vale encarar os recursos não-humanos utilizados por um empreendimento como constituintes da suposta rede (como é feito, em alguns casos, com certos empreendimentos tomados como exemplos, como o Airbnb). Podemos ter um conjunto de recursos não-humanos constelados em rede e, mesmo assim, não ter um empreendimento em rede se os recursos propriamente humanos não estiverem configurados como rede (e sim como hierarquia).
4 - Por último, tanto para o sentido forte quanto para o sentido fraco do conceito, os "donos" (ou acionistas ou quaisquer tipos de quotistas com direito a uso patrimonial) de um negócio em rede são todos os que compõem o negócio. Se o negócio é composto por
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duas categorias - os donos e os empregados dos donos - então ele já não pode ser caracterizado como um negócio em rede, mesmo que os donos estejam organizados (entre si) em rede distribuída, tenham as mesmas quotas e os mesmos direitos econômicos etc.
5 - No sentido forte do conceito, um negócio em rede não pode ser fechado, não pode se constituir como unidade isolada do ecossistema composto por seus stakeholders diretos (aqueles imediatamente ligados em até 'n' graus de separação - poder-se-ia arbitrar o valor de 'n' por convenção - conquanto, a rigor, não seja assim se tomarmos o negócio em rede em sentido mais amplo, como um negócio social propriamente dito). Na verdade a rede que representa o negócio é esse ecossistema. O que significa que o negócio em rede social é um metabolismo daquele mundo social, daquela sociosfera onde ele surge e se realiza como tal (como negócio). Negócios em rede - no sentido forte do conceito - são comunidades móveis de negócios conformados na rede dos seus stakeholders. São, portanto, fluxos ecossistêmicos.
6 - Num sentido fraco do conceito, negócios em rede podem se constituir como redes de pessoas que se associam para empreender lucrativamente, interagindo com o ecossistema de seus stakeholders mas mantendo restritos a um cluster determinado os direitos de uso patrimonial e a autonomia operacional (sendo que devem permanecer válidas - como condições necessárias - as quatro primeiras proposições desta lista de características).
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Pois bem. Negócios (stricto sensu) em rede, no sentido fraco do conceito, não são fontes de grande riqueza neste momento, o que não significa que não venham a ser no futuro (e em futuro bem próximo, a julgar pelo aumento alucinante da interatividade numa sociedade-em-rede).
Mas não se deve enganar as pessoas dizendo que o mundo das redes é o mundo da abundância (confundindo de propósito abundância de conexões ou caminhos com possibilidades de apropriação privada de abundantes recursos); ou, pior ainda, dizendo que haverá dinheiro abundante na rede para todos no curto prazo. Não, no curto prazo não haverá.
E não haverá porque os negócios tradicionais ainda deformam o campo social de um modo tal que as iniciativas de empreendimentos que não tenham seu DNA tendem a ser automaticamente expelidas, recusadas ou preteridas pelo mercado. Isso está mudando velozmente, é verdade. Mas ainda não mudou a ponto de podermos afirmar que já há excelentes oportunidades lucrativas para todos, independentemente da forma como se organizem. Não há. Quem quiser fazer negócios em rede, mesmo no sentido fraco do conceito, vai ralar um bocado. A não ser que trapaceie, chamando de rede o que não atende às quatro primeiras proposições da lista de características (expostas acima) de negócios stricto sensu em rede.
É possível discordar dessa avaliação, claro, mas quem discordar deve apresentar contra-exemplos de empreendimentos lucrativos em rede no qual as pessoas estão tendo uma excelente (ou mesmo uma satisfatória) remuneração (não vale, porém, citar exemplos de trapaças).
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O papo de que tudo que colocarmos na rede voltará para nós multiplicado parece ser verdade de um ponto de vista de uma ecologia da dádiva. Mas isso é válido para a rede-mãe (um termo que criei para designar aquela rede que existe pelo fato de sermos pessoas - entroncamentos de fluxos -, independentemente de nossos esforços conectivos voluntários) e, portanto, para os negócios em rede social lato sensu.
Ou seja, isso é válido, para lançar mão de uma metáfora cinematográfica (do filme Avatar), para a "rede neural biobotânica de Pandora", mas não para um conjunto de pessoas atraídas por razões instrumentais - em geral com o objetivo de ganhar dinheiro - para um propósito, projeto ou equipamento propostos por nós e que então resolvemos chamar de "rede". Esse é um papo dos que querem organizar negócios em rede para os outros e que examinaremos a seguir.
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CCOOMMOO AAJJUUDDAARR PPEESSSSOOAASS AA CCOONNSSTTRRUUIIRR NNEEGGÓÓCCIIOOSS EEMM RREEDDEE
Vamos ver agora as perguntas dos consultores de inovação em empresas tradicionais e outras pessoas que se dedicam ao coaching (com ou sem fins lucrativos) com o objetivo de apoiar os que querem organizar novos negócios em rede. As pessoas que se enquadram nesta categoria não fazem muitas perguntas. Essas pessoas, por definição, são as que se prepararam para fornecer respostas... Mas não é possível que elas, ao menos intimamente, não se façam também algumas perguntas como as seguintes (são perguntas que eu mesmo me faço, já que me enquadro nesta categoria de netweaver, conquanto não me dedique a organizar ninguém para montar negócios em rede):
Em que medida um consultor, coacher ou netweaver pode ajudar outras pessoas a organizar negócios em rede se ele mesmo não tem experiência de ter feito negócios em rede que "deram certo"?
É possível criar um ambiente realmente de rede para estimular o surgimento de negócios em rede? Como fazer isso? Um ambiente de rede é um equipamento (por exemplo, uma casa, um laboratório, um local de eventos, de trabalho coletivo, de cocriação)? Um equipamento desse tipo pode ser montado por alguém antes da interação (quer dizer, antes da existência de uma
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rede de pessoas da qual emergiu tal necessidade)? Um equipamento desse tipo pode ser montado com o objetivo de atrair pessoas para fazer a rede?
Qual o papel do financiamento na estruturação de novos negócios em rede? Quem investe faz parte da rede em igualdade de condições com os investidos (ou detém poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais)? Neste caso, não introduz centralizações deformando a rede? Só pode ter um entendimento profundo das redes para atuar como netweaver (articulador e animador de redes) quem experimenta se organizar em rede. Uma compreensão intelectual não basta: do contrário, todas as pessoas inteligentes, que fossem capazes de entender os rudimentos das teorias da nova ciência das redes (e a maioria das pessoas é suficientemente inteligente para tanto), estariam aptas a ser netweavers: sim, elas poderiam de fato ser (netweavers), mas não são enquanto ocupam "lugares" em hierarquias que são contraditórios com o netweaving. Em outras palavras, o que se diz aqui é tautológico: para articular e animar redes (o objetivo do netweaver) é necessário articular e animar redes (a experiência do netweaver). No caso daquelas pessoas que querem ajudar outras pessoas a construir negócios em rede isso também é válido. Seria necessário que essas pessoas estivessem fazendo negócios em rede. Do contrário não há como responder à seguinte pergunta: "Por que você orienta as pessoas a fazer negócios em rede se, você mesmo, não faz negócios em rede (e, pelo contrário, vive de negócios tradicionais que não são em rede)?"
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Não se deve dizer às pessoas que vivam no fluxo (ou do fluxo) quando, nós mesmos, não vivemos. Não se pode - sob pena de estar trapaceando - dizer às pessoas que elas não devem fazer açudes (porque isso represaria o fluxo) quando, nós mesmos, vivemos de um açude. Quem tem que trabalhar cotidianamente para sobreviver, quem não tem açude, quem vive no fluxo ou do fluxo, pode ficar numa situação muito difícil quando o fluxo fica menos volumoso (e ele às vezes fica, podemos dar isso como certo nas atuais circunstâncias). Então não podemos enganar as pessoas com promessas de prosperidade em rede, de dinheiro fácil em rede. Para compreender o fluxo é preciso se jogar no fluxo, pular no abismo da interação, experimentar as alegrias e agruras dessa condição instável e arcar com as suas consequências favoráveis e desfavoráveis. Todavia, é possível, sim, estimular negócios em rede. Pode-se fazer isso configurando ambientes favoráveis à emergência de empreendimentos (de todo tipo, não apenas lucrativos, não apenas negócios) em rede. Em geral empreendimentos lucrativos em rede surgem sempre coligados ou sinergicamente relacionados à empreendimentos não lucrativos, porque ambos fazem parte de um mesmo metabolismo da rede social (nós é que separamos o que é lucrativo, o que é negócio, do que não é). Configurar ambientes é a resposta. Mas a questão é: como fazer isso? Em primeiro lugar precisamos entender o que é um ambiente do tipo descrito acima. McLuhan disse, com razão, que é o ambiente que muda as pessoas e não a tecnologia. Um ambiente não é um espaço físico, não é um prédio,
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não é uma ferramenta virtual (ainda que possam ser necessários espaços físicos, prédios e ferramentas virtuais) - que são tecnologias. Um ambiente é, portanto, tudo o que sobra, tirando essas e outras tecnologias. Ora, o que sobra são... as pessoas interagindo para configurar o ambiente; ou seja, o que sobra é a rede social. É a rede que configura e que, mais do que isso, constitui o ambiente. É essa rede que, a partir da sua interação, vai dizer de qual tipo de tecnologia vai precisar. Às vezes vai precisar de um grande auditório, às vezes de um laboratório com equipamentos, às vezes não vai precisar de nada disso: apenas de um plataforma como o GitHub. Se aportamos as estruturas (físicas e virtuais) antes da interação, se disponibilizamos as tecnologias (de qualquer tipo) antes da rede manifestar suas necessidades e propósitos, então não estamos configurando um ambiente favorável à emergência de empreendimentos em rede, simplesmente porque, neste caso, não foi a rede que configurou e constituiu o ambiente. Neste caso o ambiente não existe, a rede não existe e os nossos esforços são direcionados à capturar pessoas para conformá-la e rechear a estrutura vazia que montamos (e que achamos que é o ambiente). Ou seja, neste caso estamos tratando de rede, sim, mas de rede de pescar! Um instrumento para pescar pessoas (e suas ideias). Isso raramente dá certo, se é que deu alguma vez. Ambientes de rede não podem ser reservatórios de gente para pescarmos em aquário ("fish in the barrel"). Redes sociais não são redes de pescar.
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Se capturamos membros para uma rede que tem um objetivo já determinado por nós ex ante à interação, estamos manipulando. Se nosso objetivo for lucrativo (como alcançar mais riqueza) então os membros serão encarados como potenciais investidos, clientes, consumidores, fornecedores. Se nosso objetivo for sem fins lucrativos - como alcançar mais reputação, mais prestígio; ou até mesmo hierárquicos, como conquistar mais poder ou glória - então os membros serão encarados como instrumentos de nossos propósitos, escadas, recursos dos quais devemos lançar mão para concretizar nosso plano. Quem quer fazer redes não pode arquitetar secretamente um plano, uma estratégia, uma tática, em que os outros (os membros da rede) sejam peões, peças da máquina ou recursos humanos funcionais para a realização de seus objetivos. Quem quer fazer redes não pode manipular pessoas. Isso não é uma prédica moral, não! É só porque, quando manipulamos, centralizamos. Mas a pergunta que vem agora é a seguinte: por que algumas pessoas acham que devem manipular as outras pessoas? Creio que a razão para tal comportamento está mais radicada na velha vibe da concorrência mercantil do que propriamente numa intenção deliberada de enganar os outros. Sim, a concorrência empresarial - própria das velhas empresas hierárquicas e fechadas - que encara todo mundo que não somos "nós" como "nosso" potencial inimigo é uma cultura muito resiliente, que resiste e ainda vai resistir por muito tempo às
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mudanças que já estão se processando em uma sociedade cada vez mais em rede. Então qualquer pessoa que não conseguiu se desvencilhar dessa cultura pode, mesmo que não seja este seu desejo ou seu objetivo consciente, reproduzi-la em ambientes (que deveriam ser) de rede. Isso acontece com mais frequência quando estão em jogo atividades potencialmente lucrativas. O lucro, quer dizer, não a produção de resultados positivos e sim a apropriação privada de um sobrevalor gerado socialmente, acaba turvando a visão dos empreendedores e dos que querem estimular empreendedores com objetivos lucrativos. Mas não é o lucro em si o problema e sim a expectativa hierarquizante de vencer, subir na vida, fazer sucesso, se destacar dos semelhantes, que frequentemente vem associada à busca do lucro (quando o lucro deixa de ser uma obrigação normal das atividades lucrativas e passa a ser um objetivo instrumental para obter mais poder - o poder de mandar nos outros - e alcançar a glória). Basta dar uma olhada na ideologia adotada por organizações como Endeavor para ver a que ponto pode chegar a deformação. Em diferentes graus de intensidade (ou de deformação) todo movime nto de startups também está contaminado por crenças e comportamentos semelhantes. E essas visões e práticas também se fazem presentes naqueles investidores alternativos de capital de risco, angels investors e assemelhados.
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O problema é quando o investidor quer ser netweaver, mas atua como aqueles caras que montam prédios, alojamentos e acampamentos para incubar, acelerar e - obviamente - para comprar com preferência, negócios inovadores emergentes. Se um investidor individual, criador (e legalmente dono ou titular) de um ambiente estruturado para o surgimento de negócios em rede (ou que detenha neste ambiente poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais) puder escolher (em desigualdade de condições com outros investidores) em quais negócios surgidos em rede ele vai investir, então esse tipo de relação com os negócios surgidos em rede certamente introduz centralizações deformando a rede. Não é legal comprar as pessoas. Isso não casa muito bem com ambientes de rede. Não é legal atrair pessoas com a promessa de financiar seus projetos. Não que o interesse financeiro, o desejo de ganhar um bom dinheiro ou a necessidade de ganhar algum dinheiro para sobreviver não sejam importantes. São importantíssimos. Mas dificilmente uma rede social (quer dizer, uma rede de pessoas) voluntariamente articulada começará assim. Na década passada, quando me dedicava full time ao desenvolvimento local, travei mil vezes esse debate com um ilustre ex-Ministro da Fazenda e vários economistas. Eles diziam: "Tem que atrair o pessoal pelo bolso". Eu respondia: "Se atrair pelo bolso não vai sobrar nada". Porque ganhar dinheiro, naquele caso, fazia parte do metabolismo de uma comunidade,
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era uma função do seu capital social ou do fluxo ecossistêmico próprio de cada cluster. Uma pessoa individualmente interessada em ganhar dinheiro fora desse fluxo, vai ficar correndo atrás das oportunidades que aparecerem. Dez anos depois, pelo visto, a mesma conversa continua. Como capital social não é nada mais do que a rede social, minha resposta também continua a mesma.
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AA TTRRAANNSSIIÇÇÃÃOO PPAARRAA AA EEMMPPRREESSAA EEMM RREEDDEE
Passemos agora às pessoas das empresas hierárquicas. Suas três principais perguntas são:
É possível fazer a transição de uma empresa hierárquica para uma empresa em rede? Isso independe do tamanho da empresa ou do ramo do negócio? Quais os riscos envolvidos nesse processo?
Temos exemplos de empresas que fizeram a transição do seu padrão hierárquico para um padrão de rede (mais distribuída do que centralizada)? Em que medida isso deu certo?
Quais os exemplos de empresas em rede já funcionando que podemos conhecer?
Para responder estas perguntas, creio que devemos evitar os subterfúgios e falar a verdade.
É claro que é possível a transição de uma empresa hierárquica para uma empresa em rede. O processo já está em curso em boa parte das empresas, em maior ou menor intensidade, tenham ou não as direções dessas empresas consciência disso e tenham ou não deliberado tomar medidas específicas para "fazer a transição". Por que? Ora, porque a
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estrutura das empresas está ficando mais distribuída e seus procedimentos estão ficando menos autocráticos. A empresa monárquica associada ao Estado hobbesiano do início do capitalismo não é mais a mesma. Está mudando por exigências de adaptação a um mundo que também não é mais aquele da época das primeira grandes manufaturas. É o óbvio.
A transição para um padrão de rede não é a substituição de um modelo por outro. Não há um novo modelo, um novo desenho, ao contrário do que apregoam muitos gurus da administração empresarial. O que há é o aumento do grau de distribuição (que altera a topologia do padrão de organização) com a compatível democratização dos modos de regulação: a transição é exatamente isso. E nada mais.
Assim, não existem exemplos de grandes empresas que fizeram totalmente a transição do seu padrão hierárquico para um padrão de rede. A expressão "totalmente" não cabe porque não há um ponto de chegada (um novo modelo para substituir pelo antigo).
Acompanhando - cada qual no seu próprio passo, com maior ou menor sinergia (ou, às vezes, até temporariamente resistindo) - à transição para uma sociedade em rede, as empresas vão tentando se adaptar para sobreviver às novas condições ambientais. Não há um mesmo ritmo. Não haverá um mesmo resultado. Muitas empresas desaparecerão (ou se estilhaçarão, dando origem a novas empresas). Algumas empresas remanescerão com estruturas fortemente centralizadas e conseguirão, a despeito disso, sobreviver por um tempo razoavelmente longo. Outras,
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conseguirão se redesenhar como estruturas mais distribuídas do que centralizadas (mas ainda com graus significativos de centralização). E outras, ainda, adotarão estruturas fortemente distribuídas e se transformarão em outra coisa.
As empresas que chegarem ao "final" da transição (se houvesse um final, mas não há) não serão mais as mesmas empresas que foram e nem algo que tradicionalmente se identifique como empresa (tal como hoje se entende o conceito). Como disse Fernando Baptista, "tem que ficar claro que uma empresa pode ser menos hierárquica, pode aumentar os graus de distribuição, pode até ser um nascedouro de bolhas [zonas mais distribuídas do que centralizadas no seu interior] e que ela, inclusive, pode passar a ter fronteiras menos definidas (como áreas cinzas)... mas que empresa é instituição enquanto que empreender é ação e que o empreender pode ocorrer dentro de empresas ou fora delas". A confusão se dá, segundo Baptista, "quando as pessoas pensam que o "empreender em rede" leva à "empresa em rede"; na verdade é o contrário: a transição significa que a ideia de "empresa" (instituição) dá lugar à de "empreender" (ação livre e cooperativa em rede). O destino último de uma empresa que transita para rede seria deixar de ser empresa e tornar-se ação empreendedora".
Mas não se trata, quando falamos de transição, de destinos últimos e sim de trajetórias diversas de adaptação. O que é impossível encontrar são exemplos de empresas em rede hierárquicas (instituições centralizadas reconhecidas atualmente como empresas).
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A empresa totalmente não-hierárquica será outro tipo de arranjo, provavelmente não identificável como empresa. Mas é preciso ver que os casos centralização máxima e distribuição máxima são casos (matemáticos) limites: entre uma organização totalmente centralizada e uma organização totalmente distribuída temos um amplo espectro de topologias possíveis. Grande parte das empresas está tornando sua estrutura mais distribuída e, assim, podemos afirmar, que elas estão na transição para mais distribuição (ainda que muitas não tenham chegado ainda a apresentar uma estrutura mais distribuída do que centralizada). Repetindo: a rigor todas as empresas - tenham ou não percebido isso e tenham ou não decidido fazer qualquer movimento nesse sentido - estão se tornando mais distribuídas.
Não há um case, uma best practice, um exemplo a partir do qual se possa fazer benchmarking, porque é muito difícil perceber as pequenas, progressivas ou intermitentes, mudanças no grau de distribuição. Ademais, o processo é meio caótico, avança e recua e, não raro, empresas que seguiram no caminho da distribuição voltam atrás e se recentralizam (ou se hierarquizam mais).
Quem está vivendo a transição, em geral, não percebe o sentido do movimento, mas apenas os problemas, as confusões e os efeitos colaterais do desafio de ter que mudar o seu padrão de adaptação a um mundo em franco processo de distribuição querendo manter, entretanto, o seu padrão de organização fortemente centralizado (é claro que é impossível manter o estado pretérito do padrão de organização quando muda o padrão de adaptação: a alostase de uma empresa exige
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simultaneidade da mudança do padrão de adaptação e do padrão de organização e, por isso, haverá "choro e ranger de dentes" por parte de quem está experimentando diretamente os dilemas da mudança).
A transição é narrativa de quem vê a onda, quer dizer, a continuidade (o fenômeno ondulatório, próprio de um meio contínuo) só é percebida pelo observador que observa tudo isso numa linha temporal mais longa. Quem está na onda - e não vê que é uma onda longa e nem mesmo vê que é uma onda - só percebe a arrebentação (quer dizer a descontinuidade, o fenômeno discreto) como choques sucessivos com as pedras ou com o solo (a onda arrebentando na praia). É por isso que as pessoas das empresas têm dificuldade de perceber a transição e, muitas vezes, acham que estão fazendo alguma coisa errada quando a frequência da onda aumenta (com o aumento da interatividade do meio) e aparecem também com mais frequência os problemas da inadaptação (em geral decorrentes do descompasso entre a mudança do padrão de adaptação e a mudança do padrão de organização).
Olhando de outro ponto de vista, entretanto, veremos que sempre existiram empreendimentos em rede. A rigor, todos os empreendimentos são em rede porque "embaixo" de qualquer empreendimento existe uma rede articulada e animada pelos empreendedores.
Mas essas redes não são identificadas como empresas, quer dizer, como unidades administrativo-produtivas separadas do meio, isoláveis e, portanto, identificáveis do ponto de vista do seu padrão de organização (como se fossem caixas fechadas). É uma trama de relações que se
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confunde com o meio, pois em uma rede não existem fronteiras claras, paredes opacas separando o que está dentro do que está fora. As fronteiras em uma rede são fronteiras de identidade que não se cristalizam como separações se não houver acentuado grau de centralização da rede.
Nenhuma empresa fará uma transição "acabada" (e, portanto, claramente identificável para servir de exemplo ou modelo) para um padrão de rede na integralidade da sua estrutura e do seu funcionamento, mas... eis a questão: nenhuma empresa, de qualquer tamanho, poderá evitar a aplicação (ou melhor, a realização) de processos de rede no seu interior e no seu ecossistema, se quiser aumentar suas chances de evitar o risco sistêmico - um risco de colapso ou morte por baixa interatividade (que se revela como queda simultânea de inovatividade e produtividade, mesmo em situações de alto crescimento) - que ameaça todas organizações hierárquicas em um mundo cada vez mais em rede. Na medida em que descobrirem isso, as empresas implantarão processos de rede no seu ecossistema: não para ganhar mais e sim para durar mais.
Resumindo mais uma vez: as empresas tradicionais - enquanto tais - na maior parte dos casos, não vão virar totalmente redes (mais distribuídas do que centralizadas), mas também não vão poder evitar as redes! Num mundo de alta interatividade a organização que não tiver uma estrutura e uma dinâmica adaptáveis à interação tende a desaparecer ou a se tornar obsoleta e irrelevante.
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Os processos de rede que uma empresa já está sendo compelida a realizar (sobretudo porque está condenada a inovar permanentemente enquanto que sua estrutura e sua dinâmica foram desenhadas para a reprodução e não para a inovação) vão, progressivamente, tornando sua estrutura cada vez mais distribuída e sua dinâmica cada vez mais democrática (ou pluriárquica). No limite, pode-se dizer que - se sobreviver - ela acabará virando rede mesmo: mas, quando isso acontecer, não será mais identificável como aquela empresa original. Porque não será mesmo. Será outra coisa.
Existem, por certo, muitas grandes organizações (não-empresariais), consideradas bem-sucedidas, que se estruturam claramente em rede; por exemplo, como empreendimentos sociais, os AA (Alcoólicos Anônimos) e o CVV (Centro de Valorização da Vida); e, como empreendimentos sociais virtuais, o eMule e numerosos outros. Existem também empreendimentos lucrativos que já começaram em rede, mas grande parte desses entra naquela categoria não facilmente identificável por quem está com o "velho binóculo", procurando "empresas hierárquicas em rede". Querer achar exemplos de "empresas hierárquicas em rede" para conquistar o cliente ou convencer o interlocutor é cometer uma não-verdade. Vamos ver alguns exemplos:
Google - muitas vezes apresentado como empresa em rede para convencer o interlocutor de que podemos ter grandes e bem-sucedidas empresas em rede - não é, definitivamente, uma empresa em rede. Google é uma empresa hierárquica, fortemente centralizada, ainda que tenha "regiões" e funções estruturadas em rede com graus significativos
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de distribuição. E ainda que lance mão - até pela natureza do seu negócio - de processos e ferramentas mais compatíveis com mundos em rede, mesmo assim não é rede. Quando Google quis aumentar sua inovatividade, o que ele fez? Criou (para todos os efeitos práticos de gestão) outra empresa (a GoogleX) que funciona na base de comunidades de projeto (e, portanto, mais em rede); e fez isso para escapar dos modelos de gestão comando-e-controle que seu mainframe (centralizado) foi obrigado a adotar para dar conta de regular um metabolismo compatível com sua natureza de empresa hierárquica, fechada, em luta permanente contra inimigos, com um rígido código de segredo (que lembra, mal-comparando e exagerando um pouco, alguma coisa como a Omertà mafiosa).
Outro exemplo: Airbnb não é uma empresa em rede. Ainda que tenha adotado uma "rede" de recursos descentralizados de terceiros e tenha aberto mão de erigir um mainframe proprietário centralizador, a estrutura e a dinâmica de Airbnb não é a de uma rede (mais distribuída do que centralizada). Todavia, como Airbnb é um negócio inovador, com estrutura e dinâmica não tradicionais e como é um empreendimento de sucesso (no início deste ano tinha algo como 10 milhões de nights booked, sem ter sequer um hotel), então ficamos tentados a apresentá-lo como exemplo de empresa em rede. Se fazemos isso apenas para ganhar o cliente ou convencer o interlocutor, sabendo que Airbnb não é de fato uma organização em rede, então decaímos para um estado de conversação de não-verdade.
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Como disse Nilton Lessa, "dar exemplos de Google e Airbnb como empresas em rede é (quase) o mesmo que dizer que o exército americano é uma organização em rede porque está adotando modos-de-combate mais flexíveis em seus pelotões".
Olhando as coisas de outro ponto de vista, entretanto, veremos que em todas as empresas já temos rede, que nas profundezas das entidades empresariais que foram erigidas hierarquicamente existem redes e que sem essa "empresa-viva" subterrânea (como uma floresta de clones fúngicos), ainda que soterrada por entulho hierárquico, nenhuma empresa poderia florescer. Mais do que isso! É dizer que esse entulho hierárquico (operando por meio de obstruções de fluxos), conquanto viabilize o funcionamento de eficazes mecanismos de reprodução, impede que a empresa configure ambientes favoráveis à inovação, sem os quais ela (a empresa) terá dificuldade de aprender, quer dizer, de mudar-com-o- mundo, realizando sua alostase (o único processo capaz de viabilizar sua sustentabilidade).
A adoção de processos de rede em uma empresa implica sempre riscos. Mas como qualquer outro processo em uma atividade empresarial, em geral não há o risco imediato de destruir a empresa. Não por isso.
O risco maior, entretanto, é o de não acontecer nada, nenhuma mudança, como ocorre com frequência em aplicações de rede em empresas promovidas por consultorias de inovação, num jogo de cartas marcadas entre os contratadores e os consultores (para que não aconteça nada). A gerência média das empresas - a burocracia que constitui a sua hierarquia
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propriamente dita - vai tentar sempre agir como anticorpo corporativo para impedir as mudanças (aquelas mudanças que ela perceber como ameaças e que avaliar como riscos para a homeostase da organização, quer dizer, que ameaçarem mudar seu "firmware" ou seu "bios" - onde estão programados seus parâmetros de adaptação) e isso será feito independentemente das diretivas dos donos, dos acionistas majoritários, do CEO ou da alta administração da empresa. É uma função sistêmica (daquele tipo de sistema) e, portanto, dificilmente sujeita às ordens dos que estão no comando. É por isso, por exemplo, que o CEO não manda efetivamente na TI, nem no RH, nem no Jurídico, que funcionam da mesma maneira em qualquer empresa semelhante: porque os sistemas são homólogos. Diferentes ramos de negócios, entretanto, se comportarão diferentemente: empresas da área do conhecimento terão menos resistência às mudanças do que empresas fabris da "era das chaminés" (como siderúrgicas) ou, menos ainda, do que empresas extrativistas (como madeireiras).
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NNOOTTAA
As citações de Fernando Baptista e Nilton Lessa foram comunicações pessoais com o autor