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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
      CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE                      PRIMEIRA VERSÃO
                                                                ISSN 1517-5421     lathé biosa   33
          PRIMEIRA VERSÃO
     ANO I, Nº33 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002
                        VOLUME III

                       ISSN 1517-5421


                         EDITOR
                   NILSON SANTOS


                 CONSELHO EDITORIAL
            ALBERTO LINS CALDAS - História
             ARNEIDE CEMIN - Antropologia
            FABÍOLA LINS CALDAS - História
         JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia
                MIGUEL NENEVÉ - Letras                               MITOS TAL QUAL VÍRUS:
            VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia
                                                               ANÁLISE DE UMA NARRATIVA VIRTUAL
Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times
New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”
           deverão ser encaminhados para e-mail:

                     nilson@unir.br                                                        ARI OTT
                     CAIXA POSTAL 775
                                                                                 WALDEMIR MIOTELLO
                     CEP: 78.900-970
                      PORTO VELHO-RO


                TIRAGEM 200 EXEMPLARES


      EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
ARI OTT                                                     VALDEMIR MIOTELLO                                                                    MITOS TAL QUAL VÍRUS:1
Médico, Professor de Antropologia - UFRO                    Professor de Filosofia - UFRO                                                   ANÁLISE DE UMA A NARRATIVA VIRTUAL
amto@terra.com.br                                           miotello@unir.br




           Nunca escrevemos este artigo que você começou a ler. Ele apenas existe virtualmente. Jamais foi impresso, não foi rascunhado no papel. Ele é resultado da
troca de vários mail's entre seus autores. E trata-se de uma primeira aproximação analítica acerca de um mito (transcrito a seguir) que vem sendo sistematicamente
transmitido na rede mundial de computadores.
           A Internet é reconhecida como a mais importante ferramenta de comunicação deste final de século. Utilizada tanto para pesquisas, quanto para negócios, foi
também invadida por todo tipo de mensagens (cookies), campanhas e narrativas. Abriga alguma coisa em torno de quatrocentos milhões de páginas que contemplam
desde empresas transnacionais, até páginas pessoais. Possibilita, com seus instrumentos de busca, que uma palavra chave leve o internauta a ter que escolher entre
centenas de milhares de possibilidades de consulta, sem a menor certeza de qual página terá a informação procurada.
           Mais que isso, estabeleceu um correio eletrônico inovador, que dispensa papel, envelope, selos e carteiro. O usuário da rede organiza um catálogo de endereços
eletrônicos e, ao escrever ou receber uma mensagem que considere que deva ser compartilhada por todos, simplesmente clica em um botão que (re)envia a mesma
mensagem para todos os constantes do seu catálogo. Esta função dos programas de correio eletrônico é importante porque faz a mensagem disseminar-se
exponencialmente, atingindo milhares, quiçá milhões de pessoas em algumas horas ou dias.
           Que narrador poderoso! Tão poderoso que vê sua mensagem multiplicada praticamente a um número não pronunciável de leitores, tantos podem ser eles. A
facilidade do meio possibilita que se multipliquem as mensagens de todo tipo: apoio ou repúdio às mais variadas causas, histórias, piadas, frases, ditos e brocados dos
mais variados temas e mensagens edificantes. Narrativas míticas também trafegam na Internet.
           Denominamos narrativas míticas, ou simplesmente mitos, em acordo com as definições clássicas, os relatos de autor desconhecido, partilhados pelos membros
de uma sociedade, enunciados em uma linguagem alegórica e carregados de significação simbólica. Os mitos foram objeto quase exclusivo de estudo da antropologia
que coletou e analisou mitos de grupos indígenas do mundo inteiro. Posteriormente, reconheceu-se que as narrativas míticas também estavam presentes entre grupos
urbanos. Agora, indicamos que estes mitos mantêm a sua perenidade, ocupando os novos meios de comunicação.


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    Artigo publicado na Revista Brasileira de Literatura, disponível apenas no site: http://www. members.tripod.com/~lfilipe/Indice2.html


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É como narrativa mítica que estamos considerando o e-mail recebido por um dos autores e transcrita no tópico 2. Também neste tópico serão explicitadas as
razões pelas quais o consideramos um mito, especificadas as outras fontes de recebimento do mesmo e as reações das pessoas para quem ele foi enviado. O tópico 3
analisa o papel do narrador nos mitos virtuais. Tentar-se-á responder algumas questões: em se tratando de uma narrativa, transmitida por meio eletrônico, quem é o
narrador? E os que apenas encaminham a narrativa para usuários de seus cadernos de endereços também se constituem em novos narradores, ou são apenas re-
transmissores eletrônicos de uma narrativa narrada por outrem? Quem são os novos narradores (os narradores eletrônicos) hodiernos? São os que têm tempo e dinheiro
para estarem diante de um computador ligado ao mundo por um modem, ou são os que têm prazer e gosto pelo narrar, mesmo fazendo uso de equipamento eletrônico?
Algumas conclusões são apontadas no tópico 4. O trabalho não traz uma bibliografia tradicional, mas sim uma netgrafia comentada no tópico 5, onde estão indicados
os endereços na rede para aprofundamento das informações.
        O seguinte fato aconteceu faz só uma semana em Buenos Aires. Um jovem decidiu ir a uma festa numa discoteca de lá "Esta Disco". Estava se divertindo
bastante, bebeu algumas cervejas e conheceu uma garota que parecia gostar dele e que o convidou para outra festa. Logo ele aceitou e decidiu ir com ela. Foram a um
apartamento onde continuaram tomando cerveja. Aparentemente lhe deram droga (não é sabido qual). Depois disso só se lembra de ter acordado nu, numa banheira
cheia de pedras de gelo. Ainda sentindo os efeitos da droga e da cerveja, olhou em volta e estava completamente só. Havia um bilhete colado na parede escrito: "Ligue
para o Pronto Socorro no seguinte número ou morrerá." Viu um telefone por perto e ligou de imediato. Relatou o acontecido explicando que não sabia aonde estava, o
que tinha bebido, e o motivo da sua ligação. A atendente o orientou para sair da banheira e se olhar no espelho. Aparentemente estava normal. Então foi orientado para
revisar as costas. Ai percebeu 2 cortes de 15 cm. cada na parte baixa das costas. A atendente o orientou para entrar de novo na banheira e aguardar até chegar a equipe
de emergência que seria enviada.
        Infelizmente tinham ROUBADO OS SEUS RINS e foi levado ao Hospital "Fernández". Cada rim tem um valor de 15,000 a 20,000 dólares no
mercado Negro (ele nem sabia que isso existia). Algumas deduções podem ser feitas: A segunda festa era uma farsa, as pessoas envolvidas tinham
conhecimentos médicos e as drogas que lhe deram não eram para nada divertido. Atualmente, essa pessoa esta no Hospital Fernández, conectado a um
sistema que o mantêm vivo, esperando encontrar um rim compatível. Atualmente estão sendo realizados estudos de compatibilidade para encontrar um
doador. Existe uma nova máfia do crime organizado que tem como alvo pessoas que viajam a trabalho ou estudo. Esta máfia esta bem organizada, financiada
e conta com pessoal altamente especializado. Age em muitas grandes cidades e recentemente está muito ativa em Buenos Aires.
        O crime começa quando a pessoa vai ao barzinho, boate ou discoteca. Uma pessoa se aproxima e ao vê-lo sentado só (de preferência) ou com um grupo de
amigos, começa a bater papo. Na próxima cena, a pessoa acorda num quarto de hotel ou num apartamento, submergido em gelo na banheira, e só consegue lembrar da
última bebida que tomou. Há algum bilhete colado na parede para ligar para o Pronto Socorro. Ao ligar, as atendentes, que já conhecem este crime, o orientam para


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checar cuidadosamente e sentir se tem um tubo que sai da parte baixa das costas. Caso a pessoa encontre o tubo e responda positivamente, a atendente pede para ele
não se mexer, e aciona os paramédicos para auxiliar. Ambos os rins foram retirados.
           Isto não é uma farsa ou um conto de ficção; é real, tem sido documentado e confirmado. Se você sai só ou conhece alguém que o faz, preste muita atenção.
Existem médicos experientes e inescrupulosos que cometem este tipo de crime. A Polícia Federal tem recebido notícias sobre estes fatos, e está preparando o seu
pessoal. Por favor, comente esta história, conte-a a todas as pessoas que puder.”

           Esta versão foi recebida sem comentários do remetente. Aliás, ele é o principal correspondente de um dos autores deste artigo no que se refere ao envio de todo
tipo de história que cai na rede. Alguns dias depois, a mesma versão foi novamente recebida, desta feita enviada por uma correspondente brasileira que mora nos
Estados Unidos. Ela tinha recebido a narrativa e estava enviando (Fwd) a mensagem para todos os seus correspondentes, em atendimento ao pedido de repassar o
alerta, e precedida de alguns comentários: Essa mensagem veio de uma delegacia de polícia de Campinas. Como coisas deste tipo realmente acontecem é melhor
prevenir e passar a estória para o maior número de pessoas possíveis. Por sua vez, a pessoa que originalmente havia mandado a narrativa para ela também fazia alguns
comentários: A história abaixo parece muito esquisita... mas como recebi de uma delegada de polícia, achei melhor seguir o conselho de passá-la adiante! (grifos
nossos).
        O envio da narrativa para outras pessoas do catálogo de endereços dos autores provocou algumas reações. Ora de dúvida (...mas alguém sem os dois rins
consegue sobreviver por algum tempo??), ora de estupefação (...a que ponto chegamos!), ora de conformismo (não se pode ficar mais tranqüilo hoje em dia), ora de
ares apocalípticos (...teoria da conspiração, loucura ... recebi este e-mail, não sei se é verdade. Mas por precaução, vamos lê-lo), ora de certeza de ser o Salvador
(...esta eu recebi e achei melhor encaminhar pra ser divulgada e repassada), mas nenhuma de desconfiança, ceticismo ou pronta negação acerca da veracidade da
narrativa. Ou seja, o relato era tomado, a medir pelas reações tanto daqueles que a estavam enviando, quanto daqueles que estavam recebendo e respondendo a
mensagem, como não somente aceitável, mas também como verídica e possível de se repetir em qualquer outro lugar e com qualquer outra pessoa. Daí a urgência
encontrada em todos eles de divulgar esta coisa tão trágica de Buenos Aires...
           Não importa, de um ponto de vista objetivo, cirúrgico, se a narrativa é plausível ou inverossímil. O que a transforma em um mito, e não em um relato
jornalístico, é que ela contém os elementos alegóricos e lingüísticos que fazem aflorar os medos milenares, as explicações esdrúxulas, os sonhos retidos por séculos, as
neuroses embutidas, as lições de moral repetidas à exaustão e os arquétipos já atualmente soterrados de explicações racionais. Os personagens arquetípicos de mitos são
conservados, transmitidos e transformados para as gerações seguintes. O Prometeu acorrentado dos gregos teve o fígado arrancado pelos abutres. O Matin-ta-pereira
dos amazônidas e o Mapinguari assustador, um índio envelhecido e endurecido pela falta de água e comida, andam pela floresta para levar embora os que se atrasam à
noite sobre as horas combinadas para estar em casa. O Homem com o saco nas costas vagueia pelas ruas de nossas cidades, carregando as crianças, sumindo com elas,

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levando-as para um lugar escuro, de onde não voltam mais. A Garota da Noite, bela e sedutora por suposto, e o Médico Nefrologista, hábil e inescrupuloso com
certeza, espreitam pelos bares à caça de sadios inocentes.
        Para além dos personagens, devem ainda ser considerados dois aspectos: o tempo e o espaço das narrativas míticas. A indeterminação temporal é um elemento
constante das narrativas míticas. Daí as formas próprias que introduzem a narrativa: era uma vez, ou no tempo em que os bichos falavam, ou aconteceu faz só uma
semana e assim por diante. Quanto ao espaço ou ele é indeterminado, a Terra do Nunca, ou é inacessível aos seres humanos, o Olimpo. Esta indeterminação ou
inacessibilidade temporo-espacial possibilita a atualização da narrativa, indicando ao ouvinte que aquilo que ocorreu no pretérito e alhures pode vir a ocorrer
novamente neste tempo e neste lugar. Mas, no caso desta narrativa, se o tempo é melífluo, o lugar está bem estabelecido e acessível: Buenos Aires, acrescentando um
nome de uma discoteca e de um hospital. Se se considerar que a Buenos Aires da narrativa é a capital da Argentina, situada às margens do rio da Prata, com suas
multidões de desempregados, falta de luz por onze dias consecutivos, um sistema previdenciário em frangalhos e um sistema de saúde privatizado, a narrativa perderia
o seu caráter mítico de indeterminação de lugar, e não seria um mito, mas uma narrativa jornalística plausível de mais uma das inúmeras mazelas das cidades
subdesenvolvidas. O leitor é tentado a quase considerar que a discoteca e o hospital existem na realidade cotidiana. Entretanto, se se considerar que a Buenos Aires
relatada é aquela dos cafés e calles floridas, com suas casas de tango e a casa rosada com primeiras damas hollywoodianas, com mulheres lindas e homens elegantes,
parecendo que saíram diretamente das vitrines para os passeios; aquela Buenos Aires que aparece nos cadernos de turismo dos jornais e revistas como o único lugar da
América Latina em que se respira um ar europeu; aquela Buenos Aires em que Gilda viveu sua tórrida paixão, está-se representando uma cidade mítica, inacessível ao
comum dos mortais. Esta cidade, este espaço, este território mítico é o palco representacional do possível e do impossível. Não é por outra razão que o personagem não
é simplesmente raptado e subjugado à força e levado para um esconderijo onde se possa dispor do seu corpo, conforme o gosto dos seus algozes. Ao contrário, o
personagem freqüenta a Buenos Aires noturna com seus encantos. Não há violência no relato; há sedução. Não há constrangimento; há convencimento. Não há dor; há
delícia. Não há urgência; há surpresa.
        Como se constitui este narrador e este interlocutor, ao redor de uma narrativa, e levada adiante por meio eletrônico? Narrador é quem narra. Há bons e maus
narradores. Não se nasce com o dom de narrar. Narrar, assim como qualquer ação ou pensamento humano, se aprende, e de fora para dentro. O que parece dom de
contar, de narrar, se aprende a duras penas, narrando, treinando talvez em família, depois enfrentando grupos maiores, expondo-se à crítica alheia, recebendo retorno do
que foi narrado. Quando este treino é feito "voz-ouvido", parece mais rápido o retorno, buscado dentro do olho do interlocutor, na sua posição corporal, nos seus "ais-e-
então?" e no seu interesse vivo. Além disso, a própria platéia vai selecionando, apontando e elegendo seus narradores por conta de suas performances. Mas, como isso
se dá nos meios eletrônicos? Como se elege um bom narrador na rede? Como ele chama a si esta responsabilidade de ocupar este espaço de narrador cibernético?
        Não se pretende ter as respostas completas, mas pode-se avançar pouco a pouco na tentativa de, senão explicar, pelo menos alcançar algum entendimento
acerca deste novo fenômeno. O mito nasce na oralidade. Não haveremos de afirmar diferente apenas porque as narrativas míticas do final do século XX começaram a
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navegar na rede de computadores. Trata-se, evidentemente, de um novo meio de comunicação e veiculação, usado ao mesmo tempo pelo locutor e pelo interlocutor,
mas que não desvincula o nascedouro do viveiro. O mito trafega na internet encapsulado em bits, e no entanto ele continua nascendo na oralidade, no contato boca-
ouvido, nos serões noturnos, nas rodas de causos. O relato mítico atual que navega online, teve como manjedoura os arquétipos universais, que vão se modificando e se
adaptando às novas formas de sociabilidade, mas que preservam o projeto-de-dizer original, que mexem com as emoções mais recônditas e subterrâneas da humanidade
do homem. Sua nova vestimenta atual é resultado de novas leituras em cima de novas realidades. Mas o mito, talvez pudéssemos dizer assim, continua o mesmo: a
casa, este território familiar, agora mais do que nunca, oferece segurança, tranqüilidade, aconchego e proteção; na rua, este território inóspito, somente se encontra
perigo, violência, ardis e armadilhas. A narrativa é (re)criada a cada vez que ela é (re)contada. Ou, no dizer popular, "quem conta um conto aumenta um ponto".
        Mas como fica esta questão, uma vez que no meio eletrônico a narrativa já vem exibida na tela, e quase sempre é repassada (fwd) sem modificação? Nesse
caso, ela permanece a mesma narrativa, como em um livro impresso em milhares de exemplares? A nossa resposta é não e devem ser considerados três aspectos. O
primeiro aspecto da recriação, diz respeito aos comentários que o narrador (retransmissor) introduz no cabeçalho da mensagem, de caráter absolutamente pessoal. São
neles que o narrador atualiza e interfere na narrativa, imprime suas marcas, aumenta um ponto, apela para argumentos de autoridade, produz o “aggiornamento”, e
assim por diante. Grifamos anteriormente as expressões “delegacia de polícia de Campinas” e “delegada de polícia”, correspondentes aos comentários de dois
narradores. Embora similares, as duas expressões guardam diferenças abissais. Entre uma delegacia de polícia, impessoal, assustadora no imaginário, e uma delegada
de polícia, amiga e conhecedora dos meandros legais, as autoras da retransmissão interferem na narrativa, acrescentam sua própria visão e recriam o mito, mapeando o
“projeto-de-ouvir” do interlocutor. O segundo aspecto da recriação acontece à medida em que o leitor-interlocutor da mensagem re-conta-a para um novo interlocutor,
quando então ela volta para a oralidade, e continua seu caminho, adaptando-se, re-novando-se, re-vestindo-se de novas roupas, míticas e lingüísticas, a partir de cada
realidade em que ela novamente se insere. O que se ganha com o meio eletrônico é em velocidade de difusão, pois que um mesmo narrador pode enviar sua narrativa
para milhares de novos interlocutores. E quando um interlocutor destes se põe a narrar a narrativa que leu, para um público presente e atuante, ele veste cada palavra
com o seu acento apreciativo, com seu tom de voz, procura o melhor ambiente adequado, a melhor hora, o melhor clima, para jogar na corrente sem fim da
comunicação humana uma narrativa que produza os efeitos desejados por ele. Agora a narrativa vai ter o seu tom, vai carregar o seu projeto-de-dizer (se for um médico
ou um dono de bar ou um pai a contar a narrativa de Buenos Aires ela ganha direção e conotação diferenciadas). E, finalmente, o terceiro aspecto é o que permite ao
narrador eletrônico selecionar seus interlocutores, às vezes de uma lista imensa de destinatários disponíveis no seu “caderno de endereços”. Entre seus endereços pode
haver pessoas a quem ele não encaminha determinada mensagem, por não corresponder ao perfil dos que sentiriam prazer de ler tal narrativa. Assim, dependendo da
mensagem, ela é encaminhada a determinada pessoa, ou mesmo a determinado grupo de usuários. Cada narrador eletrônico seleciona seus ‘ouvintes’ e monta sua “roda
de causos” eletrônica.


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O re-transmissor da narrativa passa a ser também um autor. Sendo um elo desta incomensurável cadeia de narradores, recebendo narrativas e selecionando
aquelas que devem ser re-transmitidas, funciona como um fiel depositário dos dados que estão circulando no imaginário de sua sociedade e de sua cultura, de sua
comunidade e de sua família. Ele é quem seleciona e organiza os dados, como se escolhesse o que tirar de um velho baú onde estão as substâncias conjeturais de sua
narrativa. Tanto ao utilizar este depósito narrativo atemporal, quanto ao proceder a uma rigorosa seleção estabelecida por critérios pessoais, ele também re-inventa, re-
cria, re-faz a história, misturando novos elementos, organizando de formas diferentes, e incluindo dados que ainda não estão no baú da cultura, mas que passarão a estar
a partir de sua narração.
         Ele é quem introduz na narrativa as marcas de sua individualidade, além de produzir uma narração única e irrepetível. É o ato de fiar a experiência
própria da vida no fio que se perde no tempo e no espaço. Cada nova roda apresenta uma nova ordem, um novo arranjo, que exige novos dotes e novos
esforços da imaginação, e que mobiliza, simultaneamente, tradição e inovação, individualidade e coletividade, o já-dito, o dito-agora e o por-dizer. É a
tecitura infinita das histórias no clicar de um botão. As narrativas, principalmente as narrativas míticas, encontram sua legitimidade e sua historicidade não
só no fato de serem imemoriáveis e serem parte da dimensão ideológica do grupo. Mas, também, por significarem re-apropriação, re-tomada de conteúdo do
imaginário grupal perdido nos desvãos da memória por alguém que vai trabalhar estes dados de forma personalizada, historicizada, demonstrando assim suas
habilidades performáticas e seu trato com as coisas públicas. Dessa forma, a voz que narra revela a dinamicidade da narração e se coloca como contraponto,
re-atualizando o conteúdo.
         Ao final, voltamos a Prometeu. Do herói mítico, que roubou o segredo do fogo dos deuses e o entregou aos homens, os abutres retiravam o fígado aos pedaços.
De nosso herói portenho foram retirados os rins inteiros. Ambos sobrevivem à tortura. Prometeu, acorrentado à montanha, porque o fígado regenera-se mesmo com as
bicadas dos abutres, e o nosso herói anônimo, adormecido em uma banheira de gelo, porque a tecnologia interfere a favor dele. Prometeu relaciona-se com os homens,
e esta relação o salva da morte, destino inexorável de todos; o nosso herói relaciona-se com os homens e com as mulheres, acredita neles e nelas, encontra-se com a
morte, mas termina sobrevivendo por interferência de uma máquina. O homem maquínico, eis o resumo do século.


                                                                 NETGRAFIA COMENTADA
a) Faria muito bem ler Walter Benjamim para aprofundar o estudo do narrador. Assume o papel de narrador em uma dada comunidade quem tem ligações amplas
   com o mundo circundante (um marinheiro, por exemplo), ou quem está profundamente arraigado em seu próprio meio (como um agricultor). Maiores reflexões
   podem ser obtidas em http://www.urbi.com.br/users/jlbelas/texto02.htm
b) Um estudioso como Mikhail Bakhtin não pode ficar sem ser lido para aprofundar a questão da relação entre o locutor e o interlocutor, entre o sujeito e o outro.
   Acha-se excelentes subsídios no Centro Bakhtiniano, localizado na Inglaterra, em http://www.shef.ac.uk/academic/A-C/bakh/bakhtin.html



                                                                                                                                                                       7
c) Sobre mitos e lendas em geral, basta procurar em “Altavista” que milhares de sites serão revelados; e então cabe uma busca com calma. Mas sobre mitos e lendas
    da Amazônia, o site http://www.mtbrazil.com.br/amazon4.html é um bom começo. Para mitos e lendas brasileiras clique-se
    http://www.nautilus.com.br/~edilzio/folclore.html
d) Com relação ao imaginário nas formas narrativas orais populares, a Universidade Federal do Pará coletou milhares delas, e colocou à disposição no site
    http://www.ufpa.br Entre nesta página e logo em seguida clique em pesquisa, e depois procure "O imaginário nas formas narrativas orais populares da Amazônia
    Paraense". É divertimento na certa.
e) Se tiver curiosidade sobre mitos e musas da mitologia grega, comece sua pesquisa por http://www.geocities.com/Athens/Olympus/7866/musas.html
    Não pare por aí. Os hackers e anti-hackers também disponibilizam muitas narrativas sobre os mitos pós-modernos que a própria rede produz, como são os que
invadem os mail's falando de milhões de vírus super-perigosos que invadirão e destruirão seu computador em apenas alguns segundos. Para alguma informação inicial
vá a http://www.netgate.com.br/~hacker/ahhp/basico/mitos/lendas/main.htm É a criatura assustando o criador. Se não nos enganamos, esta história já está narrada na
primeira página da Bíblia. Melhor expulsar o computador de seu paraíso enquanto há tempo... parece que ele comeu do fruto da árvore do conhecimento (só não comeu
da árvore da vida porque Eva chegou primeiro).




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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
      CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE                      PRIMEIRA VERSÃO
                                                                ISSN 1517-5421         lathé biosa   34
          PRIMEIRA VERSÃO
     ANO I, Nº34 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002
                        VOLUME III

                       ISSN 1517-5421


                         EDITOR
                   NILSON SANTOS


                 CONSELHO EDITORIAL
            ALBERTO LINS CALDAS - História
             ARNEIDE CEMIN - Antropologia
            FABÍOLA LINS CALDAS - História
         JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia
                MIGUEL NENEVÉ - Letras                         UM POUCO DE HUMOR NA ANÁLISE DO
            VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia
                                                                    DISCURSO: RESGATANDO A
Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times
                                                                   SUBJETIVIDADE DISCURSIVA
New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”
           deverão ser encaminhados para e-mail:

                     nilson@unir.br
                                                                                 NAIR F GURGEL DO AMARAL
                     CAIXA POSTAL 775
                     CEP: 78.900-970
                      PORTO VELHO-RO


                TIRAGEM 200 EXEMPLARES

     EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA


                                                                                                          9
Nair F. Gurgel do Amaral                                                                 UM POUCO DE HUMOR NA ANÁLISE DO DISCURSO:
        Professora de Lingüística – UFRO                                                         RESGATANDO A SUBJETIVIDADE DISCURSIVA
        naigel@unir.br




        Desde o surgimento da Análise do Discurso de linha francesa, no final dos anos 60 por Michel Pêcheux , que essa linha de estudos tem demonstrado ser um
campo de pesquisa muito fértil. A Análise do Discurso surgiu na conjuntura política e intelectual francesa, marcada pela conjunção entre filosofia e prática política, já
como um campo transdisciplinar. Atravessou fronteiras e movimentou o campo das ciências humanas, constituindo-se hoje em uma disciplina transversal.
        Os principais estudiosos da Análise do Discurso reuniam reflexões sobre o texto e a história, resultando daí uma análise textual que envolvia a Lingüística, o
Marxismo e a Psicanálise. Saussure-Marx-Freud são as três balizas da proposta de Pêcheux, situando a Análise do Discurso em três regiões do conhecimento: a) na
Lingüística – com a problematização do corte saussureano - teoria lingüística; b) no Materialismo Histórico - por meio da releitura althusseriana de Marx - teoria da
sociedade; c) na Psicanálise – por meio da releitura lacaniana de Freud - teoria do inconsciente. Michel Foucault (França, 1926-1984) filósofo, intelectual e polêmico,
militante das causas das “minorias”, problematiza sobre a ciência histórica, suas descontinuidades, sua dispersão, que resultará na abertura do conceito de formação
discursiva, na discussão entre os saberes e os (micros) poderes, na preocupação com a questão da leitura, da interpretação, da memória discursiva. Foucault abordou o
discurso, principalmente em As palavras e as coisas (1966); Arqueologia do saber (1969) e A ordem do discurso (1972) de onde vêm vários conceitos para a Análise
do Discurso francesa. Somente mais tarde, Mikahil Bakhtin (Rússia, 1895-1975) nos dá a idéia da heterogeneidade, do dialogismo, da inscrição da discursividade em
um conjunto de traços sócio-históricos, em relação ao qual todo sujeito é obrigado a se situar. Bakhtin era teórico da lingüística e da literatura e viveu na Rússia
stalinista, motivo pelo qual sua obra só foi traduzida no Ocidente no final da década de 60 (Marxismo e Filosofia da Linguagem, escrito em 1929). Bakhtin é conhecido
primeiramente na teoria da literatura com a obra Problemas da Poética de Dostoiévsky (1963); Estética e Teoria do romance (1975); Estética da criação verbal
(póstumo 1979). É nesse período que ele influencia os franceses da Análise do Discurso. A Lingüística vai descobrir Bakhtin bem mais tarde, nos anos 90: seus
conceitos de “gênero” e “dialogismo” passam a circular em muitos trabalhos.
        Nos anos 80 as propostas de Pêcheux vão-se aproximar de outros fundadores. Nos seus últimos escritos, Pêcheux já acena para várias aberturas, deslocando-se
da primazia sobre o discurso político, sobre a materialidade escrita, para encontrar outras formas materiais, outros regimes de materialidades.
        Para o trabalho que proponho desenvolver, destaco Michel de Certeau, (França, 1925 - 1986), considerado um dos melhores teóricos da Nova História. Com
seus livros A invenção do cotidiano: artes de fazer (1990) e A invenção do cotidiano: morar, cozinhar, De Certeau nos brinda com as propostas de análise dos

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discursos do cotidiano, a reflexão sobre a escrita da história e a emergência das resistências. Pensador de inteligência brilhante e não conformista, contribuiu nas áreas
de Filosofia, Letras Clássicas, História e Teologia, pesquisador da história dos textos místicos desde a Renascença até a era clássica, interessa-se não só pelos métodos
da Antropologia e da Lingüística, como também pela Psicanálise. Anticonformista e perspicaz, foi um inconformado com os cânones de uma disciplina rígida e
censurado por colocar em dúvida a forma da escola francesa de História. Sua principal contribuição foi questionar a suposta passividade dos consumidores. Ele acredita
na criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade oculta num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo
uma “maneira própria” de caminhar pela floresta dos produtos impostos.
        A questão do assujeitamento, colocada pela Análise do Discurso francesa, especialmente em sua primeira fase, através de Michel Pêcheux, sempre me
incomodou. Nessa fase, conforme dito acima, ressalta-se a idéia de inconsciência dos sujeitos envolvidos numa interação discursiva, já que os sujeitos ocupam posições
pré-estabelecidas pela formação social a que pertencem. Nessa situação, os sujeitos produzem um discurso que, na verdade, é um “já dito”, uma vez que ele não é a
origem do discurso. O discurso é produzido sempre em condições dadas, pré-estabelecidas por uma determinada formação discursiva.
        Naturalmente que não tenho a pretensão de questionar o assujeitamento ideológico pelo qual todo sujeito é atingido. O que me inquieta é a simplificação que se
faz do sujeito, conferindo a ele um tratamento, no mínimo, reducionista, e o estatuto que se confere ao discurso, de ser fechado, concebido em um lugar no qual o
sujeito não interveio, apesar da heterogeneidade de que esse discurso é constituído.
        Entretanto, questionar o tratamento reducionista que a Análise do Discurso dá ao discurso e ao seu sujeito não é, de maneira alguma, questionar o seu valor.
Ela coloca questões de grande importância, como a noção de condições de produção, e o jogo de imagens (Pêcheux,1969). O próprio Pêcheux, em Discurso: Estrutura
ou Acontecimento (1983), procura rever alguns de seus postulados teóricos. Reconhece o tratamento reducionista que vinha dando ao discurso e a seus sujeitos e
procura reconsiderar a particularidade discursiva do enunciado. No entanto, o conceito de assujeitamento não se altera em Pêcheux (1983): “o sujeito continua
‘controlado’, mesmo que seja por ‘acontecimentos’, por efeitos de sentido (um saber não articulável, inacessível, portanto) que foge ao que o autor considera como
parte do pré-concebido. O sujeito, então, não constrói o discurso e nem a história, apenas os organiza!!!. Tudo acontece abstraindo a ‘ação’ desse sujeito, mesmo
porque a equivocidade, a elipse, a falta, que poderiam ser consideradas como brechas para a ação desse sujeito, são consideradas por Pêcheux como fatos estruturais,
como próprias da estrutura da língua (do pré-concebido). É o primado da estrutura sobre o acontecimento.
        Com a finalidade de postular um lugar de destaque para o sujeito do discurso, sem, entretanto, deixar de considerar as condições de produção a que está
submetido, seja por questões ideológicas ou sócio-históricas, é que tento encontrar em textos humorísticos vestígios que demonstrem, principalmente através da
linguagem, um trabalho do sujeito estrategista, resgatando-o da passividade e do assujeitamento imposto pela ideologia. Como a minha intenção é evidenciar o papel do
sujeito no discurso e demonstrar que ele, estrategicamente, deixa vestígios nos textos que produz, espero, com o auxílio dos textos humorísticos, deixar claras essas
marcas de subjetividade, ou do não assujeitamento, onde se torna evidente o trabalho do sujeito.
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O meu interesse pelo humor surgiu devido a essas questões colocadas pela Análise do Discurso. Sob essa perspectiva teórica, é possível dizer que as piadas,
sendo discurso, servem à ideologia, e que os sujeitos envolvidos no discurso humorístico são tomados pela inconsciência inerente ao processo de assujeitamento
ideológico pelo qual passam todos os sujeitos do discurso. Dessa forma, os sujeitos têm a ilusão de que dominam o próprio discurso, mas, na verdade, são dominados
por ele. O falante, nessa perspectiva teórica, não passa de um porta-voz de discursos que o antecedem. O ‘eu’ é, nessa versão, dominado, condicionado pelo ‘outro’. O
que procurarei mostrar é que o discurso humorístico possibilita reflexões acerca do processo discursivo. A eficácia (ou não) das estratégias discursivo-argumentativas
utilizadas no discurso humorístico nos permite questionar a plena inconsciência dos sujeitos desse discurso. O sucesso do humor, ou o que faz rir não pode ser
considerado obra do acaso.
        O discurso humorístico, por se valer de alguns procedimentos discursivos mais sistematicamente produzido que outros tipos de discurso, abre espaço para que
se realize uma reflexão sobre o funcionamento discursivo que coloca o sujeito sempre e apenas como objeto da própria história e nunca como sujeito. Os exemplos
abaixo mostram textos construídos a partir de modelos muito estereotipados, conhecidos, onde é possível perceber a presença da subjetividade, isto é, o trabalho do
sujeito a partir de outro texto. Ou seja, há o discurso do outro, mas existe também o trabalho do eu. São provérbios reescritos, desmontados.

        Quem dá aos pobres ainda tem que pagar o motel. [Quem dá aos pobres, empresta a Deus] - Ideologia Humanista.
        Quem ama o feio é porque o bonito não lhe aparece. [Quem ama o feio, bonito lhe parece] – Ideologia Conformisa.
        Impossível não perceber a presença da heterogeneidade. Sob a forma de jogo, o sujeito deixa marcas que não há como negar sua presença. O verbo ‘dar’ e sua
forma polifônica de aparecer nos discurso, permite uma manobra do autor, desviando totalmente o sentido do texto ao alterar a segunda parte do provérbio. Fenômeno
parecido ocorre no exemplo seguinte: a segunda parte é alterada e a ideologia do provérbio é desmontada.
        É relativamente fácil dizer que os exemplos acima são textos construídos a partir do discurso do outro. Isso é inegável. O que considero difícil é eliminar
totalmente a subjetividade. Vejam bem: Se aparecesse primeiro o conhecido provérbio “quem dá aos pobres empresta a Deus”, quem seria capaz de imaginar a
presença desses outros exemplos? No entanto, ao lermos estes enunciados, percebemos, imediatamente, a presença do provérbio. Com base nesses exemplos, posso
afirmar que a presença do outro não é suficiente para apagar a presença do eu, no máximo, mostrar que ele não está só.
        Embora já tenham dito que “nada é mais humorístico do que o próprio humor, quando pretende definir-se”, fico com a sabedoria de Monteiro Lobato ao dizer
que o “humor é a maneira imprevisível, certa e filosófica de ver as coisas”. É que em relação ao humor, não faltam argumentos e definições de personalidades a
respeito. Todos ressaltam, de alguma forma, que o humorismo é o único momento sério e, sobretudo sincero da nossa quotidiana mentira. Começo citando a célebre
frase de Aristóteles: O homem é o único ser vivente que ri, seguida de alguns versos do poema de Luís Fernando Veríssimo, intitulado O único animal, onde ele diz,
entre outras coisas, que “o homem é o único animal que ri dos outros”. Na verdade, estou querendo dizer que o riso é tão amplamente difundido nas formas de vida


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social do homem, podendo ser considerado fator primário de seu comportamento, que falar do riso é tentar compreender e interpretar a história do homem. Entretanto,
humor – na literatura e na vida – não é contar piada, fazer gracinhas ou ser óbvio e explícito... Não é ficar rindo à toa.
        Millôr Fernandes afirma que fazer humor “É adotar uma forma completamente desinibida e descondicionada de ver as coisas”. Para entender melhor o que
disse Millôr, recorro a outro humorista. Leon Eliachar (que teve a seguinte definição laureada com o primeiro prêmio “Palma de Ouro” na IX Exposição Internacional
de Humorismo realizada na Europa – Bordighera, Itália, 1956) define humor da seguinte forma: “Humorismo é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros. Há
duas espécies de humorismo: o trágico e cômico. O trágico é o que não consegue fazer rir, o cômico é o que é verdadeiramente trágico para se fazer.” Certo é que o
humor evidencia uma atitude intelectual do autor, que produz o seu texto com uma postura reflexiva e consciente. Além disso, peculiar no humor é que ele chama a
atenção do leitor para uma possível manifestação da linguagem. Os autores que trabalham com o humor valorizam alguns aspectos, entre eles estão a inovação e a
subversão. A inovação pode ser entendida como sendo uma nova forma de perceber velhas coisas; sem preconceitos, sem estereótipos, sem repetir o já sabido. Não
existe o medo de mudar. A subversão é revelada através do inconformismo, do rompimento com as regras, com as normas, feito através de recursos metafóricos e
lingüísticos. Alguns idealistas afirmam que são os desobedientes que movimentam o mundo.
        O riso, portanto, é uma das formas de subverter padrões, é, sobretudo, uma crítica social. As possibilidades mais simples de se inventar estórias cômicas nasce
do aproveitamento do erro. Rimos das pessoas que caem porque elas não se comportam segundo a norma humana. Este tipo de “riso de superioridade” está entre as
primeiras formas de riso de que a criança é capaz. (Ver o sucesso da ‘pegadinhas’ e das ‘vídeos cacetadas’).
        Um dos mais conhecidos textos humorísticos são as piadas. Geralmente, elas versam sobre temas socialmente controversos, onde é possível constatar
manifestações culturais e ideológicas. A maioria delas veiculam o discurso dominante e são sobre: sexo, política, racismo, loucura, morte, defeitos físicos, instituições
(escola, casamento, igreja, línguas, etc). Alguns teóricos afirmam que o papel do lingüista é explicar, não o porquê do humor, mas o como acontece o humor, ou seja,
os lingüistas trabalham onde os outros se divertem, analisando e descrevendo os fenômenos lingüísticos, envolvidos no processo de criação e interpretação do texto que
provoca o riso. Embora as piadas tenham um forte cunho cultural, social ou ideológico, (fonte de pesquisa para os sociólogos, psicólogos e antropólogos) os analistas
do discurso devem também se preocupar com essas questões, pois consideram em suas análises as condições de produção do discurso, uma vez que todo discurso
pressupõe uma memória, um acontecimento, enfim, um processo. O que veremos agora são alguns exemplos de textos que pressupõem o ‘já dito’, ou seja, o discurso
do ‘outro’, mas que demonstram de alguma forma um trabalho do ‘eu’ sujeito. Outro fator que chama a atenção ao analisarmos as piadas é que elas costumam também
veicular o discurso corrente, e ao fazê-lo utilizam-se de estereótipos. Assim: todo judeu só pensa em dinheiro; todo português é burro; todos os advogados são
corruptos; todas as loiras são burras e só pensam em sexo; todo japonês tem pênis pequeno. Vejamos alguns exemplos:

        Por que é que judeu só penteia o cabelo para trás?
        - Porque judeu não gosta de repartir nada.
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O português passava em frente a um chaveiro quando viu uma placa “Trocam-se segredos”. Parou, entrou na loja, olhou para os lados e cochichou para o
balconista:
       - Eu sou gay, e você?
        - O que o japonês faz quando tem ereção?
        - Sai de casa pra votar, né?
        Se a língua fosse monofônica, os textos acima não seriam humorísticos. O que permitiu o humor foi a presença de um sujeito estrategista que conhece as
nuances da língua e faz incursões nas construções morfossintáticas. O que comprova uma manobra do sujeito é sua astúcia na escolha das palavras e sua conseqüente
articulação. É que o sentido ou o efeito de sentido só pode ser determinado se considerada as condições de produção. A linguagem, polifônica e heterogênea
constitutivamente, possibilita ao sujeito trabalhá-la, com a finalidade, inclusive de enganar o leitor. Daí o efeito de humor: ‘repartir’, ‘trocar segredos’ e ‘ereção’
representam escolhas conscientes por possibilitarem mais de uma leitura. Por exemplo: [dividir/partir ao meio], [trocar confidências/trocar combinação numérica de
cofres], [levantamento/eleição].
        Na última piada, existe a evidente intencionalidade do autor em desviar a interpretação do leitor: japonês tem pênis pequeno = ereção. Análise lingüística: na
pronúncia dos japoneses residentes no Brasil, ou seus descendentes, existe uma substituição do L pelo R. Ex.: “do lado de lá” = /do rado de rá/, diferentemente da
pronúncia das crianças brasileiras que, até os cinco anos de idade, mais ou menos, trocam o R pelo L (ver Cebolinha da Turma da Mônica). Ex.: “para fora” /pala fola/.
        Como é possível falar em assujeitamento, quando o sujeito conhece e usa normas da linguagem, burlando estrategicamente as regras da interpretação previsível
e levando o leitor a uma resposta contrária à esperada pela “pegadinha”. Logo, “ereção” é diferente de “elevação do pênis” e igual a “eleição”, que por sua vez
pressupõe “votar”. Para De Certeau, o sujeito reinventa o cotidiano. Utiliza o ‘já dito’ para redizer de forma diferente, às vezes, atribuindo-lhe outra ideologia.
        Podemos fazer vários tipos de análise em relação aos textos humorísticos. Uma delas é considerar os diversos níveis gramaticais. Por exemplo: fonológico,
morfológico, sintático, lexical, sociolingüístico, etc. O exemplo abaixo mostra uma ‘ pegadinha’ que contempla dois níveis de análise, pelo menos. O discurso do
“outro” é percebido pela possibilidade de diferentes pronúncias (maior ou menor duração, possibilidade de pausa em um discurso e impossibilidade no outro,) e a
conseqüente possibilidade de duas leituras das seqüências é trabalho do sujeito. As diferentes segmentações fazem com que a piada (charada) abaixo seja também
considerada morfológica. E as diferentes segmentações é que permitem dizer que, num caso, temos uma palavra só e, no outro, duas. Os alfabetizadores sabem o
quanto esse fenômeno tem sido problemático nas séries iniciais.

        - Você sabe como é que muda pé de café?
        - Tira o pé de café de um lugar e planta em outro.
        Nível Fonológico
        1. muda /pede /café        [muda/pEdji/kafE]     03 segmentos
                                                                                                                                                                      14
2. muda /pé /de /café   [muda/pE/dji/kafE]      04 segmentos

        Nível Morfológico
        Por analogia aos verbos regulares da 3ª conjugação e considerando a fala, onde “pé de” é igual a “pede”:
        1. Resid+ir     ela resid+e       [rezidji]
        2. Med+ir       ela med+e         [mEdji]
        3. Ped+ir       ela ped+e         [pEdji]
        Nível Lexical / Semântico
        Presença marcante da polifonia:
        1. muda         pessoa desprovida da fala (expressão verbal oral). Ex: Fulana é muda; A muda (mulher que não fala) é bonita, etc
        2. muda         verbo mudar (transferir, trocar, transportar de um lugar para outro, transformar, etc.). Ex: Fulano muda a camisa; Fulano muda de casa,
Fulano muda para São Paulo, Fulano muda a mesa da sala para a cozinha, Como você muda a cada hora..., etc.

        Dois políticos famosos se encontraram em Brasília depois de escapar de mais uma CPI:
        - Antenor, há quanto tempo! Vamos tomar alguma coisa?
        - Vamos. De quem?

        No Nível Sintático, quando o que está em ‘jogo’ são as estruturas sintagmáticas do enunciado, temos outras possibilidades de análise: [tomar] = [beber
(algo)] - verbo transitivo direto - objeto direto. [tomar] = [subtrair (algo, de alguém)] - verbo bi-transitivo – objeto direto e indireto (de quem?)
        A variação lingüística é um fenômeno apaixonante, rico e, sobretudo, rendoso no que diz respeito a dados lingüísticos. Com a variação podemos detectar
problemas ligados ao preconceito e à discriminação, facilmente observáveis através da pronúncia, do léxico, e da construção sintática principalmente. A dialetologia
mostra que esses fenômenos podem ocorrer no nível espacial (Variação Geográfica), mostrando as diferentes classes sociais (Variação Social), trabalhando com faixas
de idades diferentes (Variação de Idade), estabelecendo diferenças entre a fala da mulher e do homem (Variação de Sexo), entre outras tantas.

        Um caipira assiste TV de janela aberta. Passa um vizinho e cumprimenta: - Firme cumpadi?
        - Não cumpadi, é novela.
        A pronúncia diferente - Nível Fonológico - entre o urbano e o caipira (variação geográfica e/ou social) estabelece o “gatilho” da piada: interpretar palavras de
formas diferenciadas. Logo, “firme” não é o que poderia parecer óbvio (legal), mas uma variante de “filme”, existente na fala dos caipiras, ou dos sem escolaridade. No
caso do caipira é relevante demonstrar que sua “inferioridade” social, geralmente demonstrada pela linguagem que usa (padrão/não padrão) é superada pela sua


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esperteza, sua sabedoria. Aí estão incluídos também os nordestinos, que nesse caso, são considerados “machões”, em oposição ao “gaúcho”. São estereótipos como já
vimos anteriormente.
       O que procurei mostrar é que o discurso humorístico abre perspectiva para outra reflexão acerca do processo discursivo. A eficácia, ou não, das
estratégias discursivo-argumentativas utilizadas no discurso humorístico nos permitem questionar sobre os sujeitos desse discurso. Depois de tudo que foi
dito ainda é possível acreditar que o sucesso do humor, ou o que faz rir, pode ser considerado obra do acaso? Do assujeitamento? Será que devemos
concordar com a simplificação dada ao sujeito e o estatuto conferido ao discurso, de ser fechado, concebido em um lugar no qual o sujeito não interveio,
apesar da heterogeneidade de que esse discurso é constituído?
       Fica, então, um questionamento para reflexão: Será que na nossa prática escolar temos tido propostas diferentes para o ensino de língua, ou será que a
subjetividade atingiu níveis, não de assujeitamento ideológico, mas, perigosamente, de alienação, de submissão, de falta de conscientização no exercício de cidadania?
Naturalmente que prefiro ficar com De Certeau e mostrar que o sujeito pode ser diferente na igualdade, pois “não são meros consumidores, mas usuários que sabem
personalizar o que usam e o que fazem”. É como diz Possenti (1995) “... a história freqüentemente se faz de pequenos fatos, pequenos atos que produzem pequenas
alterações do que há, de usos diversos e eventualmente não previstos das mesmas ciosas...”

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
      CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE                      PRIMEIRA VERSÃO
                                                                ISSN 1517-5421    lathé biosa   35
          PRIMEIRA VERSÃO
     ANO I, Nº35 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002
                        VOLUME III

                       ISSN 1517-5421


                         EDITOR
                   NILSON SANTOS


                 CONSELHO EDITORIAL
            ALBERTO LINS CALDAS - História
             ARNEIDE CEMIN - Antropologia
            FABÍOLA LINS CALDAS - História
         JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia
                MIGUEL NENEVÉ - Letras
            VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia                         A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times
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      EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA



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Célio José Borges                                                                                               A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA
        Professor do Departamento de Educação Física




                                                                        Educação Física é um segmento da educação que utiliza as atividades físicas, orientadas
                                                                        por processos didáticos e pedagógicos, com a finalidade do desenvolvimento integral do
                                                                        homem, consciente de si mesmo e do mundo que o cerca.

        O presente artigo se concretiza a partir da pesquisa por mim realizada para elaboração da dissertação de mestrado, Tecnologia alternativa na escola:
revitalizando o ensino de Educação Física para crianças, onde se buscou refletir a Escola, a Educação Física para crianças e a confecção e o emprego de Tecnologia
Alternativa como recurso didático-pedagógico na escola, bem como apresentar considerações teóricas que fundamentam tanto a elaboração do trabalho que tenho
realizado nas oficinas, quanto a interpretação dos dados obtidos. Ao mesmo tempo procurou compreender a relação entre a atividade física e conteúdos de sala de aula,
numa perspectiva lúdica, possibilitando-se assim compreender também a relação interdisciplinar entre ambas.
        Em primeiro lugar, defendo a importância de se procurar formar professores que sejam capazes de refletir sobre sua prática, de direcioná-las segundo as
realidades em que atuam e de conformá-las aos interesses e às necessidades das crianças. Ainda que não se trate de formar o chamado “professor reflexivo”, penso ser
viável considerar a possibilidade de se preparar professores dotados de uma “postura investigativa” em relação ao trabalho que desenvolvem. Em segundo lugar,
acredito que a atividade física na escola pode ser concebida com base na nova visão de esporte proposta por Tubino (1992), que destaca sua dimensão social e o associa
a educação, a participação e a desempenho. Em terceiro lugar, apoiando-me em Ferreira (1984), proponho que o desenvolvimento da Educação Física na escola se
organize segundo a perspectiva de transformação defendida pela autora, em contraposição à tendência comum de centrar as atividades físicas no esporte competitivo,
configurando o que ela denomina de prática voltada para a reprodução. Tais pressupostos conformam a base teórica que sustenta o estudo.


Reflexões sobre a escola e a prática docente
        Julgo que ainda não se refletiu suficientemente sobre o trabalho docente que se realiza na escola. Os sujeitos que nela atuam tendem mais a ações isoladas que a
um esforço de reflexão conjunto que propicie melhoras individuais e coletivas. Penso também ser indispensável a reflexão sobre o papel do professor formador de
professores, o que me afeta particularmente por ser professor de Educação Física infantil em cursos que preparam docentes para os diferentes graus de ensino. Defendo
a necessidade de se buscar formar um profissional capaz de refletir na e sobre a prática desenvolvida na escola. Em síntese, sustento a importância da reflexão-na-ação.

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Gómez, (citado por Nóvoa, 1997), afirma: A sociedade ocidental tem-se mostrado preocupada com os resultados insatisfatórios de longos e custosos processos de
escolarização: nas sociedades industrializadas, a escola conseguiu chegar aos lugares mais inacessíveis e às camadas sociais mais desfavorecidas. Não obstante, nem a
preparação científico-técnica, nem a formação cultural e humana, nem sequer a desejada formação compensatória alcançaram o grau de satisfação prometido.(p.95).
        O autor considera ainda que: São familiares as metáforas do professor como modelo de comportamento, como transmissor de conhecimentos, como técnico,
        como executor de rotinas, como planificador, como sujeito que toma decisões ou resolve problemas, etc.(Ibid: 96)
        Relacionadas a essas imagens encontram-se nos estudos e nas teorias que determinaram e que têm determinado o pensamento pedagógico, concepções de
escola, de ensino, conhecimento e de aprendizagem, bem como concepções das relações existentes entre teoria e prática, ou seja, entre investigação e ação.
        Para refletir sobre o trabalho pedagógico desenvolvido na escola das séries iniciais do ensino fundamental, entendo ser necessário compreender como se
estruturam as escolas de educação infantil e suas práticas. Apoiando-me nas conclusões de Silva (1999: 59-60), considero que a escola infantil tem pautado suas ações
na intenção, quase que exclusiva, de preparar criança para o ensino fundamental. Nesse sentido, utiliza como estratégia dominante a repetição de exercícios de
prontidão, nos quais se emprega a brincadeira ora como recurso didático, ora como instrumento de sedução e controle. Entendo que essa estratégia não se compatibiliza
com as características da atividade lúdica da criança, que requer liberdade para explorar sua criatividade.
        Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que o brincar como prática social infantil não tem sido compatível com a função que a escola vem cumprindo. Nela,
deixam de ser valorizadas as iniciativas tímidas das crianças, que refletem características de aleatoriedade e indeterminação, com as quais a escola não sabe trabalhar e
nem lidar. A conseqüência é que o professor acaba mais controlando os passos e as respostas das crianças diante das tarefas (atividades) propostas do que as
incentivando a produzirem algo interessante e de fato educativo.
        Tal situação reitera a importância de se refletir sobre a prática docente na escola, de se adotar uma atitude investigativa em relação a essa prática e, ainda, de se
pesquisar alternativas para aperfeiçoá-la. Segundo Schön (1997):
        Quando um professor tenta ouvir os seus alunos e refletir-na-ação sobre o que aprende, entra inevitavelmente em conflito com a burocracia da escola.
Nesta perspectiva, o desenvolvimento de uma prática reflexiva eficaz tem que integrar o contexto institucional. O professor tem de se tornar um navegador
atento à burocracia. E os responsáveis escolares que queiram encorajar os professores a tornarem-se profissionais reflexivos devem tentar criar espaços de
liberdade tranqüila onde a reflexão-na-ação seja possível. Estes dois lados da questão - aprender a ouvir os alunos e aprender a fazer da escola um lugar no
qual seja possível ouvir os alunos - devem ser olhados como inseparáveis.(p.87).
        Para Makiguti (1994), erra-se quando se deixa a cargo de determinados profissionais, que não têm formação em educação ou que estão fora das escolas e das
salas de aula, as decisões relacionadas aos objetivos e às metas educacionais. O autor considera essencial que se redirecionem os estudos pedagógicos de modo a
relacioná-los com situações reais de ensino.
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O processo de teorização deve se basear nisto. Em vez de permitir aos acadêmicos ‘lá de cima’ pronunciamentos sobre o que acontece ‘embaixo’, nas escolas,
perturbando a estratosfera com esta ou aquela teoria, para depois modificá-la de acordo com as tendências do momento, os profissionais que atuam na educação,
embasados em suas experiências diárias, devem abstrair indutivamente princípios e reaplicá-los em suas práticas na forma de melhorias concretas.
       Nessa mesma linha, argumenta que os objetivos devem ter origem nas necessidades e no dia-a-dia dos alunos. Os professores deveriam valorizar o que as
crianças consideram importante, o que nelas desperta interesse durante o seu processo de formação, ao invés de pensarem apenas nas necessidades dos adultos. Devem,
assim, evitar sobrecarregar seus alunos com informações que sejam sem sentido para as suas vidas, ou que sejam exageradamente abstratas. Makiguti (1994) compara a
apreensão de tais conteúdos a uma indigestão, propondo combatê-la da seguinte forma:
       [...] Infelizmente, os efeitos da intoxicação psicológica nas crianças, causada pela aprendizagem forçada de conteúdos incompreensíveis, não são
percebidos de imediato. Por isto, as conseqüências perniciosas desse processo ... não são reconhecidas. A situação é séria, mas, ao pesquisarmos as causas do
problema, defrontamo-nos com um paradoxo: professores e pais acreditam estarem colaborando com o futuro bem-estar das crianças, apesar de as tornarem
infelizes durante o processo. ... a escola que sacrifica a felicidade presente da criança e faz da felicidade futura seu objetivo violenta a personalidade infantil
e o processo de aprendizagem propriamente ditos. (p:39).
       Considerando-se que é na escola que o licenciando estagia e trabalha quando formado, cabe desenvolver no mesmo a consciência da importância de uma
postura investigativa em relação à sua prática. Tal postura deve envolver tanto os momentos de construção como de utilização de recursos pedagógicos. Tal postura
deve incluir também a consciência da necessidade de valorização dos interesses e das necessidades da criança.
       O desenvolvimento dessa atitude durante o curso de formação é facilitado pela presença de um professor que atue como orientador e procure contribuir para a
promoção de novas aprendizagens, para o aperfeiçoamento do desempenho, para o estabelecimento do diálogo e para a prática de uma avaliação continuada. Em
síntese, defendo a importância de se buscar, durante o período de formação e de estágios do futuro professor, propiciar oportunidades de reflexão sobre a prática
desenvolvida junto com os alunos. Para isso, porém, o professor formador também precisa refletir continuamente sobre sua atuação profissional.


Do esporte Institucionalizado à Educação Física escolar
       Recorro a Tubino (1992) para discutir a influência do esporte na Educação Física escolar. O autor aponta como se modificaram as concepções referentes ao
esporte. Considero que as dimensões propostas pelo autor também se aplicam à Educação Física escolar, que de certa forma sofre os reflexos e as influências do esporte
e que, da mesma forma que este, vem sofrendo modificações no modo como é concebida. Tais mudanças possibilitam admitir, na Educação Física escolar, mudanças
de conceito e de concepção quanto a suas relações sociais na escola, permitindo assim, que se pense em formas alternativas de desenvolvimento da disciplina, que a
tornem menos formal e mais prazerosa para as crianças.
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Tubino (1992) refere-se a um “esporte da Antiguidade”, assim como destaca o surgimento do chamado “Esporte Moderno” no século passado, em uma
perspectiva pedagógica, sem restringir os aspectos de disputas das competições. Entretanto, o ideário olímpico do esporte foi sendo abalado pela busca de
profissionalismo no esporte, gerando com isso, conflito entre o amadorismo e o profissionalismo. Como não se admitia em hipótese alguma o profissionalismo nas
competições, os casos identificados eram passíveis de severas punições. A perspectiva padagógica inicial do esporte moderno desaparecia gradativamente e mantinha-
se ainda o preconceito em relação à prática desportiva feminina, por muito tempo mantido.
        Busco refletir sobre a Educação Física escolar, considerando os aspectos negativos da supervalorização do esporte competitivo (Tubino, 1992), bem como as
tendências e correntes da Educação Física brasileira (Ghiraldelli Jr., 1988), em especial as tendências militarista (1930 -1945), pedagogicista (1945 - 1964) e
Competitivista (1964 - 1985 aproximadamente). Minha intenção é estabelecer relações com a formação do professor de Educação Física e compreender as influências
históricas nas características da Educação Física escolar. Para Ghiraldelli Jr., é necessário que a periodicidade das tendências seja entendida com cautela, já que as
mesmas, embora só se explicitem em uma dada época, já estão latentes em épocas anteriores e, além disso, tendências que aparentemente desapareceram são
incorporadas por outras. Ressalte-se ainda a distância entre a teoria e o que de fato ocorre na prática, ou seja, nas aulas. Para Ghiraldelli (1988): “O problema também é
complexo quando desejamos entender a organização mental dos professores de Educação Física. Todas essas tendências são mais ou menos incorporadas, e estão vivas
nas cabeças dos professores atuais. Eles são absorvidos em forma de amálgama e, não raro, levam a um ecletismo pouco produtivo.” (p.16)
        Não é fácil, então, compreender as influências no processo de formação dos professores de Educação Física. Nos anos 70 e 80, período da Tendência
Competitivista, houve uma forte influência da prática do desporto escolar competitivo, marcado pela realização dos Jogos Escolares Brasileiros - JEBs,
descaracterizando-se quase que totalmente a Educação Física escolar, tanto nas séries em que se recomendava a iniciação desportiva, ou seja, de 5ª a 8ª série do
primeiro grau, como na prática do desporto nas séries do segundo grau. Secundarizou-se, então, o caráter formativo e pedagógico da Educação Física, praticamente
restrito às primeiras séries do primeiro grau, cujo ensino, no entanto, foi deixado quase que totalmente a cargo de professores sem a devida qualificação, com formação
apenas em magistério de segundo grau.
        Ainda que muitos sejam os autores que contestem os benefícios de um esporte voltado unicamente para os resultados, na escola, as aulas de Educação Física
também instituíram os resultados de forma muito arraigada. Contudo, a reação dos intelectuais da área não deixou de provocar uma revisão conceitual do esporte,
influenciando também a revisão de conceitos e posturas na prática da Educação Física escolar. Tal perspectiva pode ser constatada, na década de oitenta e na virada da
de noventa, por parte de muitos autores - professores e pesquisadores que se posicionaram em defesa da valorização de uma Educação Física mais humanista e mais
educativa.
        A partir dos anos noventa, o esporte adquire importância social mais expressiva. O movimento esportivo mundial cresceu e expandiu-se, com o conseqüente
aumento de sua relevância social. Valorizam-se, inevitavelmente, as práticas de atividades físicas, inclusive as escolares. O esporte é revisto nos ambientes escolares,
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admitindo-se, em meados da década, a idéia de se implantar um esporte participação. Essa iniciativa provocou forte reação por parte de muitos professores/treinadores
de Educação Física, ou seja, dos que se tornaram muito mais técnicos do que professores/educadores de Educação Física. Tais profissionais continuam, especialmente
quando se trata de competições, a defender regras duras e exigentes, buscando assegurar a seletividade necessária para se chegar à vitória.
        Tubino (1992) refere-se à Carta Internacional de Educação Física e Desportos (UNESCO, 1978) como um documento que veio consolidar a discussão
internacional desenvolvida na época sobre o esporte e que apontou para um novo conceito do mesmo. Destaca, ainda, que se abre a perspectiva do direito à prática
esportiva, aumentando-se significativamente a dimensão social de um esporte reconceituado. Na escola, esse direito pode ser interpretado como um direito à prática da
atividade física de maneira geral, reivindicada para todos os níveis escolares.
        Após o redimensionamento conceitual, o esporte é considerado como problema humano e social. Seu significado social passou a abranger manifestações
comprometidas com a educação, a participação e a performance, sendo visto por Tubino como “um campo sociocultural de estruturas e conteúdos de grande
complexidade, que se apresenta com grande fascínio para todos os atores ativos e passivos, propiciando oportunidades únicas para a convivência humana”.
        Aplicando essa concepção à escola e apoiando-me também em outros autores que defendem a prática de uma Educação Física escolar democratizada, considero
como direito de toda a criança praticar Educação Física e ter acesso ao brinquedo e ao jogo na escola. Julgo ainda que atividades bem desenvolvidas, com materiais
adequados, podem desenvolver fascínio nas crianças, integrando-as entre si, bem como com seus professores e com os alunos-mestres. Dessa forma recorrendo ainda a
Tubino (1992) para sustentar minha defesa quanto à necessidade de tornar a Educação Física escolar, para crianças, mais agradável e participativa, destaco suas
palavras: “O esporte, com o seu conceito compromissado com as suas perspectivas na educação, na participação das pessoas comuns e também no rendimento, em
situações específicas, inclusive quanto às finalidades, e visto como direito de todos, passou a merecer novas abordagens e estudos para que sua dimensão social seja
realmente entendida” (p. 13).
        Penso que essa dimensão social ampliada da atividade física precisa nortear novas possibilidades para a prática da Educação Física escolar para crianças. O
trabalho por mim desenvolvido insere-se nessa perspectiva.




Da reprodução à perspectiva de transformação
        Neste item procuro apresentar uma perspectiva humanista e transformadora da Educação Física que tenha como referência o aluno, em especial a criança.
        Recorro a Ferreira (1984), que defende uma Educação Física em uma perspectiva de transformação, contraposta ao modelo tecnicista da reprodução, propondo
um redimensionamento do sentido da Educação Física no processo educativo, criando a expectativa de as crianças virem a ter a oportunidade de participar de uma ação
educativa mais efetiva e adequada. A visão estereotipada de que a Educação Física oferecida nas escolas era de má qualidade e o professor um profissional de segunda
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categoria era bastante comum e que ainda sofre resquícios atualmente desse estigma. Essa fama, aliada ao uso abusivo do esporte nas aulas, terminou por levar a
disciplina a uma crise de identidade, já identificada na década de 70, em plena vigência da tendência competitivista da Educação Física. Segundo Dufour (citado por
Ferreira, 1984:19):
      “A Educação Física praticada nas escolas parece estar sofrendo uma crise de identidade. Esta crise se revela pela existência de conflitos entre o status da
      Educação Física em relação aos outros ramos de Educação e em relação ao desporto. O primeiro tipo de conflito aparece quando se situa a Educação Física no
      quadro geral da Educação. Os autores assumem posições contraditórias, ora caracterizando a Educação Física como “uma atividade natural, corporal, puramente
      instintiva, muitas vezes inconsciente, obedecendo às leis de uma mística do eugenismo” e ora como “uma atividade intelectual, que, embora partindo da praxis,
      dela se destaca, ultrapassa o concreto e conduz a ginásticas intelectuais muito complicadas, até mesmo sofisticadas”. O segundo tipo, da Educação Física
      identificada com o desporto “reduz-se e concretiza-se na competição, nos recordes, no ultrapassar-se a si próprio, o que implica uma entrega total do ser à
      conquista dos cumes”. O sentido de auto-competição e de auto-superação parece não ter sido incorporado pela escola. As qualidades lúdicas, tais como
      espontaneidade e capacidade de desenvolver satisfação pessoal com desempenho e iniciativa, características do esporte educativo, não estão sendo enfatizadas
      pelas atividades de Educação Física. Em contrapartida, estas atividades têm se caracterizado por uma prática essencialmente mecânica.”
        Dois fatos marcantes parecem ter determinado, nessa ocasião, os rumos da Educação Física: a retomada da realização dos Jogos Olímpicos após a Segunda
Guerra Mundial e a apresentação do “Projeto de Doutrina de Educação Física Desportiva” pelo Instituto Nacional de Esportes da França, em 1945, que deu origem à
Educação Física Desportiva Generalizada, influenciando diretamente a prática da Educação Física na escola. Iniciou-se um movimento voltado para a formação de
equipes desportivas, reproduzindo-se o modelo dos Jogos e de suas deformações, tais como: “cientificismo exagerado, propaganda política e supervalorização da
tecnologia” (Lisboa, citado por Ferreira, 1984 : 20). O fenômeno do esporte-espetáculo pode ter levado a escola a incorporar valores contrários aos ideais próprios à
educação. As atividades físicas desempenhariam papel complementar nesse processo de educação geral (Brasil, MEC, 1976; 1981 / FIEP, 1976 / UNESCO, 1977; 1978
). Para Ferreira (1984 : 20-21):
      “A identificação com o esporte-espetáculo a que parece estar submetida a Educação Física na instituição escolar constitui uma ameaça aos propósitos últimos da
      educação.Ela absorve e passa a utilizar, em seu processo de ensino uma concepção autoritária. O papel do professor apresenta-se apenas como disciplinador,
      servindo-se de metodologias que controlam a participação do aluno, impedindo-lhe o crescimento pessoal e social. A escola, como instituição, parece não ter
      absorvido a Educação Física e o esporte em seus objetivos de formação de um homem livre, que se conhece, se experimenta, se vence, se respeita o direito dos
      outros e se mantém consciente de seus deveres e responsabilidades. A escola parece estar se prestando ao desenvolvimento de uma ideologia de reprodução,
      acrítica, identificando-se mais com a instituição desportiva cujos valores são: desempenho máximo, vitória a qualquer preço, glória, vantagens de ser campeão,
      submissão do homem, disciplina autoritária e possibilidade, no mais das vezes ilusória, de ascensão social. Parece que a escola, ... acredita no fato de um
      campeão ser necessário para estimular a prática do esporte por um grande número de pessoas.”
        Assim, constata-se que a Educação Física vista apenas pelo plano da reprodução do movimento, de caráter seletivo, em que se valoriza o desempenho dos
alunos bem dotados, ignorando-se os menos aptos, reduz sua abrangência e seu potencial, negando seus objetivos, somente alcançáveis se desenvolvidos de modo que
o aluno tenha a oportunidade e a possibilidade de participação no processo educacional da Educação Física, cujas atividades apresentam um caráter global que não
pode ser esquecido.

                                                                                                                                                                 23
Como superar a tendência de identificação da Educação Física escolar com o esporte-espetáculo? Como pensar uma outra Educação Física?
       Penso, com Ferreira (1984), que estas questões estão relacionadas ao nível de conscientização dessa crise de identificação, por parte do professor, o que o
levará a dar maior importância à avaliação formativa do aluno, ao invés da avaliação somativa, aquela em que o aluno é aprovado-reprovado por nota ou conceito em
Educação Física.       Considero a questão da avaliação em Educação Física um assunto complexo, passível de muitas interpretações e dúvidas. Talvez não se saiba
ainda como avaliar uma Educação Física centrada no desenvolvimento do aluno. Para Ferreira (1984):
       “O modelo de reprodução em Educação Física é caracterizado pela atitude acrítica tanto da realidade interna quanto da externa. Nele se tem o esporte como
       referência ideal de educação, reproduzindo, portanto, os padrões sociais da classe dominante, no qual seus objetivos educacionais servem para conservar e
       reforçar as diferenças entre as classes sociais.” (p.53 ; 57)
       Por outro lado,
       “A perspectiva de transformação se caracteriza pela atitude de reflexão da realidade, modificando a percepção que o indivíduo tem de suas experiências e do
      mundo que o cerca. Nela, a Educação Física é sempre processo, realimentado pela prática consciente dos sujeitos sobre a realidade esportiva, numa concepção
      dialética, favorecendo a aprendizagem e avaliação dos resultados. Utiliza-se em sua prática um esporte em que as regras, materiais, e locais são adaptados à
      realidade dos seus integrantes, ou seja, as habilidades, capacidades e possibilidades dos alunos, valorizando-se o caráter lúdico, a espontaneidade e a iniciativa.
      Possibilita a participação de todos os interessados independente de suas habilidades, sendo possível inclusive modificar as regras por decisão e interesse de seus
      participantes. Nessa perspectiva, o aluno é o sujeito do processo, como o principal agente de mudança, ou seja, a realidade se transforma à medida que se
      modificam as percepções que o aluno tem de suas experiências.” (P. 53; 56).
        Ferreira(1984) apresenta variáveis que identificam e distinguem esses enfoques acima, estabelecendo um paralelo de contraposição entre os mesmos. Destaca-
se inicialmente, o Professor e a Metodologia de ensino, por entender a autora que é na metodologia de ensino que se pode verificar a concepção e postura do professor.
Se o mesmo é aquele que atua como um controlador da ação dos alunos, treinador, técnico, como domesticador, no modelo de reprodução, ou, se apresenta
características de orientador, utilizando-se de procedimentos indiretos de ensino, em que se vive, de maneira integrada com o aluno as experiências de seu crescimento,
como agente facilitador da conscientização, na perspectiva de transformação. Nesta perspectiva dialética, o professor se educa educando. É na prática de educação que
o educador se educa. Ele se educa com cada educando.
       Seguindo-se ainda esse paralelo, a concepção de Aluno e de Atividade Física, por um lado no modelo de reprodução o mesmo é tido como um atleta em
potencial, como o objeto do treinamento. Tem todo o seu potencial reprimido, manipulado em função de interesses externos às suas necessidades, e a atividade física
identificada com o esporte institucionalizado. Por outro lado, na perspectiva de transformação o aluno é visto como centro do processo ensino-aprendizagem, como o
objetivo da educação, o elemento alvo, gerador de todos os questionamentos relativos à transformação. Porém, Ferreira (1984), não o coloca como sujeito por
concordar com Gadotti de que ninguém se educa a si mesmo. A atividade física surge inventada, modificada, como um sistema natural e espontâneo de movimentos;
ajusta-se às possibilidades e interesses do educando. “Nessa perspectiva predominam a reflexão e a crítica, como forma de levar o aluno a ter consciência de sua
responsabilidade pessoal que tem pelo próprio comportamento e pela participação no processo educacional” (Freire, 1980, citado por Ferreira, 1984 : 63).

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Por fim, quanto ao enfoque da avaliação, entende-se ser esse um elemento que também esclarece o sentido político da ação pedagógica, dependendo do
enfoque que se dá a essa ação, tanto o ideológico, quanto o dialético, apresentam critérios bem distintos, de acordo com suas características.


Reunindo as contribuições
        Penso, com Taffarel (1991), que a Educação Física deve possibilitar o acesso da criança à cultura corporal e à compreensão de sua realidade, já que
“a criança traz para a escola um acervo cultural sobre as questões da corporeidade. O professor precisa respeitar essa experiência e ajudar o aluno a
organizar, sistematizar e ampliar o seu conhecimento” (p.21). Deve-se, em outras palavras, favorecer à criança o acesso ao conhecimento elaborado no
campo da cultura corporal. Essa interação com a corporeidade precisa ser prazerosa, com ênfase no caráter lúdico. Não cabe à escola a responsabilidade de
desenvolver talentos para o desporto competitivo de alto rendimento. Se hoje se redimensiona a concepção do esporte como prática social, há que se
redimensionar o sentido das atividades físicas na escola. Somente assim será possível uma Educação Física voltada para a transformação e para a educação.
Para sua materialização, deve-se buscar formar professores que sistematicamente reflitam sobre suas práticas e que bem empreguem recursos alternativos,
visando a aperfeiçoá-las e torná-las prazerosas para a criança, pode ser um passo importante.


                                                                          BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Vera Lúcia da Costa. Prática de Educação Física no 1º grau: modelo de reprodução ou perspectiva de transformação ?. São Paulo, IBRASA, 1984.
NÓVOA, Antônio (coord.) Os professores e sua formação. Lisboa, Dom Quixote, 1997.
TUBINO, Manoel José Gomes. Em busca de uma tecnologia educacional para as escolas de Educação Física. São Paulo, IBRASA, 1980.
________ Tecnologia Educacional : das máquinas de aprendizagem à programação funcional por objetivos. São Paulo : IBRASA, 1984.
________ Terminologia aplicada à Educação Física: uma introdução. São Paulo : IBRASA, 1985.
________ As Dimensões Sociais do esporte. São Paulo : Cortez : Autores Associados, 1992.
SILVA, Laeth Souza da. Atividade Lúdica como facilitadora da aprendizagem na Educação Infantil. Porto Velho, Universidade Federal de Rondônia, mimeo,
      1999.
MAKIGUTI, Tsunessaburo. Educação para uma vida criativa: idéias e propostas de Tsunessaburo Makiguti. Rio de Janeiro, Record,1994.




                                                                                                                                                        25
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
      CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE                      PRIMEIRA VERSÃO
                                                                ISSN 1517-5421       lathé biosa   36
          PRIMEIRA VERSÃO
     ANO I, Nº36 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002
                        VOLUME III

                       ISSN 1517-5421


                         EDITOR
                   NILSON SANTOS


                 CONSELHO EDITORIAL
            ALBERTO LINS CALDAS - História
             ARNEIDE CEMIN - Antropologia
            FABÍOLA LINS CALDAS - História
         JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia
                MIGUEL NENEVÉ - Letras
            VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times
                                                               VOZES BAKHTINIANAS: BREVE DIÁLOGO
New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”
           deverão ser encaminhados para e-mail:

                     nilson@unir.br
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                     CEP: 78.900-970
                      PORTO VELHO-RO



               TIRAGEM 200 EXEMPLARES
      EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA



                                                                                                        26
Maria Celeste Said Marques                                                                                                        VOZES BAKHTINIANAS:
Professora de Análise do Discurso                                                                                                 BREVE DIÁLOGO
marques@enter-net.com.br




        Neste artigo, meu procedimento será fazer uma breve e concisa introdução ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Para isso analisarei alguns conceitos e
categorias. Interessam-me suas concepções relacionadas à linguagem, principalmente à interação verbal, ao dialogismo, à repetição e à criação. Com efeito, centro-me
em sua abordagem dialética a partir de suas considerações sobre o caráter ideológico do signo lingüístico e da natureza eminentemente semiótica (e ideológica) da
consciência.
        Bakhtin é um dos maiores pensadores do século XX e um teórico fundamental da língua. Em Marxismo e filosofia da linguagem está sua teoria da linguagem e
do dialogismo. Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme das manifestações de linguagem em situações sociais
concretas, diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto é, o sistema abstrato da língua, com suas características formais passíveis de
serem repetidas. Bakhtin concebe a linguagem não só como um sistema abstrato, mas também como uma criação coletiva, integrante de um diálogo cumulativo entre o
“eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros”.
        A linguagem constitui a centralidade da obra de Bakhtin. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, há, na filosofia da linguagem e nas
divisões correspondentes da lingüística geral, duas orientações principais. À primeira, ele chama de subjetivismo idealista e, à segunda, de objetivismo abstrato.
        A crítica epistemológica de Bakhtin/Voloshinov considera que o subjetivismo idealista, ao reduzir a linguagem à enunciação monológica isolada, e o
objetivismo abstrato, ao reduzir a linguagem a um sistema abstrato de formas, constituem um obstáculo a uma apreensão totalizante da linguagem. Para
Bakhtin/Voloshinov, a compreensão ampla da natureza da linguagem não está no meio dessas duas orientações; ela está além. Para superar, dialeticamente, essas
posições dicotômicas, propôs a interação verbal por ser uma idêntica recusa tanto da tese como da antítese, e constituir uma síntese dialética.


        Interação Verbal
        O caráter interativo da linguagem é a base do arcabouço teórico bakhiniano. A linguagem é compreendida a partir de sua natureza sócio-histórica. A propósito,
é significativa a seguinte afirmação de Bakhtin/Voloshinov (1992a:41): “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas
as relações sociais em todos os domínios”.

                                                                                                                                                  ISSN 1517 - 5421    27
Para Bakhtin/Voloshinov, o ato de fala, ou exatamente, o seu produto, a enunciação, não pode ser considerado levando-se somente em consideração as
condições psicofisiológicas do sujeito falante - apesar de não poder delas prescindir. A enunciação é de natureza social e para compreendê-la é necessário entender que
ela acontece sempre numa interação. A verdadeira substância da língua é constituída, para Bakhtin, “pelo fenômeno social da interação verbal, realizada por meio da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” (1992a:123).
        A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. A palavra dirige-se a um interlocutor real e variará em função desse: em
relação ao grupo social a que ele pertence, aos laços sociais, etc. Não pode haver interlocutor abstrato, pois não teríamos linguagem com tal interlocutor, mesmo no
sentido figurado.
        Uma das formas mais importantes da interação verbal é o diálogo, caracterizado não apenas como comunicação em voz alta, de pessoas face a face, mas toda
comunicação verbal, de todo tipo. Qualquer enunciação constitui apenas uma fração da corrente da comunicação verbal ininterrupta (relativa à vida cotidiana, à
literatura, ao conhecimento, à política, etc). Por sua vez a comunicação verbal ininterrupta constitui apenas um momento na evolução contínua e em todas as direções
de um grupo social determinado.
        Conforme Bakhtin/Voloshinov (1992a:124), a língua vive e evolui historicamente na comunicação social concreta. Dessa forma, para ele, a língua é vista a
partir de uma perspectiva de totalidade, integrada à vida humana. A lingüística não pode dar conta de explicar um objeto multifacetado. Para explicar a dialogicidade, o
aspecto lingüístico não é suficiente. Por isso, ele acrescenta o contextual e propõe assim uma disciplina, a metalingüística ou translingüística, para estudar o enunciado.
        A abordagem que Bakhtin/Voloshinov propõe para o discurso - que ultrapassa os limites da lingüística - é a do estudo da própria enunciação. A estrutura da
enunciação concreta é determinada inteiramente pelas relações sociais, ou seja, pela situação social mais imediata e pelo meio social mais amplo.
        Para Bakhtin/Voloshinov, a enunciação é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este
pode ser substituído por um representante ideal, mas que “não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas” (1992a:112).
        A palavra se orienta em função do interlocutor. Na realidade, a palavra comporta duas faces: procede de alguém e se dirige para alguém. Ela é o
produto da interação do locutor e do interlocutor; ela serve de expressão a um em relação ao outro, em relação à coletividade. “A palavra é uma espécie de
ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor” (Bakhtin/Voloshinov,1992a:113).
        É a partir da concepção de linguagem de Bakhtin que nasce uma das categorias básicas de seu pensamento, que é o dialogismo. É a partir dela que ele estuda o
discurso interior, o monólogo, a comunicação diária, os vários gêneros de discurso, a literatura e outras manifestações culturais. Ele aborda o dito dentro e como réplica
do já-dito.


                                                                                                                                                                        28
Dialogismo
        Olhar o mundo de um ponto de vista para melhor captar o movimento dos fenômenos em sua pluralidade e diversidade não é apenas a postura filosófica de
Bakhtin, mas também, e principalmente, a orientação de seu sistema teórico fundado no dialogismo. Para Bakhtin, a atividade do diálogo e da criação do personagem
no interior da literatura é modelar para o diálogo e a criação em todos domínios da vida. O autor da obra literária, assim como o eu concebido por Bakhtin é uma
entidade dinâmica em interação com outros eus e personagens.
        As idéias de Bakhtin sobre o homem e a vida são caracterizadas pelo princípio dialógico. A alteridade marca o ser humano, pois o outro é imprescindível para
sua constituição. Como afirma Bakhtin, a vida é dialógica por natureza. Assim, a dialogia é o confronto das entoações e dos sistemas de valores que posicionam as
mais variadas visões de mundo dentro de um campo de visão: “na vida agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta
o que é transcendente à nossa própria consciência: assim levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem
[...]” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a:35-36).
        Neste artigo, por questões de ordem metodológica, foram separadas as duas noções de dialogismo que permeiam os escritos de Bakhtin: diálogo entre
interlocutores e diálogo entre discursos.
        A interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem. É na relação entre sujeitos, ou seja, na produção e na interpretação dos textos que se
constroem o sentido do texto, a significação das palavras e os próprios sujeitos. Com efeito, pode-se dizer que a intersubjetividade é anterior à subjetividade. Esta é o
resultado da polifonia das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe, mas que tem a condição de reelaborar, pois como ensina Bakhtin/Voloshinov, “o ser,
refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” (1992a:46).
        Esses aspectos do dialogismo interacional de Bakhtin, assinalados acima, contribuem para a compreensão, dentre outras características do discurso, os
simulacros e as avaliações entre os sujeitos. Destaque-se que a construção de tais características não são individuais, mas assentadas naquilo que Bakhtin denomina
horizonte ideológico, ou seja, na relação entre sujeitos (entre interlocutores que interagem) e a dos sujeitos com a sociedade.
        Bakhtin argumenta que cada um de nós ocupa um lugar e um tempo específicos no mundo, e que cada um de nós é responsável ou “respondível” por nossas
atividades. Estas ocorrem nas fronteiras entre o eu e o outro, e, portanto, a comunicação entre as pessoas tem uma importância fundamental.
        Enfatizei que Bakhtin considera o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e como a condição do sentido do discurso. Dessa forma, o discurso
não é individual tanto pelo fato de que ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais; como pelo fato de que ele se constrói
como um diálogo entre discursos, isto é, mantém relações com outros discursos. O discurso, para Bakhtin, é uma “construção híbrida”, (in) acabada por vozes em
concorrência e sentidos em conflito.


                                                                                                                                                                     29
Volume III
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Volume III

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa 33 PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº33 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME III ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras MITOS TAL QUAL VÍRUS: VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia ANÁLISE DE UMA NARRATIVA VIRTUAL Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: nilson@unir.br ARI OTT CAIXA POSTAL 775 WALDEMIR MIOTELLO CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
  • 2. ARI OTT VALDEMIR MIOTELLO MITOS TAL QUAL VÍRUS:1 Médico, Professor de Antropologia - UFRO Professor de Filosofia - UFRO ANÁLISE DE UMA A NARRATIVA VIRTUAL amto@terra.com.br miotello@unir.br Nunca escrevemos este artigo que você começou a ler. Ele apenas existe virtualmente. Jamais foi impresso, não foi rascunhado no papel. Ele é resultado da troca de vários mail's entre seus autores. E trata-se de uma primeira aproximação analítica acerca de um mito (transcrito a seguir) que vem sendo sistematicamente transmitido na rede mundial de computadores. A Internet é reconhecida como a mais importante ferramenta de comunicação deste final de século. Utilizada tanto para pesquisas, quanto para negócios, foi também invadida por todo tipo de mensagens (cookies), campanhas e narrativas. Abriga alguma coisa em torno de quatrocentos milhões de páginas que contemplam desde empresas transnacionais, até páginas pessoais. Possibilita, com seus instrumentos de busca, que uma palavra chave leve o internauta a ter que escolher entre centenas de milhares de possibilidades de consulta, sem a menor certeza de qual página terá a informação procurada. Mais que isso, estabeleceu um correio eletrônico inovador, que dispensa papel, envelope, selos e carteiro. O usuário da rede organiza um catálogo de endereços eletrônicos e, ao escrever ou receber uma mensagem que considere que deva ser compartilhada por todos, simplesmente clica em um botão que (re)envia a mesma mensagem para todos os constantes do seu catálogo. Esta função dos programas de correio eletrônico é importante porque faz a mensagem disseminar-se exponencialmente, atingindo milhares, quiçá milhões de pessoas em algumas horas ou dias. Que narrador poderoso! Tão poderoso que vê sua mensagem multiplicada praticamente a um número não pronunciável de leitores, tantos podem ser eles. A facilidade do meio possibilita que se multipliquem as mensagens de todo tipo: apoio ou repúdio às mais variadas causas, histórias, piadas, frases, ditos e brocados dos mais variados temas e mensagens edificantes. Narrativas míticas também trafegam na Internet. Denominamos narrativas míticas, ou simplesmente mitos, em acordo com as definições clássicas, os relatos de autor desconhecido, partilhados pelos membros de uma sociedade, enunciados em uma linguagem alegórica e carregados de significação simbólica. Os mitos foram objeto quase exclusivo de estudo da antropologia que coletou e analisou mitos de grupos indígenas do mundo inteiro. Posteriormente, reconheceu-se que as narrativas míticas também estavam presentes entre grupos urbanos. Agora, indicamos que estes mitos mantêm a sua perenidade, ocupando os novos meios de comunicação. 1 Artigo publicado na Revista Brasileira de Literatura, disponível apenas no site: http://www. members.tripod.com/~lfilipe/Indice2.html ISSN 1517 - 5421 2
  • 3. É como narrativa mítica que estamos considerando o e-mail recebido por um dos autores e transcrita no tópico 2. Também neste tópico serão explicitadas as razões pelas quais o consideramos um mito, especificadas as outras fontes de recebimento do mesmo e as reações das pessoas para quem ele foi enviado. O tópico 3 analisa o papel do narrador nos mitos virtuais. Tentar-se-á responder algumas questões: em se tratando de uma narrativa, transmitida por meio eletrônico, quem é o narrador? E os que apenas encaminham a narrativa para usuários de seus cadernos de endereços também se constituem em novos narradores, ou são apenas re- transmissores eletrônicos de uma narrativa narrada por outrem? Quem são os novos narradores (os narradores eletrônicos) hodiernos? São os que têm tempo e dinheiro para estarem diante de um computador ligado ao mundo por um modem, ou são os que têm prazer e gosto pelo narrar, mesmo fazendo uso de equipamento eletrônico? Algumas conclusões são apontadas no tópico 4. O trabalho não traz uma bibliografia tradicional, mas sim uma netgrafia comentada no tópico 5, onde estão indicados os endereços na rede para aprofundamento das informações. O seguinte fato aconteceu faz só uma semana em Buenos Aires. Um jovem decidiu ir a uma festa numa discoteca de lá "Esta Disco". Estava se divertindo bastante, bebeu algumas cervejas e conheceu uma garota que parecia gostar dele e que o convidou para outra festa. Logo ele aceitou e decidiu ir com ela. Foram a um apartamento onde continuaram tomando cerveja. Aparentemente lhe deram droga (não é sabido qual). Depois disso só se lembra de ter acordado nu, numa banheira cheia de pedras de gelo. Ainda sentindo os efeitos da droga e da cerveja, olhou em volta e estava completamente só. Havia um bilhete colado na parede escrito: "Ligue para o Pronto Socorro no seguinte número ou morrerá." Viu um telefone por perto e ligou de imediato. Relatou o acontecido explicando que não sabia aonde estava, o que tinha bebido, e o motivo da sua ligação. A atendente o orientou para sair da banheira e se olhar no espelho. Aparentemente estava normal. Então foi orientado para revisar as costas. Ai percebeu 2 cortes de 15 cm. cada na parte baixa das costas. A atendente o orientou para entrar de novo na banheira e aguardar até chegar a equipe de emergência que seria enviada. Infelizmente tinham ROUBADO OS SEUS RINS e foi levado ao Hospital "Fernández". Cada rim tem um valor de 15,000 a 20,000 dólares no mercado Negro (ele nem sabia que isso existia). Algumas deduções podem ser feitas: A segunda festa era uma farsa, as pessoas envolvidas tinham conhecimentos médicos e as drogas que lhe deram não eram para nada divertido. Atualmente, essa pessoa esta no Hospital Fernández, conectado a um sistema que o mantêm vivo, esperando encontrar um rim compatível. Atualmente estão sendo realizados estudos de compatibilidade para encontrar um doador. Existe uma nova máfia do crime organizado que tem como alvo pessoas que viajam a trabalho ou estudo. Esta máfia esta bem organizada, financiada e conta com pessoal altamente especializado. Age em muitas grandes cidades e recentemente está muito ativa em Buenos Aires. O crime começa quando a pessoa vai ao barzinho, boate ou discoteca. Uma pessoa se aproxima e ao vê-lo sentado só (de preferência) ou com um grupo de amigos, começa a bater papo. Na próxima cena, a pessoa acorda num quarto de hotel ou num apartamento, submergido em gelo na banheira, e só consegue lembrar da última bebida que tomou. Há algum bilhete colado na parede para ligar para o Pronto Socorro. Ao ligar, as atendentes, que já conhecem este crime, o orientam para 3
  • 4. checar cuidadosamente e sentir se tem um tubo que sai da parte baixa das costas. Caso a pessoa encontre o tubo e responda positivamente, a atendente pede para ele não se mexer, e aciona os paramédicos para auxiliar. Ambos os rins foram retirados. Isto não é uma farsa ou um conto de ficção; é real, tem sido documentado e confirmado. Se você sai só ou conhece alguém que o faz, preste muita atenção. Existem médicos experientes e inescrupulosos que cometem este tipo de crime. A Polícia Federal tem recebido notícias sobre estes fatos, e está preparando o seu pessoal. Por favor, comente esta história, conte-a a todas as pessoas que puder.” Esta versão foi recebida sem comentários do remetente. Aliás, ele é o principal correspondente de um dos autores deste artigo no que se refere ao envio de todo tipo de história que cai na rede. Alguns dias depois, a mesma versão foi novamente recebida, desta feita enviada por uma correspondente brasileira que mora nos Estados Unidos. Ela tinha recebido a narrativa e estava enviando (Fwd) a mensagem para todos os seus correspondentes, em atendimento ao pedido de repassar o alerta, e precedida de alguns comentários: Essa mensagem veio de uma delegacia de polícia de Campinas. Como coisas deste tipo realmente acontecem é melhor prevenir e passar a estória para o maior número de pessoas possíveis. Por sua vez, a pessoa que originalmente havia mandado a narrativa para ela também fazia alguns comentários: A história abaixo parece muito esquisita... mas como recebi de uma delegada de polícia, achei melhor seguir o conselho de passá-la adiante! (grifos nossos). O envio da narrativa para outras pessoas do catálogo de endereços dos autores provocou algumas reações. Ora de dúvida (...mas alguém sem os dois rins consegue sobreviver por algum tempo??), ora de estupefação (...a que ponto chegamos!), ora de conformismo (não se pode ficar mais tranqüilo hoje em dia), ora de ares apocalípticos (...teoria da conspiração, loucura ... recebi este e-mail, não sei se é verdade. Mas por precaução, vamos lê-lo), ora de certeza de ser o Salvador (...esta eu recebi e achei melhor encaminhar pra ser divulgada e repassada), mas nenhuma de desconfiança, ceticismo ou pronta negação acerca da veracidade da narrativa. Ou seja, o relato era tomado, a medir pelas reações tanto daqueles que a estavam enviando, quanto daqueles que estavam recebendo e respondendo a mensagem, como não somente aceitável, mas também como verídica e possível de se repetir em qualquer outro lugar e com qualquer outra pessoa. Daí a urgência encontrada em todos eles de divulgar esta coisa tão trágica de Buenos Aires... Não importa, de um ponto de vista objetivo, cirúrgico, se a narrativa é plausível ou inverossímil. O que a transforma em um mito, e não em um relato jornalístico, é que ela contém os elementos alegóricos e lingüísticos que fazem aflorar os medos milenares, as explicações esdrúxulas, os sonhos retidos por séculos, as neuroses embutidas, as lições de moral repetidas à exaustão e os arquétipos já atualmente soterrados de explicações racionais. Os personagens arquetípicos de mitos são conservados, transmitidos e transformados para as gerações seguintes. O Prometeu acorrentado dos gregos teve o fígado arrancado pelos abutres. O Matin-ta-pereira dos amazônidas e o Mapinguari assustador, um índio envelhecido e endurecido pela falta de água e comida, andam pela floresta para levar embora os que se atrasam à noite sobre as horas combinadas para estar em casa. O Homem com o saco nas costas vagueia pelas ruas de nossas cidades, carregando as crianças, sumindo com elas, 4
  • 5. levando-as para um lugar escuro, de onde não voltam mais. A Garota da Noite, bela e sedutora por suposto, e o Médico Nefrologista, hábil e inescrupuloso com certeza, espreitam pelos bares à caça de sadios inocentes. Para além dos personagens, devem ainda ser considerados dois aspectos: o tempo e o espaço das narrativas míticas. A indeterminação temporal é um elemento constante das narrativas míticas. Daí as formas próprias que introduzem a narrativa: era uma vez, ou no tempo em que os bichos falavam, ou aconteceu faz só uma semana e assim por diante. Quanto ao espaço ou ele é indeterminado, a Terra do Nunca, ou é inacessível aos seres humanos, o Olimpo. Esta indeterminação ou inacessibilidade temporo-espacial possibilita a atualização da narrativa, indicando ao ouvinte que aquilo que ocorreu no pretérito e alhures pode vir a ocorrer novamente neste tempo e neste lugar. Mas, no caso desta narrativa, se o tempo é melífluo, o lugar está bem estabelecido e acessível: Buenos Aires, acrescentando um nome de uma discoteca e de um hospital. Se se considerar que a Buenos Aires da narrativa é a capital da Argentina, situada às margens do rio da Prata, com suas multidões de desempregados, falta de luz por onze dias consecutivos, um sistema previdenciário em frangalhos e um sistema de saúde privatizado, a narrativa perderia o seu caráter mítico de indeterminação de lugar, e não seria um mito, mas uma narrativa jornalística plausível de mais uma das inúmeras mazelas das cidades subdesenvolvidas. O leitor é tentado a quase considerar que a discoteca e o hospital existem na realidade cotidiana. Entretanto, se se considerar que a Buenos Aires relatada é aquela dos cafés e calles floridas, com suas casas de tango e a casa rosada com primeiras damas hollywoodianas, com mulheres lindas e homens elegantes, parecendo que saíram diretamente das vitrines para os passeios; aquela Buenos Aires que aparece nos cadernos de turismo dos jornais e revistas como o único lugar da América Latina em que se respira um ar europeu; aquela Buenos Aires em que Gilda viveu sua tórrida paixão, está-se representando uma cidade mítica, inacessível ao comum dos mortais. Esta cidade, este espaço, este território mítico é o palco representacional do possível e do impossível. Não é por outra razão que o personagem não é simplesmente raptado e subjugado à força e levado para um esconderijo onde se possa dispor do seu corpo, conforme o gosto dos seus algozes. Ao contrário, o personagem freqüenta a Buenos Aires noturna com seus encantos. Não há violência no relato; há sedução. Não há constrangimento; há convencimento. Não há dor; há delícia. Não há urgência; há surpresa. Como se constitui este narrador e este interlocutor, ao redor de uma narrativa, e levada adiante por meio eletrônico? Narrador é quem narra. Há bons e maus narradores. Não se nasce com o dom de narrar. Narrar, assim como qualquer ação ou pensamento humano, se aprende, e de fora para dentro. O que parece dom de contar, de narrar, se aprende a duras penas, narrando, treinando talvez em família, depois enfrentando grupos maiores, expondo-se à crítica alheia, recebendo retorno do que foi narrado. Quando este treino é feito "voz-ouvido", parece mais rápido o retorno, buscado dentro do olho do interlocutor, na sua posição corporal, nos seus "ais-e- então?" e no seu interesse vivo. Além disso, a própria platéia vai selecionando, apontando e elegendo seus narradores por conta de suas performances. Mas, como isso se dá nos meios eletrônicos? Como se elege um bom narrador na rede? Como ele chama a si esta responsabilidade de ocupar este espaço de narrador cibernético? Não se pretende ter as respostas completas, mas pode-se avançar pouco a pouco na tentativa de, senão explicar, pelo menos alcançar algum entendimento acerca deste novo fenômeno. O mito nasce na oralidade. Não haveremos de afirmar diferente apenas porque as narrativas míticas do final do século XX começaram a 5
  • 6. navegar na rede de computadores. Trata-se, evidentemente, de um novo meio de comunicação e veiculação, usado ao mesmo tempo pelo locutor e pelo interlocutor, mas que não desvincula o nascedouro do viveiro. O mito trafega na internet encapsulado em bits, e no entanto ele continua nascendo na oralidade, no contato boca- ouvido, nos serões noturnos, nas rodas de causos. O relato mítico atual que navega online, teve como manjedoura os arquétipos universais, que vão se modificando e se adaptando às novas formas de sociabilidade, mas que preservam o projeto-de-dizer original, que mexem com as emoções mais recônditas e subterrâneas da humanidade do homem. Sua nova vestimenta atual é resultado de novas leituras em cima de novas realidades. Mas o mito, talvez pudéssemos dizer assim, continua o mesmo: a casa, este território familiar, agora mais do que nunca, oferece segurança, tranqüilidade, aconchego e proteção; na rua, este território inóspito, somente se encontra perigo, violência, ardis e armadilhas. A narrativa é (re)criada a cada vez que ela é (re)contada. Ou, no dizer popular, "quem conta um conto aumenta um ponto". Mas como fica esta questão, uma vez que no meio eletrônico a narrativa já vem exibida na tela, e quase sempre é repassada (fwd) sem modificação? Nesse caso, ela permanece a mesma narrativa, como em um livro impresso em milhares de exemplares? A nossa resposta é não e devem ser considerados três aspectos. O primeiro aspecto da recriação, diz respeito aos comentários que o narrador (retransmissor) introduz no cabeçalho da mensagem, de caráter absolutamente pessoal. São neles que o narrador atualiza e interfere na narrativa, imprime suas marcas, aumenta um ponto, apela para argumentos de autoridade, produz o “aggiornamento”, e assim por diante. Grifamos anteriormente as expressões “delegacia de polícia de Campinas” e “delegada de polícia”, correspondentes aos comentários de dois narradores. Embora similares, as duas expressões guardam diferenças abissais. Entre uma delegacia de polícia, impessoal, assustadora no imaginário, e uma delegada de polícia, amiga e conhecedora dos meandros legais, as autoras da retransmissão interferem na narrativa, acrescentam sua própria visão e recriam o mito, mapeando o “projeto-de-ouvir” do interlocutor. O segundo aspecto da recriação acontece à medida em que o leitor-interlocutor da mensagem re-conta-a para um novo interlocutor, quando então ela volta para a oralidade, e continua seu caminho, adaptando-se, re-novando-se, re-vestindo-se de novas roupas, míticas e lingüísticas, a partir de cada realidade em que ela novamente se insere. O que se ganha com o meio eletrônico é em velocidade de difusão, pois que um mesmo narrador pode enviar sua narrativa para milhares de novos interlocutores. E quando um interlocutor destes se põe a narrar a narrativa que leu, para um público presente e atuante, ele veste cada palavra com o seu acento apreciativo, com seu tom de voz, procura o melhor ambiente adequado, a melhor hora, o melhor clima, para jogar na corrente sem fim da comunicação humana uma narrativa que produza os efeitos desejados por ele. Agora a narrativa vai ter o seu tom, vai carregar o seu projeto-de-dizer (se for um médico ou um dono de bar ou um pai a contar a narrativa de Buenos Aires ela ganha direção e conotação diferenciadas). E, finalmente, o terceiro aspecto é o que permite ao narrador eletrônico selecionar seus interlocutores, às vezes de uma lista imensa de destinatários disponíveis no seu “caderno de endereços”. Entre seus endereços pode haver pessoas a quem ele não encaminha determinada mensagem, por não corresponder ao perfil dos que sentiriam prazer de ler tal narrativa. Assim, dependendo da mensagem, ela é encaminhada a determinada pessoa, ou mesmo a determinado grupo de usuários. Cada narrador eletrônico seleciona seus ‘ouvintes’ e monta sua “roda de causos” eletrônica. 6
  • 7. O re-transmissor da narrativa passa a ser também um autor. Sendo um elo desta incomensurável cadeia de narradores, recebendo narrativas e selecionando aquelas que devem ser re-transmitidas, funciona como um fiel depositário dos dados que estão circulando no imaginário de sua sociedade e de sua cultura, de sua comunidade e de sua família. Ele é quem seleciona e organiza os dados, como se escolhesse o que tirar de um velho baú onde estão as substâncias conjeturais de sua narrativa. Tanto ao utilizar este depósito narrativo atemporal, quanto ao proceder a uma rigorosa seleção estabelecida por critérios pessoais, ele também re-inventa, re- cria, re-faz a história, misturando novos elementos, organizando de formas diferentes, e incluindo dados que ainda não estão no baú da cultura, mas que passarão a estar a partir de sua narração. Ele é quem introduz na narrativa as marcas de sua individualidade, além de produzir uma narração única e irrepetível. É o ato de fiar a experiência própria da vida no fio que se perde no tempo e no espaço. Cada nova roda apresenta uma nova ordem, um novo arranjo, que exige novos dotes e novos esforços da imaginação, e que mobiliza, simultaneamente, tradição e inovação, individualidade e coletividade, o já-dito, o dito-agora e o por-dizer. É a tecitura infinita das histórias no clicar de um botão. As narrativas, principalmente as narrativas míticas, encontram sua legitimidade e sua historicidade não só no fato de serem imemoriáveis e serem parte da dimensão ideológica do grupo. Mas, também, por significarem re-apropriação, re-tomada de conteúdo do imaginário grupal perdido nos desvãos da memória por alguém que vai trabalhar estes dados de forma personalizada, historicizada, demonstrando assim suas habilidades performáticas e seu trato com as coisas públicas. Dessa forma, a voz que narra revela a dinamicidade da narração e se coloca como contraponto, re-atualizando o conteúdo. Ao final, voltamos a Prometeu. Do herói mítico, que roubou o segredo do fogo dos deuses e o entregou aos homens, os abutres retiravam o fígado aos pedaços. De nosso herói portenho foram retirados os rins inteiros. Ambos sobrevivem à tortura. Prometeu, acorrentado à montanha, porque o fígado regenera-se mesmo com as bicadas dos abutres, e o nosso herói anônimo, adormecido em uma banheira de gelo, porque a tecnologia interfere a favor dele. Prometeu relaciona-se com os homens, e esta relação o salva da morte, destino inexorável de todos; o nosso herói relaciona-se com os homens e com as mulheres, acredita neles e nelas, encontra-se com a morte, mas termina sobrevivendo por interferência de uma máquina. O homem maquínico, eis o resumo do século. NETGRAFIA COMENTADA a) Faria muito bem ler Walter Benjamim para aprofundar o estudo do narrador. Assume o papel de narrador em uma dada comunidade quem tem ligações amplas com o mundo circundante (um marinheiro, por exemplo), ou quem está profundamente arraigado em seu próprio meio (como um agricultor). Maiores reflexões podem ser obtidas em http://www.urbi.com.br/users/jlbelas/texto02.htm b) Um estudioso como Mikhail Bakhtin não pode ficar sem ser lido para aprofundar a questão da relação entre o locutor e o interlocutor, entre o sujeito e o outro. Acha-se excelentes subsídios no Centro Bakhtiniano, localizado na Inglaterra, em http://www.shef.ac.uk/academic/A-C/bakh/bakhtin.html 7
  • 8. c) Sobre mitos e lendas em geral, basta procurar em “Altavista” que milhares de sites serão revelados; e então cabe uma busca com calma. Mas sobre mitos e lendas da Amazônia, o site http://www.mtbrazil.com.br/amazon4.html é um bom começo. Para mitos e lendas brasileiras clique-se http://www.nautilus.com.br/~edilzio/folclore.html d) Com relação ao imaginário nas formas narrativas orais populares, a Universidade Federal do Pará coletou milhares delas, e colocou à disposição no site http://www.ufpa.br Entre nesta página e logo em seguida clique em pesquisa, e depois procure "O imaginário nas formas narrativas orais populares da Amazônia Paraense". É divertimento na certa. e) Se tiver curiosidade sobre mitos e musas da mitologia grega, comece sua pesquisa por http://www.geocities.com/Athens/Olympus/7866/musas.html Não pare por aí. Os hackers e anti-hackers também disponibilizam muitas narrativas sobre os mitos pós-modernos que a própria rede produz, como são os que invadem os mail's falando de milhões de vírus super-perigosos que invadirão e destruirão seu computador em apenas alguns segundos. Para alguma informação inicial vá a http://www.netgate.com.br/~hacker/ahhp/basico/mitos/lendas/main.htm É a criatura assustando o criador. Se não nos enganamos, esta história já está narrada na primeira página da Bíblia. Melhor expulsar o computador de seu paraíso enquanto há tempo... parece que ele comeu do fruto da árvore do conhecimento (só não comeu da árvore da vida porque Eva chegou primeiro). 8
  • 9. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa 34 PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº34 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME III ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras UM POUCO DE HUMOR NA ANÁLISE DO VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia DISCURSO: RESGATANDO A Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times SUBJETIVIDADE DISCURSIVA New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: nilson@unir.br NAIR F GURGEL DO AMARAL CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA 9
  • 10. Nair F. Gurgel do Amaral UM POUCO DE HUMOR NA ANÁLISE DO DISCURSO: Professora de Lingüística – UFRO RESGATANDO A SUBJETIVIDADE DISCURSIVA naigel@unir.br Desde o surgimento da Análise do Discurso de linha francesa, no final dos anos 60 por Michel Pêcheux , que essa linha de estudos tem demonstrado ser um campo de pesquisa muito fértil. A Análise do Discurso surgiu na conjuntura política e intelectual francesa, marcada pela conjunção entre filosofia e prática política, já como um campo transdisciplinar. Atravessou fronteiras e movimentou o campo das ciências humanas, constituindo-se hoje em uma disciplina transversal. Os principais estudiosos da Análise do Discurso reuniam reflexões sobre o texto e a história, resultando daí uma análise textual que envolvia a Lingüística, o Marxismo e a Psicanálise. Saussure-Marx-Freud são as três balizas da proposta de Pêcheux, situando a Análise do Discurso em três regiões do conhecimento: a) na Lingüística – com a problematização do corte saussureano - teoria lingüística; b) no Materialismo Histórico - por meio da releitura althusseriana de Marx - teoria da sociedade; c) na Psicanálise – por meio da releitura lacaniana de Freud - teoria do inconsciente. Michel Foucault (França, 1926-1984) filósofo, intelectual e polêmico, militante das causas das “minorias”, problematiza sobre a ciência histórica, suas descontinuidades, sua dispersão, que resultará na abertura do conceito de formação discursiva, na discussão entre os saberes e os (micros) poderes, na preocupação com a questão da leitura, da interpretação, da memória discursiva. Foucault abordou o discurso, principalmente em As palavras e as coisas (1966); Arqueologia do saber (1969) e A ordem do discurso (1972) de onde vêm vários conceitos para a Análise do Discurso francesa. Somente mais tarde, Mikahil Bakhtin (Rússia, 1895-1975) nos dá a idéia da heterogeneidade, do dialogismo, da inscrição da discursividade em um conjunto de traços sócio-históricos, em relação ao qual todo sujeito é obrigado a se situar. Bakhtin era teórico da lingüística e da literatura e viveu na Rússia stalinista, motivo pelo qual sua obra só foi traduzida no Ocidente no final da década de 60 (Marxismo e Filosofia da Linguagem, escrito em 1929). Bakhtin é conhecido primeiramente na teoria da literatura com a obra Problemas da Poética de Dostoiévsky (1963); Estética e Teoria do romance (1975); Estética da criação verbal (póstumo 1979). É nesse período que ele influencia os franceses da Análise do Discurso. A Lingüística vai descobrir Bakhtin bem mais tarde, nos anos 90: seus conceitos de “gênero” e “dialogismo” passam a circular em muitos trabalhos. Nos anos 80 as propostas de Pêcheux vão-se aproximar de outros fundadores. Nos seus últimos escritos, Pêcheux já acena para várias aberturas, deslocando-se da primazia sobre o discurso político, sobre a materialidade escrita, para encontrar outras formas materiais, outros regimes de materialidades. Para o trabalho que proponho desenvolver, destaco Michel de Certeau, (França, 1925 - 1986), considerado um dos melhores teóricos da Nova História. Com seus livros A invenção do cotidiano: artes de fazer (1990) e A invenção do cotidiano: morar, cozinhar, De Certeau nos brinda com as propostas de análise dos ISSN 1517 - 5421 10
  • 11. discursos do cotidiano, a reflexão sobre a escrita da história e a emergência das resistências. Pensador de inteligência brilhante e não conformista, contribuiu nas áreas de Filosofia, Letras Clássicas, História e Teologia, pesquisador da história dos textos místicos desde a Renascença até a era clássica, interessa-se não só pelos métodos da Antropologia e da Lingüística, como também pela Psicanálise. Anticonformista e perspicaz, foi um inconformado com os cânones de uma disciplina rígida e censurado por colocar em dúvida a forma da escola francesa de História. Sua principal contribuição foi questionar a suposta passividade dos consumidores. Ele acredita na criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade oculta num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma “maneira própria” de caminhar pela floresta dos produtos impostos. A questão do assujeitamento, colocada pela Análise do Discurso francesa, especialmente em sua primeira fase, através de Michel Pêcheux, sempre me incomodou. Nessa fase, conforme dito acima, ressalta-se a idéia de inconsciência dos sujeitos envolvidos numa interação discursiva, já que os sujeitos ocupam posições pré-estabelecidas pela formação social a que pertencem. Nessa situação, os sujeitos produzem um discurso que, na verdade, é um “já dito”, uma vez que ele não é a origem do discurso. O discurso é produzido sempre em condições dadas, pré-estabelecidas por uma determinada formação discursiva. Naturalmente que não tenho a pretensão de questionar o assujeitamento ideológico pelo qual todo sujeito é atingido. O que me inquieta é a simplificação que se faz do sujeito, conferindo a ele um tratamento, no mínimo, reducionista, e o estatuto que se confere ao discurso, de ser fechado, concebido em um lugar no qual o sujeito não interveio, apesar da heterogeneidade de que esse discurso é constituído. Entretanto, questionar o tratamento reducionista que a Análise do Discurso dá ao discurso e ao seu sujeito não é, de maneira alguma, questionar o seu valor. Ela coloca questões de grande importância, como a noção de condições de produção, e o jogo de imagens (Pêcheux,1969). O próprio Pêcheux, em Discurso: Estrutura ou Acontecimento (1983), procura rever alguns de seus postulados teóricos. Reconhece o tratamento reducionista que vinha dando ao discurso e a seus sujeitos e procura reconsiderar a particularidade discursiva do enunciado. No entanto, o conceito de assujeitamento não se altera em Pêcheux (1983): “o sujeito continua ‘controlado’, mesmo que seja por ‘acontecimentos’, por efeitos de sentido (um saber não articulável, inacessível, portanto) que foge ao que o autor considera como parte do pré-concebido. O sujeito, então, não constrói o discurso e nem a história, apenas os organiza!!!. Tudo acontece abstraindo a ‘ação’ desse sujeito, mesmo porque a equivocidade, a elipse, a falta, que poderiam ser consideradas como brechas para a ação desse sujeito, são consideradas por Pêcheux como fatos estruturais, como próprias da estrutura da língua (do pré-concebido). É o primado da estrutura sobre o acontecimento. Com a finalidade de postular um lugar de destaque para o sujeito do discurso, sem, entretanto, deixar de considerar as condições de produção a que está submetido, seja por questões ideológicas ou sócio-históricas, é que tento encontrar em textos humorísticos vestígios que demonstrem, principalmente através da linguagem, um trabalho do sujeito estrategista, resgatando-o da passividade e do assujeitamento imposto pela ideologia. Como a minha intenção é evidenciar o papel do sujeito no discurso e demonstrar que ele, estrategicamente, deixa vestígios nos textos que produz, espero, com o auxílio dos textos humorísticos, deixar claras essas marcas de subjetividade, ou do não assujeitamento, onde se torna evidente o trabalho do sujeito. 11
  • 12. O meu interesse pelo humor surgiu devido a essas questões colocadas pela Análise do Discurso. Sob essa perspectiva teórica, é possível dizer que as piadas, sendo discurso, servem à ideologia, e que os sujeitos envolvidos no discurso humorístico são tomados pela inconsciência inerente ao processo de assujeitamento ideológico pelo qual passam todos os sujeitos do discurso. Dessa forma, os sujeitos têm a ilusão de que dominam o próprio discurso, mas, na verdade, são dominados por ele. O falante, nessa perspectiva teórica, não passa de um porta-voz de discursos que o antecedem. O ‘eu’ é, nessa versão, dominado, condicionado pelo ‘outro’. O que procurarei mostrar é que o discurso humorístico possibilita reflexões acerca do processo discursivo. A eficácia (ou não) das estratégias discursivo-argumentativas utilizadas no discurso humorístico nos permite questionar a plena inconsciência dos sujeitos desse discurso. O sucesso do humor, ou o que faz rir não pode ser considerado obra do acaso. O discurso humorístico, por se valer de alguns procedimentos discursivos mais sistematicamente produzido que outros tipos de discurso, abre espaço para que se realize uma reflexão sobre o funcionamento discursivo que coloca o sujeito sempre e apenas como objeto da própria história e nunca como sujeito. Os exemplos abaixo mostram textos construídos a partir de modelos muito estereotipados, conhecidos, onde é possível perceber a presença da subjetividade, isto é, o trabalho do sujeito a partir de outro texto. Ou seja, há o discurso do outro, mas existe também o trabalho do eu. São provérbios reescritos, desmontados. Quem dá aos pobres ainda tem que pagar o motel. [Quem dá aos pobres, empresta a Deus] - Ideologia Humanista. Quem ama o feio é porque o bonito não lhe aparece. [Quem ama o feio, bonito lhe parece] – Ideologia Conformisa. Impossível não perceber a presença da heterogeneidade. Sob a forma de jogo, o sujeito deixa marcas que não há como negar sua presença. O verbo ‘dar’ e sua forma polifônica de aparecer nos discurso, permite uma manobra do autor, desviando totalmente o sentido do texto ao alterar a segunda parte do provérbio. Fenômeno parecido ocorre no exemplo seguinte: a segunda parte é alterada e a ideologia do provérbio é desmontada. É relativamente fácil dizer que os exemplos acima são textos construídos a partir do discurso do outro. Isso é inegável. O que considero difícil é eliminar totalmente a subjetividade. Vejam bem: Se aparecesse primeiro o conhecido provérbio “quem dá aos pobres empresta a Deus”, quem seria capaz de imaginar a presença desses outros exemplos? No entanto, ao lermos estes enunciados, percebemos, imediatamente, a presença do provérbio. Com base nesses exemplos, posso afirmar que a presença do outro não é suficiente para apagar a presença do eu, no máximo, mostrar que ele não está só. Embora já tenham dito que “nada é mais humorístico do que o próprio humor, quando pretende definir-se”, fico com a sabedoria de Monteiro Lobato ao dizer que o “humor é a maneira imprevisível, certa e filosófica de ver as coisas”. É que em relação ao humor, não faltam argumentos e definições de personalidades a respeito. Todos ressaltam, de alguma forma, que o humorismo é o único momento sério e, sobretudo sincero da nossa quotidiana mentira. Começo citando a célebre frase de Aristóteles: O homem é o único ser vivente que ri, seguida de alguns versos do poema de Luís Fernando Veríssimo, intitulado O único animal, onde ele diz, entre outras coisas, que “o homem é o único animal que ri dos outros”. Na verdade, estou querendo dizer que o riso é tão amplamente difundido nas formas de vida 12
  • 13. social do homem, podendo ser considerado fator primário de seu comportamento, que falar do riso é tentar compreender e interpretar a história do homem. Entretanto, humor – na literatura e na vida – não é contar piada, fazer gracinhas ou ser óbvio e explícito... Não é ficar rindo à toa. Millôr Fernandes afirma que fazer humor “É adotar uma forma completamente desinibida e descondicionada de ver as coisas”. Para entender melhor o que disse Millôr, recorro a outro humorista. Leon Eliachar (que teve a seguinte definição laureada com o primeiro prêmio “Palma de Ouro” na IX Exposição Internacional de Humorismo realizada na Europa – Bordighera, Itália, 1956) define humor da seguinte forma: “Humorismo é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros. Há duas espécies de humorismo: o trágico e cômico. O trágico é o que não consegue fazer rir, o cômico é o que é verdadeiramente trágico para se fazer.” Certo é que o humor evidencia uma atitude intelectual do autor, que produz o seu texto com uma postura reflexiva e consciente. Além disso, peculiar no humor é que ele chama a atenção do leitor para uma possível manifestação da linguagem. Os autores que trabalham com o humor valorizam alguns aspectos, entre eles estão a inovação e a subversão. A inovação pode ser entendida como sendo uma nova forma de perceber velhas coisas; sem preconceitos, sem estereótipos, sem repetir o já sabido. Não existe o medo de mudar. A subversão é revelada através do inconformismo, do rompimento com as regras, com as normas, feito através de recursos metafóricos e lingüísticos. Alguns idealistas afirmam que são os desobedientes que movimentam o mundo. O riso, portanto, é uma das formas de subverter padrões, é, sobretudo, uma crítica social. As possibilidades mais simples de se inventar estórias cômicas nasce do aproveitamento do erro. Rimos das pessoas que caem porque elas não se comportam segundo a norma humana. Este tipo de “riso de superioridade” está entre as primeiras formas de riso de que a criança é capaz. (Ver o sucesso da ‘pegadinhas’ e das ‘vídeos cacetadas’). Um dos mais conhecidos textos humorísticos são as piadas. Geralmente, elas versam sobre temas socialmente controversos, onde é possível constatar manifestações culturais e ideológicas. A maioria delas veiculam o discurso dominante e são sobre: sexo, política, racismo, loucura, morte, defeitos físicos, instituições (escola, casamento, igreja, línguas, etc). Alguns teóricos afirmam que o papel do lingüista é explicar, não o porquê do humor, mas o como acontece o humor, ou seja, os lingüistas trabalham onde os outros se divertem, analisando e descrevendo os fenômenos lingüísticos, envolvidos no processo de criação e interpretação do texto que provoca o riso. Embora as piadas tenham um forte cunho cultural, social ou ideológico, (fonte de pesquisa para os sociólogos, psicólogos e antropólogos) os analistas do discurso devem também se preocupar com essas questões, pois consideram em suas análises as condições de produção do discurso, uma vez que todo discurso pressupõe uma memória, um acontecimento, enfim, um processo. O que veremos agora são alguns exemplos de textos que pressupõem o ‘já dito’, ou seja, o discurso do ‘outro’, mas que demonstram de alguma forma um trabalho do ‘eu’ sujeito. Outro fator que chama a atenção ao analisarmos as piadas é que elas costumam também veicular o discurso corrente, e ao fazê-lo utilizam-se de estereótipos. Assim: todo judeu só pensa em dinheiro; todo português é burro; todos os advogados são corruptos; todas as loiras são burras e só pensam em sexo; todo japonês tem pênis pequeno. Vejamos alguns exemplos: Por que é que judeu só penteia o cabelo para trás? - Porque judeu não gosta de repartir nada. 13
  • 14. O português passava em frente a um chaveiro quando viu uma placa “Trocam-se segredos”. Parou, entrou na loja, olhou para os lados e cochichou para o balconista: - Eu sou gay, e você? - O que o japonês faz quando tem ereção? - Sai de casa pra votar, né? Se a língua fosse monofônica, os textos acima não seriam humorísticos. O que permitiu o humor foi a presença de um sujeito estrategista que conhece as nuances da língua e faz incursões nas construções morfossintáticas. O que comprova uma manobra do sujeito é sua astúcia na escolha das palavras e sua conseqüente articulação. É que o sentido ou o efeito de sentido só pode ser determinado se considerada as condições de produção. A linguagem, polifônica e heterogênea constitutivamente, possibilita ao sujeito trabalhá-la, com a finalidade, inclusive de enganar o leitor. Daí o efeito de humor: ‘repartir’, ‘trocar segredos’ e ‘ereção’ representam escolhas conscientes por possibilitarem mais de uma leitura. Por exemplo: [dividir/partir ao meio], [trocar confidências/trocar combinação numérica de cofres], [levantamento/eleição]. Na última piada, existe a evidente intencionalidade do autor em desviar a interpretação do leitor: japonês tem pênis pequeno = ereção. Análise lingüística: na pronúncia dos japoneses residentes no Brasil, ou seus descendentes, existe uma substituição do L pelo R. Ex.: “do lado de lá” = /do rado de rá/, diferentemente da pronúncia das crianças brasileiras que, até os cinco anos de idade, mais ou menos, trocam o R pelo L (ver Cebolinha da Turma da Mônica). Ex.: “para fora” /pala fola/. Como é possível falar em assujeitamento, quando o sujeito conhece e usa normas da linguagem, burlando estrategicamente as regras da interpretação previsível e levando o leitor a uma resposta contrária à esperada pela “pegadinha”. Logo, “ereção” é diferente de “elevação do pênis” e igual a “eleição”, que por sua vez pressupõe “votar”. Para De Certeau, o sujeito reinventa o cotidiano. Utiliza o ‘já dito’ para redizer de forma diferente, às vezes, atribuindo-lhe outra ideologia. Podemos fazer vários tipos de análise em relação aos textos humorísticos. Uma delas é considerar os diversos níveis gramaticais. Por exemplo: fonológico, morfológico, sintático, lexical, sociolingüístico, etc. O exemplo abaixo mostra uma ‘ pegadinha’ que contempla dois níveis de análise, pelo menos. O discurso do “outro” é percebido pela possibilidade de diferentes pronúncias (maior ou menor duração, possibilidade de pausa em um discurso e impossibilidade no outro,) e a conseqüente possibilidade de duas leituras das seqüências é trabalho do sujeito. As diferentes segmentações fazem com que a piada (charada) abaixo seja também considerada morfológica. E as diferentes segmentações é que permitem dizer que, num caso, temos uma palavra só e, no outro, duas. Os alfabetizadores sabem o quanto esse fenômeno tem sido problemático nas séries iniciais. - Você sabe como é que muda pé de café? - Tira o pé de café de um lugar e planta em outro. Nível Fonológico 1. muda /pede /café [muda/pEdji/kafE] 03 segmentos 14
  • 15. 2. muda /pé /de /café [muda/pE/dji/kafE] 04 segmentos Nível Morfológico Por analogia aos verbos regulares da 3ª conjugação e considerando a fala, onde “pé de” é igual a “pede”: 1. Resid+ir ela resid+e [rezidji] 2. Med+ir ela med+e [mEdji] 3. Ped+ir ela ped+e [pEdji] Nível Lexical / Semântico Presença marcante da polifonia: 1. muda pessoa desprovida da fala (expressão verbal oral). Ex: Fulana é muda; A muda (mulher que não fala) é bonita, etc 2. muda verbo mudar (transferir, trocar, transportar de um lugar para outro, transformar, etc.). Ex: Fulano muda a camisa; Fulano muda de casa, Fulano muda para São Paulo, Fulano muda a mesa da sala para a cozinha, Como você muda a cada hora..., etc. Dois políticos famosos se encontraram em Brasília depois de escapar de mais uma CPI: - Antenor, há quanto tempo! Vamos tomar alguma coisa? - Vamos. De quem? No Nível Sintático, quando o que está em ‘jogo’ são as estruturas sintagmáticas do enunciado, temos outras possibilidades de análise: [tomar] = [beber (algo)] - verbo transitivo direto - objeto direto. [tomar] = [subtrair (algo, de alguém)] - verbo bi-transitivo – objeto direto e indireto (de quem?) A variação lingüística é um fenômeno apaixonante, rico e, sobretudo, rendoso no que diz respeito a dados lingüísticos. Com a variação podemos detectar problemas ligados ao preconceito e à discriminação, facilmente observáveis através da pronúncia, do léxico, e da construção sintática principalmente. A dialetologia mostra que esses fenômenos podem ocorrer no nível espacial (Variação Geográfica), mostrando as diferentes classes sociais (Variação Social), trabalhando com faixas de idades diferentes (Variação de Idade), estabelecendo diferenças entre a fala da mulher e do homem (Variação de Sexo), entre outras tantas. Um caipira assiste TV de janela aberta. Passa um vizinho e cumprimenta: - Firme cumpadi? - Não cumpadi, é novela. A pronúncia diferente - Nível Fonológico - entre o urbano e o caipira (variação geográfica e/ou social) estabelece o “gatilho” da piada: interpretar palavras de formas diferenciadas. Logo, “firme” não é o que poderia parecer óbvio (legal), mas uma variante de “filme”, existente na fala dos caipiras, ou dos sem escolaridade. No caso do caipira é relevante demonstrar que sua “inferioridade” social, geralmente demonstrada pela linguagem que usa (padrão/não padrão) é superada pela sua 15
  • 16. esperteza, sua sabedoria. Aí estão incluídos também os nordestinos, que nesse caso, são considerados “machões”, em oposição ao “gaúcho”. São estereótipos como já vimos anteriormente. O que procurei mostrar é que o discurso humorístico abre perspectiva para outra reflexão acerca do processo discursivo. A eficácia, ou não, das estratégias discursivo-argumentativas utilizadas no discurso humorístico nos permitem questionar sobre os sujeitos desse discurso. Depois de tudo que foi dito ainda é possível acreditar que o sucesso do humor, ou o que faz rir, pode ser considerado obra do acaso? Do assujeitamento? Será que devemos concordar com a simplificação dada ao sujeito e o estatuto conferido ao discurso, de ser fechado, concebido em um lugar no qual o sujeito não interveio, apesar da heterogeneidade de que esse discurso é constituído? Fica, então, um questionamento para reflexão: Será que na nossa prática escolar temos tido propostas diferentes para o ensino de língua, ou será que a subjetividade atingiu níveis, não de assujeitamento ideológico, mas, perigosamente, de alienação, de submissão, de falta de conscientização no exercício de cidadania? Naturalmente que prefiro ficar com De Certeau e mostrar que o sujeito pode ser diferente na igualdade, pois “não são meros consumidores, mas usuários que sabem personalizar o que usam e o que fazem”. É como diz Possenti (1995) “... a história freqüentemente se faz de pequenos fatos, pequenos atos que produzem pequenas alterações do que há, de usos diversos e eventualmente não previstos das mesmas ciosas...” BIBLIOGRAFIA BAKHTIN/VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Editora da Unicamp, 1992. De CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994. FERREIRA, M. Cristina Leandro (org.) Glossário de Termos do Discurso. Porto Alegre, UFRGS, 2001. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986. ______. A ordem do discurso. São PAULO: Loyola, 5 ed., 1999. GADET, F & HAK, H. Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, Pontes, 1990. GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. GREGOLIN, M. R V. Recitações de mitos: a História na lente da mídia. In Filigranas do discurso: as vozes do discurso. Araraquara, Cultura Acadêmica Editora, 2000. POSSENTI, S. Discurso,Estilo e Subjetividade. Campinas: Pontes, 1990. ______. Sobre as noções de sentido e de efeito de sentido.In: Cadernos da F.F.C. Análise do Discurso. UNESP/Marília, v 06, n 02, 1997. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, Pontes, 1994. ______. Termos-chave da Análise do Discurso. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998. PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1999. 16
  • 17. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa 35 PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº35 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME III ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: nilson@unir.br CÉLIO JOSÉ BORGES CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA 17
  • 18. Célio José Borges A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA Professor do Departamento de Educação Física Educação Física é um segmento da educação que utiliza as atividades físicas, orientadas por processos didáticos e pedagógicos, com a finalidade do desenvolvimento integral do homem, consciente de si mesmo e do mundo que o cerca. O presente artigo se concretiza a partir da pesquisa por mim realizada para elaboração da dissertação de mestrado, Tecnologia alternativa na escola: revitalizando o ensino de Educação Física para crianças, onde se buscou refletir a Escola, a Educação Física para crianças e a confecção e o emprego de Tecnologia Alternativa como recurso didático-pedagógico na escola, bem como apresentar considerações teóricas que fundamentam tanto a elaboração do trabalho que tenho realizado nas oficinas, quanto a interpretação dos dados obtidos. Ao mesmo tempo procurou compreender a relação entre a atividade física e conteúdos de sala de aula, numa perspectiva lúdica, possibilitando-se assim compreender também a relação interdisciplinar entre ambas. Em primeiro lugar, defendo a importância de se procurar formar professores que sejam capazes de refletir sobre sua prática, de direcioná-las segundo as realidades em que atuam e de conformá-las aos interesses e às necessidades das crianças. Ainda que não se trate de formar o chamado “professor reflexivo”, penso ser viável considerar a possibilidade de se preparar professores dotados de uma “postura investigativa” em relação ao trabalho que desenvolvem. Em segundo lugar, acredito que a atividade física na escola pode ser concebida com base na nova visão de esporte proposta por Tubino (1992), que destaca sua dimensão social e o associa a educação, a participação e a desempenho. Em terceiro lugar, apoiando-me em Ferreira (1984), proponho que o desenvolvimento da Educação Física na escola se organize segundo a perspectiva de transformação defendida pela autora, em contraposição à tendência comum de centrar as atividades físicas no esporte competitivo, configurando o que ela denomina de prática voltada para a reprodução. Tais pressupostos conformam a base teórica que sustenta o estudo. Reflexões sobre a escola e a prática docente Julgo que ainda não se refletiu suficientemente sobre o trabalho docente que se realiza na escola. Os sujeitos que nela atuam tendem mais a ações isoladas que a um esforço de reflexão conjunto que propicie melhoras individuais e coletivas. Penso também ser indispensável a reflexão sobre o papel do professor formador de professores, o que me afeta particularmente por ser professor de Educação Física infantil em cursos que preparam docentes para os diferentes graus de ensino. Defendo a necessidade de se buscar formar um profissional capaz de refletir na e sobre a prática desenvolvida na escola. Em síntese, sustento a importância da reflexão-na-ação. ISSN 1517 - 5421 18
  • 19. Gómez, (citado por Nóvoa, 1997), afirma: A sociedade ocidental tem-se mostrado preocupada com os resultados insatisfatórios de longos e custosos processos de escolarização: nas sociedades industrializadas, a escola conseguiu chegar aos lugares mais inacessíveis e às camadas sociais mais desfavorecidas. Não obstante, nem a preparação científico-técnica, nem a formação cultural e humana, nem sequer a desejada formação compensatória alcançaram o grau de satisfação prometido.(p.95). O autor considera ainda que: São familiares as metáforas do professor como modelo de comportamento, como transmissor de conhecimentos, como técnico, como executor de rotinas, como planificador, como sujeito que toma decisões ou resolve problemas, etc.(Ibid: 96) Relacionadas a essas imagens encontram-se nos estudos e nas teorias que determinaram e que têm determinado o pensamento pedagógico, concepções de escola, de ensino, conhecimento e de aprendizagem, bem como concepções das relações existentes entre teoria e prática, ou seja, entre investigação e ação. Para refletir sobre o trabalho pedagógico desenvolvido na escola das séries iniciais do ensino fundamental, entendo ser necessário compreender como se estruturam as escolas de educação infantil e suas práticas. Apoiando-me nas conclusões de Silva (1999: 59-60), considero que a escola infantil tem pautado suas ações na intenção, quase que exclusiva, de preparar criança para o ensino fundamental. Nesse sentido, utiliza como estratégia dominante a repetição de exercícios de prontidão, nos quais se emprega a brincadeira ora como recurso didático, ora como instrumento de sedução e controle. Entendo que essa estratégia não se compatibiliza com as características da atividade lúdica da criança, que requer liberdade para explorar sua criatividade. Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que o brincar como prática social infantil não tem sido compatível com a função que a escola vem cumprindo. Nela, deixam de ser valorizadas as iniciativas tímidas das crianças, que refletem características de aleatoriedade e indeterminação, com as quais a escola não sabe trabalhar e nem lidar. A conseqüência é que o professor acaba mais controlando os passos e as respostas das crianças diante das tarefas (atividades) propostas do que as incentivando a produzirem algo interessante e de fato educativo. Tal situação reitera a importância de se refletir sobre a prática docente na escola, de se adotar uma atitude investigativa em relação a essa prática e, ainda, de se pesquisar alternativas para aperfeiçoá-la. Segundo Schön (1997): Quando um professor tenta ouvir os seus alunos e refletir-na-ação sobre o que aprende, entra inevitavelmente em conflito com a burocracia da escola. Nesta perspectiva, o desenvolvimento de uma prática reflexiva eficaz tem que integrar o contexto institucional. O professor tem de se tornar um navegador atento à burocracia. E os responsáveis escolares que queiram encorajar os professores a tornarem-se profissionais reflexivos devem tentar criar espaços de liberdade tranqüila onde a reflexão-na-ação seja possível. Estes dois lados da questão - aprender a ouvir os alunos e aprender a fazer da escola um lugar no qual seja possível ouvir os alunos - devem ser olhados como inseparáveis.(p.87). Para Makiguti (1994), erra-se quando se deixa a cargo de determinados profissionais, que não têm formação em educação ou que estão fora das escolas e das salas de aula, as decisões relacionadas aos objetivos e às metas educacionais. O autor considera essencial que se redirecionem os estudos pedagógicos de modo a relacioná-los com situações reais de ensino. 19
  • 20. O processo de teorização deve se basear nisto. Em vez de permitir aos acadêmicos ‘lá de cima’ pronunciamentos sobre o que acontece ‘embaixo’, nas escolas, perturbando a estratosfera com esta ou aquela teoria, para depois modificá-la de acordo com as tendências do momento, os profissionais que atuam na educação, embasados em suas experiências diárias, devem abstrair indutivamente princípios e reaplicá-los em suas práticas na forma de melhorias concretas. Nessa mesma linha, argumenta que os objetivos devem ter origem nas necessidades e no dia-a-dia dos alunos. Os professores deveriam valorizar o que as crianças consideram importante, o que nelas desperta interesse durante o seu processo de formação, ao invés de pensarem apenas nas necessidades dos adultos. Devem, assim, evitar sobrecarregar seus alunos com informações que sejam sem sentido para as suas vidas, ou que sejam exageradamente abstratas. Makiguti (1994) compara a apreensão de tais conteúdos a uma indigestão, propondo combatê-la da seguinte forma: [...] Infelizmente, os efeitos da intoxicação psicológica nas crianças, causada pela aprendizagem forçada de conteúdos incompreensíveis, não são percebidos de imediato. Por isto, as conseqüências perniciosas desse processo ... não são reconhecidas. A situação é séria, mas, ao pesquisarmos as causas do problema, defrontamo-nos com um paradoxo: professores e pais acreditam estarem colaborando com o futuro bem-estar das crianças, apesar de as tornarem infelizes durante o processo. ... a escola que sacrifica a felicidade presente da criança e faz da felicidade futura seu objetivo violenta a personalidade infantil e o processo de aprendizagem propriamente ditos. (p:39). Considerando-se que é na escola que o licenciando estagia e trabalha quando formado, cabe desenvolver no mesmo a consciência da importância de uma postura investigativa em relação à sua prática. Tal postura deve envolver tanto os momentos de construção como de utilização de recursos pedagógicos. Tal postura deve incluir também a consciência da necessidade de valorização dos interesses e das necessidades da criança. O desenvolvimento dessa atitude durante o curso de formação é facilitado pela presença de um professor que atue como orientador e procure contribuir para a promoção de novas aprendizagens, para o aperfeiçoamento do desempenho, para o estabelecimento do diálogo e para a prática de uma avaliação continuada. Em síntese, defendo a importância de se buscar, durante o período de formação e de estágios do futuro professor, propiciar oportunidades de reflexão sobre a prática desenvolvida junto com os alunos. Para isso, porém, o professor formador também precisa refletir continuamente sobre sua atuação profissional. Do esporte Institucionalizado à Educação Física escolar Recorro a Tubino (1992) para discutir a influência do esporte na Educação Física escolar. O autor aponta como se modificaram as concepções referentes ao esporte. Considero que as dimensões propostas pelo autor também se aplicam à Educação Física escolar, que de certa forma sofre os reflexos e as influências do esporte e que, da mesma forma que este, vem sofrendo modificações no modo como é concebida. Tais mudanças possibilitam admitir, na Educação Física escolar, mudanças de conceito e de concepção quanto a suas relações sociais na escola, permitindo assim, que se pense em formas alternativas de desenvolvimento da disciplina, que a tornem menos formal e mais prazerosa para as crianças. 20
  • 21. Tubino (1992) refere-se a um “esporte da Antiguidade”, assim como destaca o surgimento do chamado “Esporte Moderno” no século passado, em uma perspectiva pedagógica, sem restringir os aspectos de disputas das competições. Entretanto, o ideário olímpico do esporte foi sendo abalado pela busca de profissionalismo no esporte, gerando com isso, conflito entre o amadorismo e o profissionalismo. Como não se admitia em hipótese alguma o profissionalismo nas competições, os casos identificados eram passíveis de severas punições. A perspectiva padagógica inicial do esporte moderno desaparecia gradativamente e mantinha- se ainda o preconceito em relação à prática desportiva feminina, por muito tempo mantido. Busco refletir sobre a Educação Física escolar, considerando os aspectos negativos da supervalorização do esporte competitivo (Tubino, 1992), bem como as tendências e correntes da Educação Física brasileira (Ghiraldelli Jr., 1988), em especial as tendências militarista (1930 -1945), pedagogicista (1945 - 1964) e Competitivista (1964 - 1985 aproximadamente). Minha intenção é estabelecer relações com a formação do professor de Educação Física e compreender as influências históricas nas características da Educação Física escolar. Para Ghiraldelli Jr., é necessário que a periodicidade das tendências seja entendida com cautela, já que as mesmas, embora só se explicitem em uma dada época, já estão latentes em épocas anteriores e, além disso, tendências que aparentemente desapareceram são incorporadas por outras. Ressalte-se ainda a distância entre a teoria e o que de fato ocorre na prática, ou seja, nas aulas. Para Ghiraldelli (1988): “O problema também é complexo quando desejamos entender a organização mental dos professores de Educação Física. Todas essas tendências são mais ou menos incorporadas, e estão vivas nas cabeças dos professores atuais. Eles são absorvidos em forma de amálgama e, não raro, levam a um ecletismo pouco produtivo.” (p.16) Não é fácil, então, compreender as influências no processo de formação dos professores de Educação Física. Nos anos 70 e 80, período da Tendência Competitivista, houve uma forte influência da prática do desporto escolar competitivo, marcado pela realização dos Jogos Escolares Brasileiros - JEBs, descaracterizando-se quase que totalmente a Educação Física escolar, tanto nas séries em que se recomendava a iniciação desportiva, ou seja, de 5ª a 8ª série do primeiro grau, como na prática do desporto nas séries do segundo grau. Secundarizou-se, então, o caráter formativo e pedagógico da Educação Física, praticamente restrito às primeiras séries do primeiro grau, cujo ensino, no entanto, foi deixado quase que totalmente a cargo de professores sem a devida qualificação, com formação apenas em magistério de segundo grau. Ainda que muitos sejam os autores que contestem os benefícios de um esporte voltado unicamente para os resultados, na escola, as aulas de Educação Física também instituíram os resultados de forma muito arraigada. Contudo, a reação dos intelectuais da área não deixou de provocar uma revisão conceitual do esporte, influenciando também a revisão de conceitos e posturas na prática da Educação Física escolar. Tal perspectiva pode ser constatada, na década de oitenta e na virada da de noventa, por parte de muitos autores - professores e pesquisadores que se posicionaram em defesa da valorização de uma Educação Física mais humanista e mais educativa. A partir dos anos noventa, o esporte adquire importância social mais expressiva. O movimento esportivo mundial cresceu e expandiu-se, com o conseqüente aumento de sua relevância social. Valorizam-se, inevitavelmente, as práticas de atividades físicas, inclusive as escolares. O esporte é revisto nos ambientes escolares, 21
  • 22. admitindo-se, em meados da década, a idéia de se implantar um esporte participação. Essa iniciativa provocou forte reação por parte de muitos professores/treinadores de Educação Física, ou seja, dos que se tornaram muito mais técnicos do que professores/educadores de Educação Física. Tais profissionais continuam, especialmente quando se trata de competições, a defender regras duras e exigentes, buscando assegurar a seletividade necessária para se chegar à vitória. Tubino (1992) refere-se à Carta Internacional de Educação Física e Desportos (UNESCO, 1978) como um documento que veio consolidar a discussão internacional desenvolvida na época sobre o esporte e que apontou para um novo conceito do mesmo. Destaca, ainda, que se abre a perspectiva do direito à prática esportiva, aumentando-se significativamente a dimensão social de um esporte reconceituado. Na escola, esse direito pode ser interpretado como um direito à prática da atividade física de maneira geral, reivindicada para todos os níveis escolares. Após o redimensionamento conceitual, o esporte é considerado como problema humano e social. Seu significado social passou a abranger manifestações comprometidas com a educação, a participação e a performance, sendo visto por Tubino como “um campo sociocultural de estruturas e conteúdos de grande complexidade, que se apresenta com grande fascínio para todos os atores ativos e passivos, propiciando oportunidades únicas para a convivência humana”. Aplicando essa concepção à escola e apoiando-me também em outros autores que defendem a prática de uma Educação Física escolar democratizada, considero como direito de toda a criança praticar Educação Física e ter acesso ao brinquedo e ao jogo na escola. Julgo ainda que atividades bem desenvolvidas, com materiais adequados, podem desenvolver fascínio nas crianças, integrando-as entre si, bem como com seus professores e com os alunos-mestres. Dessa forma recorrendo ainda a Tubino (1992) para sustentar minha defesa quanto à necessidade de tornar a Educação Física escolar, para crianças, mais agradável e participativa, destaco suas palavras: “O esporte, com o seu conceito compromissado com as suas perspectivas na educação, na participação das pessoas comuns e também no rendimento, em situações específicas, inclusive quanto às finalidades, e visto como direito de todos, passou a merecer novas abordagens e estudos para que sua dimensão social seja realmente entendida” (p. 13). Penso que essa dimensão social ampliada da atividade física precisa nortear novas possibilidades para a prática da Educação Física escolar para crianças. O trabalho por mim desenvolvido insere-se nessa perspectiva. Da reprodução à perspectiva de transformação Neste item procuro apresentar uma perspectiva humanista e transformadora da Educação Física que tenha como referência o aluno, em especial a criança. Recorro a Ferreira (1984), que defende uma Educação Física em uma perspectiva de transformação, contraposta ao modelo tecnicista da reprodução, propondo um redimensionamento do sentido da Educação Física no processo educativo, criando a expectativa de as crianças virem a ter a oportunidade de participar de uma ação educativa mais efetiva e adequada. A visão estereotipada de que a Educação Física oferecida nas escolas era de má qualidade e o professor um profissional de segunda 22
  • 23. categoria era bastante comum e que ainda sofre resquícios atualmente desse estigma. Essa fama, aliada ao uso abusivo do esporte nas aulas, terminou por levar a disciplina a uma crise de identidade, já identificada na década de 70, em plena vigência da tendência competitivista da Educação Física. Segundo Dufour (citado por Ferreira, 1984:19): “A Educação Física praticada nas escolas parece estar sofrendo uma crise de identidade. Esta crise se revela pela existência de conflitos entre o status da Educação Física em relação aos outros ramos de Educação e em relação ao desporto. O primeiro tipo de conflito aparece quando se situa a Educação Física no quadro geral da Educação. Os autores assumem posições contraditórias, ora caracterizando a Educação Física como “uma atividade natural, corporal, puramente instintiva, muitas vezes inconsciente, obedecendo às leis de uma mística do eugenismo” e ora como “uma atividade intelectual, que, embora partindo da praxis, dela se destaca, ultrapassa o concreto e conduz a ginásticas intelectuais muito complicadas, até mesmo sofisticadas”. O segundo tipo, da Educação Física identificada com o desporto “reduz-se e concretiza-se na competição, nos recordes, no ultrapassar-se a si próprio, o que implica uma entrega total do ser à conquista dos cumes”. O sentido de auto-competição e de auto-superação parece não ter sido incorporado pela escola. As qualidades lúdicas, tais como espontaneidade e capacidade de desenvolver satisfação pessoal com desempenho e iniciativa, características do esporte educativo, não estão sendo enfatizadas pelas atividades de Educação Física. Em contrapartida, estas atividades têm se caracterizado por uma prática essencialmente mecânica.” Dois fatos marcantes parecem ter determinado, nessa ocasião, os rumos da Educação Física: a retomada da realização dos Jogos Olímpicos após a Segunda Guerra Mundial e a apresentação do “Projeto de Doutrina de Educação Física Desportiva” pelo Instituto Nacional de Esportes da França, em 1945, que deu origem à Educação Física Desportiva Generalizada, influenciando diretamente a prática da Educação Física na escola. Iniciou-se um movimento voltado para a formação de equipes desportivas, reproduzindo-se o modelo dos Jogos e de suas deformações, tais como: “cientificismo exagerado, propaganda política e supervalorização da tecnologia” (Lisboa, citado por Ferreira, 1984 : 20). O fenômeno do esporte-espetáculo pode ter levado a escola a incorporar valores contrários aos ideais próprios à educação. As atividades físicas desempenhariam papel complementar nesse processo de educação geral (Brasil, MEC, 1976; 1981 / FIEP, 1976 / UNESCO, 1977; 1978 ). Para Ferreira (1984 : 20-21): “A identificação com o esporte-espetáculo a que parece estar submetida a Educação Física na instituição escolar constitui uma ameaça aos propósitos últimos da educação.Ela absorve e passa a utilizar, em seu processo de ensino uma concepção autoritária. O papel do professor apresenta-se apenas como disciplinador, servindo-se de metodologias que controlam a participação do aluno, impedindo-lhe o crescimento pessoal e social. A escola, como instituição, parece não ter absorvido a Educação Física e o esporte em seus objetivos de formação de um homem livre, que se conhece, se experimenta, se vence, se respeita o direito dos outros e se mantém consciente de seus deveres e responsabilidades. A escola parece estar se prestando ao desenvolvimento de uma ideologia de reprodução, acrítica, identificando-se mais com a instituição desportiva cujos valores são: desempenho máximo, vitória a qualquer preço, glória, vantagens de ser campeão, submissão do homem, disciplina autoritária e possibilidade, no mais das vezes ilusória, de ascensão social. Parece que a escola, ... acredita no fato de um campeão ser necessário para estimular a prática do esporte por um grande número de pessoas.” Assim, constata-se que a Educação Física vista apenas pelo plano da reprodução do movimento, de caráter seletivo, em que se valoriza o desempenho dos alunos bem dotados, ignorando-se os menos aptos, reduz sua abrangência e seu potencial, negando seus objetivos, somente alcançáveis se desenvolvidos de modo que o aluno tenha a oportunidade e a possibilidade de participação no processo educacional da Educação Física, cujas atividades apresentam um caráter global que não pode ser esquecido. 23
  • 24. Como superar a tendência de identificação da Educação Física escolar com o esporte-espetáculo? Como pensar uma outra Educação Física? Penso, com Ferreira (1984), que estas questões estão relacionadas ao nível de conscientização dessa crise de identificação, por parte do professor, o que o levará a dar maior importância à avaliação formativa do aluno, ao invés da avaliação somativa, aquela em que o aluno é aprovado-reprovado por nota ou conceito em Educação Física. Considero a questão da avaliação em Educação Física um assunto complexo, passível de muitas interpretações e dúvidas. Talvez não se saiba ainda como avaliar uma Educação Física centrada no desenvolvimento do aluno. Para Ferreira (1984): “O modelo de reprodução em Educação Física é caracterizado pela atitude acrítica tanto da realidade interna quanto da externa. Nele se tem o esporte como referência ideal de educação, reproduzindo, portanto, os padrões sociais da classe dominante, no qual seus objetivos educacionais servem para conservar e reforçar as diferenças entre as classes sociais.” (p.53 ; 57) Por outro lado, “A perspectiva de transformação se caracteriza pela atitude de reflexão da realidade, modificando a percepção que o indivíduo tem de suas experiências e do mundo que o cerca. Nela, a Educação Física é sempre processo, realimentado pela prática consciente dos sujeitos sobre a realidade esportiva, numa concepção dialética, favorecendo a aprendizagem e avaliação dos resultados. Utiliza-se em sua prática um esporte em que as regras, materiais, e locais são adaptados à realidade dos seus integrantes, ou seja, as habilidades, capacidades e possibilidades dos alunos, valorizando-se o caráter lúdico, a espontaneidade e a iniciativa. Possibilita a participação de todos os interessados independente de suas habilidades, sendo possível inclusive modificar as regras por decisão e interesse de seus participantes. Nessa perspectiva, o aluno é o sujeito do processo, como o principal agente de mudança, ou seja, a realidade se transforma à medida que se modificam as percepções que o aluno tem de suas experiências.” (P. 53; 56). Ferreira(1984) apresenta variáveis que identificam e distinguem esses enfoques acima, estabelecendo um paralelo de contraposição entre os mesmos. Destaca- se inicialmente, o Professor e a Metodologia de ensino, por entender a autora que é na metodologia de ensino que se pode verificar a concepção e postura do professor. Se o mesmo é aquele que atua como um controlador da ação dos alunos, treinador, técnico, como domesticador, no modelo de reprodução, ou, se apresenta características de orientador, utilizando-se de procedimentos indiretos de ensino, em que se vive, de maneira integrada com o aluno as experiências de seu crescimento, como agente facilitador da conscientização, na perspectiva de transformação. Nesta perspectiva dialética, o professor se educa educando. É na prática de educação que o educador se educa. Ele se educa com cada educando. Seguindo-se ainda esse paralelo, a concepção de Aluno e de Atividade Física, por um lado no modelo de reprodução o mesmo é tido como um atleta em potencial, como o objeto do treinamento. Tem todo o seu potencial reprimido, manipulado em função de interesses externos às suas necessidades, e a atividade física identificada com o esporte institucionalizado. Por outro lado, na perspectiva de transformação o aluno é visto como centro do processo ensino-aprendizagem, como o objetivo da educação, o elemento alvo, gerador de todos os questionamentos relativos à transformação. Porém, Ferreira (1984), não o coloca como sujeito por concordar com Gadotti de que ninguém se educa a si mesmo. A atividade física surge inventada, modificada, como um sistema natural e espontâneo de movimentos; ajusta-se às possibilidades e interesses do educando. “Nessa perspectiva predominam a reflexão e a crítica, como forma de levar o aluno a ter consciência de sua responsabilidade pessoal que tem pelo próprio comportamento e pela participação no processo educacional” (Freire, 1980, citado por Ferreira, 1984 : 63). 24
  • 25. Por fim, quanto ao enfoque da avaliação, entende-se ser esse um elemento que também esclarece o sentido político da ação pedagógica, dependendo do enfoque que se dá a essa ação, tanto o ideológico, quanto o dialético, apresentam critérios bem distintos, de acordo com suas características. Reunindo as contribuições Penso, com Taffarel (1991), que a Educação Física deve possibilitar o acesso da criança à cultura corporal e à compreensão de sua realidade, já que “a criança traz para a escola um acervo cultural sobre as questões da corporeidade. O professor precisa respeitar essa experiência e ajudar o aluno a organizar, sistematizar e ampliar o seu conhecimento” (p.21). Deve-se, em outras palavras, favorecer à criança o acesso ao conhecimento elaborado no campo da cultura corporal. Essa interação com a corporeidade precisa ser prazerosa, com ênfase no caráter lúdico. Não cabe à escola a responsabilidade de desenvolver talentos para o desporto competitivo de alto rendimento. Se hoje se redimensiona a concepção do esporte como prática social, há que se redimensionar o sentido das atividades físicas na escola. Somente assim será possível uma Educação Física voltada para a transformação e para a educação. Para sua materialização, deve-se buscar formar professores que sistematicamente reflitam sobre suas práticas e que bem empreguem recursos alternativos, visando a aperfeiçoá-las e torná-las prazerosas para a criança, pode ser um passo importante. BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, Vera Lúcia da Costa. Prática de Educação Física no 1º grau: modelo de reprodução ou perspectiva de transformação ?. São Paulo, IBRASA, 1984. NÓVOA, Antônio (coord.) Os professores e sua formação. Lisboa, Dom Quixote, 1997. TUBINO, Manoel José Gomes. Em busca de uma tecnologia educacional para as escolas de Educação Física. São Paulo, IBRASA, 1980. ________ Tecnologia Educacional : das máquinas de aprendizagem à programação funcional por objetivos. São Paulo : IBRASA, 1984. ________ Terminologia aplicada à Educação Física: uma introdução. São Paulo : IBRASA, 1985. ________ As Dimensões Sociais do esporte. São Paulo : Cortez : Autores Associados, 1992. SILVA, Laeth Souza da. Atividade Lúdica como facilitadora da aprendizagem na Educação Infantil. Porto Velho, Universidade Federal de Rondônia, mimeo, 1999. MAKIGUTI, Tsunessaburo. Educação para uma vida criativa: idéias e propostas de Tsunessaburo Makiguti. Rio de Janeiro, Record,1994. 25
  • 26. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa 36 PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº36 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME III ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times VOZES BAKHTINIANAS: BREVE DIÁLOGO New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: nilson@unir.br CAIXA POSTAL 775 MARIA CELESTE SAID MARQUES CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA 26
  • 27. Maria Celeste Said Marques VOZES BAKHTINIANAS: Professora de Análise do Discurso BREVE DIÁLOGO marques@enter-net.com.br Neste artigo, meu procedimento será fazer uma breve e concisa introdução ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Para isso analisarei alguns conceitos e categorias. Interessam-me suas concepções relacionadas à linguagem, principalmente à interação verbal, ao dialogismo, à repetição e à criação. Com efeito, centro-me em sua abordagem dialética a partir de suas considerações sobre o caráter ideológico do signo lingüístico e da natureza eminentemente semiótica (e ideológica) da consciência. Bakhtin é um dos maiores pensadores do século XX e um teórico fundamental da língua. Em Marxismo e filosofia da linguagem está sua teoria da linguagem e do dialogismo. Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme das manifestações de linguagem em situações sociais concretas, diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto é, o sistema abstrato da língua, com suas características formais passíveis de serem repetidas. Bakhtin concebe a linguagem não só como um sistema abstrato, mas também como uma criação coletiva, integrante de um diálogo cumulativo entre o “eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros”. A linguagem constitui a centralidade da obra de Bakhtin. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, há, na filosofia da linguagem e nas divisões correspondentes da lingüística geral, duas orientações principais. À primeira, ele chama de subjetivismo idealista e, à segunda, de objetivismo abstrato. A crítica epistemológica de Bakhtin/Voloshinov considera que o subjetivismo idealista, ao reduzir a linguagem à enunciação monológica isolada, e o objetivismo abstrato, ao reduzir a linguagem a um sistema abstrato de formas, constituem um obstáculo a uma apreensão totalizante da linguagem. Para Bakhtin/Voloshinov, a compreensão ampla da natureza da linguagem não está no meio dessas duas orientações; ela está além. Para superar, dialeticamente, essas posições dicotômicas, propôs a interação verbal por ser uma idêntica recusa tanto da tese como da antítese, e constituir uma síntese dialética. Interação Verbal O caráter interativo da linguagem é a base do arcabouço teórico bakhiniano. A linguagem é compreendida a partir de sua natureza sócio-histórica. A propósito, é significativa a seguinte afirmação de Bakhtin/Voloshinov (1992a:41): “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”. ISSN 1517 - 5421 27
  • 28. Para Bakhtin/Voloshinov, o ato de fala, ou exatamente, o seu produto, a enunciação, não pode ser considerado levando-se somente em consideração as condições psicofisiológicas do sujeito falante - apesar de não poder delas prescindir. A enunciação é de natureza social e para compreendê-la é necessário entender que ela acontece sempre numa interação. A verdadeira substância da língua é constituída, para Bakhtin, “pelo fenômeno social da interação verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” (1992a:123). A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. A palavra dirige-se a um interlocutor real e variará em função desse: em relação ao grupo social a que ele pertence, aos laços sociais, etc. Não pode haver interlocutor abstrato, pois não teríamos linguagem com tal interlocutor, mesmo no sentido figurado. Uma das formas mais importantes da interação verbal é o diálogo, caracterizado não apenas como comunicação em voz alta, de pessoas face a face, mas toda comunicação verbal, de todo tipo. Qualquer enunciação constitui apenas uma fração da corrente da comunicação verbal ininterrupta (relativa à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc). Por sua vez a comunicação verbal ininterrupta constitui apenas um momento na evolução contínua e em todas as direções de um grupo social determinado. Conforme Bakhtin/Voloshinov (1992a:124), a língua vive e evolui historicamente na comunicação social concreta. Dessa forma, para ele, a língua é vista a partir de uma perspectiva de totalidade, integrada à vida humana. A lingüística não pode dar conta de explicar um objeto multifacetado. Para explicar a dialogicidade, o aspecto lingüístico não é suficiente. Por isso, ele acrescenta o contextual e propõe assim uma disciplina, a metalingüística ou translingüística, para estudar o enunciado. A abordagem que Bakhtin/Voloshinov propõe para o discurso - que ultrapassa os limites da lingüística - é a do estudo da própria enunciação. A estrutura da enunciação concreta é determinada inteiramente pelas relações sociais, ou seja, pela situação social mais imediata e pelo meio social mais amplo. Para Bakhtin/Voloshinov, a enunciação é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído por um representante ideal, mas que “não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas” (1992a:112). A palavra se orienta em função do interlocutor. Na realidade, a palavra comporta duas faces: procede de alguém e se dirige para alguém. Ela é o produto da interação do locutor e do interlocutor; ela serve de expressão a um em relação ao outro, em relação à coletividade. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (Bakhtin/Voloshinov,1992a:113). É a partir da concepção de linguagem de Bakhtin que nasce uma das categorias básicas de seu pensamento, que é o dialogismo. É a partir dela que ele estuda o discurso interior, o monólogo, a comunicação diária, os vários gêneros de discurso, a literatura e outras manifestações culturais. Ele aborda o dito dentro e como réplica do já-dito. 28
  • 29. Dialogismo Olhar o mundo de um ponto de vista para melhor captar o movimento dos fenômenos em sua pluralidade e diversidade não é apenas a postura filosófica de Bakhtin, mas também, e principalmente, a orientação de seu sistema teórico fundado no dialogismo. Para Bakhtin, a atividade do diálogo e da criação do personagem no interior da literatura é modelar para o diálogo e a criação em todos domínios da vida. O autor da obra literária, assim como o eu concebido por Bakhtin é uma entidade dinâmica em interação com outros eus e personagens. As idéias de Bakhtin sobre o homem e a vida são caracterizadas pelo princípio dialógico. A alteridade marca o ser humano, pois o outro é imprescindível para sua constituição. Como afirma Bakhtin, a vida é dialógica por natureza. Assim, a dialogia é o confronto das entoações e dos sistemas de valores que posicionam as mais variadas visões de mundo dentro de um campo de visão: “na vida agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência: assim levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem [...]” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a:35-36). Neste artigo, por questões de ordem metodológica, foram separadas as duas noções de dialogismo que permeiam os escritos de Bakhtin: diálogo entre interlocutores e diálogo entre discursos. A interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem. É na relação entre sujeitos, ou seja, na produção e na interpretação dos textos que se constroem o sentido do texto, a significação das palavras e os próprios sujeitos. Com efeito, pode-se dizer que a intersubjetividade é anterior à subjetividade. Esta é o resultado da polifonia das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe, mas que tem a condição de reelaborar, pois como ensina Bakhtin/Voloshinov, “o ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” (1992a:46). Esses aspectos do dialogismo interacional de Bakhtin, assinalados acima, contribuem para a compreensão, dentre outras características do discurso, os simulacros e as avaliações entre os sujeitos. Destaque-se que a construção de tais características não são individuais, mas assentadas naquilo que Bakhtin denomina horizonte ideológico, ou seja, na relação entre sujeitos (entre interlocutores que interagem) e a dos sujeitos com a sociedade. Bakhtin argumenta que cada um de nós ocupa um lugar e um tempo específicos no mundo, e que cada um de nós é responsável ou “respondível” por nossas atividades. Estas ocorrem nas fronteiras entre o eu e o outro, e, portanto, a comunicação entre as pessoas tem uma importância fundamental. Enfatizei que Bakhtin considera o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e como a condição do sentido do discurso. Dessa forma, o discurso não é individual tanto pelo fato de que ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais; como pelo fato de que ele se constrói como um diálogo entre discursos, isto é, mantém relações com outros discursos. O discurso, para Bakhtin, é uma “construção híbrida”, (in) acabada por vozes em concorrência e sentidos em conflito. 29