SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 2
Baixar para ler offline
a menina
pro S a




          luiz ruffato
                         O homem apeou na Estação Clínicas do metrô e, sonambúlico, as pernas
                         arrastaram-no ao longo do subterrâneo que conduz ao hospital. A sexta-
                         feira desmoronava aflita na tarde quente daquele começo de janeiro,
                         gordas nuvens inertes no céu, centenas de vestimentas urgentes se
                         acotovelando, anônimos e determinados, Seu Guilherme, Seu Guilherme,
                         ligaram pro senhor, a vizinha esgoelava da janela. Na recepção, o barulho
                         dos ventiladores embaralhava o odor ácido de suor, o enjoativo cheiro
                         doce de balas e biscoitos e chocolates. As crianças, lambuzadas, desfilavam
                         envergonhados risos, correrias impertinentes. As mulheres aliviavam-se
                         com improvisados abanadores. Os homens, entediados, acabrunhavam-se.
                         Guilherme, enfiado numa roupa domingueira, driblou zonzo o povaréu,
                         encaminhando-se ao setor de informações.

                         A vizinha se prontificara a ceder o número do telefone, “Pralgum recado,
                         qualquer coisa”, e agora explanava, debruçada à janela, Seu Guilherme,
                         é pro senhor ir lá pegar as coisas da, e calou-se, talvez comovida com a
                         menina, que, no colo, agarrava-se ferozmente ao pescoço do pai, os olhos
                         encovados, assustados. Há dois dias homiziara-se, junto com a filha, no
                         compadre, três ruas abaixo, sem coragem de tornar à casa, as paredes
                         externas por rebocar, a porta da cozinha provisória, o chão de cimento-
                         grosso, quanto a mulher se empenhara na compra daquele terreno!, “Aqui
                         vai ser a sala, ali o quarto das crianças, lá o quintal”, adivinhava cômodos
                         onde outros vislumbravam apenas touceiras de mato enfezado, quanto
                         economizara para adquirir o material de construção, quanta alegria ao
                         acompanhar, tijolo a tijolo, o lar eclodindo, “É um sonho, Gui, um sonho!”,
                         murmurava, orgulhosa.

                         Autômata, a atendente recitou, “Quarto andar. Fim do corredor, elevador
                         à esquerda. Próximo!”. Mais de um mês, a agonia: deixava o Jardim Reni
                         escuro ainda para pegar no batente, ajudante de pedreiro numa obra na
                         Vila Formosa que um irmão da Igreja Quadrangular arrumara, de lá cruzava
                         a cidade até o Hospital das Clínicas para colher notícias, “Melhorou?”,
                         indagava ansioso, contrariando a desesperança do médico, que avisara,
                         “Seu Guilherme, o quadro é muito grave”, agarrando-se à misericórdia
                         divina, a um senso de justiça, afinal, a mulher sempre boa para com todos,
                         preocupada em fazer o bem, voltada para a família, as orações, o culto
                         dominical, a casa...

                         Então, devagar, caminhou para a Rua Cornélio de Arzão, o sol sapecando
                         a calva, aguardou resignado o ônibus, desceu na Estação Itaim Paulista,
                         tomou o trem até o Tatuapé, baldeou para o metrô, apeou na Sé, trocou de




          |118
linha, saiu na Estação Clínicas, mais de duas horas de condução apertada.
No quarto andar, a moça, inteirada do problema, “Ah, sim”, gritou para
o colega, consultando uma lista, “Armário vinte e sete!”. A luz fria das
lâmpadas fluorescentes banhava o chão limpíssimo; no relógio de parede
o tempo, impaciente, velava. O rapaz depositou a bolsa de napa, judiada,
sobre o balcão, a moça falou, “Tem que conferir, senhor”, e ele, submisso,
abriu o zíper, passou os olhos, “Está certo”. Ela, no entanto, redarguiu, “Não,
senhor, tem que verificar item por item... É praxe”. O rapaz, condoído com
o embaraço do homem, esvaziou a bolsa, contou: “um par de sapato-de-
salto-alto preto; um vestido de alça azul-marinho; três calcinhas; dois sutiãs;
um pijama; uma camisola; uma camisa de malha; uma bata; uma calça jeans;
escova, pasta de dente, chinelo, e, ahn!?, uma... prótese dentária...”

Esquivo, Guilherme balançou a cabeça, a mulher não gostaria nada nada
de saber-se exposta assim, a ponte-móvel talvez sua única vaidade, nunca
falou daquele assunto com as amigas, nem com os parentes próximos,
irmãos, irmãs, pai, mãe, ninguém tinha ciência, mesmo com ele, seu marido,
demorou a confessar, a contragosto, uma vez, no banheiro, quando havia
tirado para assear, esqueceu de passar o trinco na porta, ele entrou, sem
querer flagrando a peça na palma da mão, ela, uma vergonha danada, abriu
o bué, “Eu não tinha dinheiro pra ir ao dentista”, soluçava, sofrida, “Perdi uns
dentes”, ele tentou acalmá-la, “Meu bem, eu também tenho falhas, isso aqui,
ó, é um pivô”, sem adianto. E ver revelado, desta maneira, a olhos alheios,
desrespeitosos, aquele segredo que acoitara por toda a sua curta vida...
“É, é isso”, reafirmou, deslizando o zíper e tentando se livrar logo daquele
incômodo. Mas a moça ainda disse, “Senhor, tem que dar baixa. Assine aqui,
nesta linha”, e ele, trêmulo, garranchou a sua melhor letra.

Quando cruzava outra vez o nó daquele povo todo que lotava o salão de
recepção, sentiu as pernas escurecerem, a vista fraquejar e, não fosse uma
senhora gorda, teria estatelado no chão imundo. Logo, entretanto, alguém
franqueou um lugar entre as cadeiras de plástico vermelho, surgiu um
copo d’água, o segurança, autoritário, aproximou-se, espalhando o bolo
que se formara, “Desafasta, gente, pro homem respirar”. Ainda aturdido,
Guilherme minimizou, encabulado, “Foi só uma bobagem, desculpem... está
tudo bem agora... desculpem”, e buscou forçar o corpo a erguer-se, mas
este, estúpido, desobedeceu, arriando de novo... Então, vencido, levou as
mãos ao rosto e, agitado, desabou, “Ai, meu deus, o que vai ser da menina,
o que vai ser? Eu já estou acabado... não valho nada mesmo... nada me
afeta mais... mas, e a menina?, coitadinha... o que vai ser dela, agora?, tão
pequenininha, tão inocentezinha...”




                                                                                   119|

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados (12)

Assassina completo
Assassina completoAssassina completo
Assassina completo
 
Esau e jaco
Esau e jacoEsau e jaco
Esau e jaco
 
Domingo em Porto Alegre de Sergio Faraco, Apresentação Prof. Ilenir
Domingo em Porto Alegre de Sergio Faraco, Apresentação Prof. Ilenir Domingo em Porto Alegre de Sergio Faraco, Apresentação Prof. Ilenir
Domingo em Porto Alegre de Sergio Faraco, Apresentação Prof. Ilenir
 
Resgate, o trecho
Resgate, o trechoResgate, o trecho
Resgate, o trecho
 
A cruz e o punhal david wilkerson
A cruz e o punhal   david wilkersonA cruz e o punhal   david wilkerson
A cruz e o punhal david wilkerson
 
Cronicas fernando verssimo
Cronicas fernando verssimoCronicas fernando verssimo
Cronicas fernando verssimo
 
A Lenda do Conde Drácula pdf
A Lenda do Conde Drácula pdfA Lenda do Conde Drácula pdf
A Lenda do Conde Drácula pdf
 
Trancados na Escola com Ladrões
Trancados na Escola com LadrõesTrancados na Escola com Ladrões
Trancados na Escola com Ladrões
 
Suor
SuorSuor
Suor
 
As mães de todos nós
As mães de todos nósAs mães de todos nós
As mães de todos nós
 
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestraA borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
 
Em algum lugar de mim
Em algum lugar de mimEm algum lugar de mim
Em algum lugar de mim
 

Semelhante a A menina_Luiz Ruffato

Semelhante a A menina_Luiz Ruffato (13)

O diplomatico
O diplomaticoO diplomatico
O diplomatico
 
Aula 1 Técnica CRI.pdf
Aula 1   Técnica CRI.pdfAula 1   Técnica CRI.pdf
Aula 1 Técnica CRI.pdf
 
O Primeiro Telefonema do Céu _ Trecho
O Primeiro Telefonema do Céu _ TrechoO Primeiro Telefonema do Céu _ Trecho
O Primeiro Telefonema do Céu _ Trecho
 
Kafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaKafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeia
 
A consoada
A consoadaA consoada
A consoada
 
Monteiro lobato -_Negrinha
Monteiro lobato -_NegrinhaMonteiro lobato -_Negrinha
Monteiro lobato -_Negrinha
 
Poemas de Manuel Felipe de Sousa
Poemas de Manuel Felipe de SousaPoemas de Manuel Felipe de Sousa
Poemas de Manuel Felipe de Sousa
 
Angélica a marquesa dos anjos 1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
Angélica a marquesa dos anjos   1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...Angélica a marquesa dos anjos   1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
Angélica a marquesa dos anjos 1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
 
Alínea ii o reencontro
Alínea ii o reencontroAlínea ii o reencontro
Alínea ii o reencontro
 
Só danço se eu for a mestra, exigiu a borboleta
Só danço se eu for a mestra, exigiu a borboletaSó danço se eu for a mestra, exigiu a borboleta
Só danço se eu for a mestra, exigiu a borboleta
 
Capítulo 3
Capítulo 3Capítulo 3
Capítulo 3
 
José de Alencar - Diva
José de Alencar - DivaJosé de Alencar - Diva
José de Alencar - Diva
 
Zeli pausa
Zeli pausaZeli pausa
Zeli pausa
 

Mais de Laeticia Jensen Eble

Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...
Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...
Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...Laeticia Jensen Eble
 
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...Laeticia Jensen Eble
 
IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea
IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira ContemporâneaIV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea
IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira ContemporâneaLaeticia Jensen Eble
 
Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014Laeticia Jensen Eble
 
Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014Laeticia Jensen Eble
 
Entrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der Spiegel
Entrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der SpiegelEntrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der Spiegel
Entrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der SpiegelLaeticia Jensen Eble
 
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.Laeticia Jensen Eble
 
Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014Laeticia Jensen Eble
 
Chamada para publicação na revista Krypton
Chamada para publicação na revista KryptonChamada para publicação na revista Krypton
Chamada para publicação na revista KryptonLaeticia Jensen Eble
 
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporâneaIII Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporâneaLaeticia Jensen Eble
 
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.Laeticia Jensen Eble
 
Luiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga Lopes
Luiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga LopesLuiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga Lopes
Luiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga LopesLaeticia Jensen Eble
 
Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad
Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad
Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad Laeticia Jensen Eble
 
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporâneaIII Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporâneaLaeticia Jensen Eble
 
10 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 2013
10 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 201310 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 2013
10 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 2013Laeticia Jensen Eble
 

Mais de Laeticia Jensen Eble (20)

Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...
Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...
Primer Encuentro Internacional de Editores LATINOAMERICANA Asociación de Revi...
 
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea - Buenos A...
 
IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea
IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira ContemporâneaIV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea
IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea
 
Os desterrados de Luiz Ruffato
Os desterrados de Luiz RuffatoOs desterrados de Luiz Ruffato
Os desterrados de Luiz Ruffato
 
Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no jornal Nordbayerischer Kurier - Junho de 2014
 
Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato no Corriere del Ticino, 19 de maio de 2014
 
Entrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der Spiegel
Entrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der SpiegelEntrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der Spiegel
Entrevista com Luiz Ruffato na revista alemã Der Spiegel
 
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Hoje em Dia de 27 de abril de 2014.
 
Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato na Revista do Brasil, abril de 2014
 
Chamada para publicação na revista Krypton
Chamada para publicação na revista KryptonChamada para publicação na revista Krypton
Chamada para publicação na revista Krypton
 
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporâneaIII Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
 
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.
Matéria sobre Luiz Ruffato no jornal Il Mattino, de Nápoles.
 
Luiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga Lopes
Luiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga LopesLuiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga Lopes
Luiz Ruffato em entrevista a Luiz Gonzaga Lopes
 
Novo time em campo
Novo time em campoNovo time em campo
Novo time em campo
 
Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad
Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad
Convocatoria Congreso Poéticas de la Oralidad
 
Luiz Ruffato - Lo Straniero
Luiz Ruffato - Lo StranieroLuiz Ruffato - Lo Straniero
Luiz Ruffato - Lo Straniero
 
O efeito ruffato nas letras
O efeito ruffato nas letrasO efeito ruffato nas letras
O efeito ruffato nas letras
 
Em 2007 lancei um livro
Em 2007 lancei um livroEm 2007 lancei um livro
Em 2007 lancei um livro
 
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporâneaIII Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
III Colóquio internacional sobre literatura brasileira contemporânea
 
10 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 2013
10 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 201310 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 2013
10 poemas de Luiz Ruffato_Papeles literarios 1 dez 2013
 

A menina_Luiz Ruffato

  • 1. a menina pro S a luiz ruffato O homem apeou na Estação Clínicas do metrô e, sonambúlico, as pernas arrastaram-no ao longo do subterrâneo que conduz ao hospital. A sexta- feira desmoronava aflita na tarde quente daquele começo de janeiro, gordas nuvens inertes no céu, centenas de vestimentas urgentes se acotovelando, anônimos e determinados, Seu Guilherme, Seu Guilherme, ligaram pro senhor, a vizinha esgoelava da janela. Na recepção, o barulho dos ventiladores embaralhava o odor ácido de suor, o enjoativo cheiro doce de balas e biscoitos e chocolates. As crianças, lambuzadas, desfilavam envergonhados risos, correrias impertinentes. As mulheres aliviavam-se com improvisados abanadores. Os homens, entediados, acabrunhavam-se. Guilherme, enfiado numa roupa domingueira, driblou zonzo o povaréu, encaminhando-se ao setor de informações. A vizinha se prontificara a ceder o número do telefone, “Pralgum recado, qualquer coisa”, e agora explanava, debruçada à janela, Seu Guilherme, é pro senhor ir lá pegar as coisas da, e calou-se, talvez comovida com a menina, que, no colo, agarrava-se ferozmente ao pescoço do pai, os olhos encovados, assustados. Há dois dias homiziara-se, junto com a filha, no compadre, três ruas abaixo, sem coragem de tornar à casa, as paredes externas por rebocar, a porta da cozinha provisória, o chão de cimento- grosso, quanto a mulher se empenhara na compra daquele terreno!, “Aqui vai ser a sala, ali o quarto das crianças, lá o quintal”, adivinhava cômodos onde outros vislumbravam apenas touceiras de mato enfezado, quanto economizara para adquirir o material de construção, quanta alegria ao acompanhar, tijolo a tijolo, o lar eclodindo, “É um sonho, Gui, um sonho!”, murmurava, orgulhosa. Autômata, a atendente recitou, “Quarto andar. Fim do corredor, elevador à esquerda. Próximo!”. Mais de um mês, a agonia: deixava o Jardim Reni escuro ainda para pegar no batente, ajudante de pedreiro numa obra na Vila Formosa que um irmão da Igreja Quadrangular arrumara, de lá cruzava a cidade até o Hospital das Clínicas para colher notícias, “Melhorou?”, indagava ansioso, contrariando a desesperança do médico, que avisara, “Seu Guilherme, o quadro é muito grave”, agarrando-se à misericórdia divina, a um senso de justiça, afinal, a mulher sempre boa para com todos, preocupada em fazer o bem, voltada para a família, as orações, o culto dominical, a casa... Então, devagar, caminhou para a Rua Cornélio de Arzão, o sol sapecando a calva, aguardou resignado o ônibus, desceu na Estação Itaim Paulista, tomou o trem até o Tatuapé, baldeou para o metrô, apeou na Sé, trocou de |118
  • 2. linha, saiu na Estação Clínicas, mais de duas horas de condução apertada. No quarto andar, a moça, inteirada do problema, “Ah, sim”, gritou para o colega, consultando uma lista, “Armário vinte e sete!”. A luz fria das lâmpadas fluorescentes banhava o chão limpíssimo; no relógio de parede o tempo, impaciente, velava. O rapaz depositou a bolsa de napa, judiada, sobre o balcão, a moça falou, “Tem que conferir, senhor”, e ele, submisso, abriu o zíper, passou os olhos, “Está certo”. Ela, no entanto, redarguiu, “Não, senhor, tem que verificar item por item... É praxe”. O rapaz, condoído com o embaraço do homem, esvaziou a bolsa, contou: “um par de sapato-de- salto-alto preto; um vestido de alça azul-marinho; três calcinhas; dois sutiãs; um pijama; uma camisola; uma camisa de malha; uma bata; uma calça jeans; escova, pasta de dente, chinelo, e, ahn!?, uma... prótese dentária...” Esquivo, Guilherme balançou a cabeça, a mulher não gostaria nada nada de saber-se exposta assim, a ponte-móvel talvez sua única vaidade, nunca falou daquele assunto com as amigas, nem com os parentes próximos, irmãos, irmãs, pai, mãe, ninguém tinha ciência, mesmo com ele, seu marido, demorou a confessar, a contragosto, uma vez, no banheiro, quando havia tirado para assear, esqueceu de passar o trinco na porta, ele entrou, sem querer flagrando a peça na palma da mão, ela, uma vergonha danada, abriu o bué, “Eu não tinha dinheiro pra ir ao dentista”, soluçava, sofrida, “Perdi uns dentes”, ele tentou acalmá-la, “Meu bem, eu também tenho falhas, isso aqui, ó, é um pivô”, sem adianto. E ver revelado, desta maneira, a olhos alheios, desrespeitosos, aquele segredo que acoitara por toda a sua curta vida... “É, é isso”, reafirmou, deslizando o zíper e tentando se livrar logo daquele incômodo. Mas a moça ainda disse, “Senhor, tem que dar baixa. Assine aqui, nesta linha”, e ele, trêmulo, garranchou a sua melhor letra. Quando cruzava outra vez o nó daquele povo todo que lotava o salão de recepção, sentiu as pernas escurecerem, a vista fraquejar e, não fosse uma senhora gorda, teria estatelado no chão imundo. Logo, entretanto, alguém franqueou um lugar entre as cadeiras de plástico vermelho, surgiu um copo d’água, o segurança, autoritário, aproximou-se, espalhando o bolo que se formara, “Desafasta, gente, pro homem respirar”. Ainda aturdido, Guilherme minimizou, encabulado, “Foi só uma bobagem, desculpem... está tudo bem agora... desculpem”, e buscou forçar o corpo a erguer-se, mas este, estúpido, desobedeceu, arriando de novo... Então, vencido, levou as mãos ao rosto e, agitado, desabou, “Ai, meu deus, o que vai ser da menina, o que vai ser? Eu já estou acabado... não valho nada mesmo... nada me afeta mais... mas, e a menina?, coitadinha... o que vai ser dela, agora?, tão pequenininha, tão inocentezinha...” 119|