1. ABRANCHES, Mônica. Colegiado Escolar: espaço de participação da
comunidade. São Paulo: Cortez, 2003 - (Capítulos 1, 4 e conclusões).
Este livro analisa a participação da comunidade no processo de
gerenciamento da educação pública, por meio da experiência de gestão colegiada
nas escolas públicas, no momento em que há um crescimento de experiências
inovadoras na administração escolar.
Trabalhou-se com a hipótese de que a descentralização e a participação
social são canais democráticos que permitem um aprendizado político e o exercício
da cidadania.
A proposta era identificar as formas de atuação de pais e alunos nos
colegiados escolares, e qual o tipo de aprendizado político estes constroem,
investigando como respondem ao serem chamados para ocuparem e realizarem a
tarefa de gerenciar as decisões públicas no âmbito da educação.
A presença mais ativa dos pais na educação de seus filhos melhora a
qualidade dos serviços e o gerenciamento escolar, proporciona condição de trabalho
mais favorável (para os professores e funcionários) e aumento de satisfação dos
educandos.
A gestão colegiada proporciona a oportunidade do exercício da participação e
do incremento do processo de democratização, iniciando um momento novo para a
Escola Pública.
Através da participação nos Órgãos Colegiados aprendemos a eleger o
“poder”, a fiscalizar, a desburocratizar e a dividir responsabilidades.
Capítulo 1
Democratizando as relações sociais na educação: participação e descentralização
Os anos 80 foram marcados pela luta em prol da redemocratização das relações
sociais e políticas no país. Caracterizou-se como um período de debates, em todas
as áreas, de temas como universalização de direitos, descentralização, participação.
Consolidando esta trajetória, a Constituição de 1988 estabeleceu bases
jurídicas para a elaboração de uma ‘nova versão’ de cidadania: é o início da
2. chamada cidadania política, que transcende os limites da delegação de poderes da
democracia representativa, aproximando-se da democracia participativa.
Participação da sociedade civil nas discussões públicas, possibilitando a
concretização de uma dinâmica que permita o aprendizado e o amadurecimento
político da comunidade a partir da efetivação de estruturas participativas.
É a partir da Constituinte que a descentralização apresenta-se como palavra
de ordem no setor político e administrativo, demarcando uma nova ordem na
sociedade brasileira, garantindo-lhe o direito de formular e controlar políticas
públicas.
A tensão entre a centralização, implantada pelo poder autoritário, e a
descentralização determina a redefinição do papel do Estado na sociedade
brasileira: começa a melhor distribuição de competências entre o poder central e os
poderes regionais e locais.
A descentralização caracteriza-se como exigência frente à incapacidade do
Estado em responder às demandas da população, principalmente no que se refere
às necessidades sociais básicas.
É preciso considerar que, se de um lado a descentralização pode representar
um mecanismo de participação que permite o retorno do poder à sociedade civil, por
outro, pode caracterizar-se como uma forma de reforçar o aparelho de dominação,
encobrindo uma relação autoritária.
Cabe, aqui, uma reflexão sobre a descentralização também como estratagema
estimulado pelas políticas neoliberais, amparadas pelo discurso da ‘modernização’,
que objetiva diminuir a ação estatal na área do bem-estar social, com a intenção de
reduzir as despesas públicas neste setor.
A professora Rosa Helena Stein completa essa idéia, descrevendo a intenção
do processo de descentralização que é o de “neutralizar as demandas sociais,
desconcentrando os conflitos e envolvendo a população na busca de soluções para
seus próprios problemas”.
Como contraponto às teses neoliberais organizam-se os Novos Movimentos
Sociais, que contribuem para a elaboração de novas alternativas de uma efetiva
partilha do poder entre o Estado e as coletividades locais.
3. É preciso ressaltar que nas estratégias de descentralização, como
transferência de poder do Estado para as organizações da sociedade civil, estão
presentes:
O processo de participação comunitária;
A aproximação do poder público das reivindicações da sociedade;
A simplificação das estruturas burocráticas - que aprisionam as
iniciativas do governo; e
As ações que sugerem a democratização do poder público,
contemplando novas experiências governamentais e reconhecendo
novos atores políticos.
Juan Cassassus, analisando os processos de descentralização educacional
na América Latina, define todos eles como desconcentração, ou seja, como um
processo de repasse de atribuições administrativas para esferas inferiores ao poder
central. É necessário enfatizar que a desconcentração não possibilita uma
verdadeira autonomia administrativa.
Entende-se a municipalização como a passagem progressiva de serviços e
encargos que possam ser desenvolvidos mais satisfatoriamente pelos municípios. O
município é a unidade político-administrativa que oferece melhores condições para a
prática da participação popular na gestão da vida pública.
Partindo dessas análises, podemos concluir que as práticas políticas
descentralizadas e participativas deveriam ter como objetivo principal possibilitar, de
forma mais direta e cotidiana, o contato entre os cidadãos e as instituições públicas,
de modo que estas possam considerar os interesses e as concepções de
interlocutores coletivos.
Portanto, o processo de descentralização que concordamos, pressupõe a
existência da democracia, da autonomia e da participação. Estas categorias são
entendidas, aqui, como medidas políticas das relações de poder, que implicam a
existência de um pluralismo, entendido como ação compartilhada do Estado e da
sociedade na produção de bens e serviços públicos que atendam às necessidades
básicas dos cidadãos.
A descentralização só existe no momento em que as decisões locais
possuem uma certa autonomia e emanam de uma coletividade. O processo de
descentralização estimula a participação social, mediante o deslocamento dos
4. centros decisórios. A descentralização, por outro lado, só se torna possível pela
participação.
Portanto é necessária a existência de pré-condições para que a
descentralização viabilize processos de participação popular:
Garantia de acesso às informações necessárias para a gestão;
Garantia de assento aos segmentos menos poderosos da sociedade
na composição de conselhos.
Transparência dos processos de gestão e tomada de decisões.
É na busca de novos espaços e de renovação da forma de atuação da
sociedade civil no âmbito público, que compreendemos a participação da
comunidade em espaços como a escola pública, procurando discutir a construção de
uma nova estratégia de participação ante as diretrizes e ações do Estado.
O próprio conceito de gestão autônoma e colegiada em setores públicos,
principalmente no sistema de ensino público, vem inspirando-se em teorias
organizacionais recentes e em inovações administrativas empresariais, frutos de
novas formas de organização dos interesses econômicos e da inserção da
sociedade em uma nova divisão internacional do trabalho e em uma rígida
segmentação entre as classes sociais.
A crise do setor público educacional relaciona-se à forma como o Estado vem
administrando o ensino público: centralização, desarticulação, gigantismo do sistema
– que demanda uma grande estrutura burocrática.
O modelo administrativo centralizado não permite uma gestão direta,
necessária para agilizar a solução de problemas na escola. A falta de transparência
e informações de ordem financeira e orçamentária permite a persistência do
clientelismo e do favoritismo político.
O fato é que, com o amadurecimento do processo de redemocratização do
País, em conjunto com os processos de reestruturação da economia e de
reorganização do Estado, gera-se uma demanda de envolvimento da sociedade civil
e de suas entidades representativas.
O aparelho do Estado tornou-se mais receptivo à participação popular e os
grupos populares vêm sendo reconhecidos como interlocutores necessários quando
da implantação de políticas sociais. Entretanto, a redemocratização do aparelho
estatal é um processo longo, que requer mudanças concomitantes em várias redes
de influência política e que marca uma certa falta de sincronismo, tanto na promoção
5. de políticas participativas quanto na ação da sociedade organizada e dos
movimentos sociais.
Nesse sentido a sociedade civil deve se preparar para responder à
institucionalização da participação e repensar sua atuação como indutora de
mudanças na ‘nova cultura política popular’; deve criar espaços autônomos de
organização.
A participação popular passa a ser componente obrigatório de um projeto
alternativo de transformação do poder público. Uma nova estrutura estatal poderá
surgir dos conselhos, articulando a democracia representativa e a democracia direta.
A responsabilidade deliberativa, aliada a situações normativas e
controladoras, impõe às novas estruturas de participação um significativo papel na
construção do exercício da democracia participativa.
A participação poderá estabelecer um modo de conviver capaz de socializar o
universo político, incorporando-o aos indivíduos envolvidos nos mecanismos de
definição e de execução dos princípios diretivos da comunidade. Os atores sociais
passam a ter um papel ativo nas decisões sobre elaboração, execução e controle
das políticas públicas.
A participação social vai, ainda, depender do grau de organização dos atores
sociais, da identificação e agrupamento dos interesses e dos recursos de poder que
esses atores sociais dispõem.
Partindo dessas observações, pode-se afirmar que espaços de convivência e
de participação que geram conflitos, que permitem o cruzamento de informações e
trocas de experiências, podem caracterizar novos espaços públicos que,
possivelmente, viabilizam processos efetivos de aprendizado e amadurecimento
político para a constituição de uma participação efetivamente qualitativa.
A oportunidade da participação em setores e decisões de ordem pública,
coletiva, faz com que os indivíduos estabeleçam contato com problemas políticos
governamentais, conflitos entre o poder público e a sociedade civil e com as
demandas comunitárias, acima de reivindicações individuais e particulares.
Isto resulta no envolvimento dos atores sociais com novos significados no
âmbito político e social, estabelecendo uma noção de identidade coletiva, necessária
à participação social e à concretização do processo democrático.
A participação será qualitativa à medida que se estabelece uma constância na
prática de participar dos atos corriqueiros dos indivíduos e em seus grupos sociais.
6. É no dia-a-dia que o sujeito se depara com escolhas e cria sua própria
história. É o cotidiano o lugar no qual se exercitam a crítica e a transformação do
próprio meio.
Valorização do espaço público como o lugar da ação, da liberdade,
reafirmada pela oportunidade da palavra viva e da ação vivida no mundo público e
da sua crença na democracia participativa; como lugar do aprendizado político, que
incentiva a elaboração de experiências democráticas no cotidiano dos indivíduos, e
na esperança da educação como formadora de cidadãos ativos.
Segundo a filósofa Hannah Arendt, a história do mundo moderno é uma
caracterização da dissolução do espaço público, pois esta se caracteriza como uma
sociedade despolitizada, marcada pela indiferença em relação às questões públicas
e pelo individualismo.
O mundo comum é uma construção que necessita dessa forma específica de
sociabilidade que só o espaço público pode instituir, pois este se manifesta de
maneira real apenas quando as coisas podem ser vistas por várias pessoas, numa
variedade de aspectos, sem mudar de identidade, ou seja, quando todos
compartilham um mesmo espaço e podem trocar experiências, confrontar conceitos
e discutir temas comuns.
Garantir a existência do espaço público significa garantir a presença de todas
as opiniões possíveis para que os homens possam se orientar em um mundo que é
caracterizado pela ‘pluralidade’ de agentes, pela contingência dos acontecimentos e
pela imprevisibilidade dos efeitos da ação que cada qual realiza.
Arendt nos apresenta, ainda, o espaço público como um lugar da visibilidade
e do aparecimento, onde a singularidade de cada indivíduo pode ser reconhecida e
apreendida pelos outros. Trata-se de definir o espaço público como um lócus que só
pode ser construído pela ação e pelo discurso entre os indivíduos.
O diálogo é o que possibilita aos homens revelarem as questões públicas a
todos os outros, é pela palavra que podemos construir uma interação política. E a
ação é a capacidade dos homens de produzir fatos e eventos em um espaço no qual
é garantido o seu aparecimento para outros homens, e portanto, de caráter político.
Agir é tomar iniciativas, decisões, é falar, solicitar o assentimento e o acordo
do outro, é provocar diversas reações. É agente porque provoca reações e também
é paciente porque recebe as conseqüências de suas ações.
7. Capítulo 4 - Gerir a educação: um aprendizado para a comunidade
Os indícios recolhidos em documentos, em entrevistas e nas observações feitas
em experiências colegiadas, foram transformados em categorias com as quais
pudemos separar e trabalhar três temas básicos:
As concepções e avaliações a respeito da descentralização e dos
órgãos colegiados, bem como as propostas e estratégias para sua
concretização;
A participação dos pais representantes da comunidade na gestão
colegiada, suas posições mediante o trabalho coletivo e a identificação
das suas respostas ao serem chamados para gerenciar as decisões
públicas na educação; e
O aprendizado político adquirido pelos representantes da comunidade
no processo participativo, especificando como se dá e qual tipo de
aprendizado eles absorvem e constroem ao longo desta experiência.
4.1 Descentralização da escola e a implantação dos órgãos colegiados
As atas dos colegiados revelaram que os temas das discussões percorrem
três níveis distintos de decisões: questões financeiras, administrativas e
pedagógicas.
As demandas partem da escola, em pauta apresentada pela diretora e
presidente do colegiado. São mínimas as reivindicações dos representantes dos
pais trazidas para as reuniões.
Nas questões financeiras, apesar de haver prestações de contas, observa-se,
que a direção já apresenta uma planilha de gastos e de um valor predefinido para a
contribuição dos pais, submetendo-os somente à aprovação.
Somente sobre os problemas relativos aos pais e alunos é que os
representantes da comunidade se pronunciam mais ativamente, trazendo outros
pais envolvidos e solicitando a presença de vários professores ou técnicos da
Secretaria da Educação para as discussões.
Quanto às questões pedagógicas, elas estão totalmente monopolizadas pelos
professores e pelos diretores, e poucas vezes são colocadas. Quando a comunidade
participa, como na elaboração do projeto político-pedagógico e do regimento interno
da escola, verifica-se que a tarefa dos pais se restringe à distribuição e recolhimento
8. de questionários entre a comunidade. O levantamento de resultados e a elaboração
do projeto são feitos somente pelos representantes da escola.
O serviço burocrático das resoluções tomadas nos colegiados é quase
totalmente entregue aos pais. O corporativismo dos representantes da escola é
evidente. A comunidade é mais capaz de discutir abertamente e de ceder.
É evidente a centralização. Mas a garantia da presença de pais nessas
decisões já tem provocado mudanças, que vão lapidando as relações entre a escola
e a comunidade. Os pais apresentam-se bastante interessados em participar das
discussões e opinar sobre os problemas trazidos pela escola. Mas percebe-se que
ficam inibidos pela postura de superioridade dos professores e pela própria falta de
preparo para defender suas posições.
Observa-se a constituição de lideranças nos vários segmentos representados,
com destaque para aqueles que vêm trazendo uma experiência anterior de
participação em grupos religiosos, em grupos de jovens, associações,...
A preocupação com a representatividade é ponto de conflito de poder entre as
pessoas, chegando até mesmo a determinar conflitos pessoais e dificuldade de se
instalar um espírito de coletividade.
Além disso, os pais têm procurado se inteirar da vida escolar de seus filhos,
assumindo uma atitude mais responsável. Compreendem a descentralização como
oportunidade de conhecer os processos da escola, como estabelecimento de uma
abertura para as reivindicações e como um espaço democrático no qual todos
possam participar, independentemente de sua cultura, instrução e classe social.
O grupo da escola é unânime em afirmar que a descentralização significa
dividir as responsabilidades da escola com a comunidade e permite aos
representantes dos pais entrar em contato com as dificuldades por que passam a
escola e os professores, sensibilizando-os para ajudar no que for necessário. É
apresentada, também, uma preocupação com a tomada de decisões respaldada
pela comunidade e a garantia de uma abertura para suas reivindicações.
Esse processo, no entanto, abre espaço para pessoas oportunistas, que
pensam nesta participação como um cargo de poder e aproveitam-se disso. Alguns
membros da comunidade também apontam a continuidade do processo de
centralização nas decisões, principalmente nas mãos do(a) diretor(a), que pode
incentivar ou boicotar o processo.
9. Os obstáculos são reais e a consciência de sua existência já garante um
passo rumo às mudanças. As experiências colegiadas encontram-se no caminho
certo. Falta, ainda, o espírito democrático, um sentimento de coletividade.
Apesar das descrições um pouco inseguras, o colegiado vem associado a
categorias como: união, trabalho conjunto, organização, integração, aproximação,
ajuda e garantia de direitos.
O grupo da escola apresenta o colegiado como a instância que vai propiciar a
divisão de tarefas e atividades escolares com os pais, a partir de um trabalho
conjunto de todos os participantes deste órgão.
Isso pode representar um problema na construção política da participação,
pois não estamos entendendo a participação como processo colaborativo e, sim,
como ocupação de espaços políticos e garantia de direitos.
O colegiado vem se concretizando como um espaço capaz de expressar
diferentes interesses do poder público e da comunidade e, como tal, permite a
circulação de valores, de articulação de argumentos diferenciados e a formação de
várias opiniões.
Hannah Arendt diria que o colegiado representa um simulacro de espaço
público, pois permite ações no âmbito coletivo. O significado da vida pública justifica-
se a partir da definição de que o mundo é comum a todos e que ocupamos espaços
diferentes nele; e a importância de sua garantia para os indivíduos é que ser visto e
ouvido por outros é fundamental, pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos
diferentes.
É nessa diversidade que os indivíduos se comunicam, se revelam e se
constroem como sujeitos, porque agem e transformam suas ações em palavras. E é
nesse processo que as informações circulam e as diferentes concepções se
chocam, possibilitando que os indivíduos mantenham contato com diferentes
aspectos das relações humanas (políticos e sociais) que influenciam na sua
formação.
Nessa perspectiva, analisando o processo de descentralização das escolas
públicas e considerando toda a dinâmica funcional e de relações humanas que o
envolve, pode-se compreender a implantação dos colegiados como um processo
educativo, pois, os indivíduos, por sua inserção e participação nos assuntos da
escola e da educação, vão se educando.
10. 4.2 Participação da comunidade nas decisões da escola
É possível verificar a presença maciça dos representantes de pais às reuniões.
Isso reflete o compromisso com a representatividade e assume uma forma de
ocupação do espaço aberto para a comunidade.
Também pode ser verificado que os representantes da comunidade, na sua
maioria, demonstram insegurança no momento das discussões; geralmente falam
pouco. Aqueles que se comunicam mais terminam por liderar o grupo, o que gera
problema de centralização de poder de decisão.
Os pais se mostram mais ativos e participantes quando as resoluções são
concretas e configuradas em tarefas. Apresentam mais dificuldades nas decisões
que precisam de análises e discussões mais políticas ou pedagógicas.
Parece consenso que as dificuldades surgidas encontram soluções na
solidariedade dos indivíduos e nas atitudes cooperativas que caracterizam uma
responsabilidade de todos por todos. Um dado importante é a consciência de que
“se você não participar você não pode exigir” e que “sozinho você não é ninguém”.
Apesar dessa aproximação entre a escola e a comunidade, muitos pais ainda
assumem a posição de repassar a responsabilidade dos filhos para os professores,
e compreendem a escola como um organismo separado da comunidade, com
responsabilidade única de ensinar conteúdos. Assumem a tradicional atitude de
reclamar com o diretor e a fazer comentários negativos fora da escola.
A falta de informação é apontada como um grande obstáculo à participação e
inspira estratégias de mobilização que levem aos pais as vantagens de se participar
da escola. Outro problema é a faltas de articulação da comunidade com seus
representantes.
A efetiva participação da comunidade nas decisões dos assuntos públicos nos
parece, por vezes, utópica, se pensarmos nos inúmeros desafios que ainda devem
ser superados, principalmente porque estamos tratando da construção de sujeitos, o
que requer mais atenção e mais trabalho, além da paciência para romper toda a
resistência e a falta de conhecimento e informação dos indivíduos.
Mas, se acreditarmos que esse processo é possível e que se vincula à luta
pelos direitos sociais, podemos contar com a sua realização por meio de um
trabalho efetivo de preparação política da comunidade, dando-lhe a oportunidade de
ver, ouvir, falar e exercitar sua cidadania.
11. Consolidar o processo de participação da comunidade na escola como uma
possível ocupação de espaços públicos, está vinculado à garantia de uma
construção coletiva. Cabe um alerta: COLABORAÇÃO NÃO É PARTICIPAÇÃO.
Participação abrange o poder, enquanto a colaboração pode situar-se apenas na
prestação de serviços ou como aval de situações já tomadas. No processo
participativo, todos têm sua palavra a dizer diante das orientações de ações
pedagógicas e administrativas da escola.
Cada pessoa pode se sentir construtora de um todo, que vai fazendo sentido
à medida que a reflexão atinge a prática e esta vai esclarecendo a compreensão, e à
medida que os resultados práticos são alcançados em determinado objetivo.
Para Arendt a participação pressupõe ação política, que determina uma
motivação dos indivíduos por meio de princípios, de um movimento para e pelo
coletivo, e pela busca do alcance da cidadania. A consolidação da democracia está
diretamente ligada à participação efetiva dos diversos atores sociais no espaço
público.
Quanto ao seu caráter de aprendizado político, a experiência participativa
apresenta dimensões diversas:
A participação não se aprende sem a prática de si mesma;
A participação não se assimila pela leitura ou por meio de palestras;
A participação, enquanto o assumir a condição de sujeito, de luta por
direitos e pelo bem-estar comum, representa a elaboração da eficácia
coletiva, condição de exercício da cidadania.
Participar não que dizer mais, ao cidadão, delegar seus poderes, mas de o
exercer, em todos os níveis da vida e em todas a etapas da vida. E isso é processo,
te caráter dinâmico, e supõe consciência, responsabilidade e espírito crítico.
Para promover a participação nas instâncias sociais há uma obrigação do
emprego de uma metodologia adequada para iniciar o processo, que considere os
riscos e conflitos que a vivência da participação proporciona.
4.3 Do aprendizado político adquirido na experiência colegiada
Hipótese: a inserção dos indivíduos em estruturas colegiadas propicia um
aprendizado político que vai, progressivamente, capacitando-os a novas formas de
participação, mais qualitativas, e motivando a sua inserção em outras instâncias.
12. Acredita-se que o exercício da participação em assuntos públicos põe os
indivíduos em contato com a estrutura do poder, suas dinâmicas e estratégias de
atuação, e com a realidade dos recursos disponíveis e suas possibilidades. Permite
a vivência da correlação de forças, a identificação da necessidade de organização e
articulação política para a conquista de espaços no grupo.
Os indivíduos que estão repetindo sua participação no colegiado apresentam
mais segurança em suas posições, fazem o papel de articuladores do grupo e
assumem uma postura mais crítica em relação aos temas discutidos.
A construção de um espírito de grupo também é evidente, principalmente
quando os pais reconhecem o trabalho que estão realizando como uma tarefa para o
coletivo e demonstram a preocupação com o repasse de informações para a
comunidade e do respaldo desta para a tomada de decisões. A representatividade,
que gera a responsabilidade por outros, requer satisfações para o grupo.
Verificamos ainda a construção de um sentimento de coletividade no
reconhecimento de que existe uma interdependência entre as pessoas para alcançar
objetivos comuns e da idéia de que nas trocas e conflitos, entre o grupo, novas
experiências podem ser apreendidas.
O crescimento político dos indivíduos também é revelado, associando a
experiência de participação no colegiado a um tipo de ‘capacitação’ para futuras
inserções em outras instâncias político-sociais.
Várias possibilidades de aprendizado a partir do exercício da participação, da
prática do conflito e da troca de experiências entre os indivíduos podem ser
identificadas nas estruturas colegiadas e indicar uma preparação deles para a
concretização de uma democracia realmente participativa.
O exercício da cidadania requer dos homens o seu aparecimento no espaço
público por meio da ação e do discurso. É neles que os homens podem mostrar
quem são e apresentam-se ao mundo humano.
Nessa perspectiva é que a participação deve ser incentivada, para que os
homens ocupem espaços públicos que possibilitem a elaboração de um espírito
coletivo. Nesse processo surge a possibilidade do aprendizado político: o
reconhecimento da responsabilidade dos indivíduos em prol de um mundo comum e
do bem-estar coletivo.
Conclusões: analisar os resultados e criar possibilidades
13. O escopo principal deste trabalho foi em torno da possibilidade de um
aprendizado político da comunidade em um espaço escolar no qual a participação
comunitária vem se consolidando por meio de órgãos colegiados.
A gestão colegiada, incluindo a participação comunitária, é um movimento
com avanços e recuos na construção de sua trajetória na educação. Nessa dinâmica
oscilante, verifica-se um processo de aprendizado político dos envolvidos nas ações
colegiadas.
É por meio da participação efetiva, da compreensão da representatividade, do
compromisso com o coletivo e do assumir a responsabilidade pelo bem comum, que
os participantes vão se relacionando, informando e, conseqüentemente, se
politizando.
Para a comunidade, participar da gestão da escola significa integrar-se e
opinar a respeito dos problemas e soluções do ensino; pode significar,
potencialmente, toda uma apreensão política e organizacional; representa a
possibilidade de uma mudança na visão de gerir a escola, não esperando respostas
prontas; significa, enfim, passar a pensar a escola como um órgão público de fato,
que deve ser dirigido pelo coletivo, envolvido com seus princípios e serviços, e não
somente controlado e fiscalizado.
Para isso deve-se entender que participar não se restringe à ação de ajuda
material e humana que os pais ou a comunidade oferecem à escola, doando
recursos ou trabalhando em sus projetos, de modo passivo. É preciso entender essa
presença como mecanismo de participação política como uma possibilidade real de
tomar decisões.
A participação se apresenta em um todo heterogêneo, no qual os interesses e
as expectativas em relação à escola são diferenciados, o que indica o desafio de
lidar com projetos políticos diversos. A questão é estabelecer o ‘hábito’ das relações
democráticas em todas as instâncias nos quais os assuntos públicos estejam
envolvidos.
“O poder corresponde à capacidade humana não apenas de agir, mas de agir
em comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um
grupo e existe somente enquanto o grupo se mantém unido. Quando dizemos que
alguém está no poder queremos dizer que está autorizado por um certo número de
pessoas a atuar em nome delas. No momento em que o grupo que deu inicialmente
origem ao poder desaparece, o seu poder desaparece também”. (Hannah Arendt)
14. Com o advento da municipalização, o espaço democrático é possível e o
poder de decisão sobre os rumos da educação pôde se instalar próximo à
comunidade, o que permitiu uma abertura para a participação de todos os
segmentos sociais envolvidos com a escola nas discussões sobre a educação
pública. Por meio dos órgãos colegiados a escola tem a oportunidade de
transformar-se em um espaço de exercício de cidadania e democracia da localidade.
O colegiado deve existir para criar políticas de atuação sobre o orçamento, o
pessoal, o programa escolar, as parcerias, e, principalmente, promover ações que
permitam a interação entre a escola e a comunidade dentro de uma perspectiva
política.
É preciso ressaltar que, em geral, em nossas escolas públicas ainda são
significativamente ausentes as relações humanas horizontais, de solidariedade e
cooperação entre as pessoas. Prevalecem as relações hierárquicas de mando e
submissão.
É necessária a existência de um trabalho que integre a todos. A consciência
de interesses sociais comuns e mais amplos.
Para que os pais se interessem em participar, é preciso que se sintam
respeitados, valorizados e bem-aceitos na escola. É imprescindível que tenham
consciência de que são sujeitos.
As condições de vida das camadas populares terminam por secundarizar a
importância da participação diante da falta de tempo e do cansaço, por exemplo,
depois de um dia pesado de trabalho.
A informação também é fundamental. A escola é um serviço público e a
população tem o direito de saber sobre ele. O grau de informação do indivíduo irá
torna-lo mais ou menos participativo.
Para haver uma participação constante dos indivíduos, é preciso um clima de
aceitação mútua das possibilidades e limitações pessoais dos elementos do grupo
Isto implica o respeito ao estágio de consciência do grupo, se considerarmos o
processo de participação como um componente educativo.
Apesar dessas propostas estarem embutidas de estratégias do Estado para
‘transferir’ as responsabilidades e ônus pelas políticas públicas à sociedade civil,
conclui-se que esta pode fazer destas estratégias um aliado político, já que será
possível ocupar os espaços de decisão nos assuntos públicos da educação.Essa
conquista pode estabelecer uma dinâmica de politização para as classes populares.
15. Trata-se de reformular um novo projeto político que sobreponha a democracia
representativa e alcance uma democracia participativa. A emergência da
participação popular toma força como resultado da construção de uma identidade
comunitária que retoma o movimento de reação contra a injustiça social e pela
cidadania. A dinâmica de participação que envolve os colegiados escolares pode ser
um pequeno embrião.
“ a participação, quando existe de fato, é necessariamente educativa. Em
outras palavras, a participação educa, porquanto propicia níveis cada vez mais
elevados de consciência e organicidade. Na medida em que produz essa
participação consciente e orgânica do grupo comunitário, dar-se-ão ações concretas
de transformação social e, dessa maneira, consegue-se influir, direta ou
indiretamente, na transformação da realidade”. (Francisco Gutiérrez)
A experiência da gestão colegiada traria aos seus participantes a
possibilidade de desenvolver um aprendizado político e social de suas relações
pessoais, institucionais e comunitárias. Têm a oportunidade de se preparar, se
formar e informar para intervir em outros níveis sociais.
A prática de participação no colegiado escolar seria, para a comunidade, uma
‘escola ‘ da qual há muito tempo já se desligou. Uma escola responsável pelo ensino
da participação social, da informação e da formação para a cidadania e do espírito
coletivo das relações sociais.
A escola precisa entender que não é um espaço somente para conteúdos e
habilidades, mas que também tem responsabilidade sobre a formação política de
quem utiliza seus serviços, considerando que, hoje, é uma instituição que está
recebendo todos os tipos de problemas sociais (droga, violência, fome,...) que são
reflexos de nossa condição e condução política.
16. 1. AQUINO, Júlio Groppa (org.). A desordem na relação professor- aluno:
indisciplina, moralidade e conhecimento. In: Indisciplina na escola:
alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1996.
Esta coleção tem por objetivo debater os dilemas do cotidiano escolar
presentes na atividade educacional contemporânea. Busca-se um conjunto de
leituras possíveis em torno de uma mesma temática, visando reunir diversos
referenciais teóricos e soluções alternativas para os problemas em foco. Atinge-se
assim um panorama atualizado e abrangente, tanto das questões relevantes prática
escolar atual quanto das novas perspectivas para o seu enfrentamento.
APRESENTAÇÃO
Há muito os distúrbios disciplinares deixaram de ser um evento esporádico e
particular no cotidiano das escolas brasileiras para se tornarem, talvez, um dos
maiores obstáculos pedagógicos dos dias atuais. Claro está que, salvo o
enfrentamento isolado e personalizado de alguns, a maioria dos educadores não
sabe ao certo como interpretar e/ou administrar o ato indisciplinado. Compreender
ou reprimir? Encaminhar ou ignorar?
Diante das encruzilhadas do trabalho diário, todos parecem, em alguma
medida, marcados por uma cisão fundamental: de um lado, a autoridade e o controle
absoluto de outrora foram substituídos por uma crescente perplexidade e,
conseqüentemente, um certo desconforto pedagógico; mas, de outro, a linha
divisória entre indisciplina e violência pode se tornar muito tênue, esgarçando os
limites da convivência social. Por onde ir? O que fazer?
Não apenas professores diretores e orientares, mas também pais e os próprios
alunos, com o termo, tornaram-se reféns do emaranhado de significados e valores
que a indisciplina escolar comporta. Como entendê-la, enfim, para além da
“naturalidade” com que é processada no dia-a-dia?
Por se tratar de um tema bastante recorrente na prática diária dos
protagonistas escolares, é curioso que ele seja infreqüente na literatura
especializada – talvez pelo fato mesmo de ser um tema transversal àqueles
usualmente visitados pelos teóricos da área educacional. É possível constatar, pois,
que a indisciplina (como problema teórico e prático) em geral é tratada de maneira
17. imediatista, sem o circunstanciamento conceitual necessário. Visando abrandar essa
flagrante lacuna bibliográfica, a presente coletânea de textos foi planejada e
organizada principalmente na tentativa de contribuir para o aprofundamento do
debate acerca da temática.
São ao todo, dez textos inéditos, redigidos de forma concisa mas substancial
por docentes/pesquisadores da realidade brasileira. Dessa forma, psicológicos,
psicanalistas, filósofos e pedagogos encaram o problema, oferecendo-lhe múltiplas
abordagens teóricas e propondo soluções alternativas para sua compreensão e
manejo.
Trata-se, portanto de um esforço multidisciplinar com o intuito de promover
uma análise abrangente do tema à luz de alguns referenciais teóricos
contemporâneos e imprescindíveis que, até o momento, não tinham efetivado uma
interlocução imediata com a questão da indisciplina na escola. E isso, vale ressaltar,
em torno de um determinado recorte teórico tomado como contrapondo da questão
disciplinar, bem como a partir do campo conceitual que subsidia tal recorte. Por
exemplo, a questão do poder em Foucault, ou da moralidade em Piaget, ou ainda da
infância na psicanálise; e assim por diante.
O resultado: todos os autores tiveram de desdobrar em direção a uma
articulação factível com o tema da indisciplina.
Outro aspecto que interliga os diferentes textos: é a tentativa de retirada do
ônus disciplinar exclusiva do aluno. :Visou-se analisar a indisciplina escolas sobre
diferentes ângulos.
Em vez de perseguir abstratamente uma “teoria geral” da educação tomamos
um problema pontual das práticas escolares concretas e, a partir dele, propusemos,
de fato, maneiras diversificadas de compreender a tarefa educacional e o papel da
escola.
Um último aspecto que identifica os textos é o de que todos os autores são
professores das universidades estaduais públicas de São Paulo: um esforço de
interpenetração dos diferentes níveis de ensino; promovendo assim, a extensão do
trabalho teórico-conceitual (que em tese deve acontecer privilegiadamente no
interior das práticas universitárias) para os níveis básico e médio, e tentando
atenuar, quem sabe, o desnível estrutural que há entre eles.
18. Julio R. Groppa Aquino - Mestre e doutor em Psicologia pelo Instituto de
Psicologia da USP, professor da Faculdade de Educação da USP e autor de
Confrontos na sala de aula : uma leitura institucional da relação professor-aluno
(Summus, 1996).
O autor inicia o texto com uma poesia de ADÉLIA PRADO
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
Nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.
ADÉLIA PRADO
Eu to aqui pra que? Será que é pra aprender? Ou será
que é pra aceitar me acomodar e obedecer?
Assim inicia uma canção de imensa difusão entre jovens e crianças, de
Gabriel O Pensador, intitulada sintomaticamente “Estudo Errado”
Independentemente da crueza do argumento, as questões colocadas pelo
“pensador” rapista vêm corroborar algumas inquietações comuns aos educadores e
aos teóricos: o que estaria acontecendo com a educação brasileira atualmente?
Qual o papel da escola para a sua clientela e seus agentes? Afinal de contas, sua
função primordial seria a de veicular os conteúdos classicamente preconizados ou
tão-somente conformar moralmente os sujeitos a determinadas regras de conduta?
Alguns, mais zelosos de suas funções, não tardariam a responder que o
papel essencial da escolarização é atender a dimensões imediatamente epistêmica
do ensino, isto é, a escola estaria a serviço da apropriação, por parte da criança e do
adolescente, dos conhecimentos acumulados pela Humanidade. Outros se
remeteriam a uma dimensão socializante da escola, definindo-a como ensaio,
preparação do jovem cidadão para o convívio em grupo e em sociedade. Outros,
ainda, lembrariam a dimensão profissionalizante da educação, assegurando-lhe a
tarefa de qualificação para o trabalho.
Tendo em mente esta tríade funcional historicamente atribuída à instituição
escolar, não nos é possível passar ao largo dos eventos espasmódicos de
19. indisciplina (e até mesmo de violência), que atravessam o espaço escolar
contemporâneo, sem nos espantar. Turbulência e/ou apatia nas relações, confrontos
velados, ameaças de diferentes tipos, muros, grades...O quadro nos é familiar e dele
não precisamos de maiores configurações.
A visão, hoje quase romanceada, da escola como lugar de florescimento das
potencialidades humanas parece ter sido substituída, às vezes, pela imagem de um
campo de pequenas batalhas civis; pequenas, mas visíveis o suficiente para
incomodar. O que fazer?
Para aqueles preocupados com a problemática da indisciplina, o
aprofundamento das discussões exige, sem dúvida, um recuo estratégico do
pensamento. Quais os significados da indisciplina escolar? E quais os recursos
possíveis de enfrentamento do tema quando tomado como objeto de reflexão e/ou
problema concreto? Mãos à obra, então.
Em torno da circunscrição do tema
Embora o fenômeno da indisciplina seja um velho conhecido de todos , sua
relevância teórica não é tão nítida. E o pouco número de obras dedicadas
explicitamente à problemática vem confirmar este dado. Um tema, sem dúvida, de
difícil abordagem.
Os relatos dos professores testemunham que a questão disciplinar é,
atualmente, uma das dificuldades fundamentais quanto ao trabalho escolar.
Segundo eles, o ensino teria como um de seus obstáculos centrais a conduta
desordenada dos alunos, traduzida em termos como: Bagunça, tumulto, falta de
limite, maus comportamentos, desrespeito às figuras de autoridade etc.
Outro dado significativo refere-se ao fato de a indisciplina atravessar
indistintamente as escolas pública e privada. Enganam-se aqueles que a supõem
mais ou menos presente apenas em determinado contexto. Vale lembrar que,
embora diferentes significados sejam atribuídos à problemática e até mesmo os
próprios objetivos educacionais subjacentes a ambas possam ser distintos, elas
parecem sofrer o mesmo tipo de efeito. Não se trata, pois, de uma espécie de
desprivilegio da escola pública; muito pelo contrário.
A indisciplina seria, talvez o inimigo número um do educador atual cujo
manejo as correntes teóricas não conseguiriam propor de imediato, uma vez que se
20. trata de algo que ultrapassa o âmbito estritamente didático-pedagógico, imprevisto
ou até insuspeito do ideário das diferentes teorias pedagógicas. É certo, pois que a
temáticas disciplinar passou a se configurar enquanto um problema interdisciplinar,
transversal á Pedagogia devendo ser tratado pelo maior numero de áreas em torno
das ciências da educação. Um novo problema pede passagem.
Decorre disto que, apesar de o manejo disciplinar ter sempre estado em foco
de um modo ou de outro nas preocupações dos educadores, o que teria acontecido
com as práticas escolares a ponto de a indisciplina ter se tornado um obstáculo
pedagógico propriamente?
Nossos antecessores talvez nunca tenham cogitado isto, uma vez que as
prescrições disciplinares eram consideradas disciplinares eram consideradas uma
decorrência inequívoca do exercício docente. Ora, o mundo mudou, nossos alunos
mudaram. Mudou a escola? Mudamos nós?
Estas tantas questões nos levam, enfim, a considerar a indisciplina como um
sintoma de outra ordem que não a estritamente escolar, mas que surte no interior da
relação educativa. Ou seja, ela não existiria como algo em si, um evento pedagógico
particular, e , no caso, antinatural ou desviante do trabalho escolar.
Da mesma forma que não é possível supor a escola como uma instituição
independente ou autônoma em relação ao contexto sócio histórico (isto é, às outras
instituições), não é lícito supor que o que ocorre em seu interior não tenha
articulação aos movimentos exteriores a ela . Claro esta também que as relações
escolares não implicam um espelhamento imediato daquelas extra-escolares. Vale
dizer que é mais um entrelaçamento, uma interpenetração de âmbitos entre as
diferentes instituições que define a malha de relações sociais do que uma suposta
matriz social e supra-institucional, que a todos submeteria.
Em termos analógicos, as instituições seriam como peças do tabuleiro social
que vão desenhando novas configurações e, portanto, múltiplos sentidos no vazio do
tabuleiro quando tomado como algo em si. Abstenhamo-nos, pois, de supor a escola
como donatária imediata de um social abstrato, encarado como um terceiro em
relação às instituições. Ele, o decantado “social”, também é efeito, e nunca causa
primeira.
Posto isto, as leituras possíveis do fenômeno findam por implicar uma análise
transversal ao âmbito didático-pedagógico. Vejamos como isto pode se dar de
acordo com dois olhares distintos sobre o tema: um sócio-histórico, tendo como
21. ponto de apoio os condicionantes culturais, e outro psicológico, rastreando a
influência das relações familiares na escola.
O olhar sócio-histórico: a indisciplina como força legitima de resistência
Se admitirmos que as práticas escolares são testemunhas (e sempre
protagonistas) das transformações históricas, isto é que seu perfil vai adquirindo
diferentes contornos de acordo com as contingências sócio-culturais, temos que
admitir também que a indisciplina nas escolas vela algo interessante sobre os
nossos dias. Vejamos por quê.
Texto do início do século (1922): Recomendações Disciplinares – ideais
disciplinares de então – Naturalidade com que o trato de indisciplina era previsto:
Não há creanças refractárias á disciplina, mas somente alumnos ainda não
disciplinados. A disciplina é factor essencial do aproveitamento dos alumnos e
indispensável ao homem civilizado. Mantêm a disciplina, mais do que o rigor, força
moral do mestre e o seu cuidado em trazer constantemente as crenças interessadas
em algum assumpto útil.
Os alumnos se devem apresentar na escola minutos antes das 10 horas,
conservando-se em ordem no corredor da entrada, para dahi descerem ao pateo
onde entoarão o cantico.
Formandos dois a dois dirigir-se-hão depois ás suas classes acompanhados
das respectivas professoras, que exigirão delles se conservem em silencio e entrem
nas salas com calma, sem deslocar as carteiras.
Deverão andar sempre sem arrastar com os pés, convindo que o façam em
terça, evitando assim balançar do braços e movimentos desordenados do corpo.
Em classe a disciplina deverá ser severa:
- os alumnos manterão entre siilencio absoluto;
- não poderá estar de pé mais de um alumno;
- a distribuição do material deverá ser rápida e sem desordem;
- não deverão ser atirados ao chão papeis ou quaesquer cousas que
prejudiquem o asseio da sala;
- sempre que se retire da sala, a turma a deixará na mais perfeita ordem.
22. No recreio a disciplina é ainda necessária para que elle se torne agradável aos
alumnos bem comportados:
- deverão os alumnos se entregar a palestras ou a diversões que não
produzam alarido;
- deverão merecer attenção especial os alumnos que se excederem em
algazarras com prejuízo da tranqquillidade dos demais.
- Serão retirados do recreio ou soffrerão a pena necessária os alumnos que
gritasrem, fizerem correrias, damnificarem as plantas ou prejudicarem o
asseio do pateo com papeis, cascas de fructas, etc.;
- Deverão os alumnos no fim do recreio formar com calma sem correrias,
pois que o toque de campainha é dado com antecedência necessária.
Deverão os alumnos lavar as mãos e tomar água no pavimento em que
funccionar a classe a que pertençam.
Não poderão tomar água nas mãos; a escola fornece copos aos alumnos
que não trazem o de seu uso.
Deverão ter todo o cuidado para não molhar o chão, ainda mesmo juncto ás
pias e talhas.
Ao findarem os trabalhos do dia, cada classe seguirá em forma e em silencio
até a escada da entrada, e só descida esta, se dispersarão os alumnos. (Braune
apud Moraes, 1922, pp. 9-10)
Note-se que as correções disciplinares se fazem necessárias principalmente
no que tange ao controle e ordenação do corpo e da fala. O silêncio nas aulas é
absoluto e, fora delas, contido,. Os movimentos corporais, por sua vez, são
completamente esquadrinhados: sentados em sala, e em filas fora dela.
A um educador menos avisado, esta descrição do cotidiano escolar poderia
evocar um certo saudosismo de uma suposta educação de antigamente. Quase
sempre idílica, esta escola do passado é, ainda para muito, o modelo almejado. Ora,
não é difícil constatar que aquela disciplina era imposta à base do castigo ou da
ameaça dele; segundo a autora, de acordo com as “penas necessárias”. Medo,
coação, subserviência. É isto que devemos saudar?
Também é possível deduzir que a estrutura e o funcionamento escolares de
então espelhavam o quartel, a caserna; e o professor, um superior hierárquico. Uma
23. espécie de militarização difusa parecia, assim, definir as relações institucionais como
um todo.
É presumível, portanto, que as relações escolares fossem determinadas em
termos de obediência e subordinação. O professor não era só aquele que sabia
mais, mas que podia mais porque estava mais próximo da lei. Sua função precípua,
então, passa a ser a de modelar moralmente os alunos, além de assegurar a
observância dos preceitos legais mais amplos, aos quais os deveres escolares
estavam submetidos.
Ora, com a crescente democratização política do país e, em tese, a
desmilitarização das relações sociais, uma nova geração se criou. Temos diante de
nós um novo aluno, um novo sujeito histórico, mas, em certa medida, guardamos
como padrão pedagógico a imagem daquele aluno submisso e temeroso. De mais a
mais, ambos, professor e aluno portavam papéis e perfis muito bem delineados: o
primeiro, um general de papel o segundo um soldadinho de chumbo. É isto que
devemos saudar?
Outro lado problematizador deste mito da escola de outrora refere-se ao fato
de ela ser um espaço social pouco democrático. Aliás, o direito à escolaridade
básica de oito anos é uma conquista social muito recente na história do país; basta
lembrarmos os exames de admissão de antes do início dos anos 70.
No caso do Estado de São Paulo, relata um dos protagonistas da reforma da
época: “O problema maior [da expansão maciça do ensino ginasial] consistiu na
resistência de grande parcela do magistério secundário que encontrou ampla
ressonância no pensamento pedagógico da época. Raros foram os que tomaram
posição na defesa da política de ampliação de vagas, embora todos, como sempre,
defendessem a democratização do ensino. A alegação de combate, já tantas vezes
enunciada, era sempre a mesma: o rebaixamento da qualidade do ensino” (Azanha,
1987, p.32).
É possível afirmar, portanto, que esta escola de outrora tinha um caráter
elitista e conservador, destinando-se prioritariamente às classes sociais
privilegiadas. Ou melhor, o acesso das camadas populares à escola era obstruído
pela estruturação escolar da época.O que os dias atuais atestam, no entanto, é que
as estratégias de exclusão, além de continuarem existindo, sofisticaram-se. Se antes
a dificuldade residia no acesso propriamente, hoje o fracasso contínuo encarrega-se
24. de expurgar aqueles que se aventuram neste trajeto, de certa forma, ainda elitizado
e militarizado.
Novamente é possível constatar que guardamos uma herança pedagógica
alheia aos novos dias. Salvo raras exceções, os parâmetros que regem a
escolarização ainda são regidos por um sujeito abstrato, idealizado e desenraizado
dos condicionantes sócio-históricos. As próprias teorias psicológicas e suas
derivações pedagógicas, em geral, sacralizam a naturalidade com o este sujeito
universal é pensado. Sempre como se todos fossem iguais em essência e em
possibilidades.
“A idéia de uma essência humana pré-social concebe a personalidade
humana individual como um caso particular da personalidade humana básica, o que
pressupõe que cada indivíduo possui características que são universais e
independem de influência do meio social (...). Daí a idéia corrente de ajustamento
social aplicado à Psicologia e Educação. Os padrões de comportamento a serem
ensinados ou modificados correspondem à perspectiva da classe dominante, que os
torna universais e, portanto, compulsórios.” (Libâneo,1984,p.158,grifos do autor).
A partir disto geralmente confunde-se democratização com deterioração do
ensino. A qualidade do ensino,principalmente publico, teria decaído pelo simples fato
de ter se expandido para outras camadas sociais.
Ora, nunca é demais relembrar o artigo 205 da carta constitucional que
reza:”a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”(Constituição da Republica Federativa do Brasil, 1988,p.38).
E destes preceitos não podemos abrir mão em favor das supostas qualidades
de uma educação de antigamente. Escolarização, vale ressaltar, já é exercício de
cidadania.
Quais significados, então, poderíamos subtrair dos fenômenos que rondam
esta nova escola, incluída ai a indisciplina? Ela pode estar indicando o impacto do
ingresso de um novo sujeito histórico, com outras demandas e valores, numa ordem
arcaica e despreparada para absorvê-lo plenamente. Nesse sentido, a gênese da
indisciplina não residiria na figura do aluno, mas na rejeição operada por esta escola
incapaz de administrar as novas formas de existência social concreta, personificadas
nas transformações do perfil de sua clientela.
25. Indisciplina, então, seria sintoma de injunção da escola idealizada e gerida
para um determinado tipo de sujeito e sendo ocupada por outro. Equivaleria, pois,a
um quadro difuso de instabilidade gerado pela confrontação deste novo sujeito
histórico a velhas formas institucionais cristalizadas. Ou seja, denotaria a tentativa
de rupturas, pequenas fendas em um edifício secular como é a escola,
potencializando assim uma transição institucional, mais cedo ou mais tarde, de uma
modelo autoritário de conceber e efetivar a tarefa educacional para um modelo
menos elitista e conservador.
Desde este ponto de vista sócio-histórico, a indisciplina passaria, então, a
ser força legitima de resistência e produção de novos significados e funções, ainda
insuspeitos, à instituição escolar.
Vejamos, agora, como o mesmo fenômeno pode ser interpretado de acordo
com outro referencial.
O Olhar psicológico: a indisciplina como carência psíquica infra-estrutural
Numa perspectiva genericamente psicológica, a questão da indisciplina estará
inevitavelmente associada a idéia de uma carência psíquica do aluno. Entretanto,
vale advertir desde já que o fenômeno não poderá ser pensado como um estado ou
pré disposição particular, isto é, um atributo psicológico individual (e, no caso,
patológico), mas de acordo com seus determinantes psicossociais, cujas raízes
encontram-se no advento, no sujeito, da noção de autoridade.
Desse ponto de vista o reconhecimento da autoridade externa (do professor,
no caso) pressupõe uma infra-estrutura psicológica, moral mais precisamente,
anterior à escolarização. Esta estruturação refere-se à introjeção de determinados
parâmetros morais apriorísticos , tais como: permeabilidade a regras comuns,
partilha de responsabilidades, cooperação, reciprocidade, solidariedade, etc. Trata-
se, pois, do reconhecimento da alteridade enquanto condição sine qua non para
convivência em grupo e, conseqüentemente, para o trabalho em sala de aula.
É queixa bastante comum dos educadores que o aluno atual carece de tais
parâmetros, em maior ou menor grau. É o aluno acometido por
agressividade/rebeldia,ou apatia/indiferença, ou, ainda, desrespeito/falta de limites –
eventos estes quase sempre representados como supostos índices de insalubridade
moral, além de obstáculos centrais do trabalho pedagógico.
26. Claro que não há possibilidade de escolarização sem esta condição
apriorística: a disponibilidade do sujeito com seu semelhante, e, em ultima instância
para com a cultura da qual o professor seria um porta voz privilegiado, um elemento
de conexão desta com aquele. Também é óbvio que não há possibilidade de a
escola assumir a tarefa de estruturação psíquica previa ao trabalho pedagógico; ela
é de responsabilidade do âmbito familiar, primordialmente.
Nesse sentido, a estruturação escolar não poderá ser pensada apartada da
familiar. Em verdade, são elas as duas instituições responsáveis pelo que se
denomina educação no sentido amplo. Só que o processo educacional depende da
articulação destes dois âmbitos institucionais que não se justapõem. Antes, são
duas dimensões que, na melhor das hipóteses, complementam-se, articulam-se.
O que a indisciplina, desde este ponto de vista estaria revelando então? Que
se trata, supostamente, de um sintoma de relações familiares desagregadoras,
incapazes de realizar a contento sua parcela no trabalho educacional de crianças e
adolescentes. Um esfacelamento do papel clássico da instituição família, enfim.
Chegamos, assim, a um impasse: a educação,no sentido lato, não é de
responsabilidade integral da escola. Esta é tão-somente um dos eixos que compõem
o processo como um todo. Entretanto, algumas funções adicionais lhe vem sendo
delegadas no decorrer do tempo, funções estas que ultrapassam o âmbito
pedagógico e que implicam o (re) estabelecimento de algumas atribuições
familiares. Vejamos um exemplo concreto disto.
Em outro estudo por nós realizado (Aquino, 1995),a partir das representações
de professores e alunos de diferentes escolas (publicas e privadas) diferentes níveis
de ensino (primeiro, segundo e terceiro graus) sobre a relação professor-aluno,
constatamos que a educação escolar contemporânea parece, na maioria das vezes,
ter sucumbido a uma profunda demanda de normatização da conduta alheia.
Isto significa que raras são as vezes em que a escola é representada como
espaço de (re)produção cientifica e cultural nas expectativas de seus agentes e
clientela. Ao contrário , a normatização atitudinal parece ser op grande sentido do
trabalho escolar – o que não deixa de causar perplexidade, uma vez que o objetivo
crucial da escola (a reposição e recriação do legado cultural) parece ter sido
substituído por uma atribuição quase exclusivamente disciplinarizadora.
Desta forma, as práticas pedagógicas concretas acabam acabam sendo
abarcadas por expectativas nitidamente moralizadoras. Ou seja, constatou-se que,
27. no plano das representações, despende-se muito mais energia com as questões
psíquicas/morais do aluno do que com a tarefa epistêmica fundamental.
Concluímos, então, que “talvez deva-se a isto o inegável fato de, não raras
as vezes, o discurso dos teóricos e o dos protagonistas concretos evocam
insatisfação, descontentamento, quando não um excesso de críticas e de atribuição
de culpa (frutos evidentes de um superávit de boas intenções e de um déficit de
possibilidades concretas), confundindo-se, assim,a imagem do espaço escolar com
a de um estado de danação ou de calamidade. Portanto, fugazes são as passagens
onde se constata que a escolarização , como prática social concreta ou objeto
teórico, não tenha sucumbido a propostas moralizantes, com vistas a um suposto
aperfeiçoamento e/ou salvação da condição humana. E o teor normativo das
relações, bem como o caráter messiânico dos textos, são provas disto, em que
quase sempre se visa o aprimoramento da conduta tanto daquele que ensina
quanto daquele que aprende.
“Intercambia-se, assim, o caráter essencialmente exegético do ato de pensar
por uma suposta ascese do ato de conhecer. Em certo sentido, a escola imaginada
por seus protagonistas e seus teóricos teria como finalidade última a edificação de
uma espécie de assepsia moral que, por sua vez, capacitasse o sujeito para o
conhecimento, para a profissão ou para a vida – o que afirmamos ser inverossímil e,
portanto, insustentável” (Aquino, 1995, p.258).
Ale do mais, cumpre-nos pontuar que investir numa suposta sedimentação
moral do aluno exigiria um entendimento comum do que viria a ser esta infra-
estrutura psíquica – o que não é exatamente um consenso teórico, muito menos
empírico. A tarefa docente, ao contrário, é razoavelmente bem definida, isto é,
encerra-se no conhecimento acumulado. Por este motivo, a grades curriculares do
primeiro e segundo graus refletem os campos clássicos das ciências e das
humanidades. É esta a tarefa e a razão docentes, e não são pouca coisa!
Caso contrário, quais as decorrências possíveis?
Primeiro: o desperdício da força de trabalho qualificada, do talento
profissional específico de cada educador. Segundo: o desvio de função, pois
professores deveriam ater-se a suas atribuições didático-pedagógicas. Terceiro: a
inevitável quebra do contrato pedagógico, o que implica, a nosso ver, um
comprometimento de ordem ética, uma vez que a proposta de trabalho educacional
28. raramente se cumpre de maneira satisfatória, gerando assim um estado aberto de
ambigüidades e insatisfação – tão fácil de constatar atualmente...
Disto tudo decorre que parece haver uma crise de paradigmas em curso, quer
no interior das relações familiares, que no corpo das ações escolares – o que
significa uma perda de visibilidade sobre os grandes sentidos sociais da educação
como um todo.
É muito comum ouvirmos dos alunos frases do tipo; Pra que eu tenho que
estudar isso? Pra que serve isto? Eu vou usar isto algum dia?
Independentemente de qualquer argumento contrário, temos que reconhecer
que alguém à margem da escolarização não pode (e nem mesmo sabe) aceder ao
status de cidadão na sua plenitude. Seus direitos mesmo que em tese sejam iguais
aos dos outros, na prática serão mais escassos. O acesso pleno à educação é ,sem
dúvida, o passaporte mais seguro da cidadania, para além de uma sobrevivência
mínima, à mercê do destino, da fatalidade enfim.
Das implicações das diferentes leituras
Há alguns pontos recorrentes em nosso trajeto até aqui que valeriam a pena
ser dissecados. Vejamos por quê.
Se, do ponto de vista sócio histórico, a escola é palco de confluência dos
movimentos históricos (as formas cristalizadas versus as forças de resistência), do
ponto de vista psicológico ela é profundamente afetada pelas alterações na estrutura
familiar. De ambos os modos, a indisciplina apresenta-se como sintoma de relações
descontínuas e conflitantes entre o espaço escolar e as outras instituições sociais
No primeiro caso, o recurso principal para a análise da indisciplina é o do
autoritarismo historicamente subjacente à estruturação institucional escolar. No
segundo, o eixo argumentativo desdobra-se em torno do conceito de autoridade
enquanto infra-estrutura psicológica para o trabalho pedagógico.
Se na análise sócio-histórica pudermos subtrair uma conotação positiva, de
legitimidade para o fenômeno da indisciplina, uma vez que tratar-se-ia de um conflito
salutar entre forças sociais antagônicas, já não se poderia dizer o mesmo da leitura
psicológica. Nesta, a indisciplina seria indício de uma carência estrutural que se
alojaria na interioridade psíquica do aluno, determinada pelas transformações
institucionais na família e desembocado nas relações escolares. De uma forma ou
29. de outra, a gênese do fenômeno acaba sendo situada fora da relação concreta entre
professor e aluno, ou melhor, nas suas sobredeterminações
Ora, não é possível admitir que a indisciplina se refira ao aluno
exclusivamente, tratando s-e de um problema de cunho psicológico/moral.Também
não é possível creditá-la totalmente à estruturação escolar e suas circunstâncias
sócio-histórica. Muito menos atribuir a responsabilidade às ações do professor,
tornando-a um problema de cunho essencialmente didático-pedagógico.
A nosso ver, a indisciplina configura um fenômeno transversal a estas
unidades conceituais (professor/aluno/escola) quando tomadas isoladamente como
recortes do pensamento. Ou melhor, indisciplina é mais um dos efeitos do entre
pedagógico, mais uma das vicissitudes da relação professor aluno, para onde
afluem todas essas “desordens” anteriormente descritas.
Nesse sentido, vale a pena recordar Bohoslavsky pontuando que “o motor da
aprendizagem, interesse autêntico da pedagogia desde a antiguidade, deveria ser
tomado em seu sentido etimológico literal como um ’estar entre’, colocando o
conhecimento não atrás do cenário educativo, mas em seu centro, situando o objeto
a ser aprendido entre os que ensinam e os que aprendem” (Bohoslavsky, 1981,
p.324, grifo do autor).
A relação do professor-aluno torna-se, assim, o núcleo concreto das práticas
educativas e do contrato pedagógico – o que estrutura os sentido cruciais da
instituição escolar.
A relação professor-aluno como recorte
Por que tomar, a partir de agora, a relação professor-aluno como foco
conceitual no que se refere aos encaminhamentos da problemática disciplinar?
Porque não é possível conceber a instituição escola como algo além ou
aquém das relações concreta entre seus protagonistas. Ao contrário, a relação
instituída/instituinte entre professor e aluno é a matéria-prima a partir da qual se
produz o objeto institucional.
Objeto institucional é aquilo do que a instituição se apropria reclamando a
soberania e a legitimidade de sua posse ou guarda (Albuquerque, 1978). Trata-se
de algo imaterial e inesgotável (imaginário) que só pode se configurar enquanto fruto
30. de uma instituição especifica. Exemplo: conhecimento na escola, salvação na
religião, direito no judiciário etc.
Tais objetos não existiriam senão enquanto efeitos do conjunto de práticas
concretas entre os protagonistas principais de determinada instituição, práticas estas
ora divergentes, ora complementares, mas sempre suportadas pela rede de
relações entre seus atores concretos – mais comumente os agentes e a clientela, e
mais esporadicamente o mandante e o público.
Agentes institucionais são aqueles que teriam a prerrogativa de posse ou
guarda do objeto, enquanto a clientela seria, aqueles que carentes do objeto,
posicionam-se nas relações como alvo da ação dos agentes. Por exemplo:
professores e alunos, sacerdotes e fiéis, médicos e pacientes etc.
Desta forma, objetos como o conhecimento, o direito e a saúde, entre outros,
não existiriam aprioristicamente, mas seriam produzidos mediante a ação concreta
dos protagonistas institucionais por eles responsáveis. Para tanto, dois são os
requisitos fundamentais de tal ação: a repetição e legitimação. No caso da
educação, a escola torna-se seu lugar autorizado pelo fato mesmo de ser o espaço
onde ela é pratica continuamente e, portanto, referendada aos olhos de todos que a
praticam. Trata-se pois, de uma delegação de legitimidade e autoridade à escola
sobre o fazer educacional, tornando-a o lugar privilegiado da tarefa educativa.
Escola, desde o ponto de vista institucional, equivaleria basicamente à
práticas concretas de seus agentes e clientela,tendo a relação professor-aluno como
núcleo fundamental. Isto significa “conceber as instituições enquanto práticas sociais
que, em sua particularidade, existem pela ação dos que cotidianamente a fazem e
pelo reconhecimento desse fazer como uno, necessário, justificado” (Guirado, 1986,
p.14).
A partir das definições acima, não é possível imaginar que a saída para a
compreensão e o manejo da indisciplina resida em alguma instância alheia à relação
professor-aluno, ou que esta permaneça sempre a reboque das determinações
extra-escolares. Abstenhamo-nos, pois, de demandar uma ação mais efetiva da
família, uma melhor definição social do papel escolar, ou mesmo um maior abrigo
das teorias pedagógicas.
A saída possível está no coração mesmo da relação professor-aluno, isto é,
nos nossos vínculos cotidianos e, principalmente, na maneira com que nos
posicionamos perante o nosso outro complementar. Afinal de contas, o lugar de
31. professor é imediatamente relativo ao de aluno, e vice-versa. Vale lembrar que,
guardadas especificidades das atribuições de agente e clientela, ambos são
parceiros de um mesmo jogo. E o nosso rival é a ignorância, a pouca perplexidade e
o conformismo diante do mundo.
Alguém haveria de perguntar: o que fazer quando o aluno não apresenta a
infra-estrutura moral para o trabalho pedagógico? É muito difícil supor que o aluno
não traga esses pré-requisitos em alguma medida. Ao contrário, é mais provável que
faltem a nós as ferramentas conceituais necessárias para reconhecê-los e, por
extensão presentificá-los na relação.
Mas mesmo se concordássemos com a suspeita de uma carência moral do
aluno, haveríamos também de admitir que, através do legado específico de seu
campo de conhecimento, o professor pode criar condições de sedimentação desta
infra-estrutura quando ela se apresentar de maneira ainda fragmentária. Se o
professor pautar os parâmetros relacionais no seu campo de conhecimento, ele será
capaz de (re)inventar a moralidade discente.
Isto significa que o que deve regular a relação é uma proposta de trabalho
fundada intrinsecamente no conhecimento. Por meio dela, pode-se fundar e/ou
resgatar a moralidade discente na medida em que o trabalho do conhecimento
pressupõe a observância de regras, de semelhança e diferenças, de regularidades e
exceções.
Nesse sentido , a matemática é moralizadora; as línguas, as ciências e as
artes também o são se entendermos moralidade como regulação das ações e
operações humanas nas sucessivas tentativas de ordenação do mundo que nos
circunscreve.
Este tipo de entendimento é congruente a uma declaração interessantíssima
de Stephen Hawking, um dos físicos mais eminentes da atualidade, sobre a relação
entre ciência e moralidade: “Não podemos deduzir como alguém vai se
comportar a partir das leis da física. Mas poderíamos desejar que o
pensamento lógico, que a física e a matemática envolvem, guiasse uma
pessoa também em seu comportamento moral.” (Hawking, 1995, p.135)
O pensador propõe o Modi operandi lógico-conceituais subsjacentes á física
e à matemática como norte para o comportamento moral humano, e não o próprio
campo das leis físicas e matemáticas. Trata-se dos modos de pensamento ai
envolvidos e não necessariamente dos conteúdos deles decorrentes.
32. Pois bem, este trabalho de incessante indagação, inspiração no traçado
científico, não requer que o aluno permaneça estático, calado, obediente. O trabalho
do conhecimento, pelo contrário, implica a inquietação, o desconcerto, a
desobediência. A questão fundamental está na transformação desta turbulência em
ciência, desta desordem em uma nova ordem...
Por uma nova ordem pedagógica.
Tendo como premissa a proposta de que a relação professor-aluno se paute
no estatuto do próprio conhecimento, é possível entrever que a temática disciplinar
deixe de figurar como um dilema crucial para as práticas pedagógicas, ou então, que
adquira novos sentidos mais produtivos. A isto denominamos nova ordem
pedagógica. O curioso é a necessidade da qualificação “nova” quando esta ordem
nada mais é que o restabelecimento da função epistêmica autêntica e legítima da
escola.
Crianças e jovens, por incrível que pareça, são absolutamente ávidos pelo
saber, pelo convite à descoberta, pela ultrapassagem do óbvio desde que sejam
convocados e instigados para tanto. Tudo depende, pois da proposta por meio da
qual o conhecimento é formulado e gerenciado nesse microcosmo que é cada sala
de aula. Entretanto, a tarefa é intrincada pois pressupõe sempre um recomeço, a
cada aula, cada turma, cada semestre.
Guardadas as devidas proporções, é lícito afirmar que não importam tanto os
aparatos técnico-metodológico de que o professor dispõe, mas a compreensão
mesma de mundo mediada por modos específicos de conhecer (aqueles do seu
domínio especifico), pois cada campo comporta um objeto e modos de conhecer
particulares. Em linhas gerais vale muito mais a tarefa de (re)construção de um
determinado campo conceitual, do que sua assunção imediata e inquestionável.
Desta forma, o trabalho educacional passa a ser não só a transmissão ou
mediação das informações acumuladas naquele campo, mas a (re)invenção do
próprio modo de angariá-las:o olhar da matemática, da história, da biologia, da
literatura etc.
O papel da escola, então passa a ser o de fermentar a experiência do sujeito
perante a incansável aventura humana de desconstrução e reconstrução dos
processos imanentes à realidade dos fatos cotidianos, na incessante busca de uma
33. visão mais dilatada de suas múltiplas determinações e dos diferentes pontos de vista
sobre eles. Isto, a nosso ver, define o conhecimento no seu sentido lato.
Toda aula pode tornar-se uma espécie de roteiro do traçado de determinado
campo conceitual muito além da mera narrativa dos produtos deste traçado, que
geralmente se dá sob a forma de um conjunto de informações, fórmula, axiomas e
leis já prontas. O objetivo da educação escolar torna-se, assim, mais uma disposição
para a (re)construção dos campos epistêmicos das diferentes disciplinas, do que a
reposição de um pacote de informações perenes, estáveis.
É preciso,pois reinventar continuamente os conteúdos, as metodologias, as
relações. E isto também é conhecimento.
Além do mais, o trabalho do aluno passa a se assemelhar ao do professor na
medida em que este tem que se haver necessariamente com a criação de
condições propícias para colocar em movimento um determinado modus operandi
conceitual, sempre de acordo com a concretude de seus alunos, do espaço escolar
e dos vários condicionantes que relativizam sua ação. Trata-se da invenção
pedagógica obrigatória àqueles que tomam seu ofício como parte efetiva de suas
vidas.
O aluno é obrigado, assim, a fazer funcionar esta grande engrenagem que é o
pensamento lógico, independentemente do campo específico de determinada
matéria ou disciplina, uma vez que a todas elas abrange. A partir daí, o barulho, a
agitação, a movimentação passam a ser catalisadores do ato de conhecer, de tal
sorte que a indisciplina pode se tornar, paradoxalmente, um movimento organizado,
se estruturado em torno de determinadas idéias, conceitos, proposições formais.
É presumível, portanto, que uma nova espécie de disciplina possa despontar
em relações orientadas desta maneira: aquela que denota tenacidade,
perseverança, obstinação, vontade de saber. Um outro significado muito mais
interessante para o conceito de disciplina, não?
Anteriormente, disciplina evocava silenciamento, obediência, resignação.
Agora, pode significar movimento, força afirmativa, vontade de transpor os
obstáculos. “Importante é que o aluno experimente o obstáculo, que sinta o difícil –
só assim verá a necessidade de adequar-se, de limitar-se aos processo que a
matéria sugere. Deste modo, o obstáculo é formativo, como o é para o artista. Sem
o obstáculo, sem o difícil, a necessidade de disciplina não se manifesta, e toda
possibilidade de estranhamento é frustrada” (Guimarães, 1982, p.38)
34. Disciplina torna-se, então, vetor de rebeldia para consigo mesmo e de
estranhamento para com o mundo – qualidades fundamentais do trabalho humano
de conhecer.
Esta guinada na compreensão e no manejo disciplinares vai requerer, enfim,
uma conduta dialógica por parte do educador, pois é ele quem inaugura a
intervenção pedagógica. E não há a possibilidade de ação docente sem
agenciamentos de diferentes tipos, uma vez que não se trata de um trabalho
solitário; muito pelo contrário. Em suma, o ofício docente exige a negociação
constante, quer com relação aos objetivos e até mesmo aos conteúdos
preconizados – sempre com vistas à flexibilização das delegações institucionais e
das formas relacionais.
Isto não significa render-se às demandas imediatas do aluno, mesmo porque,
muitas vezes, elas não são sequer formuladas. Significa, no entanto, assumir o
aluno como elemento essencial na construção dos parâmetros relacionais que a
ambos envolve, posto que da definição destes parâmetros depende a assunção do
contrato que deve balizar a relação – condição sine qua non para a ação
pedagógica.
Quais, enfim, os quesitos principais deste tipo de construção negociada ?
Em primeiro lugar, o investimento nos vínculos concretos, abdicando, na
medida do possível, dos modelos idealizados de alunos, de professor e da própria
relação, e potencializando as possibilidades e chances efetivas de cada qual. Uma
vez que o conhecimento só se realiza com e pelo outro, a relação professor-aluno
torna-se o núcleo e foco do trabalho pedagógico. Afinal de contas, professor e aluno
instituem-se duplamente no decurso das práticas escolares cotidianas, não se
tratando portanto, de uma sobredeterminação de um pólo institucional ao outro. É
mais um interjogo instituinte (plástico até) que estrutura o fazer escolar, e não uma
suposta natureza imutável do trabalho educativo.
Em segundo, a fidelidade ao contrato pedagógico . É imprescindível que seja
razoalvelmente claro para ambas as parte, e que se restrinja ao campo do
conhecimento acumulado, mesmo que as cláusulas contratuais tenham que ser
relembradas todos os dias, em todas as aulas.Vale mais a pena a exaustão do que a
ambigüidade!
E, por fim, a permeabilidade para a mudança e para a invenção. É certo que o
professor também tem que reaprender seu ofício e reinventar seu campo de
35. conhecimento a cada encontro. Deste modo. É provável que as questões de cunho
técnico-metodológico acabem perdendo sua força ou eficácia, uma vez que elas
pressupõem como interlocutor sem pré o mesmo sujeito abstrato e, portanto,
ausente. O aluno concreto (aquele do dia-a-dia), de forma oposta, obriga-nos a
sondar novas estratégias, experimentações de diferentes ordens.
Desta forma, o lugar do professor pode tornar-se também um lugar de
passagem, de fluxo da vida. Se não, o aluno desaparece, torna-se platéia silenciosa
de um monólogo sempre igual, estático, à espera...
36. CANDAU, V.M.; SACAVINO, S.; MARANDINO, M. e MACIEL, A. Direitos
humanos, educação e cidadania, In: Oficinas pedagógicas de direitos
humanos, Petrópolis,RJ: Vozes, 1995, pp. 95 – 125
O texto consiste na segunda parte do livro "Oficinas Pedagógicas de Direitos
Humanos" e revela o referencial teórico do livro e do próprio Programa Direitos
Humanos, Educação e Cidadania mantido pelo Projeto Novamerica. As autoras
iniciam levantando a contradição entre a consciência cada vez maior acerca dos
direitos humanos e a sua constante violação. O desrespeito crescente e sistemático
em relação aos direitos humanos se constitui no desafio e no apelo para a
construção de práticas que invertam esta situação. Na primeira subdivisão do texto é
anunciado os Princípios Fundamentais na concepção dos direitos humanos como
um conceito e uma perspectiva de trabalho. O 1º princípio anunciado poderia ser
entendido como um apelo ao nosso dia-a-dia, ou seja, a luta pelos direitos humanos
trava-se na vida cotidiana, nos atos e gestos mais simples e corriqueiros. Este
princípio afasta qualquer possibilidade de se entender os direitos humanos como
uma simples elaboração teórica distante da vida e da prática cotidiana. O 2º princípio
enunciado é a consciência histórica em relação aos direitos humanos, ou seja,
reconhecer que a conquista dos direitos humanos é um processo histórico. É
apresentado então um quadro esquemático que demonstra como surge as primeiras
noções do conceito até a chamada 4ª geração dos direitos humanos com a Carta da
Terra - Rio, 1992 (pp. 100/101). O quadro é importante para perceber a evolução do
conceito e que a sua construção histórica se dá através de lutas e conquistas da
humanidade firmadas juridicamente, mesmo antes de se ter cunhado mais
especificamente o termo. O 3º princípio apresentado consiste na afirmação de que
"a percepção dos direitos humanos que cada pessoa tem está muito condicionada
pelo lugar social que ela ocupa na sociedade" (p. 103). Ao enunciar este princípio, o
texto constata que o lugar social da maioria dos latino-americanos é uma situação
de extrema pobreza. Com alguns dados conhecidos, traça-se o perfil da
desigualdade na América Latina nesta "década perdida" - 1980 (p.103). Porém, a
luta pelos direitos humanos não é só daqueles que se encontram nas estatísticas de
fome e miséria. É sobre isto que versa o 4º princípio. Na luta pelos direitos humanos
há os que são sujeitos por viverem "na carne" o desrespeito e a violação e há os que
podem livremente se tornarem solidários. Nisto se consiste o quarto princípio: na luta
37. pelos direitos humanos, uns são sujeitos e outros parceiros. O 5º princípio, revela
que a luta pelos direitos humanos afeta profundamente nossa relação conosco
mesmo, com os outros, com a natureza e com a transcendência. A vida pessoal,
comunitária e social daquele que se envolve na defesa de seus direitos ou se
solidariza com quem tem seus direitos violados é profundamente redimensionada.
Isto permite um referencial de mudança e construção de uma nova pessoa. O 6º
princípio trata-se de anunciar que na América Latina a luta pelos direitos humanos
tem como principal compromisso a luta pelos direitos dos pobres. Dar voz e vez a
maioria pobre de nosso continente é o compromisso que evoca da realidade que
vivemos. A 2ª subdivisão do texto traz a afirmativa de que "a promoção dos direitos
humanos passa obrigatoriamente pela educação em suas diferentes formas,
inclusive a escola"(p. 109). A partir desta premissa as autoras revelam que é preciso
superar um modelo de escola que mantém e reproduz as desigualdades sociais.
Deve-se buscar uma escola que forme crianças e jovens construtores ativos de sua
própria cidadania. Na seqüência São apresentados os Eixos Articuladores da
proposta metodológica. Como veremos eles estão intimamente relacionados com os
Princípios Fundamentais já apresentados. O 1º eixo é a vida cotidiana. Chama-se
atenção para a necessidade de saber compreender o dia-a-dia. Para transformar a
realidade é preciso ser capaz de ler os fatos simples da vida e sensibilizar-se
radicalmente com o valor da vida humana. Tendo como referência a obra de Sime,
1991*, apresenta-se 3 características básicas para se educar nos direitos humanos
na centralidade da vida cotidiana, são elas: a) rebelar-se, indignar-se contra toda
violação dos direitos humanos, superando a indiferença; b) Admirar-se e valorizar
toda expressão de afirmação da vida; c) afirmar uma pedagogia que trabalhe a
dimensão ética da educação. O 2º eixo é o compromisso de educar para a
cidadania. As autoras definem que cidadania não é apenas o cumprimento de
deveres e direitos, mas a ação político-social de cada um individualmente e da
comunidade que denuncia toda violação dos direitos individuais e sociais
promovendo e protegendo a vida. O 3º eixo trata-se de repensar a prática educativa,
buscando uma ação dialógica, participativa e democrática que supere todo
autoritarismo reafirmando a democracia. O 4º eixo trata da dignidade humana. De
acordo com o texto, numa sociedade onde o desrespeito a vida é crescente, se faz
necessário assumir o compromisso de promover ações que nos levem a uma
sociedade que tenha como princípio a afirmação da dignidade de toda pessoa
38. humana. Ao final, o texto levanta as Dimensões que compõem todo este processo
de construção do saber. São elas: ver - nesta dimensão procura-se sensibilizar os
participantes com a realidade que os cerca; saber - é a dimensão do
aprofundamento teórico; celebrar - dimensão do prazer, da alegria, da emoção;
comprometer-se - é a ação concreta, a participação, o envolvimento que brota a
partir das descobertas feitas no decorrer de todo processo. Os Princípios
Fundamentais, os Eixos Articuladores e as Dimensões da proposta pedagógica são
vivenciados em um local privilegiado por esta dinâmica - as Oficinas Pedagógicas de
Direitos Humanos
39. O CONSTRUTIVISMO NA SALA DE AULA
A CONCEPÇÃO CONSTRUTIVISTA DA APRENDIZAGEM ESCOLAR E DO
ENSINO
Escola, cultura e desenvolvimento
A existência da instituição escolar é algo tão inerente à nossa sociedade e à
nossa maneira de viver que, às vezes, não nos perguntamos por que há escola ou
damos a essa pergunta respostas um pouco simples ("para guardar as crianças e
distraí-Ias", "para reproduzir a cultura estabelecida"). Não vamos entrar em uma
análise - mesmo breve - daquilo que a escola significa nas sociedades ocidentais,
mas gostaríamos de frisar que, assim como não podemos entender o desenvolvi-
mento humano sem cultura, dificilmente poderemos entendê-Io sem considerar a
diversidade de práticas educativas por meio das quais podemos ter acesso e
interpretamos de forma pessoal essa cultura, práticas essas em que cabe incluir as
escolares. Mediante essas práticas tenta-se assegular uma intervenção planejada e
sistemática, destilada a promover determinados aspectos do desenvolvimento de
meninos e meninas.
É evidente que por meio da escola - e da família, dos meios de comunicação -
entramos em contato com uma cultura determinada, e que nesse sentido
contribuímos para a sua conservação. A preocupação com uma escola alienante e
estática em sido uma constante entre pensadores de diversas disciplinas, que
chamaram a atenção para esse perigo, por outro lado extensivo a outros âmbitos
educacionais e, naturalmente, a outras instituições sociais.
No tocante à escola, negar seu caráter social e socializado r parece bastante
absurdo; na realidade, essa é uma das razões da sua existência. No tocante ao
aluno, já estão longe as explicações que o inseriam em um plano reativo, até pas-
sivo, diante do que lhe é oferecido como objeto de aprendizagem. Nessas
explicações, era razoável o amor de uma escola fundamentalmente alienante e
conservadora. A educação escolar promove o desenvolvimento na medida em que
promove a atividade mental construtiva do aluno, responsável por transformá-Io em
uma pessoa única, irrepetível, no contexto de um grupo social determinado. Os
bebês aprendem muitas coisas no seio da família; seus pais realizam esforços
40. notáveis para ensinar-Ihes determinados aspectos cruciais para seu des-
envolvimento. A ninguém ocorre contrapor a função educadora dos pais ao papel
ativo da criança em sua aprendizagem.
A concepção construtivista da aprendizagem e do ensino parte do fato óbvio
de que a escola torna acessíveis aos seus alunos aspectos da cultura que são
fundamentais para seu desenvolvimento pessoal, e não só no âmbito cognitivo; a
educação é motor para o desenvolvimento, considerado globalmente, e isso também
supõe incluir as capacidades de equilíbrio pessoal, de inserção social, de relação
interpessoal e motoras. Ela também parte de um consenso já bastante arraigado em
relação ao caráter ativo da aprendizagem, o que leva a aceitar que esta é fruto de
uma construção pessoal, mas na qual não intervém apenas o sujeito que aprende;
os "outros" significativos, os' agentes culturais, são peças imprescindíveis para essa
construção pessoal, para esse desenvolvimento ao qual aludimos.
No sentido exposto, este referencial explicativo permite integrar posições que
às vezes se contrapõem muito; não contrapõe o acesso à cultura ao
desenvolvimento individual. Pelo contrário, entende que este, mesmo tendo uma
dinâmica interna (como demonstrou Piaget), adota cursos e formas dependentes do
contexto cultural em que a pessoa em desenvolvimento vive; entende que esse
desenvolvimento é inseparável da realização de certos aprendizados específicos.
Pela mesma razão, não contrapõe construção individual à interação social; constrói-
se, porém se ensina e se aprende a construir. Em definitivo, não contrapõe a
aprendizagem ao desenvolvimento, e entende a educação - as diversas práticas
educativas das quais um mesmo indivíduo participa - como a chave que permite
explicar as relações entre ambos.
Aprender é construir
A aprendizagem contribui para o desenvolvimento na medida em que
aprender não é copiar ou reproduzir a realidade. Para a concepção construtivista,
aprendemos quando somos Capazes de elaborar uma representação pessoal sobre
um objeto da realidade ou conteúdo que pretendemos aprender. Essa elaboração
implica aproximar-se de tal objeto ou conteúdo com a finalidade de apreendê-Io; não
se trata de uma aproximação vazia, a partir do nada, mas a partir das experiências,
interesses e conhecimentos prévios que, presumivelmente, possam dar conta da
41. novidade. Poderíamos dizer que, com nossos significados, aproximamonos de um
novo aspecto que, às vezes, só. parecerá novo, mas que na verdade poderemos
interpretar perfeitamente com os significados que já possuíamos, enquanto, outras
vezes, colocará perante nós um desafio ao qual tentamos responder modificando os
significados dos quais já estávamos providos, a fim de podermos dar conta do novo
conteúdo, fenômeno ou situação. Nesse processo, não só modificamos o que já
possuíamos,' mas também interpretamos o novo de forma peculiar, para poder
integrá-Io e torná-Io nosso.
Quando ocorre este processo, dizemos que estamos aprendendo
Signficativamente, construindo um significado próprio e pessoal para um objeto de
conhecimento que existe objetivamente. De acordo com o que descrevemos, fica
claro que não é um processo que conduz à acumulação de novos conhecimentos,
mas à integração, modificação, estabelecimento de relações e coordenação entre
esquemas de conhecimento que já possuíamos, dotados de uma certa estrutura e
organização que varia, em vínculos e relações, a cada aprendizagem que
realizamos.
Um exemplo simples permitirá ilustrar esse processo. Quando lemos um
documento sobre os conteúdos escolares que diz que eles são integrados não só
por fatos e conceitos, mas também por conteúdos de procedimento e de atitude, em
geral não nos limitamos a registrar essa afirmação, mas tentamos compreendê-Ia.
Para isso, contrastamos com esta idéia nossa visão de "conteúdo escolar" que pode
estar mais ou menos próxima da nova afirmação, em um processo que nos leva a
identificar os aspectos discrepantes, a estabelecer relações entre os que não o
parecem, a explorar ao máximo nosso conhecimento prévio para interpretar o novo,
para modificá-Io e para estabelecer novas relações que permitam ir mais além.
Seguindo com o exemplo, talvez um professor perceba que muitos desses "novos"
conteúdos já estavam presentes em sua escola, e que sua novidade reside mais no
rato de ser preciso torná-Ios mais explícitos, isto é, planeja-Ios ensiná-Ios e avaliá-
Ios. Outro professor, por sua vez, pode viver um conflito para discernir entre os
conteúdos de procedimento e as estratégias por ele utilizadas para ensinar os
alunos; inclusive pode ocorrer que sua compreensão o leve a confundir ambas as
coisas, sem estar consciente disso.
Nos dois casos, parece evidente que a experiência pessoal e os
conhecimentos de cada um determinam a interpretação que realizam. Ela também
42. depende das características do próprio conteúdo.. Simplesmente frisaremos que a
noção de aprendizagem significativa não é sinônimo da de aprendizagem finalizada
(e, aliás, será isso possível?); a aprendizagem é significativa na medida em que
determinadas condições estejam presentes; e sempre pode ser aperfeiçoada. Na
mesma medida, essa aprendizagem será significativamente memorizada e será
funcional, útil para continuar aprendendo. A significatividade e a funcionalidade da
aprendizagem nunca são uma questão de tudo ou nada.
Uma construção peculiar: construir na escola
No âmbito escolar, essa intensa atividade mental - e com freqüência também
externa, observável - que caracteriza a aprendizagem adquire algumas
características peculiares, que convém estudar mais de perto. Em primeiro lugar, e
embora as crianças aprendam na escola coisas que talvez não estavam previstas,
não se pode negar que aí estão para aprender algumas outras, e que estas são
bastante identificáveis. Os conteúdos escolares constituem um reflexo e uma
seleção (cujos critérios sempre são discutíveis e revisáveis) daqueles aspectos da
cultura cuja aprendizagem considera-se que contribuirá para o desenvolvimento dos
alunos em sua dupla dimensão de socialização - na medida em que os aproximam
da cultura do seu meio social - e de individualização, na medida em que o aluno
construirá com esses aspectos uma interpretação pessoal, única, na qual sua
contribuição é decisiva.
Enjeitados por muito tempo, após épocas de hegemonia absoluta na
estruturação da tarefa educacional, os conteúdos aparecem no referencial da
concepção construtivista como um elemento crucial para entender, articular, analisar
e inovar a prática docente.
Entretanto, convém lembrar que esses conteúdos, sejam eles quais forem, já
estão elaborados e fazem parte da cultura e do conhecimento, o que faz com que a
construção dos alunos seja uma construção peculiar. Com efeito, constrói-se algo
que já existe, o que naturalmente não impede a construção - no sentido que lhe
damos: atribuir significado pessoal -, embora obrigue que ela se realize em um
determinado sentido: justamente aquele que aponta a convenção social em relação
ao conteúdo concreto. Ou seja, não se trata de os alunos somarem
aproximadamente como está estabelecido, ou colocarem a letra "agá" em que Ihes
43. pareça melhor. Embora, obviamente, possam, em seu processo, "inventar" formas
de somar muito interessantes, que podem levá-Ias a resultados inesperados;
embora possam usar a ortografia de maneira sumamente criativa e pouco
convencional, é óbvio que essa construção pessoal deve ser orientada no sentido de
aproximar-se do culturalmente estabelecido, compreendendo-o e podendo usá-Io de
múltiplas e variadas formas.
Esta é uma das razões pelas quais a construção dos alunos não pode ser
realizada solitariamente: porque nada garantiria que sua orientação fosse a
adequada, que permitisse o progresso. A outra razão, muito mais importante, é que
de forma solitária não seria assegurada a própria construção. Como se descreve no
capítulo 5, a concepção construtivista assume todo um conjunto de postulados em
torno da 'consideração do ensino como um processo conjunto, compartilhado, no
qual o aluno, graças à ajuda que. recebe do professor, pode mostrar-se
progressivamente competente e autônomo na resolução de tarefas, na utilização de
conceitos, na prática de determinadas atitudes e em numerosas questões.
É uma ajuda porque é o aluno que realiza a construção; mas é
imprescindível, porque essa ajuda, que varia em qualidade e quantidade, que é
contínua e transitória e que se traduz em coisas muito diversas - do desafio à
demonstração minuciosa, da demonstração de afeto à correção - que se ajustam às
necessidades do aluno, é que permite explicar que este, partindo de suas
possibilidades, possa progredir no sentido apontado pelas finalidades educativas,
isto é, no sentido de progredir em suas capacidades. E isso acontece dessa forma
porque essa ajuda situa-se na zona de desenvolvimento proximal do aluno, entre o
nível de desenvolvimento efetivo e o nível de desenvolvimento potencial, zona em
que a ação educativa pode alcançar sua máxima incidência.
Dessa maneira, a criança vai construindo aprendizagens mais ou menos
significativas, não só porque possui determinados conhecimentos, tampouco porque
os conteúdos sejam estes ou aqueles; e os constrói pelo que foi dito e pela ajuda
que recebe de seu professor, tanto para usar sua bagagem pessoal quanto para ir
progredindo em sua apropriação. Na verdade, poderíamos afirmar que essa ajuda, a
orientação que ela oferece e a autonomia que permite, é o que possibilita a
construção . de significados por parte do aluno.
O motor de todo esse processo deve ser buscado no sentido a de atribuído
pelo aluno; no sentido intervêm os aspectos motivacionais, afetivorelacionais que se