1. Jornalistas na sala de aula
Livro: Aprendendo a escrever
Ana Teberosky
Editora Ática
O presente capítulo tem dois objetivos: por um lado, avaliar como as condições da
situação de produção influem sobre os resultados; por outro, mostrar que crianças e
adultos em processo de alfabetização são capazes de produzir uma grande
diversidade de textos escritos. Embora não tenhamos intervindo durante o processo
(on line), decidimos intervir nas condições de produção de texto. Sugerimos então
que fossem efetuadas atividades de simulação da conduta de outros em classe,
sendo que esse outro deveria ser um profissional da redação escrita. Entre as
atividades de simulação mencionaremos duas que forneceram bons indicadores de
descrição do processo de “apropriação” das características da linguagem escrita.
Uma delas é a reescrita, tal como foi apresentada aqui. A atividade de reescrita cria
um espaço intertextual interessante entre o texto-modelo ou texto de referência e os
textos reescritos, permitindo uma dupla comparação; entre as escritas resultantes e
entre cada uma das escritas individuais e o texto-modelo. A metáfora de
“apropriação” serve para analisar o que existe em comum entre os textos reescritos,
bem com o a conservação, perda ou acréscimo de elementos com relação ao texto-
modelo. Utilizando como gênero as notícias jornalísticas, propusemos uma ordem
que induz a imitação de um profissional da composição escrita: “Reescreva como se
você fosse um jornalista”. Mediante essa situação pudemos verificar as idéias dos
alunos sobre as condições a serem preenchidas por uma notícia em diferentes
domínios – sintático, semântico, de organização, etc.
Outra atividade de simulação consistia em reconstruir o texto de um autor, como se
se tratasse de um quebra cabeça: apresentávamos um texto de forma organizada, e
o aluno devia reconstituí-lo “como estava no livro”. No presente capítulo somente
faremos referência à situação de reescrita de notícias jornalísticas.
O que é noticia?
Existem duas maneiras de conhecer o que existe à nossa volta: Por meio da
experiência vivida ou por meio da experiência referida. Em nossa sociedade atual, a
possibilidade de conhecer diretamente os acontecimentos reais, além da experiência
pessoal, é limitada; em compensação, a maior via de informação é a narração. Os
modos de difusão e de acesso aos acontecimentos relatados foram-se
institucionalizando e se sofisticando de tal forma que, hoje em dia, existem meios de
comunicação com seus gêneros, suportes materiais e canais próprios.
Um dos meios de comunicação é constituído pelo jornal, com seu texto: a notícia, que
faz parte do gênero mais amplo da narração histórica. A referência das notícias são
os acontecimentos reais de importância social e de atualidade; tais acontecimentos
são apresentados através de meios simbólicos, gráficos ou audiovisuais (atualmente,
pela imprensa escrita, rádio e televisão). O gênero informativo e o critério verídico dos
fatos referidos caracterizam a notícia jornalística. A notícia refere-se a fatos, que
devem ser de interesse público e verdadeiros; eles são apresentados à audiência
numa forma retórica claramente definida.
No jornalismo contemporâneo, a notícia não é um espelho da realidade; isso não quer
dizer que os fatos preexistem à elaboração da notícia, mas eles só se constituem em
notícia graças à sua publicação como fenômeno jornalístico. Assim, a notícia refere-
se aos acontecimentos de ordem social da realidade cotidiana que circulam através
das instituições de informação (rádio, televisão, imprensa), construídos no mundo
jornalístico.
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2. Por que notícias jornalísticas?
A notícia seleciona e constrói os fatos “noticiáveis”, elaborando ao mesmo tempo seu
próprio discurso: o informativo jornalístico. Para selecionar os fatos e construir o
discurso precisa-se de uma instituição que regule ambos os fenômenos; essa
instituição é a imprensa. A institucionalização dá às noticias um tipo de texto
acessível aos membros do grupo social atingidos por essa instituição. Quando se
escolhe uma notícia para a atividade de composição escrita, sabemos que se trata de
um texto codificado por uma instituição, acessível e compartilhado por muitos
membros da sociedade.
Características da notícia
As notícias jornalísticas possuem regras de geração próprias, normas explícitas e
convencionais (ou, como diria Roland Barthes, elas possuem sua própria partitura).
As regras de geração manifestam-se no plano do texto, conhecido entre os
profissionais como a “pirâmide invertida”: a informação mais importante se encontra
entre a manchete e a introdução, a seguir há informação decrescente em importância
ou enfocada em alguns aspectos específicos, e finalmente o menos importante, que
deve preceder o fechamento da notícia. As normas da escrita jornalística dizem
respeito tanto ao vocabulário quanto à estrutura das frases: preferência por termos da
linguagem cotidiana: no caso de utilização de palavras técnicas, elas deverão ser
definidas no contexto do discurso; o significado e a denotação devem ser precisos.
Quanto à frase: preferência por frases curtas, não mais de trinta palavras, de
estrutura canônica com sujeito-verbo-objeto, frase ativa, afirmativa. No entanto, frases
passivas ou impessoais podem ser utilizadas nas formas impessoais do tipo: “de
acordo com o que o (nome do jornal) conseguiu apurar” evitando-se opinião pessoal.
A informação apresentada deve responder a questões referentes a “o que, quem,
quando, onde, porque e como”.
É preciso ressaltar dois últimos aspectos: a “retórica da facticidade” que se refere à
veracidade dos fatos: dados concretos, precisão quantitativa, entrevistas breves,
detalhes que dão a impressão de documentar a “realidade”. Por outro lado, os “fatos
devem falar por si mesmos”, isto é, devem ser objetivos e inquestionáveis, o que
reduz a opinião do jornalista a 5% da informação.
Essas regras tão explícitas facilitam a imitação do texto jornalístico porque permitem
seguir sua organização canônica com mais facilidade que em outros tipos de textos.
Essa deve ser uma das razões pelas quais o gênero jornalístico é evolutivamente
precoce. Em trabalhos anteriores mostramos como as crianças se apropriam
rapidamente das normas da escrita jornalística. Numa situação semelhante à descrita
aqui, provamos que escolares de 6 a 9 anos chegavam a escrever textos
convencionais “do jeito dos jornalistas”. Consideramos que essas produções escritas
são a expressão da “competência literária” das crianças: “competência” porque fazem
parte dos conhecimentos dos alunos, embora não possam ser avaliados em
situações de observação direta, e “literária” porque não derivam diretamente do uso
da linguagem como conversação, mas sim de outras experiências como a
interpretação produção, comparação e avaliação da linguagem dos jornais.
Dizemos que não derivam diretamente do uso da conversação, mas sim de uma
mudança de atitude do locutor com relação aos seus enunciados que comporta toda
uma série de operações e transformações.
Essa mudança afeta:
• Os temas de conversação cotidiana que se convertem em motivos da
narração informativa;
• As complexas e intrincadas construções gramaticais da conversação, que se
simplificam
• O léxico aproximado da fala cotidiana, que passa a ser denso e especializado;
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3. • Os elementos da construção gramatical, que adquirem composição e posição
determinadas;
• A seleção de tipo, tempo, modos e categorias verbais para indicar
temporalidade próxima dos eventos relatados;
• Os esquemas de construção sintática que são distribuídos em períodos
marcando plots (ou trama) de organização dos acontecimentos;
• Os níveis da língua, que passam a representar esse tipo particular de gênero
literário.
As notícias das crianças
É preciso ressaltar que as crianças assimilam com bastante facilidade as normas
da escrita jornalística. Vamos analisar os textos e apresentar alguns que foram
escritos por crianças de 8 anos a título de exemplo. Trata-se da notícia de um
acidente natural, a erupção do vulcão de Nevado Del Ruiz na Colômbia ocorrida
em 1985, que teve graves conseqüências sociais. Por meio delas podemos
avaliar a escrita jornalística de acordo com os seguintes critérios:
1. Adequação ao gênero e ao tema proposto.
Praticamente todas as crianças produzem notícias, isto é, se atêm ao gênero
jornalístico e escrevem sobre assuntos noticiáveis. Elas escrevem sobre
acontecimentos sociais atuais “do jeito” dos jornais. Não escrevem sobre idéias
nem sobre objetos ou situações (o que produziria textos expositivos ou
descritivos); selecionam determinados tipos de verbos, léxico e organização
sintagmática. Os temas são extraídos das informações de atualidade que
produzem impacto na população infantil. Esses temas são mais vistos na
televisão ou os mais comentados na escola ou na família. Vejamos, por exemplo,
o texto 1.
Neste texto podemos observar a linguagem, a organização e até mesmo o
formato de notícia. A linguagem manifesta-se na construção dos enunciados:
• Enfoque das conseqüências no título: “mais de um milhão de mortos”;
• Explicitação da causa: “por culpa do Nevado Del Ruiz”
• Enunciado com traços que destroem os paradigmas “normais” (ausência
de artigo definido): “árvores caídas salvaram muitas pessoas”, “cidade de
Armero totalmente destruída”, “grande recebimento de pacotes com
remédios”.
A organização jornalística manifesta-se no plano do texto:
• Linha 2; Titulo
• Linha 3 a 5: Lead
• Linha 6: fonte da informação
• Linhas 7 a 13: Introdução
• Linhas 14 a 24 zooms com informação detalhada
• Linhas 25 a 28: desenvolvimento explicativo das conseqüências e reações.
Entre o título e a introdução consta o mais importante da informação.
Finalmente com relação ao formato, a paginação de coluna é a própria da
escrita jornalística.
2. Aspectos sintáticos e de organização sintagmática conservados.
Os textos jornalísticos infantis caracterizam-se pela utilização de verbos em modo
indicativo, com alternância de formas afirmativas e negativas. Os tempos mais
freqüentes são o pretérito perfecto* o pretérito perfeito e o presente, e com menor
freqüência o imperfeito e o futuro simples. Entre os tempos, o pretérito perfeito e o
presente são os que indicam simultaneidade ou proximidade no tempo, ao mesmo
tempo que precisam do fato quanto ao locutor. O futuro geralmente está limitado
por um advérbio e/ou aparece no quadro de entrevistas incluídas na notícia. Outro
dado a ser destacado é o recurso à voz passiva. O uso da voz passiva é
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exemplo: “membros do comando Madri do ETA foram presos pela polícia”) e pela
ausência quase total de voz passiva em textos narrativos de ficção ou descritivo.
Com relação ao sujeito, nas notícias as crianças preferem o uso de sujeitos
nominais (em muitos casos com nomes próprios) e utilizam aposições (por exemplo:
“Felipe Gonzalez, o presidente da Espanha ou Margareth Thatcher, a dama de ferro)
É claro que se trata de aposições bastante prototípicas, porém é preciso destacar a
importância devido a sua ausência quase total em textos narrativos de ficção ou
descritivos.
Quanto à organização sintagmática, é preciso ressaltar que os textos infantis são
bastante regulares: frase com nomes em posição de sujeito com aposições,
complementos, elementos regidos pelo verbo principal e introduzidos por preposições
(“porque”, “quando”, etc) e advérbios com valor temporal de localização espacial ou
de precisão quantitativa.
A maioria dos textos apresenta regularidade no tipo de construção sintática:
construção com sujeito + verbo principal em tempo passado + complemento+
elementos regidos.
3. Aspectos da organização paradigmática conservados.
Entre os elementos conservados com maior freqüência pelas crianças destacam-se
os organizados sob a forma de enumerações ou listas de um ou dois termos (por
exemplo: lista de nomes de lugares e pessoas, ou listas de dois termos, como nome
de pessoas e dados correspondentes, datas e nomes, etc). A presença de listas não
é uma particularidade das notícias, pois elas são encontradas em textos narrativos de
ficção ou descritivos. O próprio das notícias é seu valor semântico: geralmente se
trata de listas com dados técnicos e precisos. Assim, por exemplo, a lista das
povoações atingidas pela erupção do Nevado Del Ruiz: “as povoações de Manizales,
Mariquita, Chinchina, Líbano, Manola e Armero foram atingidas”
4- A progressão da informação
Podemos dizer que a maioria das crianças se atém à apresentação da informação de
acordo com os parâmetros prototípicos das notícias que respondem às perguntas
quem, quando, onde, como e por quê. A nível lingüístico, isso se expressa: (a) a nível
gramatical, pela seleção de elementos associados com valor semântico de precisão
(quando, onde: por exemplo: “às 6h45min ao norte da França); pela seleção de
elementos da valência do verbo (sujeito, quem e complemento, o que) assim como de
elementos rígidos ( porque, por causa de, etc).
No caso das notícias, a informação distribui-se entre:
• O acontecimento (o que, quem)
• Sua precisão (onde, como)
• Suas conseqüências (por que)
E (B) a nível léxico, pela seleção de termos técnicos e relações entre os termos. Cada
nova ocorrência léxica acrescenta informação que ajuda o leitor a construir a
representação sobre determinado acontecimento. A seleção dos termos é importante
no caso de algumas notícias referente a acontecimentos de natureza técnica, nas
quais é preciso estabelecer o que, onde e por que ocorreu o fato e quais as
conseqüências que ele pode ter para a população. Assim, por exemplo, o acidente de
Chernobyl, as formas de contágio da AIDS, etc. As crianças também são sensíveis à
preocupação dos meios de informação em explicar os acontecimentos e os imitam
nisso.
5- O plano da notícia
Lembramos que uma das características da notícia é a concentração da informação
entre o título e o lead. Nos textos infantis essa organização é preservada; a
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5. informação sobre o que, quem, quando, onde e por que aparece imediatamente,
entre outros motivos porque os textos infantis são curtos. É particularmente
interessante ressaltar a repetição da informação, às vezes literal ou com pequenas
variações, entre o título e o lead.
6- A perspectiva do redator.
Do ponto de vista de quem escreve, podemos dizer que, conforme as normas de
estilos mais convencionais, os textos informativos devem ser anônimos: quem
escreve ou entrevista é “o jornalista”, e não uma pessoa com identidade ou
subjetividade. O jornalista tem de apagar sua referência real, porque a voz anônima
do narrador é uma das características da notícia. Deve assumir uma voz tranqüila,
culta, distinta, não uma voz, mas quase um ronronar, um zumbido, como diz Tom
Wolfe.
As referências situacionais, pronominais (que representam a pessoa sobre a qual se
escreve), certas propriedades da categoria do verbo (modo, modalidades, aspecto e
certos tipos de verbos, os verbos mentais, por exemplo) exprimem a nível lingüístico
a perspectiva do redator e os casos de mudança de perspectiva. Assim, como
comenta Bruner o recurso ao modo subjuntivo (modo do duvidoso, desejado,
hipotético ou futuro), para expressar subjetividade, é mais próprio da narração literária
que da informativa.
Nos textos infantis encontramos total conformidade com aas mais convencionais-
tradicionais – de escrita jornalística: as crianças assumem a voz anônima do jornalista
e aceitam a paródia de imitar o estilo culto e obscuro do fornecedor de informação
pública. Chegam até a assinar como “jornalistas”. Cabe ressaltar em muitos textos a
identificação das crianças com a posição do jornalista que faz uma entrevista, como,
por exemplo, na entrevista aos sobreviventes:
“Entrevistamos uma menina que se salvou da lama. Uma senhora tentou sair da lama
com o filho nas costas, agora a entrevistamos no hospital”.
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