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Gigi. De volta ao passado 1
Jocelina Miranda Bonatto
Jocelina Santana Bonatto2
Apoio
Prefeitura Municipal de Matinhos
Impressão e acabamento
Gráfica Nononono
Tiragem
0.000 exemplares
Digitação
Rosa Ramona Ciscato Chuchene
Revisão
Vivian Aparecida Ciscato Chuchene Bonatto
Kàrin Odette Brückheimer
Capa, projeto gráfico, arte e diagramação
Marcos Roberto Pinto de Aguiar
Gigi. De volta ao passado 3
Apresentação
Escrevia no quadro-negro de uma pequena escola pública
de Matinhos, em letras grandes e dizia a seus novos alunos:
- JOCELINA, este é meu nome.
Imediatamente um dos alunos erguia as mãos e argumentava:
- Minha mãe me disse que o nome da minha professora se-
ria Dona Gigi.
- Então pra vocês eu serei a Dona Gigi.
E esse fato se repetia a cada ano. Na nossa pequena cidade
dificilmente alguém que não fosse um parente ou um amigo
muito próximo saberia dizer qual era o seu verdadeiro nome.
Pra que mais que Gigi? Simples o nome, e mais, ainda a porta-
dora. Não tinha porque ser diferente. Nasceu num lugar onde
não havia nada que lembrasse luxo, num caloroso mês de janei-
ro. Filha de lavradores, primogênita numa lista de doze filhos
que tiveram Etelvina e Alexandre. Por curiosidade e esperteza
aprendeu o bê-a-bá em casa, antes mesmo que fosse levada à es-
cola isolada, como eram chamadas as escolas que se subordina-
vam às ordens de Paranaguá.
Ainda criança ficou muito doente, cujo mal não havia
quem tratasse em Matinhos. Foi levada para Curitiba, por turis-
Jocelina Santana Bonatto4
tas que frequentavam o balneário e por lá ficou durante parte de
sua mocidade. Em Curitiba foi mais Gata Borralheira que
Cinderela, mas soube tirar lições que trouxe consigo pelo resto
da vida e pôde passar para todos aqueles que viveram ao seu
redor. Cada pedaço de papel escrito tinha para ela a importân-
cia de um livro. Cada filme que assistia tinha o poder de horas
de terapia. Cada vestido, cada sapato, cada corte de cabelo, cada
comida, eram verdadeiras aulas de boas maneiras. Cada discus-
são que presenciava tinha o valçor de uma aula.
Quando retornou estava curada e se sentia preparada para a
vida. Sabia exatamente o que queria para si e para seus entes que-
ridos. Mudou o rumo de vida de muita gente sem fazer escarcéu.
Teve importância fundamental na vida de seus pais e de seus ir-
mãos. Como professora atuou bravamente nos rumos da educa-
ção da nossa cidade. Como funcionária pública municipal, até hoje
é lembrada como exemplo de capacidade e dedicação.
Casou-se com Alberto já falecido, aí nasceram os fi-
lhos Alberto Jr., Silmara e Hamilton que casaram com Rachel,
Raul e Vivian, que tiveram Caio, Igor, Juan, Pedro, Saulo, Tamires
e Raísa. E, como a família ainda não estava completa, vieram tam-
bém como filhos João e Simone. Nós. Nós que buscamos a cada
minuto de nossas vidas fazer jus ao amor recebido, reconhecer o
Gigi. De volta ao passado 5
sacrifício que foi feito para que um dia nos tornássemos seres
dignos da família que para nós foi construída, cidadãos honra-
dos num país onde a moral e a ética estão na berlinda, pais cons-
cientes da missão que Deus lhes deu.
Gigi. Só Gigi. Pra que mais simples que isso? Precisa
ser mais do que simples numa vida que estamos somente de pas-
sagem? Precisa esquecer do Tabuleiro, onde tudo começou, ape-
sar de ter conhecido o Brasil e alguma outra parte do mundo?
Precisa negar os pés descalços, a boneca de celulóide, o aimpim
com café e batata-doce, a esteira em que dormia e o travesseiro
de marcela apesar de ter tido a chance de andar de saltos altos,
de ter vivido na era das bonecas que falam e andam, de ter sa-
boreado maravilhosos manjares e dormido em colchões e traves-
seiro modernos?
Esta era a Gigi. Nossa mãe. Simplesmente uma mu-
lher, determinada, exigente, inteligente, forte, reconhecida e com
um dom em poucos encontrado, o de perdoar e muito perdoou.
As lembranças anotadas dizem mais do que podemos
e a ela oferecemos aquilo que mais lhe alegrava os olhos: nosso
amor e uma flor, simplkesmente amor e flor.
Seus filhos.
Jocelina Santana Bonatto6
Gigi. De volta ao passado 7
Índice
Lembranças.........................................................................................9
Minha família ...................................................................................11
Meus filhos .......................................................................................15
Aos meus adoráveis netos ..............................................................16
A casa da vó Ota ..............................................................................17
Alimentação......................................................................................23
A sala e quarto da casa de vó Ota .................................................25
A descoberta da torneira ................................................................28
Santana ou Miranda? ......................................................................29
A música ...........................................................................................32
Brinquedos, histórias e carinho .....................................................35
Nascimento de criança ....................................................................37
Frutas e outras plantações ..............................................................38
Ninho de galinha .............................................................................39
O peixe ..............................................................................................40
A maleita e outras doenças ............................................................41
O rio límpido ......................................................................................43
Evolução? ..........................................................................................44
A pescaria .........................................................................................45
A religiosidade.................................................................................47
Jocelina Santana Bonatto8
Matinho virou Matinhos ....................................................................54
Matinhos e a 2ª Guerra Mundial ...................................................56
A escola .............................................................................................59
O transporte ......................................................................................61
Maré alta ...........................................................................................61
O rádio...............................................................................................62
Manguesal e goiabeiras ..................................................................63
As festas ............................................................................................64
O sino da igreja ................................................................................66
Os sambaquis ...................................................................................66
Aprontamos algumas!.....................................................................67
“Berço de Ouro” ..............................................................................69
O Cambará ........................................................................................71
A vinda dos catarinenses................................................................74
O progresso.......................................................................................76
O cinema e o comércio ....................................................................78
Onde está aquela Matinhos ............................................................80
A vida continua................................................................................81
Gigi. De volta ao passado 9
Lembranças
A maioria de nós em determinada época de sua vida, sente
a necessidade de visitar, conhecer ou recorrer às nossas origens;
o lugar onde nascemos e vivemos, muitas vezes, grande parte
de nossa existência. Os fatos marcantes de nossa infância que sur-
gem atropelando nosso inconsciente tomam conta de nossa ca-
beça, às vezes, com tamanha intensidade que sentimos odores,
velhos conhecidos nossos: cheiro de terra, grama, do mar, do or-
valho nas folhas das flores e das árvores; essas mesmas árvores
que nos estendiam os braços para um balanço, uma sacudidela,
uma escalada perigosa longe do olhar vigilante dos nossos pais!
(Cuidado para não cair menina!) Este cheiro também nos
relembra o sabor das frutas (que nunca mais foi o mesmo, pois
não se fazem mais goiabas, pitangas, carambolas, jabuticabas,
como antigamente). O banho no riacho, na cachoeira, na água
cristalina. Saudades, nostalgia, suspiro profundo.
Passado nunca mais. Mas quem não tem passado para re-
cordar, o que mais tem? Só a realidade, só o presente, o aqui e
agora! Portanto, as escapadas que damos para o nosso passado,
as olhadelas rápidas para trás em nossas vidas, devem ser mo-
Jocelina Santana Bonatto10
mentos vividos intensamente, pois queiramos ou não, fizeram e
fazem parte da nossa história. O passado é como a estrutura de
um grande edifício. E quantos prédios desmoronam todos os dias
pela vida afora... Falta de uma boa fundação que lhe dê susten-
tação contra os ventos, tempestades e terremotos que certamen-
te virá a enfrentar. Nosso passado. Um tempo já gasto e muitas
vezes esquecido, onde “curtimos” grande parte de nossa vida
abundantemente, incansavelmente, para desaguar nesse presen-
te: no hoje! Neste fim de século, neste último dia em que nova-
mente nascemos para a vida.
Lembranças... muitas lembranças me levaram a escrever,
modestamente o que minha memória ainda retém, incentivada
insistentemente por meus filhos: Alberto Jr, Silmara e Hamilton,
pois Andréa Simone e João foram criaturas que Deus confiou-
me nesta vida e eu os considero também meus filhos e que farão
parte desta narrativa.
Gigi. De volta ao passado 11
Alberto, meu esposo, veio de outra região do Estado, pre-
cisamente da região de Campo Largo, integrando-se a Matinhos
como se aqui tivesse nascido.
Seus pais viveram na Colônia Antonio Rebouças no muni-
cípio já citado, e ali ele nasceu.
Minha família
Há uma certa Matinhos
Na alma de alguém
Na tua também?
Para Alexandre Leocádio Santana.
Em dia de festa de Reis
Teu coração, teu pé-de-leque,
Tua fala, tua ira, tua graça
Têm a alma de Matinhos que
Matinhos pode ter.
Em tua saúde resiste a garra
De quem salvou gente em dia de tempo frio
E que não abre mão de mergulhar fundo
Na vida.
Jocelina Santana Bonatto12
Queria deixar-te abraços
Do tamanho dos coqueiros que ajudaste
A plantar na beira da praia
Quando eu nem existia.
E se possível fosse,
Queria dar-te mil carinhos
Com as cores da canoa que tu tinhas
Quando eu era menina!
Marlize Bassfeld, tua neta.
Matinhos, 17 de março de 1992.
Estes versos foram escritos pela neta, jornalista , Marlize,
no dia de seu último aniversário. 85 anos. Faleceu em 15 de ja-
neiro de 1993.
À minha mãe Etelvina O. Ramos Santana.
“Mãe é vida trocada.
É graça de Deus. É sonho real.”
Gigi. De volta ao passado 13
Para a minha mãe querida os versos de Carlos Drumond
de Andrade:
Por que Deus permite que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
É tempo sem hora,
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E a chuva desaba,
Veludo escondido
Na pele enrugada
Água pura, ar puro,
Puro pensamento.
Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio.
Mãe na sua graça,
É eternidade.
Porque Deus se lembra
Mistério profundo
De tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo
Jocelina Santana Bonatto14
Baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele velho embora,
Será pequenino feito grão de milho.
Gigi. De volta ao passado 15
Meus filhos
Conhecidos nossos: cheiro de terra, grama, do mar, do or-
valho, no Bertinho, na Sil, Hamilton, Simone e João; Noras: Rachel
e Vivian e genro Raul.
Senhor, fazei dos nossos filhos tão fortes que saibam quan-
do são fracos e bastante bravos para enfrentarem a si mesmos
quando tiverem medo; altivos e inflexíveis quando forem derro-
tados numa luta honesta e humildes e mansos quando vitorio-
sos. Criaturas cujos desejos não tomem o lugar dos atos; filhos
que conheçam a Deus, colocando-O acima de tudo e saibam co-
nhecer-se a si mesmos, pedra fundamental de toda sabedoria.
Senhor, conduza-os não por caminhos fáceis e cômodos, mas
sob a garra e o incentivo onde deparem com dificuldades e lutas.
Senhor, ensina-os a manterem-se firmes durante a tempes-
tade, ensina-os a terem compaixão dos que falham.
Faze com que meus filhos tenham sempre o coração limpo
e os ideais elevados. Saibam dominar a si mesmos antes de que-
rer dominar os outros; que antevejam o futuro, mas sem JAMAIS
esquecerem o passado.
Jocelina Santana Bonatto16
E, depois que eles forem senhores de tudo isso, peço-lhe
Senhor Deus, que lhes dê bastante senso de humor para que pos-
sam ser sempre sérios, sem contudo encararem a si mesmos com
excessiva seriedade.
Senhor, dá-lhes a humildade, a grandeza, o espírito com-
preensivo da verdadeira sabedoria e bondade – verdadeiras forças.
Só assim então, Senhor, ousarei murmurar:
Não vivi em vão!
Aos meus adoráveis netos
Caio Philippe, Igor, Saulo, Juan Pedro e as gêmeas Thamires
e Raísa apenas esta frase agradecendo a Deus por serem meus
netos.
Amem e respeitem seus pais. Presenteiem com alegria e con-
sideração todos os dias da vida, como têm feito os meus filhos...
os pais de vocês.
Vó Gigi.
Gigi. De volta ao passado 17
A casa da vó Ota
O lar onde vim ao mundo era muito modesto. Era o de mi-
nha avó materna, Otília Luzia da Silva Ramos. Foi no início de
uma tarde de 14 de janeiro de 1935.
Tentarei, dando como referência a infância, a juventude, en-
fim, retalhos de minhas lembranças, que igualmente referem-se
à vivência que foi idêntica a de todos que viveram aqui naquela
época em que nasci. Procurarei focalizar, principalmente os há-
bitos caboclos da minha terra.
A casa de minha avó Ota localizava-se no Tabuleiro, exata-
mente onde hoje está construída a estação de tratamento sanitá-
rio da SANEPAR. Essa casa povoa minhas lembranças com tan-
ta clareza, que todos os detalhes serão aqui rememorados com
toda fidelidade.
Lembro-me que era coberta de palha, tecidas por meus tios.
Duas portas e duas janelas na frente. A cozinha era cercada de
ripas de pindova e outras peças com tábuas cerradas em casa.
Uma sala grande, um pequeno corredor, um quarto de cada lado.
Na sala existiam bancos em toda a extensão, uma mesinha com
a máquina de costura (a mão) da vovó, um espelho na parede
Jocelina Santana Bonatto18
perto da janela onde meus tios Benjamim, Juvêncio e Maneco se
barbeavam. O tio Martinho já era casado.
A tia Maria era a companheira inseparável da vovó e a au-
xiliava em todos os serviços. Não deixava a vovó fazer nenhum
trabalho pesado. Ela somente costurava, lidava com as suas gali-
nhas, enfim cuidava dos serviços mais fáceis. No quarto do casal
(quando vovô Urbano era vivo, faleceu dois anos antes de eu ter
nascido), que agora, então, pertencia à vovó e à tia Maria existia
uma cama de casal pretinha de fumaça, uma esteira sobre ela, fei-
ta de “Piri”, um castiçal de pé, que era chamado de mancebo, onde
era colocado o lampião de querosene feito de lata, comprado em
Guaratuba. Num canto um baú onde eram guardadas a roupas
de festa, e, numa parede, de canto a canto uma corda estendida
onde eram colocadas as roupas de uso diário. Na parede, junto à
porta de entrada (lembro-me tão bem!) afixados dois quadros
– Um do Senhor Bom Jesus de Iguape e outro de Nossa Senhora
do Rocio. Foi ali, diante daqueles quadros enegrecidos pela fu-
maça e pelo tempo que minha avó todos os dias nos levava, eu e
meus primos, para aprender a rezar. Foi diante desses quadros
que aprendi a fazer o Sinal da Cruz, rezar o Padre Nosso, a Ave
Maria e pedir a bênção de Deus à nossa família.
Gigi. De volta ao passado 19
Era hábito na minha infância que se pedisse benção aos pais,
avós, tios, tias, padrinhos, e, assim nós o fazíamos. Isso era sa-
grado. Ao anoitecer, onde estivéssemos eu, Dodó, Zita, Elsa, Raul
e percebêssemos que a luz estava acesa, corríamos pedir bênçãos
dizendo: bença papai, bença mamãe e assim a todos que respon-
diam – Deus te abençoe, filha. Assim com todos. Como Deus nos
abençoou!
No outro quarto só existiam duas camas recobertas de es-
teiras e sobre elas travesseiros feitos com flor de marcela, sem
fronhas, bem encardidinhos.
Ali também existia uma corda onde estavam penduradas
as calças de brim e as camisas de riscado do tio Maneco, do tio
Benjamim e do tio Juvêncio. Num prego na parede vejo uma vi-
ola ou violão? Instrumentos que meu tio Juvêncio tocava muito
bem, assim como cavaquinho.
A cozinha da casa da vovó era uma peça muito especial!
Num canto, um caixão pregado na parede com as louças.
Periodicamente a tia Maria comprava papel de prateleira, uma
vez cor-de-rosa, outra verde amarelo, fazendo com recortes bi-
cos caprichosamente desenhados. Uns formando flores, outros
pássaros, peixinhos, barquinhos, assim conforme sua inspiração
Jocelina Santana Bonatto20
e colocava nas prateleiras desse caixão. Eu vibrava! Achava o
máximo. Como é que a tia Maria fazia desenhos tão lindos? Ha-
via uma mesa baixinha na qual principalmente as crianças to-
mavam as refeições. Depois eram retiradas e encostadas na pa-
rede, num lado uma mesa grande, morena, rodada de bancos.
Nela eram servidas as refeições dos adultos. Deliciosas refeições
que ao lembrar-me pergunto: que foi feito de mim? Onde fica-
ram minhas raízes? Que foi que o tempo fez de mim? Nem ca-
bocla, nem cidadã muito urbana, apenas uma matinhense que
ainda hoje sente saudades, muitas saudades dos fantasmas que
povoavam sua infância, transformados agora em lembranças...
muitas lembranças, de pureza, afeto familiar, hábitos alimentíci-
os, religiosos...
Naquela mesa eram servidas as refeições que poucos agora
conhecem, não se lembram. Cozido de tainha fresca, cambira,
com banana, cozidos de paratis, caratingas, peixe-galo-cara-pau
e tantos outros. Camarão pistola também cozido para comer com
pirão. Feijão com carne-seca. Carne fresca de vez em quando.
Ainda sinto o cheiro de alfavaca, cebola verde, salsa, que tempe-
ravam aqueles cozidos. Cheiro de cominho me lembra ensopa-
do de caças, carne de boi, porco ou galinha. Aipim para tomar
Gigi. De volta ao passado 21
com café, batata doce, cozida ou assada na brasa, ova de peixe,
também assada ou cozida, tudo com farinha, alimento básico de
todos. O feijão era delicioso, fresquinho trazido da roça lá do
morro, debulhado e posto a cozinhar. O arroz era integral, des-
cascado no pilão de madeira abanado numa peneira de taquara
feita pela família. O milho também era socado no pilão de ma-
deira para fazer canjica ou quirera. O processo era o mesmo. Na
falta do alimento salgado-peixe, carne, galinha, etc. Era só ir no
mato nas proximidades da casa e cortar enormes palmitos que
eram ensopados com muito tempero e que substituíam o salga-
do junto ao pirão. Estes lamentavelmente usados para nossa so-
brevivência cabocla, e que hoje, mais esclarecidos percebemos
quanto mal causamos à nossa floresta, como agredimos a natu-
reza local. Agora no sítio que possuímos no Cambará temos pro-
curado plantar muitas mudas de palmito. Provavelmente é a
consciência que exige o reparo de nossos erros.
O fogão de nossa casa, uma história à parte!
Uma corrente pendurada nos caibros da cozinha que não
tinha forro, cheia de “picomã”, a fumaça transformada numa es-
pécie de graxa e na ponta um gancho de ferro – em fogo no chão,
e ali pendurado o feijão cozinhando. Ao lado, na cinza uma cha-
Jocelina Santana Bonatto22
leira de ferro, bem preta, uma “chocolateira” de folha, de lata,
espécie de caneco onde era feito o café sem ser coado. Mamãe
batia com uma colher para que o pó de café se acomodasse no
fundo da chocolateira. Leite nem pensar. Que cheiroso era aque-
le café, produzido ali mesmo, no quintal de casa.
Recordo de ver as mulheres de minha família com uma
torradeira de barro que era guardada com muito zelo, longe do
alcance das crianças, torrando o café que bebíamos. Ao longe
sentia-se o cheiro maravilhoso. Creio que agora procuro sentir
ao abrir um pacote de café industrializado, mas esse cheiro não
existe. O hábito de plantar e torrar café em casa não existe mais
aqui em Matinhos. Ao lado do fogo, junto à parede, o banco onde
se guardava água para uso doméstico, acondicionada num pote
de barro, água que vinha do ribeirão existente nos fundos de nos-
sa casa, junto ao sopé da serra. Dentro desse pote, uma casca de
coco, bem lisa, pretinha pelo tempo de uso com um cabo de ma-
deira. Num canto uma vara de madeira que não vergava, era o
“pau” de buscar água. A cozinha da casa da vovó tinha uma
parte assoalhada, onde estava a mesa de refeição e outra de chão
batido, onde estava o “fogo no chão” e o banco de água. Em vol-
ta pequenos bancos individuais, para nos aquecermos em dias
Gigi. De volta ao passado 23
muito frios – as roupas eram poucas – assim como para sentar-
mos à mesa pequena na hora das refeições.
Alimentação
Sobre o fogo existia um varal – “fumeiro” feito de varas bem
finas, inflexíveis, onde secava-se carnes, peixes, ovas, etc.
Noutro canto um “girau” feito com varas mais grossas, onde
era pendurado o milho, uma espiga amarrada à palha da outra,
assim não dava caruncho.
Esse milho era para alimentar as galinhas durante o ano e
servir de semente para o ano seguinte. Vez por outra saía uma
canjica. Junto foi construído um galpão de pau-a-pique, coberto
de palha e ali instalada uma “oficina” de farinha de mandioca,
movimentada por bulandeira, que consistia numas rodas com en-
grenagens e dentes de madeira, que empurrados faziam com que
a roda “cevadeira” desempenhasse a sua função, ralar mandioca.
Toda a oficina era feita de madeira, com exceção do forno
que sobre uma “fornalha” de barro onde a massa era colocada e
a farinha torrada, sendo mexida com a ajuda de duas pás de ma-
deira. A massa depois de prensada e extraída toda a “mandiqueira”-
Jocelina Santana Bonatto24
líquido venenoso da mandioca – era peneirada em peneira de
taquara e depois levada ao forno para torrar. O resto da mandio-
ca que sobrava na peneira, a “carueira” também era torrado para
alimento das galinhas. Recordo com muitas saudades dos “bijus”
que ali eram feitos. Uns contendo o polvilho uma massa bem fini-
nha, bem branca da mandioca, enrolada e assada no forno. O ou-
tro não sei como era feita a massa, mas me lembro que era assado
em folha de bananeira, era rijo, mas gostoso! Papai adorava! Tam-
bém se fazia o “bolo de goma”- “cambau” como chamavam.
Era feito um rolo de massa, cujos pedaços emendados pon-
ta com ponta formavam uma circunferência, ou seja, era esse o
formato do bolo. Era mais sofisticado. Levava ovos, banha, etc.
Em sua composição Era assado na fornalha, no calor que ficou
após a torrefação da farinha.
Fazia-se também o doce de goma – espécie de sequilho, com
cravo, ovos, geralmente servidos em ocasiões de festas religio-
sas, fandangos, enfim, em dias festivos.
Quem fazia esse doce geralmente era vovó. Quando a cri-
ançada via movimento da vovó fazendo doce ficava toda assa-
nhada. Sabia que ia haver festa.
Gigi. De volta ao passado 25
O cuz-cuz era feito com mandioca puva – colocada num balaio
e mergulhada num rio até amolecer. Depois preparada a massa e
cozida na cuscuzeira de barro. Dali saía um bolo que quase sempre
era cortado em fatias e torrado. Tudo tinha como base alimentar a
mandioca, cuja farinha era guardada em barris de madeira para não
amolecer. Esses barris possuíam tampas bem apertadas.
A sala e quarto da casa de vó Ota
Era na sala que se empilhava o arroz em cachos, quando tra-
zidos da roça. Ali mesmo se espalhava o arroz e com os pés ou pe-
quenos pedaços de pau era batido, desprendido do cacho e
ensacado. Assim também se fazia com o feijão.
Era na sala que também se dançavam os fandangos. Quantos
fandangos assisti naquela sala. Ainda sei a letra de versinhos de
bailado que ouvi cantar:
Que menina tão bonita
Tão faceira no dançar
Menina levanta o rosto
Que eu quero te namorar...
Jocelina Santana Bonatto26
Os teus olhos brilha tanto
Dando ai...la, ri lai,lai.
Outro:
Coração entristecido
Magoado e doente
Para que contas teus males
A quem teus males não sente?..
“Alecrim verde, cheiroso
Não sejas enganador
Todo amante que é firme
Não engana seu amor.”
Mas nossa sala durante a noite virava dormitório. Ali eram
estendidas esteiras, feitas em casa, com um vegetal chamado
“Perí” com o qual até eu, mais tarde, aprendi a fazer esteiras.
O sistema consistia no seguinte: Penduradas duas cordas
amarradas a elas, em cada ponta, uma vara de madeira, e, sobre
ela, cordas feitas de casca de embaúba ou o vira com os bilros
amarrados nas extremidades. Bilros eram pedaços (pequenos) de
galhos de árvores, mais ou menos 20 cm, e sobre as cordas colo-
Gigi. De volta ao passado 27
cado o “Perí”, um a um e feita uma espécie de trança no vaivém
dos bilros. Um bilro para cima, outro para baixo, logo estava
pronta a esteira. Era só aparar as pontas com uma faca bem afia-
da. Que disputa, entre as crianças quando chegava a noite. To-
dos queriam dormir na esteira nova. Afinal, nestas não havia ne-
nhuma pulga, o que era comum nas esteiras velhas.
— Que gostoso!
Travesseiro feito com flor de marcela... Um cobertor corta-
febre, pernilongo em quantidade, afastados com fumaça feita com
estrume seco de gado. Que belos sonhos! Isso no verão, porque
no inverno tudo mudava de figura. Mas papai, previdente que
só, providenciava uma tora de madeira de lei, que ao queimar
só fazia brasa, não soltava fumaça, essa lenha chamada de
“trafogueiro” queimava a noite inteira, aquecendo a nossa casa.
Ao amanhecer, benção mamãe, benção papai!... e sentáva-
mos-nos junto ao fogão e ali mesmo ganhávamos um caneco de
café preto, as vezes com uma farofa de ovo, uma banana, batata
cozida, com o que tivesse e íamos brincar. Pobres sim, mas po-
breza com dignidade. Tivemos uma infância muito feliz.
Durante a noite ouvíamos o tic-tac do despertador coloca-
do numa pequena prateleira num canto da sala. Que chato! tic-
Jocelina Santana Bonatto28
tac... tic-tac... o tempo todo. O que naquela época era chato, hoje
ao ouvir um tic-tac de despertador morro de saudades de um
tempo muito distante e que não retorna nunca mais. Minhas
raízes são muito primitivas, descendemos com certeza de portu-
gueses e índios carijós – caboclos mesmo.
A descoberta da torneira
Converso muito com minha tia Maria, que no dia 24 do úl-
timo outubro do século completara 86 anos, porém perfeitamen-
te lúcida, que no outro dia narrou-me:
“Uma vez o papai (meu avô Urbano Jacinto Ramos) que
não conheci, pois mamãe casou-se um ano e pouco após seu fa-
lecimento, foi a Paranaguá, em carro de boi até o pontal do sul-
e de lá em canoa chegou na cidade para fazer compras: algum
tecido, cobertores, fumo, etc... e hospedou-se na casa de um ir-
mão que morava em Paranaguá. Voltou muito impressionado
com o que viu. No cerão da boca da noite contou para a esposa,
vovó Ota e seus filhos:
Olhem, este mundo está mesmo virado, sabem que na casa
do compadre (irmão e compadre) José Ramos em Paranaguá não
Gigi. De volta ao passado 29
precisava ninguém ir buscar água na fonte? É só torcer um
aparelhinho que está ligado na cozinha e a água chega em casa
sozinha!
Foi a primeira vez que o meu avô viu uma torneira. Se ele
soubesse que o local onde era sua casa, ali mesmo onde ele nar-
rava esse fato, dentro de alguns anos seria um belo bairro de
Matinhos, com escola, telefone, luz elétrica, água encanada, car-
ros circulando pelas ruas e tantas outras melhorias. Se soubesse
como seus descendentes bisnetos, foram longe! Cursaram Uni-
versidades, viajaram pelo mundo, ensinaram nas escolas, advo-
garam, cuidam da natureza – biólogos – jornalistas, bancários en-
fim, em sua vida tão humilde jamais pode antever como estari-
am seus bisnetos no fim de 1999.
Santana ou Miranda?
Tenho feito referências quase que somente à minha família
pelo lado materno, mas isso deve-se ao fato de quando papai ca-
sou-se já era o único filho de sua família. Teve dois irmãos, João e
Antonia. João faleceu solteiro e Antonia que foi casada com
Henrique Mesquita, possuiu dois filhos que faleceram bem jovens,
Jocelina Santana Bonatto30
quase ao mesmo tempo, vítimas de tuberculose. Meus avós pa-
ternos, Leocádio Apolinário de Santana e Mariana Viana do
Bonsucesso.
Santana faleceu também quando eu era ainda muito crian-
ça, mas lembro-me vagamente de ambos! Essa a razão de pou-
cas referências. Não ficaram laços familiares do meu pai mais
próximos.
Hoje vejo pessoas contando histórias de nossa região dizen-
do que Matinhos é habitado há 70 ou 80 anos atrás. Enganam-se.
Meu avô faleceu há 60 anos e contava como viviam seus ante-
passados por seu lado materno, os Apolinários, pois ele foi filho
de mãe solteira, e sua bisavó chamava-se Maria Felizarda de
Miranda. Não sabemos de onde surgiu o sobrenome Santana. A
rigor deveríamos chamar-nos Apolinário pelo pai de minha bi-
savó Vitalina (avó do papai) de Miranda.
Segundo o ilustre historiador Dr. Arthur Barthemes, dedi-
cado estudioso de tudo sobre este litoral, nossas origens são as
sequintes: Em 1821, em que a viúva Úrsula da Costa Rezende
herdou, praticamente todo o Patrimônio de Caiobá e onde a
Delfina recebeu apenas um naco de terra figuram também dois
nomes Felisberto e Felizardo. A um tocaram “calções” de velu-
do, a outro um espadim de prata..
Gigi. De volta ao passado 31
Felisberto é nome viligado, a estirpe de nosso Felisberto ti-
nha um pendor irresistível por nomes raros e pomposos. O úni-
co neto foi batizado “Apolinário Theodoro de Santana”. Ninguém
sabe de onde saiu aquele “Santana” o comentário é meu, já que
o pai e avô assinavam de Miranda.
Seria “o” Santana família, temporariamente eclipsado pelo
Miranda, sobrenome do benfeitor, como aconteceu com Delfino
que, sendo de Ramos adotou, para sempre, o de Miranda. Pois
deste Apolinário Theodoro de Santana, era viúva dona Rita, nasci-
da, Moreira Santos, mas conhecida por Rita Apolinária, incorpo-
rando nome e prenome do marido, em vez do sobrenome dele.
Apolinário é nome forte, Matinhos está povoada de bisnetos, trinetos
e tetranetos daquele casal. Podem chamar-se hoje, Freire ou Rocha,
Trevisan, Bonatto, Laginski, Bassfeld, Gonçalves, Tavares, (o acrés-
cimo ao original refere-se à nossa família- lado paterno, que eu acres-
centei) ou outros nomes mais, mas o povo continua a identificá-los
coletivamente como gente dos Apolinários.
Portanto, há mais de um século e meio nossa família habita
estas paragens, e esperamos, todos nós um dia sermos reconhe-
cidos como os legítimos fundadores do “Matinho”- isto é, nossa
família o povo dos Apolinários – Santana ou Miranda?
Jocelina Santana Bonatto32
Faz muito tempo que extraímos mariscos das pedras, pes-
camos de espinheis e comemos pirão.
Essa uma das razões que me animam a fazer, humildemente
bem o sei, o registro dos hábitos que vivenciei ou ouvi de meus
parentes idosos, que não sei se servirá para alguma coisa, mas
gosto muito do meu pedacinho de chão. Fiz estas anotações,
quem for pesquisador que as aprimore com a técnica que lhe é
peculiar, e eu serei eternamente grata e por ter contribuído, es-
pecialmente para que meus descendentes saibam de onde vêm.
A música
Quando papai e mamãe anoiteciam alegres, cantavam ver-
sos de fandangos, cânticos de terços, até altas horas.
Aos sábados a tia Maria fazia uma faxina geral na casa. Tra-
zia água do ribeirão, esfregava o chão com uma vassoura feita
de galhos de uma vegetação própria para fazer vassouras, às ve-
zes colocava cinza para que o assoalho ficasse bem branquinho.
Depois mandava eu e a Zita (minha prima) buscar saibro na parte
alta do Tabuleiro e esparramava em toda a sala. Dizia que era
para que o assoalho secasse rápido ficando assim bem claro. Hoje
Gigi. De volta ao passado 33
quando lembro-me dessa fase da minha vida dou muita risada.
Imagine – lavar a casa e encher de areia!
Tomávamos banho em gamelas de madeira. Sabonete era
artigo de luxo. Só para ocasiões especiais. Existiam gamelas para
tudo. Para salgar peixe ou carne, lavar louça, lavar as mãos, ou-
tra para lavar o rosto, outra os pés, e, uma bem grande para ba-
nho dos adultos e uma menor das crianças.
Tomávamos banho aos sábados, assim como os adultos,
porém, todos lavavam os pés à noite, antes de dormir. Caçoa-
vam dos preguiçosos que não gostavam de lavar os pés, corren-
do assim o risco de ficar com os pés partidos. Eu adorava os dias
de chuva, que até hoje exercem um fascínio muito grande em
mim, também porque eram nesses dias de chuva que meus tios
recebiam a visita dos primos que moravam na redondeza, o João
Fernandes, o Máximo Ricardo – os que me lembro bem – para
tocarem violão, cavaquinho, pandeiro e cantar. Como cantavam
bonito! Como sua música soava gostosa aos meus ouvidos! Ma-
ravilha – era assim que eu considerava. Eram músicas de baile.
Uma começava assim:
Jocelina Santana Bonatto34
Aos pés da Santa Cruz, você se ajoelhou,
Em nome de Jesus
Um grande amor você jurou
Jurou mas não cumpriu
Fingiu e me enganou...
Prá mim você mentiu
Pra Deus você pecou,
O coração tem tantas razões
Que a própria razão desconhece
Faz juras de amor
E depois esquece.
Nada de fandango. Não que eles não soubessem! Mas já
estavam ficando moderninhos – abandonando sua origens.
Lembro também quando cantavam:
Covarde eu sei que me podes chamar,
Porque não cala no peito esta dor!
Atire a primeira pedra,
Aquele que não sofreu por amor!...
Gigi. De volta ao passado 35
Outra:
Quem parte leva saudade de alguém...
Tudo para mim era lindo!
Tio Juvêncio já não está entre nós, mas tio Maneco está aí,
tocando muito bem o violão e o cavaquinho que encantavam mi-
nha infância. O João Fernandes e o Máximo Ricardo também vi-
vem em Matinhos. O tio Benjamim, que eu chamava de “tio Bim-
bim” não gostava por isso não participava das manhãs musicais.
Gostava mais era de tirar sua soneca e descansar. Logo depois
casou com a tia Cocó e foi embora. Também não está mais entre
nós, assim como o tio Martinho e a mamãe, a vovó e o papai.
Brinquedos, histórias e carinho
Doces tardes de chuva! Que alegria quando a vovó apanha-
va o seu balaio de costura e nos chamava para junto de si. Ali
ela confeccionava nossas bonecas de pano. Bordava os olhos, as
sobrancelhas, a boca, colocava cabelos de fio de costura e pron-
to. Umas eram minhas, outras de Zita, da Elsa (irmã). Para os
meninos fazia pião com o côco da brejaúva seco, fazendo um pe-
Jocelina Santana Bonatto36
queno furo e colocando um cabinho pontiagudo de bambu. En-
rolava uma cordinha, puxava e o pião até cantava. Eram nessas
tardes que ela fumava seu “pitos” de barro com cano de taquara,
contava as mais lindas histórias que ouvi. Sempre pedíamos que
nos contasse mais uma. Fazia pipoca, cozinhava chuchu, assava
banana. A nossa foi a vó que toda a criança deveria Ter.
Tia Maria costurava, remendava, fazia crochê, tecia palha
para fazer chapéus, cestos de cipó, balaio, tipitis. No meio da tar-
de era servido aquele café cheiroso com aipim cozido, taiá, ba-
nana assada, etc. Se usava pouca gordura, quase todos os alimen-
tos eram assados ou cozidos, mas de vez em quando era feito
um peixinho frito. O essencial nunca nos faltou. Todos eram
muito felizes, havia respeito, união, total carinho uns pelos ou-
tros. Tudo era discutido, pensado e repensado nos serões notur-
nos, quando em volta do fogo os adultos falavam de tudo. Cri-
ança não metia o bico na conversa dos mais velhos. Nesses se-
rões eram contadas estórias de pescarias, arrastões de tainha, roça,
amores, versos de fandango, cânticos religiosos, passeios a
Guaratuba, e, tomadas as decisões da família.
Uma coisa que ainda me faz pensar até hoje, é como sabi-
am no Tabuleiro, pelo horário, se a maré “no Matinho” ou Caiobá
Gigi. De volta ao passado 37
estava cheia, seca, vazando ou enchendo. Nunca erravam. Base-
avam-se pelas fases da lua. Assim como pela posição do sol sa-
biam o horário.
Nascimento de criança
Vários netos nasceram nessa casa.
Os partos eram realizados por parteiras entendidas que
moravam nos arredores. A criança ao nascer permanecia 7 dias
no quarto escuro para não dar “mal de 7 dias”. Às mães eram
oferecidos chás de ervas contendo cachaça –”era a queimada”
assim também com os banhos também com ervas. Ao levanta-
rem-se da cama tomavam purgante de óleo de rícino. Comiam
cozido de galinha durante vários dias. Depois, comiam peixe, mas
somente o rabo. O resto do peixe era gordo e poderia causar re-
caída. Banho de “pratura” era aplicado caso se percebesse que a
parturiente não estava bem. Depois de alguns dias de vida eram
alimentados com um mingau de farinha de mandioca peneirada
e cozida numa água doce. Afinal, o leite materno garantia a vida,
pois era hábito das mães colocar a porção de mingau primeiro
em sua boca para esfriar e depois na do bebê. Imagine. Mamãe
salvou 9 filhos desse perigo.
Jocelina Santana Bonatto38
Os nenês dormiam em redes geralmente feitas com sacos.
As pontas eram amarradas e então colocados pauzinhos para
abri-lo, uns trapinhos dentro e ali o piá dormia. Assim eu e meus
irmãos dormíamos. Quando os nenês choravam era só pegar uma
cordinha, amarrá-la à beira da rede e balançar. Não havia me-
lhor recurso para que o nenê ficasse quieto e adormecesse.
Frutas e outras plantações
Lá fora defronte a casa, um lindo pé de manacá carregado
de flores lilás, muito perfumadas. Ao lado um ingazeiro onde
bandos de Gralha Azul, Baitacas, Tiés, Guaches, Pintassilgos,
Arapoãs e outros pássaros vinham saborear as vagens maduras.
E a Pitangueira o que dizer dela? Dividíamos os galhos.
Ninguém tocava no galho de Pitanga do outro, a não ser que hou-
vesse entre os primos um bom acordo de permuta: “Você me dá
uma Pitanga do seu galho e eu lhe dou outra quando as frutas
do meu galho amadurecerem”.
Se soubesse pintar faria uma aquarela onde seriam o moti-
vo principal as tarrafas secando ao sol, alvas, em forma de cir-
cunferência apoiadas em suportes de vara finas.
Gigi. De volta ao passado 39
Nos fundos o bananal, onde também, junto ao tronco eram
jogadas as cascas de mariscos que serviam de alimento à família
em dias de “Rebojo”, “Vento sul com chuva”- e o mar muito
bravo não deu nenhuma condição à pescaria.
Havia também, entremeado ao cafezal, belas laranjeiras,
perfumadas na primavera e que produziam frutos tão doces.
Nunca mais senti aquele sabor em nenhuma laranja. Produziam
tanto que ninguém vencia chupar. O serviço da criançada era jun-
tar as frutas que caiam, antes que apodrecessem e prejudicas-
sem o café que caíam maduros, e, jogar para a beira do laranjal.
O café era colhido bem maduro, descascado, seco ao sol num ter-
reiro que chamavam de “eira” e depois “chumbado”, isto é, ba-
tido no pilão para soltar a película que envolve o grão. Depois
de torrado em torradeira de barro, socado no pilão e peneirado
pouco a pouco em peneira de taquara. Estava pronto o café.
Ninho de galinha
No terreiro existia o lenheiro, ou seja, uma tora forte onde
a lenha era cortada para uso na cozinha.
Pendurados na parede, do lado de fora da oficina de farinha,
se via diversos balaios velhos, uns cheios de palha de milho ou ar-
Jocelina Santana Bonatto40
roz. Eram o ninho das galinhas. Era comum, a tarde, a vovó ir com
um pequeno balaio recolher os ovos. Como era gostoso o dia todo
ouvir o cocorecar das galinhas! Co-co-có, Co-co-có, podia ir olhar o
balaio que estava lá um ovinho fresquinho.
Lembro-me claramente do canto dos galos. Eram duas ve-
zes todas as madrugadas. Lá por 1:30h e às 4:00h. Um cantava pri-
meiro, depois outro, lá longe! Assim, todos os galos da vizinhan-
ça. Parece que um respondia ao outro. Estava na hora do pessoal
ir levantando e se preparando para mais um dia de trabalho.
O peixe
Os homens que tinham ido tarrafear ou “lancear” na baía
de Guaratuba já estavam de volta com o peixe garantindo para o
dia ou até a semana. Quase não se vendiam os peixes, muito pou-
co, mas estes eram escalados, salgados e secos ao sol e ao fumeiro.
Com o peixe seco eram feitos ensopados, aferventados e cozidos
com banana, assim como de outros modos, comendo-se com pirão
de feijão ou mesmo de farinha escaldada.
Gigi. De volta ao passado 41
A maleita e outras doenças
Não gosto de recordar quando a maleita atacava, às vezes,
a todos. Acredito que não existe ninguém que tenha vivido em
Matinhos na época a que me reporto, que não tenha pelo menos
uma vez sofrido com a febre maleita. Era um dia sim, outro não
e lá começavam os tremores, calafrios, queixos batendo, febre
muito alta, suadeira – era a maleita. Eu mesma fui acometida
várias vezes. Usava-se chá de quina, que ajudava, mas não cura-
va. O que resolvia eram uns comprimidos que o Serviço Nacio-
nal de Malária distribuía gratuitamente. Lembro-me que uma
marca desses comprimidos chamava-se “Atibrina”. Houvesse fí-
gado para suportar a maleita e o efeito muito forte do remédio.
Ainda lembrando-me das doenças comuns a todos recordo
de uma gripe muito forte era curada com escalda-pés e suador
acompanhado de chá de ervas – principalmente folhas de laran-
jeira, guaco, mentruz.
Quando havia sintonia de que alguém estivesse com saram-
po, imediatamente lhe era ministrado chá de sabugueiro, que
colocava o sarampo para fora, aparecendo então aquela erupção
vermelha que lhe é característica. O doente ficava no quarto fe-
Jocelina Santana Bonatto42
chado durante 8 dias. Até as pequenas frestas eram tapadas
“calafetadas” para não entrar nenhum vento.
Para desinteria usava-se chá de broto de goiabeira ou araça,
folha de pitanga também fazia bem. Dor de cabeça muito forte
era curada com folhas de algodoeiro sapecadas e amarradas na
testa sob um pano, não importando a origem da dor de cabeça.
Casca de laranja seca também era remédio para febres. Chá de
rosa-branca era dado aos nenês como laxante suave. Era-lhes
dado também chá de Sene, Maná, ruibarbo.
Também eram usados vários medicamentos comprados no
negócio do seu Elias em Guaratuba: Pílulas de vida, Pílulas de
Ayer, Pílulas de Caferama, Aspirina, Biotônico Fontoura, Regu-
lador Gesteira e outros.
As benzedeiras também curavam, benziam erisipela, que-
branto, sol, sapinho, mau olhado e por aí a fora. Tida Madalena,
nas Palmeiras, bem velhinha, aliás, tia do papai, sofria para me
benzer. Ela ía lá fora, cortava um galho verde de erva santa, mo-
lhava com água pura e me chamava:
— Venha aqui menina...
Que menina nada, eu já estava longe, pois detestava o res-
pingo daquele galho no meu rosto. Muitas vezes eu ficava lá lon-
Gigi. De volta ao passado 43
ge, no caminho e ela, coitada, benzia-me de longe mesmo. Acho
que fez efeito, pois estou por aqui até agora.
O rio límpido
A roupa de todos era lavada no mesmo ribeirão de onde
era apanhada a água para uso doméstico, só que após o mesmo
local. Lavar roupa... que trabalho cansativo!
Na beira do rio era colocada uma tábua lisa, com uma pon-
ta dentro d’água e outra fora, e, ali as mulheres se punham de
cócoras e esfregavam as roupas com as mãos, batendo de vez
em quando nessa “tábua da fonte”, quarando-as ao lado, esten-
didas na grama. Depois enxaguadas no rio e estendidas para “en-
xugar” – o termo mais usado na época. Passar roupa de uso diá-
rio não era hábito nesse tempo. Na casa da vovó existia um “fer-
ro-de-engomar”, aquecido à brasa, que não servia para engomar
nada, não sei até hoje a razão desse nome... um trabalho pesado,
com o qual eram passadas as roupas para os dias de festas ou
ocasiões muito especiais, como os Terços no “Matinho”. O ribei-
rão onde minha família lavava roupas e retirava água potável é
hoje, e escrevo isto com um nó no coração, o receptor de dejetos
do Sistema de Esgoto da Sanepar.
Jocelina Santana Bonatto44
Nesse ribeirão pesquei muitas “Piavas”, Acarás, Nhundiás,
era límpido, transparente, ao fundo vez por outra aparecia um
cágado, existiam uns mariscos pretos, cardumes de peixinhos
nadavam ali. Quanto banho tomávamos nesse rio nos dias de
muito calor! Infelizmente está morto! Nada mais pode ser feito.
O progresso o engoliu. Em volta desse rio havia um belo bana-
nal, plantavam-se roças de arroz, área que foi invadida por pes-
soas que vieram de fora. Hoje é totalmente habitado. São muitos
barracos. Essas pessoas não imaginam quanto aquela área foi,
ou melhor, é produtiva. Não cultivam ali nem cebolinha verde.
Progresso: encontrar alimentos no resto das lixeiras. Para que tra-
balhar? Afinal o progresso chegou!...
Evolução?
É, assim que o “Matinho” que eu vi está evoluindo. Todas
as famílias viviam da lavoura artesanal, da pesca, da caça para o
alimento. Faziam com suor de seus rostos: sua casa, plantavam,
teciam suas esteiras, seus balaios, tiravam a lenha para uso em
casa, faziam farinha, o biju, salgavam os peixes. Quero dizer que
vi minha gente trabalhando das 4:00h da manhã até o anoitecer.
Gigi. De volta ao passado 45
A diferença de hoje é que não passavam fome nunca, não possu-
íam luxo, mas, dignidade, pobres, mas altivos, dignos!
Hoje fico muito triste ao verificar que tudo é pior – a quali-
dade de vida terrivelmente pior!
A pescaria
Durante o ano havia tempo para tudo: para roçar, derru-
bar, covarear (limpar o terreno), plantar, carpir, decepar (podar),
colher.
A posição da lua era respeitada para tudo. A lua minguan-
te, boa para o plantio e assim por diante.
A pescaria era feita com tarifaras – alvas tarrafas de fio “tro-
ça”, caniços espinheis, redes de lanço (arrastão). A pescaria mais
importante nessa época era ainda a de tainha, que era feita mais
na Prainha, Caiobá e Perequê.
Depois da colheita do arroz os pescadores eram convida-
dos a participar da pescaria da tainha, mudando-se para esses
locais que já me referi, com mulher, filhos e tudo o mais. Aco-
modavam-se em ranchos de palha, construídos à beira-mar e lá
permaneciam até o fim do período dos lances de tainha, meados
Jocelina Santana Bonatto46
de maio até o fim de junho. Pegavam enormes quantidades de
tainha, às vezes mais de 5000 tainhas, que eram limpas, porém,
conservadas as escamas, escaladas, salgadas e secas. A esse tipo
de conservação da tainha era dado o nome de “Cambira”. So-
mente a tainha servia para fazer Cambira. Duravam até um ano.
Serviam de alimento durante muito tempo. Não estragavam. As
mulheres eram especialistas em conservação dos peixes. Pobres
mulheres! Como trabalhavam!
Nessa ocasião todos ganhavam algum dinheiro. Quem não
lanceava comprava as tainhas para secar, pois já tinham vendi-
do o arroz. Ressalte-se que o transporte de tudo era sempre feito
nos ombros, não havia estrada, só existiam caminhos.
Refiro-me às famílias que moravam no Tabuleiro. A prin-
cipal via de acesso era o Caminho-do-Pique, hoje Avenida Paraná.
Terminada a pescaria de tainha, vendido o arroz, algumas sacas
de farinha, levados no ombro até o Cabaraquara e de lá em ca-
noa a remo para Guaratuba.
Era tempo de comprar uma calça de casimira, um casaco novo
de caxá (tecido apeluciado), enfim fazer alguma melhoria no baú
de roupas e se preparar para a festa do Divino em Guaratuba, que
era o grande acontecimento de todos os anos. O que venho regis-
trando refere à década de 30 ou melhor, 1935 em diante.
Gigi. De volta ao passado 47
A religiosidade
Em 1939 o papai construiu para nós uma casa no “Matinho”.
Afinal, vários banhistas já passavam temporadas aqui, constru-
indo casas de férias, demonstrando que o “Matinho” iria virar
um balneário, progressista. Viemos morar para cá, nossa casa era
nas proximidades do Colégio Gabriel de Lara.
As roupas para as festas eram passadas a ferro, dobradas e
trazidas do Tabuleiro numa cesta de vime. Era um luxo possuir
uma cesta daquelas!
Entre todos existia um profundo sentimento de religiosi-
dade e também de solidariedade. Todos eram católicos. O Tabu-
leiro nesse tempo ainda era habitado por poucas famílias: a nos-
sa – de Urbano Jacinto Ramos, casado com Otília Luzia da Silva
Ramos, José Francisco da Silva (Zé Chico) casado com Ana da
Silva (D, Aninha), Balduino Crissanto, com Floripa Freire
Crissanto, Joaquim Isabel dos Santos, com Parmena Freire dos
Santos, Abílio Crissanto, com Carmelina Freire dos Santos,
Virgina Crissanto, assim como a do José Curitibano, assim cha-
mado por ter os olhos azuis. São as que me lembro, e ainda José
Fernandes Ramos, casado com Alcídia Ramos, irmã do vovô Ur-
bano. Não sei se existia mais alguma.
Jocelina Santana Bonatto48
Como já disse, o sentimento de religioso era muito forte.
Na Sexta-feira Santa todos rezavam. Era até proibido acender
fogo e cozinhar algum alimento. Na véspera era cozida uma pa-
nela de canjica e pronto. Nada de comida, varrer casa, nem pen-
tear os cabelos. Mamãe nos reunia em sua volta e lia orações que
nós acompanhávamos atentamente, orações tão antigas que o
papel já estava amarelecidos pelo tempo, já que pertenceram a
outras gerações. Mas que fé! Ai daquele que não prestasse aten-
ção. Terminada a Sexta-feira Santa, dormíamos e só sábado to-
mávamos café.
A terça-feira de carnaval era dançada rigorosamente até a
meia-noite. Relógio poucos possuíam. Então era convidado al-
guém reconhecidamente acertador de horário baseado na posi-
ção da lua, que depois de observá-la atentamente dizia: “É meia-
noite!” Acabou o carnaval. A viola, o pandeiro, a rebeca, o
cavaquinho eram virados com as cordas para a parede para não
correr nenhum risco de alguém passar os dedos e ser ouvido al-
gum acorde musical durante a quaresma. Quanto respeito!
Todos os anos, lá pelo mês de maio ou começo de junho, co-
meçavam os preparos para esperar as bandeiras do Divino Espí-
rito Santo e da Santíssima Trindade que vinham de Guaratuba
Gigi. De volta ao passado 49
onde eram festejados por todos os habitantes da região: a do Di-
vino vermelha e da Trindade branca. Como eu as achava lindas!
Cheias de fitas coloridas, fotografias de crianças, as quais eram ali
colocadas em agradecimento por alguma graça recebida.
Era um acontecimento marcante de muita emoção. Ouvia-
se ao longe de toque andar: o tambor batendo, pum...pum!... Logo
depois chegava a bandeira, geralmente recebida pela dona da
casa, que muitas vezes chorando de tanta emoção conduzia para
dentro de sua casa para o cântico dos foliões. Nesse dia quase
ninguém ia trabalhar para esperar a bandeira. Era dia santifica-
do decretado pela comunidade de acordo com sua cultura.
Ao se ouvir ao longe o bater do tambor se dizia: está can-
tando na casa do Zé Chico, ou outro vizinho. Veja, agora é toque
de andar. Quase todos acompanhavam, de casa em casa, a pas-
sagem da bandeira, uns vindos do Sertão, outros das Palmeiras,
de Caiobá, do “Matinho”. Aprendi um verso que sempre era can-
tado na chegada:
O Divino vem chegando
Lhe trazer felicidade
Vem trazer muita saúde,
Paz, amor, prosperidade.
Jocelina Santana Bonatto50
Os versos eram cantados com acompanhamento dos instru-
mentos que já citei. Dentre os que cantavam, quase sempre exis-
tia um jovem de voz muito aguda o “Tripe” que dava um tom
muito especial com sua voz.
Essas bandeiras saíam da Igreja de São Luiz de Guaratuba
e percorriam todos os arrabaldes. Como o “Matinho” pertencia
ao município de Guaratuba, elas passavam por aqui. Recolhiam
oferendas em dinheiro para realização da festa no mês de julho.
Percorriam todas as casas e almoçavam, jantavam e dormiam
onde fossem convidados. Recebiam muitos convites, pois era uma
honra receber os “foliões” (assim eram chamados) da bandeira.
Quando almoçavam, antes de sair cantavam em agradecimento,
todos adoravam ouvi-los. Era honra ainda maior oferecer-lhes
pernoite. Ao anoitecer, todos vinham para casa do hospedeiro,
ali rezando um terço cantado, com hinos especiais para a oca-
sião. Lembro-me de um hino que começava assim:
Divino Espírito Santo
Divino Consolador!
Consolai as nossas almas,
Quando deste mundo “for”.
Gigi. De volta ao passado 51
Madrugada todos voltavam para a alvorada. A criançada
se alvoroçava. A dona da casa preparava um café cheiroso, qua-
se sempre acompanhado de um prato de arroz integral (o que se
usava). Soltavam foguetes – Que beleza! Aí, os foliões cantavam
versos de despedidas. Eram versos muito especiais, dirigidos as
idosos, às crianças, aos jovens, aos enfermos!... muitos chega-
vam às lágrimas, indo então embora e voltando no ano seguinte.
Depois de alguns dias chegava a bandeira da Santíssima
Trindade, começando tudo de novo. Era muito feio para o lu-
gar, a bandeira passar sem acompanhamento. Significava pouco
caso, falta de respeito. Minha maior preocupação era quando
desde cedo a mamãe nos preparava para o terço que seria canta-
do à noite. Durava bem umas 3 horas. O sono quase me derru-
bava. Aliás, derrubava, pois esquecia do terço, cochilava.
Lá pelas tantas começava a ouvir uma Ladainha cantada
em latim e pensava com os meus botões: “Já cantaram mais da
metade”. O que me lembro daí em diante era do fim do terço e
os adultos se cumprimentando.
Brincadeira à parte, era esse um evento religioso oficiado
com muita fé e respeito, defronte, a um altar onde eram coloca-
das várias imagens de Santos, flores, velas e ali os “capelões”
Jocelina Santana Bonatto52
ajoelhavam-se e comandavam a reza. O tio Martinho sempre era
capelão, auxiliado pelo Antonio Fernandes Ramos, seu “Dório”,
Odorico Tavares, Balduino Crissanto, Jacinto Felipe e tantos ou-
tros. O capelão e o ajudante cantavam e outros homens e mulhe-
res reunidos mais distante respondiam, também cantando. Hoje
dou valor. Como aqueles terços, aquelas rezas eram impregna-
das de amor a Deus, de fé, religiosidade pura, sem visar lucro
financeiro, sem nada.
Acredito que nos dias atuais não se conseguiria reunir um
grupo igual para cantar um terço igual aos que eu participei, mes-
mo com sono, em minha infância. Todos já faleceram. Ninguém
conservou essa tradição herdada dos primeiros habitantes daqui.
A Ladainha cantada em latim era o máximo! Quem os teria
ensinado nos primórdios da civilização desta religião? Os Jesuí-
tas? Quem?
Raras eram as vezes em minha infância que aparecia um pa-
dre por aqui. Sempre estava de passagem para Guaratuba para a
Missa da Festa do Divino ou da Santíssima Trindade. Parava no
“Matinho”, na casa do Sr. Jacinto Viana de Mesquita para realizar
os batizados ou casamentos, e então celebrava uma missa. Fui ba-
tizada na volta do padre da festa de N. Senhora do Bom Sucesso –
Gigi. De volta ao passado 53
dois de fevereiro – não tinha vinte dias de vida. Meus padrinhos
foram João Inácio Freire e Francisca T. Freire, sua esposa.
Interessante também eram as “Festas de Reis”. De 1º a seis
de janeiro aconteciam as “reiadas”. Durante a noite homens que
sabiam tocar viola, rabeca etc, íam cantar de casa em casa, “sim-
bolizavam os Reis Magos”, acordavam o dono da casa com
cânticos que eram mensagens de muita sorte ao morador que
abria a porta e permitia que cantassem dentro de sua casa. Era
muito bonito! Típico daqui. Em troca lhes eram oferecidos di-
versas prendas: um garrafão de vinho, frutas, doces, o que pos-
suíssem em casa. Dia seis de janeiro os “Reieros” se reuniam e
dividiam entre si essas oferendas. Era tão bom, naquele silêncio
de então, ouvia o som de uma viola, lá fora vozes cantando:
Abre a porta meu irmão,
O Santo Rei quer entrar...
Trouxemos muita alegria,
Bênçãos para o seu lar!
Entravam, cantavam, batiam um papo, tomavam uma
gemada com vinho, agradeciam cantando, se despediam, tam-
Jocelina Santana Bonatto54
bém cantando e íam embora prometendo no ano que vem vol-
tar. Mas, chegou um dia em que os “Reieiros” não voltaram mais,
foram fazer suas “Reiadas” lá no céu. Com eles morreu também
uma cultura, uma tradição.
Matinho virou Matinhos
Nessa época papai já haviam construído uma casa coberta
com telas de barro e viemos então morar no Matinho. Essa casa,
não esqueci, papai cortou as árvores na mata, puxou com gan-
chos e ajuda de amigos organizou um “estaleiro” e serrou todas
as tábuas, vigas, sarrafos, somente usando uma Serra Manual.
Um homem lá em cima do estaleiro e ele embaixo. Sobe, desce,
sobe, desce... e as tábuas uma a uma foram ficando prontas. De-
pois, em pequenas quantidades sempre nos ombros, foram
trazidas para o Matinho e construída a nossa casa, que possuía
um salão bem grande, onde dançaram muitos fandangos, bailes.
Havia dois quartos e a cozinha também com fogo no chão, aos
moldes da casa da vovó.
Depois o papai resolveu oferecer mais “conforto” à ma-
mãe e resolveu fazer um caixão grande, enchendo-o de barro, e
Gigi. De volta ao passado 55
nele instalou uma chaminé, colocou uma trempe com uma cha-
pa de ferro, quando então ela passou a usar esse luxuoso fogão,
cujo modelo foi copiado dos pescadores catarinenses que já co-
meçavam a se instalar aqui.
Nossa mudança aconteceu lá por 1939, começando a ocor-
rer a ocupação pelos banhistas.
Já existiam algumas casas à beira–mar, como a do Dr. Afon-
so Camargo, Wenceslau Glaser, José Pinto Rebello, Fido Fontana,
Carlos Ross (a 1º construída junto às pedras), Julio Hoffman mais
adiante, Conde Carnacialle, Carlos Wolf e na rua Itacolomi cha-
mada de rua dos Italianos as casas da família Wardânega, José
João Bigarella, família Gussi e outras cujos nomes minha memó-
ria não registrou. Foi aí que resolveram acrescentar um “S” ao
nosso “Matinho”, que passou a ser “Matinhos”.
Contam os antigos que nome Matinho foi dado pelas pes-
soas que viajavam para Guaratuba levando cargas, geralmente
em carros de boi, e, entre as duas praias “hoje praia central e
“Praia brava” encontravam aquele matinho, onde descansavam,
davam capim aos animais, água e conversando diziam uns aos
outros quando se encontravam: “Dormi das 3:00h às 5:00h no
matinho. Descansei no matinho”. Daí o nome.
Jocelina Santana Bonatto56
O Engenheiro Carlos Ross que já havia loteado as terras do
povo dos Apolinários como se dono elas não tivessem, com muita
visão do futuro, mesmo que sobre essas terras e viessem morado-
res inclusive nós, pois meu pai chamava-se Alexandre Leocádio
Apolinário de Santana, João Inácio Freire (tio), Vitorino Freire (tio)
Leocádio Freire, João Infância de Santana (primo) e outros, ela-
borou a Planta Boqueirão do Matinho e acrescentou o famoso “s”
tornando o nome mais sofisticado, surgindo então o “Matinhos”,
motivo gerador de demanda Judicial por muitos anos.
Matinhos e a 2ª Guerra Mundial
Transcorria a 2ª Guerra Mundial e Matinhos, costa brasi-
leira, ficou sob vigia do exército. Durante esse período dois acon-
tecimentos marcavam nossa família. O primeiro refere-se a ida
do tio (Manoel da Silva Ramos), graças a Deus aí vivinho, para
relembrar comigo este registro. Ocorreu o seguinte: ele foi a
Guaratuba para fazer compras, não levou nem seus documentos
- carteira de pescador e certidão de nascimento, jamais lembran-
do que sua idade era a de servir o Exército Brasileiro. Em virtu-
de da guerra, estavam convocando os cidadãos através de listas
Gigi. De volta ao passado 57
publicadas nos jornais. Mas, onde ele iria ler jornal? Chegando
lá o delegado foi informado de sua presença na cidade. Imedia-
tamente foi detido e dois dias depois encaminhado às autorida-
des como submisso. Que choradeira! Ninguém se conformava
com tamanha desdita. O tio Juvêncio veio em Matinhos, para na
passagem da diligência entregar-lhe o chapéu. Nem o chapéu
havia levado! Daí há uns vinte dias chega a primeira carta em
que dizia: “Estou em Curitiba, incorporei na 5º Companhia de
Comunicações, sediada no Portão”. Ocorre que ele fez carreira
no exército, até aposentar-se. Do lavrador um pouco pescador,
virou cabo, sargento, subtenente, tenente, finalmente capitão. A
guerra declinou o seu destino.
Outro foi o que ocorreu com nossa irmãzinha Otília (a
Tilinha) de 1 ano e 8 meses. Febre alta, convulsão, um tumor na
cabeça, não havia médico. Meus pais tentaram levá-la a
Paranaguá, mas se fazia necessáriao uma permissão do coman-
dante das unidades militares sediadas aqui para poderem sair
de Matinhos. Houve um desencontro e não foi conseguida a per-
missão. Passaram-se alguns dias até que o médico do próprio
exército a examinasse e diagnosticasse meningite. Não resistiu;
era tarde, lamentavelmente faleceu.
Jocelina Santana Bonatto58
A época da guerra, foi dificílima para nós. Ao anoitecer não
se podia acender nem um palito de fósforo. Escuridão total! Ha-
via perigo de que submarinos inimigos se encontrassem no mar
da costa brasileira. Não tínhamos açúcar, tomávamos café adoça-
do com caldo de cana. Às vezes no quarto fechado durante 8 dias.
Até as pequenas frestas eram fechadas. Tantos outros percalços!
Mas também havia o lado alegre. A nossa Matinhos cheia de
soldados, muitos namorados para as moças, bailes animadíssimos
na nossa casa ao som da gaita do seu Ernesto Waighert, acom-
panhado pelo violão do Lacrides, músicas cantadas pelo Isidoro
Batista... um período diferente!
Ninguém podia falar alemão ou italiano. As casas dos fun-
dadores de Matinhos viraram quartéis, pois todos descendiam
de alemães e Italianos. Exercícios de guerra em direção ao mar
deixavam todos apavorados. Tiros de canhões, metralhadoras...
um barulho infernal!
Nessa época, havia começado a construção de Igreja de São
Pedro, hoje Museu! Porém, as pessoas responsáveis pela cons-
trução pertenciam a famílias italianas ou alemães: D. Maria
Brenna, Sr. José João Bigarella e sua querida dona Otília e ou-
Gigi. De volta ao passado 59
tros, que em função da guerra já não conseguiam viajar livre-
mente. As obras pararam.
Quanto brinquei nos muros (paredes) já erguidas! Pulei à
vontade na igreja; mal sabendo que ali eu viria a me casar, bati-
zar meus filhos. Éramos uma turminha de moleques que saía-
mos da escola e vínhamos brincar ali. Eu, a Nena Waess, Carlos
Freire, Olga de Silva, Neusa da Silva, meu irmão Dodó e outros
moleques que hoje são os sessentões que estão por aí. Nós fomos
as crianças, as primeiras crianças a crescerem em Matinhos, cujos
filhos agora atuam nas mais diversas atividades de Matinhos. Nós
nascemos, crescemos e estamos envelhecendo na nossa terrinha.
A escola
Que saudade da Escola Isolada onde agora funciona a Câ-
mara Municipal, com o prédio reformado, mas que ainda con-
serva o estilo primitivo. No pátio havia os sinais dos nossos pés
pulando caracol, corda, brincando de chicote-queimado de se
esconder, de ciranda-cirandinha, de bom-barqueiro. Saudade da
padaria do Seu Abílio Francisco ao lado, que ainda sinto o chei-
rinho de pão assando.
Jocelina Santana Bonatto60
Lá papai abriu um crédito para que eu, o Dodó, mais tarde
a Elsa (meus irmãos) comprássemos diariamente um pão para
cada, pois na escola que eu aprendi o bê-a-bá, não existia me-
renda escolar, cada criança levava para merendar na hora do re-
creio o que tinha em casa: um ovo cozido, uma banana, um pe-
daço de bijú, uma batata doce.
O Tonico, ex-prefeito de Matinhos, não gostava de resol-
ver problemas de aritmética. Meia volta lá vinha ele: “Gigi, você
faz meu problema que eu te trago uma batata doce cozida.” Eu
fazia e garantia a merenda para o dia seguinte.
Mais tarde, muitos anos depois, o Tonico foi Prefeito de
Matinhos, e eu, Chefe do seu Gabinete. A vida é assim. Aposen-
tei-me quando ele era prefeito. Havia trabalhado quase 32 anos
em serviço público, mais tempo—20 anos, lecionando, tendo co-
meçado a trabalhar na mesma escola onde aprendi a ler. Não es-
queço da minha primeira professora, Dona Maria Miguel Karuta,
hoje Nascimento. Jacira Serafim Rocha, Alaíde Nascimento, Nilza
Soares da Silva, Haydée Ribeiro, Alice de Melo Cordeiro, Hilda
Zimmerman. Abnegadas?... Trabalhavam com mais de 40 crian-
ças de 1º, 2º e 3º anos e conseguiam bons resultados.
Gigi. De volta ao passado 61
O transporte
Matinhos dos meus primeiros anos de vida é o que me faz
lembrar da diligência do Germano Russi, dirigida pelo “Cama-
rão” que vinha pela praia, quando a maré estivesse baixa, por-
tanto sem horário definido.
O bar do Sr. Alberto Ferreira, na rua que liga as duas prai-
as, ao lado do local onde funcionou a Garaparia da Ica era o ponto
final. É a Matinho da lotação do Seu Ernesto Wegert, depois do
Seu Waldemar, movidas a Gasogênio, era tempo de guerra e não
havia gasolina, o jeito era usar carvão como combustível.
O lotação apanhava os passageiros em casa às 6:00 horas e
só chegava em Curitiba no meio da tarde, isso se não quebrasse
no caminho. É do Matinhos do Hotel Beira-Mar de propriedade
do Sr. Rainoldo Sheffer, do Clube Familiar de excursão, depois
Sociedade Duque de Caxias, do Hotel do Seu Albano Muller,
sempre lotados nos períodos de férias.
Maré alta
Uma cena que não esqueço: uma manhã íamos para a esco-
la e resolvemos dar uma voltinha. Tinha acontecido uma maré
Jocelina Santana Bonatto62
muito alta e o Seu Reinoldo criava galinhas para uso nas refei-
ções do hotel. Que surpresa! Quantas galinhas mortas boiando!
A maré foi tão alta que não se salvou nenhuma. Morreram todas
afogadas. Ele estava com tanta, mas tanta raiva que mandou a
criançada juntar as galinhas e levar para a casa para serem apro-
veitadas. Foi zás-trás, juntamos várias, levei três galinhas para
casa. Foi uma festa!
O rádio
Matinhos da casa do Jonas, ponto de encontro de todos os
parentes. Ali casaram-se três filhos daquela casa com três da casa
da vovó. Ficava ao lado da igreja, esquina onde hoje é o restau-
rante da família Ache. Ali todos se reuniam. Existia na casa do
Jonas uma cadeira de balanço que era o meu encanto. Adorava
me embalar naquela cadeira.
À noite, saíamos de casa para ouvir rádio naquela casa; era
o único de Matinhos, procurávamos através dele ouvir as notí-
cias. Imagine o Sr. Odorico Tavares, capataz da colônia de Pes-
cadores com o ouvido colado ao rádio e umas seis crianças pu-
lando e gritando ao seu redor. Coitado! Acho que contou, de-
pois, todas as notícias erradas. Ouvir certas de que jeito?
Gigi. De volta ao passado 63
Vejamos a cena que presenciei muitas vezes: Um rádio com
muitas descargas transmitindo a “Hora do Brasil” e aquele
barulhão! Não dava para entender nada. No dia seguinte a mes-
ma cena.
Manguesal e goiabeiras
Matinhos onde existia um manguesal, desde os fundos do
Hotel Beira-Mar, até o “Rio Matinho”, mais tarde aterrado, quan-
do Matinhos já se transformara em Distrito. Esse manguesal ficou
sob os cuidados do Sr. Max Roesner que contratou carrocinhas tipo
“toco-duro”, lembro de uma pilotada pelo Sr. Inácio Crisanto e
outra por seu filho Eurípedes (o charuto) que realizaram o aterro.
Demoraram muito, mas conseguiram.
Acabou o mangue, acabaram os ninhos de marrecos da D.
Bernardina Mesquita onde a gente ia procurar ovos e entregar-lhe
religiosamente, um por um, pois foi assim que o papai nos ensi-
nou e exigia que o fizéssemos, mas restava-nos a esperança de ga-
nhar algum ovo.
Matinhos onde íamos cortar goiabas, araçás, camarinha,
murta, pitanga, e agora é a agência do Banco H.S.B.C.
Jocelina Santana Bonatto64
Matinhos do Rio do Gabriel Mesquita, hoje o local onde está
construída a casa do Sr. Jorgito Cury, onde ali se lavavam os pés,
quando vindos do Sertão, Tabuleiro ou Cambará e calçavam-se
os tamancos para ir a vila.
As festas
Matinhos das Festas de Santo Antonio e Nossa Senhora da
Conceição na casa do Sr. Jacinto Viana de Mesquita, com terço,
fandango, fogueira, quentão, doce de goma, gemada com vinho.
Quanta simplicidade, mas também, quanta alegria! Onde era a
casa que citei acima, hoje está instalada a floricultura de seu neto
Luiz Antonio de Mesquita Ramos (o Tuta).
Da festa de São Gonçalo na casa do Sr. Manoel Ferreira Go-
mes, nome respeitado por aqui, família muito grande! Nesta fes-
ta, com um terço cantado, casais, ao término dançavam em fren-
te ao altar para o Santo, um par de cada vez. Foguetes, licor, as
outras bebidas e iguarias que formavam o hábito do nosso povo
nos dias festivos. Não podia também faltar um fandango.
Um costume que nunca esqueci: no meio do fandango ha-
via uma pausa para os violeiros descansarem e nessa pausa a
Gigi. De volta ao passado 65
dona da casa vendia pratos de canjica ou café com arroz servi-
dos em pratos fundos. Tomavam café com arroz para ganharem
mais uma forcinha, o que permitia que pudessem “bater” (ter-
mo usado) o fandango até amanhecer.
1.945 – Terminou a 2º Guerra Mundial. Por aqui tudo vol-
tava ao normal. A igreja foi concluída. Começaram as festas de
São Pedro Apóstolo, eleito Padroeiro de Matinhos que há pou-
cos anos era apenas um núcleo de pescadores.
Nos dias de festa, durante muitos anos eram feitos leilões,
cujas prendas eram tainhas recheadas, bolos, pratos de sonho, fran-
gos assados, pães, e vai por aí... Depois de alguns anos, meu cu-
nhado José Bonatto, Juiz de Paz, pessoa séria, assim como o Sr.
José Santoro, ambos de descendência italiana, passaram a cuidar
da realização das festas. Assim como eles, muitas outras pessoas
também participavam desse acontecimento. O maior acontecimen-
to religioso da vila. Armavam uma pequena roleta, determinavam
que as moças vendessem bilhetinhos, enquanto depois dos atos
religiosos próprios, missas, procissão, batizados, casamentos, gri-
tavam a todo vapor:
Vai corê!... Vai corê!...
Ambos já não estão mais entre nós.
Jocelina Santana Bonatto66
O sino da igreja
Marcaram muito minha infância o badalar do sino da igre-
ja. Aos meus ouvidos parecia que diziam algumas palavras. Era
tocado pelo Seu Manoel Rosa (Mané Rosa) católico fervoroso que
assumiu essa missão. Quando as badaladas eram para chamar
os fiéis para a missa diziam: está ali São Pedro... está ali sentado:
Está ali São Pedro... está esperando!
Para avisar que havia morrido alguém, e que naquela hora
ía ser sepultado, bem lento, soava: Dona Dirce... D. Inês...ele foi...
não volta mais.
Quando o Padre tinha chegado de Paranaguá: Farofa tem...é
só “pra” nós, Farofa tem, é só prá nós e assim cada vez mais rá-
pido. Hoje ao ouvir o badalar de um sino, sinto uma saudade
indescritível. Não encontro palavras para traduzir o que me vai
na alma.
Os sambaquis
Até aproximadamente o ano de 1.947 meus pais ainda vi-
viam do trabalho na roça e pescaria artesanal para o sustento da
Gigi. De volta ao passado 67
família, que não era pequena, nove filhos. As roças de meus pais
no morro do Sertãozinho, onde mais tarde foi vendido ao Sr.
Francisco Jacinto Mesquita. Ao sopé desse morro foi construída
uma olaria, que não prosperou. Quantas vezes acompanhei ma-
mãe ao serviço na roça. Eu não trabalhava, só chupava cana, as-
sava espigas e outras iguarias mais.
Caminhei muitas vezes no caminho do Sertãozinho. Vi o
Dr. José Loureiro Fernandes estudando o sambaqui que haviam
demolido (acho que o D.E.R.) para revestir ruas e estradas. Che-
guei a presenciar a retirada de um crânio humano do meio dos
berbigões e cascas de ostras (Sambaquis). Nunca imaginei que
bem ali, um dia, meu filho instalaria uma loja de materiais de
construção! A Praiana.
Aprontamos algumas!
Pobre mamãe, quantos dias nos deixava em casa e ía sozi-
nha trabalhar na encosta daquele morro. Levantava-se muito
cedo, nos dava café, muitas vezes com um ovo cozido e partia
em dias de frio ou calor. Ao meio-dia voltava para fazer nosso
almoço e ver como as coisas andavam em casa. Eu, por ser a fi-
Jocelina Santana Bonatto68
lha mais velha dirigia o time. Mamãe ficava satisfeita, pois qua-
se tudo corria bem. De fato, uns varriam a casa, outros íam bus-
car água no rio, outros lenha fina para acender fogo com maior
facilidade quando ela chegasse, até cuidávamos do feijão que fi-
cava cozinhando!
Mas tudo tem a sua primeira vez. Tínhamos uma vaca com
bezerro e era dela que nossos pais tiravam leite para nos alimen-
tar. Um dia estavam demorando a voltar para casa. A fome aper-
tava! Aí tive uma idéia que me pareceu brilhantíssima: Abri a
porta da cozinha, amarrei uma corda ao pescoço da vaca e o Dodó
e a Elsa empurravam e eu puxava . Sabem para onde? Para den-
tro da cozinha que era da altura do solo. Lá entrou a vaca. Ten-
tamos tirar leite, pois pretendíamos comer com farinha. Nada de
leite! Puxa a teta daqui, puxa dali, cadê o leite? Nessas alturas a
dita fez um montão daqueles! Pior. Deitou no chão e ficou ali
ruminando. E agora? Nada da vaca levantar. O bezerro berrava
lá fora, a vaca na cozinha. Não teve jeito de resolvermos a situa-
ção. Subimos na parte mais alta da casa e ficamos aguardando o
retorno dos nossos velhos, que ao chegarem depararam com
aquela cena. Papai ria sem parar e mamãe estava furiosa. Claro,
ela teve de limpar o montão que a vaca fez. Levamos uns bons
Gigi. De volta ao passado 69
tabefes, naquele tempo os pais davam tabefes e não ficavam
traumatizados. Agora ficam. Só que os filhos daquele tempo obe-
deciam aos pais, os de agora, será que ainda fazem uso da obe-
diência? A vaca foi colocada para fora e eu nunca mais esqueci
essa molecagem da minha vida.
Mas aprontamos outras tantas!
Era comum esperarmos o ovo sair, é, dali mesmo da gali-
nha, para fazermos uma boa farofa. Havia um acordo de nin-
guém contar nada para a mamãe. Então quando brigávamos era
aquele medo! Um ameaçando os outros dizendo: Eu conto para
a mamãe que você fez farofa do ovo que a galinha botou.
— Não conte, amanhã o ovo é seu. Assim seguiam nossas
vidas sem briga, um com o rabo preso ao outro. Para a mamãe
só restava o trabalho de dar milho as galinhas. Os outros irmãos
ainda eram pequenos - não tomavam parte nessas artes.
“Berço de Ouro”
Comíamos basicamente o peixe, às vezes seco, ou pegos a
noite com a tarrafa, e que mamãe já deixava salgado antes de
sair para a roça. Lá chegava ela com o balaio na cabeça, cheio de
Jocelina Santana Bonatto70
aipins, bananas, batata doce, batata inglesa e salsa não existiam
por aqui, começando agora os afazeres domésticos. Fazia comi-
da nos alimentava, mandava lavar louça, corria até o rio, (não
sei que fim levou aquele rio) que nos forneceu água por tantos
anos e que passava nas imediações da rua (Itaporã), antes da atual
Avenida do Contorno, digo rua Tabajara, parece-me que mais
na direção de Caiobá. Naquele rio, sobre uma tábua lisa coloca-
da em sua margem mamãe ia lavar nossas roupas.
De nossa casa, onde hoje vivem minhas irmãs Elsa e Maria, lá
também a casa deixada por nossa falecida irmã Zoraide saia um
caminho, caprichosamente aterrado a muque por papai, auxiliado
apenas por uma velha enxada. Ali vi muitas saracuras, bem cedo,
catando seus alimentos. Havia bandos de Arapuã, que os nossos
chamavam de Araquã, canários da terra e tantos outros pássaros
que desapareceram. Árvores de Guanandis às suas margens.
De vez em quando vinha o pessoal da malária coletar amos-
tras para verificar se ali havia focos de mosquitos causadores da
febre maleita. Uma vez até extraíram todas as bromélias
(gravatás) que cresceram nos guanandis e outras árvores, com
isso visando eliminar todos os possíveis focos de mosquitos. Mas,
meia–volta alguém estava com febre, até que com esse trabalho
não tivemos mais notícias de maleita em Matinhos.
Gigi. De volta ao passado 71
Quando meu filho Hamilton foi candidato a Prefeito, por
ser Eng.º Civil e entendendo que poderia realizar um trabalho
planejado tecnicamente, perdeu as eleições, pois a campanha con-
tra sua candidatura foi a de quem vinha de uma família nascida
em berço de ouro. Rico não conhecia a vida do pobre. De pirão
como alimento, esteira para dormir, pés descalços até boa parte
da vida, se ser rico é esse tipo de vida, realmente nascemos
riquíssimos! É como disse um dia o poeta: “Se caráter vale algu-
ma coisa, eu pago o preço!”
O Cambará
Estrada para o Sertãozinho não existia. Era um caminho
cheio de atoleiros, banhados em quase toda a extensão. O pesso-
al que morava no Cambará vivia uma verdadeira epopéia, para
vender seus produtos necessários à própria sobrevivência.
Vive muito nitidamente em minha memória a imagem da-
queles homens e mulheres, no inverno, muitas vezes molhados,
descalços, pálidos, cobertos até a barriga por respingos de lama,
com um balaio sobre a cabeça, cheio de mimosa, um feche de
palmitos, farinha de mandioca, bananas, algumas galinhas para
Jocelina Santana Bonatto72
vender e na volta, com o mesmo balaio na cabeça, já quase noite,
caminharem de 15 longos km, levando sal, querosene, açúcar,
uma pinguinha, (que ninguém é de ferro).
Muitas dessas pessoas ainda vivem, mas mudaram-se do
Cambará, onde justamente hoje existe ali um centro turístico - O
Parque Aquático Águas Claras, um hotel fazenda, o Hotel Mata
Atlântica. Com a construção de uma rudimentar estrada de chão
batido, lá por 1.947-48 tudo melhorou. Hoje esse trecho é asfal-
tado. É a bela estrada Alexandra–Matinhos. Não foi o suficiente
para que o Cambará prosperasse nas mãos dos seus nativos. Já
estavam idosos, cansados, esgotados de tanta luta e partiram em
busca de uma vida melhor.
A estrada de chão batido foi construída quase na base da
força humana. Eram muitos homens acampados às margens do
traçado da mesma, a maioria com a família, os quais eram cha-
mados de “Arigós”. Com muita força e suor a estrada ficou pron-
ta. O material para o aterro dos trechos mais baixos, eram trans-
portados em carrinhos de madeira, que corriam sobre trilhos,
igualmente de madeira, os quais eram chamados de “Galiotas”.
Esses carrinhos eram carregados com pás e também descarrega-
dos pelos Arigós no lugar necessário. Muito trabalho desses ho-
mens. Quanto suor derramado!
Gigi. De volta ao passado 73
Dessas famílias, poucas ficaram em Matinhos. A que mais
conheci foi a família Pacheco, cujo chefe o velho Pedro Pacheco
viveu o resto de sua vida no Sertãozinho. No local que morou
ainda vivem seus filhos e netos. Até pouco tempo atrás ainda
existia a antiga casa do Pacheco, marco de desenvolvimento da
zona rural de Matinhos, hoje o próspero bairro do Sertãozinho.
O Pacheco tornou-se amigo do meu marido, trabalhando
com ele em serviços braçais em caminhões por algum tempo. Fa-
zia aniversário no dia 29 de junho. Dia de São Pedro. Era certo
que cedo todos os anos nessa data ele aparecia em nossa casa para
lembrar-nos que era aquele o dia do seu aniversário. Cumprimen-
távamos, dávamos o seu presente que já estava guardado e lá ia o
Pacheco feliz da vida! Essa era a maior festa do seu aniversário. Vi-
veu mais de oitenta anos. O Pacheco foi um Arigó- moreno de alma
muito branca. Vive na lembrança de todos nós. Quem não lembra
dessa figura que fez tipo em Matinhos? De vez em quando tomava
uma “Barra Velha” (marca de pinga) e ficava teimoso, briguento,
mas logo passava e aí ressurgia a criatura boa, alegre, trabalhadora,
humilde que sempre foi.
Jocelina Santana Bonatto74
A vinda dos catarinenses
Matinhos se desenvolvia aceleradamente. Começaram a vir
cuidar da pesca muitas famílias catarinenses. Moravam em casi-
nhas pequenas na beira da praia, ao lado do local onde agora
existe o mercado do peixe. Os catarinenses trouxeram outros
métodos de pescaria. Os nativos, como meu pai, abandonaram
as canoas à remo de voga, remo de pá ou velas e juntos começa-
ram a instalar motores nas canoas.
Papai deixou definitivamente a lavoura nos morros. Os
catarinenses usavam enormes redes para a pesca do cação. Era
comum a gente ir à praia pela manhã e vê-los chegando com as
canoas cheias desse peixe que eram jogados ali mesmo na praia
e limpos. O cação, principalmente a Mangona, o Tanhopen, o
Cabeça Redonda e outros eram escalados e salgados em mantas,
depois de secos ao sol em varais de varas de madeira. Era uma
paisagem notável, barcos à beira da praia, redes estendidas,
balaios, remos encostados e muito cação secando. O fígado era
aproveitado para fazer azeite. Era colocado em tachos enormes
e derretidos. Ao longe, sentia-se um cheiro muito forte que ema-
nava dali. Conheci os pescadores: Manoel Flor, João e Antonio
Gigi. De volta ao passado 75
Cunha (Tota) Domingos e Nésio Batista (irmãos) Virgílio Zacarias
que chamavam de Dorico, Aniceto Zacarias, Alípio e Olímpio
Pereira (irmãos) João Eleodoro, Manoel Joaquim e Antonio Joa-
quim da Silva, José Valessia, Primitivo Corrêa e Martinho Corrêa.
Meu pai entrosou-se com eles e passou a pescar junto.
Chamava-me a atenção o capricho com que suas casas eram
cuidadas, os armários eram feitos de caixões pregados nas pare-
des, mas todos com prateleiras ornamentadas com bicos de pano
bordados a mão com fios coloridos. Panos de parede também
bordados eram colocados em suas cozinhas.
Os lençóis que forravam as camas, já com colchões, eram
feitos de saco, mas precisamente com sacos de sal desocupados,
comprados para a salga do cação. Como eram brancos! Anilados!
Nem pareciam serem feitos de saco. Na cozinha suas panelas bri-
lhavam. Eram areadas todos os dias. Ao lado da vila dos pesca-
dores existia uma torneira coletiva, onde todas as mulheres ins-
talavam seus coxos de lavar roupa e varais para secar. Era tam-
bém dessa torneira que era apanhada a água e levadas em vasi-
lhas, geralmente latas, para casa.
Então, era comum a gente ver aquela quantidade enorme
de roupa secando ao sol e quarando no capim que existia por
Jocelina Santana Bonatto76
ali. Aquela era a “Boca Maldita” de Matinhos da época. Todas
as fofocas que se prezasse passa por ali, através das lavadeiras.
Coisa rápida. Nada grave. Passaram-se alguns anos lá por 1.952,
esses pescadores foram deslocados para o outro lado do rio de
Matinhos e construída, no local uma colônia de férias do pessoal
da aeronáutica (oficiais). Era hábito dos pescadores irem pescar
nas ilhas dos Curraes e Itacolomi – o peixe que mais apanhavam
era anchovas. Às vezes permaneciam na ilha dos Curraes até um
mês. Traziam o peixe seco para a praia. Era uma vida muito dura,
de muito risco, pois seus barcos eram muito frágeis e no verão
ocorriam tempestades com ventos muito fortes. Mamãe quase
morria de susto, rezava o tempo todo pedindo a Deus que prote-
gesse ao papai e seus companheiros.
O progresso
Morávamos à beira-mar. Como eram deslumbrantes as noi-
tes de lua cheia. Aquela lua enorme, vermelha que parecia sur-
gir do mar e logo iluminando as ondas do mar que prateadas
formavam um espetáculo ímpar. Ao amanhecer, ainda ao raiar
do dia, abrir a janela e ver a Estrela Dalva lá no céu! Era nesse
Gigi. De volta ao passado 77
horário que os pescadores saíam para a labuta diária. Muitos
motores dos barcos numa batucada muito forte, que até bem dis-
tante ainda emitiam o seu som: Pô-pô-pô e lá, se íam eles voltan-
do lá pelas 10 horas com suas canoas cheias de balaios de pei-
xes, camarão e outros pescados.
A praia ainda era larga, com muita areia fina. Caminhar na
beira da ressaca era uma delícia! Batuiras, manini, conchas, águas
vivas, garoçás, lá adiante uma gaivota tentando apanhar algu-
ma coisa para o almoço, atobás sobrevoando o mar. A sensação
era de que vivíamos num paraíso. Perdemos quase tudo. Muda-
ram nossas casas. Será que aqueles oficiais tiveram a sensibili-
dade para apreciar o espetáculo que a natureza e os pescadores
proporcionavam? Tomara.
O balneário se desenvolvia, agora era distrito de Paranaguá
e como entre a população já existiam muitos eleitores, o interes-
se dos políticos paranaenses pela conquista dos votos foi desper-
tado, procuraram proporcionar alguns melhoramentos para
Matinhos. Instalaram aqui uma sub-Prefeitura de Paranaguá e
nomearam o Sr. Rosalino Fernandes como sub-Prefeito. Foi ele
que aproveitou boa parte das conchas extraídas dos sambaquis
e revestiu as ruas de Matinhos e Caiobá com esse material. Os
ecologistas não perdoam o órgão governamental que destruiu os
Jocelina Santana Bonatto78
sambaquis, pois os de Matinhos seriam muito importantes para
estudos arqueológicos.
O cinema e o comércio
Foi instalado um motor movimentado a diesel que forne-
cia luz, isso quando não quebrava, das 13:00h às 24:00h e mais
tarde das 8:00h às 24:00h. Melhorou bastante, pois D.Valentina,
até montou um cinema. Foi o Cine Matinhos, no local onde hoje
é a Loja Capri de seu neto Hélio Brenner de Oliveira.
Quantas matinês! E que filmes! O Mazzaropi estava sem-
pre em cartaz. Bons tempos! Nessa época o Sr. Mustafa Salomão
instalou o “Bar do Banhista”, na atual rua das Sereias. Era uma
espécie de bar dançante. Os jovens ficavam lá dentro mesmo ou
na frente do estabelecimento. Tomavam sorvete, refrigerante, na-
moravam e dançavam quando quisessem, pois sempre havia uma
música tocando. Depois, vendeu ao Sr. Pedro Buiar, que tam-
bém fez funcionar como cinema. Era normal estarmos assistindo
um “episódio” de bang-bang e pumba... o motor quebrou! Nes-
ses casos levávamos um vale para voltarmos para assistir o resto
do filme quando o motor tivesse sido consertado.
Gigi. De volta ao passado 79
Num barracão na rua Itaporã, também funcionou um cine-
ma do Sr. Albano Müller, nos mesmos moldes dos outros.
Augusto Bonatto instalou um armazém de secos e molhados,
mudando depois para a casa do Jonas, na Praça da Igreja, até
mudar-se para o prédio que construiu na rua Roque Vernalha,
esquina com Rainoldo Sheffer, trazendo para trabalhar com ele
meu marido Alberto Bonatto, que depois trouxe seus irmãos José
e João, comprando o armazém de seu primo Augusto que foi
embora para Curitiba. Também foi construída a nova Igreja de
São Pedro.
Mas o ponto mais chic de Matinhos lá por 1951, 52 era o
bar e sorveteria do Sr. Felipe Laffite. Lá fora um posto de gasoli-
na. Dentro muito bem montada a sorveteria, lanchonete, bar. Ali
era o ponto de encontro obrigatório das famílias para tomar sor-
vete, e que sorvete, conversar, e os jovens fazer sua paquera. Ha-
via também um terraço onde dançavam ao som das músicas de
sucesso: Cerejeira em Flor, Perfídia, Asa Branca, A Média Luz,
Luzes da Ribalta e tantas outras.
O comércio era muito pequeno. O Armazém do Alberto
Bonatto, o do Sr. Jorge Borges, na esquina da praça onde existe a
rodoviária, a lojinha da Léa Vialle Curi e seu marido Jorgito, a
Jocelina Santana Bonatto80
padaria do Maneco Leonel, o Hotel do seu Albano Müller, este
com a primeira sorveteria que apareceu em Matinhos, a farmá-
cia do Sr. Mário Corrêa de Paranaguá, depois a Petiscaria do Sr.
Henrique Santos! E o seu Fritz e a D. Ilse que já começaram a
trabalhar em sua padaria à rua da Fonte. Se existiam outros não
me lembro!
Pouca coisa registrei em minha época sobre esse período,
pois morei em Curitiba. De 1.960 a 1967 aconteceram melhorias
que culminaram com a criação do Município de Matinhos em 12
de junho de 1967. Nosso sistema de luz elétrica tornou-se o mes-
mo da rede estadual, acabou o suplício dos motores a diesel, foi
construído o Colégio Gabriel de Lara, depois o ginásio.
Onde está aquela Matinhos
Em 19 de dezembro de 1.969 instalou-se o Município de
Matinhos. Essa é outra história. É a história de Matinhos cheia
de arranha-céus, automóveis, servido por telefonia de ótima qua-
lidade, ruas asfaltadas e tudo o mais. Matinhos dos meus filhos.
Que teria nossa geração feito daquela Matinhos tão bela, tão
serena? Por que teria sido perdido totalmente tudo isso? Por mais
que refeita, não consigo entender por quais motivos em tão pou-
Gigi. De volta ao passado 81
cos anos, os valores que empregnaram nossas almas se perderam
totalmente.
Anotei estas lembranças a pedido dos meus filhos, com muita
insistência do Hamilton, o meu filho Matinhense (os outros nas-
ceram em Curitiba), que é professor, gosta muito de ouvir falar
de suas raízes e lamenta que uma cultura tão rica em detalhes te-
nha sido esquecida, abandonada. Para que seus filhos no futuro
não tenham nem idéia de como era dançado um fandango, de
como eram feitos os lances de tainha, de outros costumes, quando
na verdade essa foi a vida de seus bisavós, ou de sua avó, esta
que dentro de seus limites, procurou nestas linhas, em rápidas pin-
celadas registrar o que ainda vive em sua memória, que teve uma
infância muito participativa nessa vivência.
A vida continua
Mas a vida continua. Tudo muda muito rapidamente e logo,
certamente, Matinhos será uma grande cidade, um grande Cen-
tro Turístico Nacional, eis um sonho, já que elementos para tan-
to não lhe falta! Praia, serra, floresta, mar!... e meus filhos tam-
bém contarão sua história que por certo começará assim:
Jocelina Santana Bonatto82
...Era um Sábado após o carnaval. Matinhos foi inundada por
ônibus, isto no fim do século passado, em 1999, os quais chega-
ram lotados de todas as cidades do Estado. Vinham repletos de
sambistas. Chegavam para participar da Festa do Ressacão que se
realizou no centro de nossa cidade. Escolas-de-samba que chega-
vam também para o desfile . As ruas se enchiam de gente, carros
de som, músicas estridentes, aplausos para as passistas. Era ma-
drugada e acontecia a escolha da campeã do Ressacão, enquanto
ao amanhecer o Padre Joaquim, Pároco da cidade, autografa e ven-
de seu livro “Deus é Mãe”. De 1.968 a 1.999 muitas mudanças acon-
teceram. Meus filhos melhor que eu saberão contar.
Somente Deus sendo Mãe para aceitar tudo isso, se fosse
eu que estivesse escrevendo sobre esse período. Como serão meus
filhos, meus netos, está tudo certo. O novo século se aproxima.
Tudo mudou.
Só uma coisa não mudou.
O povo dos Apolinários são os legítimos fundadores de
Matinhos. Os antigos se foram, mas nós estamos aqui contando
a história que eles escreveram.
GIGI - JOCELINA SANTANA BONATTO.

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Gigi - De Volta ao Passado

  • 1. Gigi. De volta ao passado 1 Jocelina Miranda Bonatto
  • 2. Jocelina Santana Bonatto2 Apoio Prefeitura Municipal de Matinhos Impressão e acabamento Gráfica Nononono Tiragem 0.000 exemplares Digitação Rosa Ramona Ciscato Chuchene Revisão Vivian Aparecida Ciscato Chuchene Bonatto Kàrin Odette Brückheimer Capa, projeto gráfico, arte e diagramação Marcos Roberto Pinto de Aguiar
  • 3. Gigi. De volta ao passado 3 Apresentação Escrevia no quadro-negro de uma pequena escola pública de Matinhos, em letras grandes e dizia a seus novos alunos: - JOCELINA, este é meu nome. Imediatamente um dos alunos erguia as mãos e argumentava: - Minha mãe me disse que o nome da minha professora se- ria Dona Gigi. - Então pra vocês eu serei a Dona Gigi. E esse fato se repetia a cada ano. Na nossa pequena cidade dificilmente alguém que não fosse um parente ou um amigo muito próximo saberia dizer qual era o seu verdadeiro nome. Pra que mais que Gigi? Simples o nome, e mais, ainda a porta- dora. Não tinha porque ser diferente. Nasceu num lugar onde não havia nada que lembrasse luxo, num caloroso mês de janei- ro. Filha de lavradores, primogênita numa lista de doze filhos que tiveram Etelvina e Alexandre. Por curiosidade e esperteza aprendeu o bê-a-bá em casa, antes mesmo que fosse levada à es- cola isolada, como eram chamadas as escolas que se subordina- vam às ordens de Paranaguá. Ainda criança ficou muito doente, cujo mal não havia quem tratasse em Matinhos. Foi levada para Curitiba, por turis-
  • 4. Jocelina Santana Bonatto4 tas que frequentavam o balneário e por lá ficou durante parte de sua mocidade. Em Curitiba foi mais Gata Borralheira que Cinderela, mas soube tirar lições que trouxe consigo pelo resto da vida e pôde passar para todos aqueles que viveram ao seu redor. Cada pedaço de papel escrito tinha para ela a importân- cia de um livro. Cada filme que assistia tinha o poder de horas de terapia. Cada vestido, cada sapato, cada corte de cabelo, cada comida, eram verdadeiras aulas de boas maneiras. Cada discus- são que presenciava tinha o valçor de uma aula. Quando retornou estava curada e se sentia preparada para a vida. Sabia exatamente o que queria para si e para seus entes que- ridos. Mudou o rumo de vida de muita gente sem fazer escarcéu. Teve importância fundamental na vida de seus pais e de seus ir- mãos. Como professora atuou bravamente nos rumos da educa- ção da nossa cidade. Como funcionária pública municipal, até hoje é lembrada como exemplo de capacidade e dedicação. Casou-se com Alberto já falecido, aí nasceram os fi- lhos Alberto Jr., Silmara e Hamilton que casaram com Rachel, Raul e Vivian, que tiveram Caio, Igor, Juan, Pedro, Saulo, Tamires e Raísa. E, como a família ainda não estava completa, vieram tam- bém como filhos João e Simone. Nós. Nós que buscamos a cada minuto de nossas vidas fazer jus ao amor recebido, reconhecer o
  • 5. Gigi. De volta ao passado 5 sacrifício que foi feito para que um dia nos tornássemos seres dignos da família que para nós foi construída, cidadãos honra- dos num país onde a moral e a ética estão na berlinda, pais cons- cientes da missão que Deus lhes deu. Gigi. Só Gigi. Pra que mais simples que isso? Precisa ser mais do que simples numa vida que estamos somente de pas- sagem? Precisa esquecer do Tabuleiro, onde tudo começou, ape- sar de ter conhecido o Brasil e alguma outra parte do mundo? Precisa negar os pés descalços, a boneca de celulóide, o aimpim com café e batata-doce, a esteira em que dormia e o travesseiro de marcela apesar de ter tido a chance de andar de saltos altos, de ter vivido na era das bonecas que falam e andam, de ter sa- boreado maravilhosos manjares e dormido em colchões e traves- seiro modernos? Esta era a Gigi. Nossa mãe. Simplesmente uma mu- lher, determinada, exigente, inteligente, forte, reconhecida e com um dom em poucos encontrado, o de perdoar e muito perdoou. As lembranças anotadas dizem mais do que podemos e a ela oferecemos aquilo que mais lhe alegrava os olhos: nosso amor e uma flor, simplkesmente amor e flor. Seus filhos.
  • 7. Gigi. De volta ao passado 7 Índice Lembranças.........................................................................................9 Minha família ...................................................................................11 Meus filhos .......................................................................................15 Aos meus adoráveis netos ..............................................................16 A casa da vó Ota ..............................................................................17 Alimentação......................................................................................23 A sala e quarto da casa de vó Ota .................................................25 A descoberta da torneira ................................................................28 Santana ou Miranda? ......................................................................29 A música ...........................................................................................32 Brinquedos, histórias e carinho .....................................................35 Nascimento de criança ....................................................................37 Frutas e outras plantações ..............................................................38 Ninho de galinha .............................................................................39 O peixe ..............................................................................................40 A maleita e outras doenças ............................................................41 O rio límpido ......................................................................................43 Evolução? ..........................................................................................44 A pescaria .........................................................................................45 A religiosidade.................................................................................47
  • 8. Jocelina Santana Bonatto8 Matinho virou Matinhos ....................................................................54 Matinhos e a 2ª Guerra Mundial ...................................................56 A escola .............................................................................................59 O transporte ......................................................................................61 Maré alta ...........................................................................................61 O rádio...............................................................................................62 Manguesal e goiabeiras ..................................................................63 As festas ............................................................................................64 O sino da igreja ................................................................................66 Os sambaquis ...................................................................................66 Aprontamos algumas!.....................................................................67 “Berço de Ouro” ..............................................................................69 O Cambará ........................................................................................71 A vinda dos catarinenses................................................................74 O progresso.......................................................................................76 O cinema e o comércio ....................................................................78 Onde está aquela Matinhos ............................................................80 A vida continua................................................................................81
  • 9. Gigi. De volta ao passado 9 Lembranças A maioria de nós em determinada época de sua vida, sente a necessidade de visitar, conhecer ou recorrer às nossas origens; o lugar onde nascemos e vivemos, muitas vezes, grande parte de nossa existência. Os fatos marcantes de nossa infância que sur- gem atropelando nosso inconsciente tomam conta de nossa ca- beça, às vezes, com tamanha intensidade que sentimos odores, velhos conhecidos nossos: cheiro de terra, grama, do mar, do or- valho nas folhas das flores e das árvores; essas mesmas árvores que nos estendiam os braços para um balanço, uma sacudidela, uma escalada perigosa longe do olhar vigilante dos nossos pais! (Cuidado para não cair menina!) Este cheiro também nos relembra o sabor das frutas (que nunca mais foi o mesmo, pois não se fazem mais goiabas, pitangas, carambolas, jabuticabas, como antigamente). O banho no riacho, na cachoeira, na água cristalina. Saudades, nostalgia, suspiro profundo. Passado nunca mais. Mas quem não tem passado para re- cordar, o que mais tem? Só a realidade, só o presente, o aqui e agora! Portanto, as escapadas que damos para o nosso passado, as olhadelas rápidas para trás em nossas vidas, devem ser mo-
  • 10. Jocelina Santana Bonatto10 mentos vividos intensamente, pois queiramos ou não, fizeram e fazem parte da nossa história. O passado é como a estrutura de um grande edifício. E quantos prédios desmoronam todos os dias pela vida afora... Falta de uma boa fundação que lhe dê susten- tação contra os ventos, tempestades e terremotos que certamen- te virá a enfrentar. Nosso passado. Um tempo já gasto e muitas vezes esquecido, onde “curtimos” grande parte de nossa vida abundantemente, incansavelmente, para desaguar nesse presen- te: no hoje! Neste fim de século, neste último dia em que nova- mente nascemos para a vida. Lembranças... muitas lembranças me levaram a escrever, modestamente o que minha memória ainda retém, incentivada insistentemente por meus filhos: Alberto Jr, Silmara e Hamilton, pois Andréa Simone e João foram criaturas que Deus confiou- me nesta vida e eu os considero também meus filhos e que farão parte desta narrativa.
  • 11. Gigi. De volta ao passado 11 Alberto, meu esposo, veio de outra região do Estado, pre- cisamente da região de Campo Largo, integrando-se a Matinhos como se aqui tivesse nascido. Seus pais viveram na Colônia Antonio Rebouças no muni- cípio já citado, e ali ele nasceu. Minha família Há uma certa Matinhos Na alma de alguém Na tua também? Para Alexandre Leocádio Santana. Em dia de festa de Reis Teu coração, teu pé-de-leque, Tua fala, tua ira, tua graça Têm a alma de Matinhos que Matinhos pode ter. Em tua saúde resiste a garra De quem salvou gente em dia de tempo frio E que não abre mão de mergulhar fundo Na vida.
  • 12. Jocelina Santana Bonatto12 Queria deixar-te abraços Do tamanho dos coqueiros que ajudaste A plantar na beira da praia Quando eu nem existia. E se possível fosse, Queria dar-te mil carinhos Com as cores da canoa que tu tinhas Quando eu era menina! Marlize Bassfeld, tua neta. Matinhos, 17 de março de 1992. Estes versos foram escritos pela neta, jornalista , Marlize, no dia de seu último aniversário. 85 anos. Faleceu em 15 de ja- neiro de 1993. À minha mãe Etelvina O. Ramos Santana. “Mãe é vida trocada. É graça de Deus. É sonho real.”
  • 13. Gigi. De volta ao passado 13 Para a minha mãe querida os versos de Carlos Drumond de Andrade: Por que Deus permite que as mães vão-se embora? Mãe não tem limite, É tempo sem hora, Luz que não apaga Quando sopra o vento E a chuva desaba, Veludo escondido Na pele enrugada Água pura, ar puro, Puro pensamento. Morrer acontece Com o que é breve e passa Sem deixar vestígio. Mãe na sua graça, É eternidade. Porque Deus se lembra Mistério profundo De tirá-la um dia? Fosse eu Rei do Mundo
  • 14. Jocelina Santana Bonatto14 Baixava uma lei: Mãe não morre nunca, Mãe ficará sempre Junto de seu filho E ele velho embora, Será pequenino feito grão de milho.
  • 15. Gigi. De volta ao passado 15 Meus filhos Conhecidos nossos: cheiro de terra, grama, do mar, do or- valho, no Bertinho, na Sil, Hamilton, Simone e João; Noras: Rachel e Vivian e genro Raul. Senhor, fazei dos nossos filhos tão fortes que saibam quan- do são fracos e bastante bravos para enfrentarem a si mesmos quando tiverem medo; altivos e inflexíveis quando forem derro- tados numa luta honesta e humildes e mansos quando vitorio- sos. Criaturas cujos desejos não tomem o lugar dos atos; filhos que conheçam a Deus, colocando-O acima de tudo e saibam co- nhecer-se a si mesmos, pedra fundamental de toda sabedoria. Senhor, conduza-os não por caminhos fáceis e cômodos, mas sob a garra e o incentivo onde deparem com dificuldades e lutas. Senhor, ensina-os a manterem-se firmes durante a tempes- tade, ensina-os a terem compaixão dos que falham. Faze com que meus filhos tenham sempre o coração limpo e os ideais elevados. Saibam dominar a si mesmos antes de que- rer dominar os outros; que antevejam o futuro, mas sem JAMAIS esquecerem o passado.
  • 16. Jocelina Santana Bonatto16 E, depois que eles forem senhores de tudo isso, peço-lhe Senhor Deus, que lhes dê bastante senso de humor para que pos- sam ser sempre sérios, sem contudo encararem a si mesmos com excessiva seriedade. Senhor, dá-lhes a humildade, a grandeza, o espírito com- preensivo da verdadeira sabedoria e bondade – verdadeiras forças. Só assim então, Senhor, ousarei murmurar: Não vivi em vão! Aos meus adoráveis netos Caio Philippe, Igor, Saulo, Juan Pedro e as gêmeas Thamires e Raísa apenas esta frase agradecendo a Deus por serem meus netos. Amem e respeitem seus pais. Presenteiem com alegria e con- sideração todos os dias da vida, como têm feito os meus filhos... os pais de vocês. Vó Gigi.
  • 17. Gigi. De volta ao passado 17 A casa da vó Ota O lar onde vim ao mundo era muito modesto. Era o de mi- nha avó materna, Otília Luzia da Silva Ramos. Foi no início de uma tarde de 14 de janeiro de 1935. Tentarei, dando como referência a infância, a juventude, en- fim, retalhos de minhas lembranças, que igualmente referem-se à vivência que foi idêntica a de todos que viveram aqui naquela época em que nasci. Procurarei focalizar, principalmente os há- bitos caboclos da minha terra. A casa de minha avó Ota localizava-se no Tabuleiro, exata- mente onde hoje está construída a estação de tratamento sanitá- rio da SANEPAR. Essa casa povoa minhas lembranças com tan- ta clareza, que todos os detalhes serão aqui rememorados com toda fidelidade. Lembro-me que era coberta de palha, tecidas por meus tios. Duas portas e duas janelas na frente. A cozinha era cercada de ripas de pindova e outras peças com tábuas cerradas em casa. Uma sala grande, um pequeno corredor, um quarto de cada lado. Na sala existiam bancos em toda a extensão, uma mesinha com a máquina de costura (a mão) da vovó, um espelho na parede
  • 18. Jocelina Santana Bonatto18 perto da janela onde meus tios Benjamim, Juvêncio e Maneco se barbeavam. O tio Martinho já era casado. A tia Maria era a companheira inseparável da vovó e a au- xiliava em todos os serviços. Não deixava a vovó fazer nenhum trabalho pesado. Ela somente costurava, lidava com as suas gali- nhas, enfim cuidava dos serviços mais fáceis. No quarto do casal (quando vovô Urbano era vivo, faleceu dois anos antes de eu ter nascido), que agora, então, pertencia à vovó e à tia Maria existia uma cama de casal pretinha de fumaça, uma esteira sobre ela, fei- ta de “Piri”, um castiçal de pé, que era chamado de mancebo, onde era colocado o lampião de querosene feito de lata, comprado em Guaratuba. Num canto um baú onde eram guardadas a roupas de festa, e, numa parede, de canto a canto uma corda estendida onde eram colocadas as roupas de uso diário. Na parede, junto à porta de entrada (lembro-me tão bem!) afixados dois quadros – Um do Senhor Bom Jesus de Iguape e outro de Nossa Senhora do Rocio. Foi ali, diante daqueles quadros enegrecidos pela fu- maça e pelo tempo que minha avó todos os dias nos levava, eu e meus primos, para aprender a rezar. Foi diante desses quadros que aprendi a fazer o Sinal da Cruz, rezar o Padre Nosso, a Ave Maria e pedir a bênção de Deus à nossa família.
  • 19. Gigi. De volta ao passado 19 Era hábito na minha infância que se pedisse benção aos pais, avós, tios, tias, padrinhos, e, assim nós o fazíamos. Isso era sa- grado. Ao anoitecer, onde estivéssemos eu, Dodó, Zita, Elsa, Raul e percebêssemos que a luz estava acesa, corríamos pedir bênçãos dizendo: bença papai, bença mamãe e assim a todos que respon- diam – Deus te abençoe, filha. Assim com todos. Como Deus nos abençoou! No outro quarto só existiam duas camas recobertas de es- teiras e sobre elas travesseiros feitos com flor de marcela, sem fronhas, bem encardidinhos. Ali também existia uma corda onde estavam penduradas as calças de brim e as camisas de riscado do tio Maneco, do tio Benjamim e do tio Juvêncio. Num prego na parede vejo uma vi- ola ou violão? Instrumentos que meu tio Juvêncio tocava muito bem, assim como cavaquinho. A cozinha da casa da vovó era uma peça muito especial! Num canto, um caixão pregado na parede com as louças. Periodicamente a tia Maria comprava papel de prateleira, uma vez cor-de-rosa, outra verde amarelo, fazendo com recortes bi- cos caprichosamente desenhados. Uns formando flores, outros pássaros, peixinhos, barquinhos, assim conforme sua inspiração
  • 20. Jocelina Santana Bonatto20 e colocava nas prateleiras desse caixão. Eu vibrava! Achava o máximo. Como é que a tia Maria fazia desenhos tão lindos? Ha- via uma mesa baixinha na qual principalmente as crianças to- mavam as refeições. Depois eram retiradas e encostadas na pa- rede, num lado uma mesa grande, morena, rodada de bancos. Nela eram servidas as refeições dos adultos. Deliciosas refeições que ao lembrar-me pergunto: que foi feito de mim? Onde fica- ram minhas raízes? Que foi que o tempo fez de mim? Nem ca- bocla, nem cidadã muito urbana, apenas uma matinhense que ainda hoje sente saudades, muitas saudades dos fantasmas que povoavam sua infância, transformados agora em lembranças... muitas lembranças, de pureza, afeto familiar, hábitos alimentíci- os, religiosos... Naquela mesa eram servidas as refeições que poucos agora conhecem, não se lembram. Cozido de tainha fresca, cambira, com banana, cozidos de paratis, caratingas, peixe-galo-cara-pau e tantos outros. Camarão pistola também cozido para comer com pirão. Feijão com carne-seca. Carne fresca de vez em quando. Ainda sinto o cheiro de alfavaca, cebola verde, salsa, que tempe- ravam aqueles cozidos. Cheiro de cominho me lembra ensopa- do de caças, carne de boi, porco ou galinha. Aipim para tomar
  • 21. Gigi. De volta ao passado 21 com café, batata doce, cozida ou assada na brasa, ova de peixe, também assada ou cozida, tudo com farinha, alimento básico de todos. O feijão era delicioso, fresquinho trazido da roça lá do morro, debulhado e posto a cozinhar. O arroz era integral, des- cascado no pilão de madeira abanado numa peneira de taquara feita pela família. O milho também era socado no pilão de ma- deira para fazer canjica ou quirera. O processo era o mesmo. Na falta do alimento salgado-peixe, carne, galinha, etc. Era só ir no mato nas proximidades da casa e cortar enormes palmitos que eram ensopados com muito tempero e que substituíam o salga- do junto ao pirão. Estes lamentavelmente usados para nossa so- brevivência cabocla, e que hoje, mais esclarecidos percebemos quanto mal causamos à nossa floresta, como agredimos a natu- reza local. Agora no sítio que possuímos no Cambará temos pro- curado plantar muitas mudas de palmito. Provavelmente é a consciência que exige o reparo de nossos erros. O fogão de nossa casa, uma história à parte! Uma corrente pendurada nos caibros da cozinha que não tinha forro, cheia de “picomã”, a fumaça transformada numa es- pécie de graxa e na ponta um gancho de ferro – em fogo no chão, e ali pendurado o feijão cozinhando. Ao lado, na cinza uma cha-
  • 22. Jocelina Santana Bonatto22 leira de ferro, bem preta, uma “chocolateira” de folha, de lata, espécie de caneco onde era feito o café sem ser coado. Mamãe batia com uma colher para que o pó de café se acomodasse no fundo da chocolateira. Leite nem pensar. Que cheiroso era aque- le café, produzido ali mesmo, no quintal de casa. Recordo de ver as mulheres de minha família com uma torradeira de barro que era guardada com muito zelo, longe do alcance das crianças, torrando o café que bebíamos. Ao longe sentia-se o cheiro maravilhoso. Creio que agora procuro sentir ao abrir um pacote de café industrializado, mas esse cheiro não existe. O hábito de plantar e torrar café em casa não existe mais aqui em Matinhos. Ao lado do fogo, junto à parede, o banco onde se guardava água para uso doméstico, acondicionada num pote de barro, água que vinha do ribeirão existente nos fundos de nos- sa casa, junto ao sopé da serra. Dentro desse pote, uma casca de coco, bem lisa, pretinha pelo tempo de uso com um cabo de ma- deira. Num canto uma vara de madeira que não vergava, era o “pau” de buscar água. A cozinha da casa da vovó tinha uma parte assoalhada, onde estava a mesa de refeição e outra de chão batido, onde estava o “fogo no chão” e o banco de água. Em vol- ta pequenos bancos individuais, para nos aquecermos em dias
  • 23. Gigi. De volta ao passado 23 muito frios – as roupas eram poucas – assim como para sentar- mos à mesa pequena na hora das refeições. Alimentação Sobre o fogo existia um varal – “fumeiro” feito de varas bem finas, inflexíveis, onde secava-se carnes, peixes, ovas, etc. Noutro canto um “girau” feito com varas mais grossas, onde era pendurado o milho, uma espiga amarrada à palha da outra, assim não dava caruncho. Esse milho era para alimentar as galinhas durante o ano e servir de semente para o ano seguinte. Vez por outra saía uma canjica. Junto foi construído um galpão de pau-a-pique, coberto de palha e ali instalada uma “oficina” de farinha de mandioca, movimentada por bulandeira, que consistia numas rodas com en- grenagens e dentes de madeira, que empurrados faziam com que a roda “cevadeira” desempenhasse a sua função, ralar mandioca. Toda a oficina era feita de madeira, com exceção do forno que sobre uma “fornalha” de barro onde a massa era colocada e a farinha torrada, sendo mexida com a ajuda de duas pás de ma- deira. A massa depois de prensada e extraída toda a “mandiqueira”-
  • 24. Jocelina Santana Bonatto24 líquido venenoso da mandioca – era peneirada em peneira de taquara e depois levada ao forno para torrar. O resto da mandio- ca que sobrava na peneira, a “carueira” também era torrado para alimento das galinhas. Recordo com muitas saudades dos “bijus” que ali eram feitos. Uns contendo o polvilho uma massa bem fini- nha, bem branca da mandioca, enrolada e assada no forno. O ou- tro não sei como era feita a massa, mas me lembro que era assado em folha de bananeira, era rijo, mas gostoso! Papai adorava! Tam- bém se fazia o “bolo de goma”- “cambau” como chamavam. Era feito um rolo de massa, cujos pedaços emendados pon- ta com ponta formavam uma circunferência, ou seja, era esse o formato do bolo. Era mais sofisticado. Levava ovos, banha, etc. Em sua composição Era assado na fornalha, no calor que ficou após a torrefação da farinha. Fazia-se também o doce de goma – espécie de sequilho, com cravo, ovos, geralmente servidos em ocasiões de festas religio- sas, fandangos, enfim, em dias festivos. Quem fazia esse doce geralmente era vovó. Quando a cri- ançada via movimento da vovó fazendo doce ficava toda assa- nhada. Sabia que ia haver festa.
  • 25. Gigi. De volta ao passado 25 O cuz-cuz era feito com mandioca puva – colocada num balaio e mergulhada num rio até amolecer. Depois preparada a massa e cozida na cuscuzeira de barro. Dali saía um bolo que quase sempre era cortado em fatias e torrado. Tudo tinha como base alimentar a mandioca, cuja farinha era guardada em barris de madeira para não amolecer. Esses barris possuíam tampas bem apertadas. A sala e quarto da casa de vó Ota Era na sala que se empilhava o arroz em cachos, quando tra- zidos da roça. Ali mesmo se espalhava o arroz e com os pés ou pe- quenos pedaços de pau era batido, desprendido do cacho e ensacado. Assim também se fazia com o feijão. Era na sala que também se dançavam os fandangos. Quantos fandangos assisti naquela sala. Ainda sei a letra de versinhos de bailado que ouvi cantar: Que menina tão bonita Tão faceira no dançar Menina levanta o rosto Que eu quero te namorar...
  • 26. Jocelina Santana Bonatto26 Os teus olhos brilha tanto Dando ai...la, ri lai,lai. Outro: Coração entristecido Magoado e doente Para que contas teus males A quem teus males não sente?.. “Alecrim verde, cheiroso Não sejas enganador Todo amante que é firme Não engana seu amor.” Mas nossa sala durante a noite virava dormitório. Ali eram estendidas esteiras, feitas em casa, com um vegetal chamado “Perí” com o qual até eu, mais tarde, aprendi a fazer esteiras. O sistema consistia no seguinte: Penduradas duas cordas amarradas a elas, em cada ponta, uma vara de madeira, e, sobre ela, cordas feitas de casca de embaúba ou o vira com os bilros amarrados nas extremidades. Bilros eram pedaços (pequenos) de galhos de árvores, mais ou menos 20 cm, e sobre as cordas colo-
  • 27. Gigi. De volta ao passado 27 cado o “Perí”, um a um e feita uma espécie de trança no vaivém dos bilros. Um bilro para cima, outro para baixo, logo estava pronta a esteira. Era só aparar as pontas com uma faca bem afia- da. Que disputa, entre as crianças quando chegava a noite. To- dos queriam dormir na esteira nova. Afinal, nestas não havia ne- nhuma pulga, o que era comum nas esteiras velhas. — Que gostoso! Travesseiro feito com flor de marcela... Um cobertor corta- febre, pernilongo em quantidade, afastados com fumaça feita com estrume seco de gado. Que belos sonhos! Isso no verão, porque no inverno tudo mudava de figura. Mas papai, previdente que só, providenciava uma tora de madeira de lei, que ao queimar só fazia brasa, não soltava fumaça, essa lenha chamada de “trafogueiro” queimava a noite inteira, aquecendo a nossa casa. Ao amanhecer, benção mamãe, benção papai!... e sentáva- mos-nos junto ao fogão e ali mesmo ganhávamos um caneco de café preto, as vezes com uma farofa de ovo, uma banana, batata cozida, com o que tivesse e íamos brincar. Pobres sim, mas po- breza com dignidade. Tivemos uma infância muito feliz. Durante a noite ouvíamos o tic-tac do despertador coloca- do numa pequena prateleira num canto da sala. Que chato! tic-
  • 28. Jocelina Santana Bonatto28 tac... tic-tac... o tempo todo. O que naquela época era chato, hoje ao ouvir um tic-tac de despertador morro de saudades de um tempo muito distante e que não retorna nunca mais. Minhas raízes são muito primitivas, descendemos com certeza de portu- gueses e índios carijós – caboclos mesmo. A descoberta da torneira Converso muito com minha tia Maria, que no dia 24 do úl- timo outubro do século completara 86 anos, porém perfeitamen- te lúcida, que no outro dia narrou-me: “Uma vez o papai (meu avô Urbano Jacinto Ramos) que não conheci, pois mamãe casou-se um ano e pouco após seu fa- lecimento, foi a Paranaguá, em carro de boi até o pontal do sul- e de lá em canoa chegou na cidade para fazer compras: algum tecido, cobertores, fumo, etc... e hospedou-se na casa de um ir- mão que morava em Paranaguá. Voltou muito impressionado com o que viu. No cerão da boca da noite contou para a esposa, vovó Ota e seus filhos: Olhem, este mundo está mesmo virado, sabem que na casa do compadre (irmão e compadre) José Ramos em Paranaguá não
  • 29. Gigi. De volta ao passado 29 precisava ninguém ir buscar água na fonte? É só torcer um aparelhinho que está ligado na cozinha e a água chega em casa sozinha! Foi a primeira vez que o meu avô viu uma torneira. Se ele soubesse que o local onde era sua casa, ali mesmo onde ele nar- rava esse fato, dentro de alguns anos seria um belo bairro de Matinhos, com escola, telefone, luz elétrica, água encanada, car- ros circulando pelas ruas e tantas outras melhorias. Se soubesse como seus descendentes bisnetos, foram longe! Cursaram Uni- versidades, viajaram pelo mundo, ensinaram nas escolas, advo- garam, cuidam da natureza – biólogos – jornalistas, bancários en- fim, em sua vida tão humilde jamais pode antever como estari- am seus bisnetos no fim de 1999. Santana ou Miranda? Tenho feito referências quase que somente à minha família pelo lado materno, mas isso deve-se ao fato de quando papai ca- sou-se já era o único filho de sua família. Teve dois irmãos, João e Antonia. João faleceu solteiro e Antonia que foi casada com Henrique Mesquita, possuiu dois filhos que faleceram bem jovens,
  • 30. Jocelina Santana Bonatto30 quase ao mesmo tempo, vítimas de tuberculose. Meus avós pa- ternos, Leocádio Apolinário de Santana e Mariana Viana do Bonsucesso. Santana faleceu também quando eu era ainda muito crian- ça, mas lembro-me vagamente de ambos! Essa a razão de pou- cas referências. Não ficaram laços familiares do meu pai mais próximos. Hoje vejo pessoas contando histórias de nossa região dizen- do que Matinhos é habitado há 70 ou 80 anos atrás. Enganam-se. Meu avô faleceu há 60 anos e contava como viviam seus ante- passados por seu lado materno, os Apolinários, pois ele foi filho de mãe solteira, e sua bisavó chamava-se Maria Felizarda de Miranda. Não sabemos de onde surgiu o sobrenome Santana. A rigor deveríamos chamar-nos Apolinário pelo pai de minha bi- savó Vitalina (avó do papai) de Miranda. Segundo o ilustre historiador Dr. Arthur Barthemes, dedi- cado estudioso de tudo sobre este litoral, nossas origens são as sequintes: Em 1821, em que a viúva Úrsula da Costa Rezende herdou, praticamente todo o Patrimônio de Caiobá e onde a Delfina recebeu apenas um naco de terra figuram também dois nomes Felisberto e Felizardo. A um tocaram “calções” de velu- do, a outro um espadim de prata..
  • 31. Gigi. De volta ao passado 31 Felisberto é nome viligado, a estirpe de nosso Felisberto ti- nha um pendor irresistível por nomes raros e pomposos. O úni- co neto foi batizado “Apolinário Theodoro de Santana”. Ninguém sabe de onde saiu aquele “Santana” o comentário é meu, já que o pai e avô assinavam de Miranda. Seria “o” Santana família, temporariamente eclipsado pelo Miranda, sobrenome do benfeitor, como aconteceu com Delfino que, sendo de Ramos adotou, para sempre, o de Miranda. Pois deste Apolinário Theodoro de Santana, era viúva dona Rita, nasci- da, Moreira Santos, mas conhecida por Rita Apolinária, incorpo- rando nome e prenome do marido, em vez do sobrenome dele. Apolinário é nome forte, Matinhos está povoada de bisnetos, trinetos e tetranetos daquele casal. Podem chamar-se hoje, Freire ou Rocha, Trevisan, Bonatto, Laginski, Bassfeld, Gonçalves, Tavares, (o acrés- cimo ao original refere-se à nossa família- lado paterno, que eu acres- centei) ou outros nomes mais, mas o povo continua a identificá-los coletivamente como gente dos Apolinários. Portanto, há mais de um século e meio nossa família habita estas paragens, e esperamos, todos nós um dia sermos reconhe- cidos como os legítimos fundadores do “Matinho”- isto é, nossa família o povo dos Apolinários – Santana ou Miranda?
  • 32. Jocelina Santana Bonatto32 Faz muito tempo que extraímos mariscos das pedras, pes- camos de espinheis e comemos pirão. Essa uma das razões que me animam a fazer, humildemente bem o sei, o registro dos hábitos que vivenciei ou ouvi de meus parentes idosos, que não sei se servirá para alguma coisa, mas gosto muito do meu pedacinho de chão. Fiz estas anotações, quem for pesquisador que as aprimore com a técnica que lhe é peculiar, e eu serei eternamente grata e por ter contribuído, es- pecialmente para que meus descendentes saibam de onde vêm. A música Quando papai e mamãe anoiteciam alegres, cantavam ver- sos de fandangos, cânticos de terços, até altas horas. Aos sábados a tia Maria fazia uma faxina geral na casa. Tra- zia água do ribeirão, esfregava o chão com uma vassoura feita de galhos de uma vegetação própria para fazer vassouras, às ve- zes colocava cinza para que o assoalho ficasse bem branquinho. Depois mandava eu e a Zita (minha prima) buscar saibro na parte alta do Tabuleiro e esparramava em toda a sala. Dizia que era para que o assoalho secasse rápido ficando assim bem claro. Hoje
  • 33. Gigi. De volta ao passado 33 quando lembro-me dessa fase da minha vida dou muita risada. Imagine – lavar a casa e encher de areia! Tomávamos banho em gamelas de madeira. Sabonete era artigo de luxo. Só para ocasiões especiais. Existiam gamelas para tudo. Para salgar peixe ou carne, lavar louça, lavar as mãos, ou- tra para lavar o rosto, outra os pés, e, uma bem grande para ba- nho dos adultos e uma menor das crianças. Tomávamos banho aos sábados, assim como os adultos, porém, todos lavavam os pés à noite, antes de dormir. Caçoa- vam dos preguiçosos que não gostavam de lavar os pés, corren- do assim o risco de ficar com os pés partidos. Eu adorava os dias de chuva, que até hoje exercem um fascínio muito grande em mim, também porque eram nesses dias de chuva que meus tios recebiam a visita dos primos que moravam na redondeza, o João Fernandes, o Máximo Ricardo – os que me lembro bem – para tocarem violão, cavaquinho, pandeiro e cantar. Como cantavam bonito! Como sua música soava gostosa aos meus ouvidos! Ma- ravilha – era assim que eu considerava. Eram músicas de baile. Uma começava assim:
  • 34. Jocelina Santana Bonatto34 Aos pés da Santa Cruz, você se ajoelhou, Em nome de Jesus Um grande amor você jurou Jurou mas não cumpriu Fingiu e me enganou... Prá mim você mentiu Pra Deus você pecou, O coração tem tantas razões Que a própria razão desconhece Faz juras de amor E depois esquece. Nada de fandango. Não que eles não soubessem! Mas já estavam ficando moderninhos – abandonando sua origens. Lembro também quando cantavam: Covarde eu sei que me podes chamar, Porque não cala no peito esta dor! Atire a primeira pedra, Aquele que não sofreu por amor!...
  • 35. Gigi. De volta ao passado 35 Outra: Quem parte leva saudade de alguém... Tudo para mim era lindo! Tio Juvêncio já não está entre nós, mas tio Maneco está aí, tocando muito bem o violão e o cavaquinho que encantavam mi- nha infância. O João Fernandes e o Máximo Ricardo também vi- vem em Matinhos. O tio Benjamim, que eu chamava de “tio Bim- bim” não gostava por isso não participava das manhãs musicais. Gostava mais era de tirar sua soneca e descansar. Logo depois casou com a tia Cocó e foi embora. Também não está mais entre nós, assim como o tio Martinho e a mamãe, a vovó e o papai. Brinquedos, histórias e carinho Doces tardes de chuva! Que alegria quando a vovó apanha- va o seu balaio de costura e nos chamava para junto de si. Ali ela confeccionava nossas bonecas de pano. Bordava os olhos, as sobrancelhas, a boca, colocava cabelos de fio de costura e pron- to. Umas eram minhas, outras de Zita, da Elsa (irmã). Para os meninos fazia pião com o côco da brejaúva seco, fazendo um pe-
  • 36. Jocelina Santana Bonatto36 queno furo e colocando um cabinho pontiagudo de bambu. En- rolava uma cordinha, puxava e o pião até cantava. Eram nessas tardes que ela fumava seu “pitos” de barro com cano de taquara, contava as mais lindas histórias que ouvi. Sempre pedíamos que nos contasse mais uma. Fazia pipoca, cozinhava chuchu, assava banana. A nossa foi a vó que toda a criança deveria Ter. Tia Maria costurava, remendava, fazia crochê, tecia palha para fazer chapéus, cestos de cipó, balaio, tipitis. No meio da tar- de era servido aquele café cheiroso com aipim cozido, taiá, ba- nana assada, etc. Se usava pouca gordura, quase todos os alimen- tos eram assados ou cozidos, mas de vez em quando era feito um peixinho frito. O essencial nunca nos faltou. Todos eram muito felizes, havia respeito, união, total carinho uns pelos ou- tros. Tudo era discutido, pensado e repensado nos serões notur- nos, quando em volta do fogo os adultos falavam de tudo. Cri- ança não metia o bico na conversa dos mais velhos. Nesses se- rões eram contadas estórias de pescarias, arrastões de tainha, roça, amores, versos de fandango, cânticos religiosos, passeios a Guaratuba, e, tomadas as decisões da família. Uma coisa que ainda me faz pensar até hoje, é como sabi- am no Tabuleiro, pelo horário, se a maré “no Matinho” ou Caiobá
  • 37. Gigi. De volta ao passado 37 estava cheia, seca, vazando ou enchendo. Nunca erravam. Base- avam-se pelas fases da lua. Assim como pela posição do sol sa- biam o horário. Nascimento de criança Vários netos nasceram nessa casa. Os partos eram realizados por parteiras entendidas que moravam nos arredores. A criança ao nascer permanecia 7 dias no quarto escuro para não dar “mal de 7 dias”. Às mães eram oferecidos chás de ervas contendo cachaça –”era a queimada” assim também com os banhos também com ervas. Ao levanta- rem-se da cama tomavam purgante de óleo de rícino. Comiam cozido de galinha durante vários dias. Depois, comiam peixe, mas somente o rabo. O resto do peixe era gordo e poderia causar re- caída. Banho de “pratura” era aplicado caso se percebesse que a parturiente não estava bem. Depois de alguns dias de vida eram alimentados com um mingau de farinha de mandioca peneirada e cozida numa água doce. Afinal, o leite materno garantia a vida, pois era hábito das mães colocar a porção de mingau primeiro em sua boca para esfriar e depois na do bebê. Imagine. Mamãe salvou 9 filhos desse perigo.
  • 38. Jocelina Santana Bonatto38 Os nenês dormiam em redes geralmente feitas com sacos. As pontas eram amarradas e então colocados pauzinhos para abri-lo, uns trapinhos dentro e ali o piá dormia. Assim eu e meus irmãos dormíamos. Quando os nenês choravam era só pegar uma cordinha, amarrá-la à beira da rede e balançar. Não havia me- lhor recurso para que o nenê ficasse quieto e adormecesse. Frutas e outras plantações Lá fora defronte a casa, um lindo pé de manacá carregado de flores lilás, muito perfumadas. Ao lado um ingazeiro onde bandos de Gralha Azul, Baitacas, Tiés, Guaches, Pintassilgos, Arapoãs e outros pássaros vinham saborear as vagens maduras. E a Pitangueira o que dizer dela? Dividíamos os galhos. Ninguém tocava no galho de Pitanga do outro, a não ser que hou- vesse entre os primos um bom acordo de permuta: “Você me dá uma Pitanga do seu galho e eu lhe dou outra quando as frutas do meu galho amadurecerem”. Se soubesse pintar faria uma aquarela onde seriam o moti- vo principal as tarrafas secando ao sol, alvas, em forma de cir- cunferência apoiadas em suportes de vara finas.
  • 39. Gigi. De volta ao passado 39 Nos fundos o bananal, onde também, junto ao tronco eram jogadas as cascas de mariscos que serviam de alimento à família em dias de “Rebojo”, “Vento sul com chuva”- e o mar muito bravo não deu nenhuma condição à pescaria. Havia também, entremeado ao cafezal, belas laranjeiras, perfumadas na primavera e que produziam frutos tão doces. Nunca mais senti aquele sabor em nenhuma laranja. Produziam tanto que ninguém vencia chupar. O serviço da criançada era jun- tar as frutas que caiam, antes que apodrecessem e prejudicas- sem o café que caíam maduros, e, jogar para a beira do laranjal. O café era colhido bem maduro, descascado, seco ao sol num ter- reiro que chamavam de “eira” e depois “chumbado”, isto é, ba- tido no pilão para soltar a película que envolve o grão. Depois de torrado em torradeira de barro, socado no pilão e peneirado pouco a pouco em peneira de taquara. Estava pronto o café. Ninho de galinha No terreiro existia o lenheiro, ou seja, uma tora forte onde a lenha era cortada para uso na cozinha. Pendurados na parede, do lado de fora da oficina de farinha, se via diversos balaios velhos, uns cheios de palha de milho ou ar-
  • 40. Jocelina Santana Bonatto40 roz. Eram o ninho das galinhas. Era comum, a tarde, a vovó ir com um pequeno balaio recolher os ovos. Como era gostoso o dia todo ouvir o cocorecar das galinhas! Co-co-có, Co-co-có, podia ir olhar o balaio que estava lá um ovinho fresquinho. Lembro-me claramente do canto dos galos. Eram duas ve- zes todas as madrugadas. Lá por 1:30h e às 4:00h. Um cantava pri- meiro, depois outro, lá longe! Assim, todos os galos da vizinhan- ça. Parece que um respondia ao outro. Estava na hora do pessoal ir levantando e se preparando para mais um dia de trabalho. O peixe Os homens que tinham ido tarrafear ou “lancear” na baía de Guaratuba já estavam de volta com o peixe garantindo para o dia ou até a semana. Quase não se vendiam os peixes, muito pou- co, mas estes eram escalados, salgados e secos ao sol e ao fumeiro. Com o peixe seco eram feitos ensopados, aferventados e cozidos com banana, assim como de outros modos, comendo-se com pirão de feijão ou mesmo de farinha escaldada.
  • 41. Gigi. De volta ao passado 41 A maleita e outras doenças Não gosto de recordar quando a maleita atacava, às vezes, a todos. Acredito que não existe ninguém que tenha vivido em Matinhos na época a que me reporto, que não tenha pelo menos uma vez sofrido com a febre maleita. Era um dia sim, outro não e lá começavam os tremores, calafrios, queixos batendo, febre muito alta, suadeira – era a maleita. Eu mesma fui acometida várias vezes. Usava-se chá de quina, que ajudava, mas não cura- va. O que resolvia eram uns comprimidos que o Serviço Nacio- nal de Malária distribuía gratuitamente. Lembro-me que uma marca desses comprimidos chamava-se “Atibrina”. Houvesse fí- gado para suportar a maleita e o efeito muito forte do remédio. Ainda lembrando-me das doenças comuns a todos recordo de uma gripe muito forte era curada com escalda-pés e suador acompanhado de chá de ervas – principalmente folhas de laran- jeira, guaco, mentruz. Quando havia sintonia de que alguém estivesse com saram- po, imediatamente lhe era ministrado chá de sabugueiro, que colocava o sarampo para fora, aparecendo então aquela erupção vermelha que lhe é característica. O doente ficava no quarto fe-
  • 42. Jocelina Santana Bonatto42 chado durante 8 dias. Até as pequenas frestas eram tapadas “calafetadas” para não entrar nenhum vento. Para desinteria usava-se chá de broto de goiabeira ou araça, folha de pitanga também fazia bem. Dor de cabeça muito forte era curada com folhas de algodoeiro sapecadas e amarradas na testa sob um pano, não importando a origem da dor de cabeça. Casca de laranja seca também era remédio para febres. Chá de rosa-branca era dado aos nenês como laxante suave. Era-lhes dado também chá de Sene, Maná, ruibarbo. Também eram usados vários medicamentos comprados no negócio do seu Elias em Guaratuba: Pílulas de vida, Pílulas de Ayer, Pílulas de Caferama, Aspirina, Biotônico Fontoura, Regu- lador Gesteira e outros. As benzedeiras também curavam, benziam erisipela, que- branto, sol, sapinho, mau olhado e por aí a fora. Tida Madalena, nas Palmeiras, bem velhinha, aliás, tia do papai, sofria para me benzer. Ela ía lá fora, cortava um galho verde de erva santa, mo- lhava com água pura e me chamava: — Venha aqui menina... Que menina nada, eu já estava longe, pois detestava o res- pingo daquele galho no meu rosto. Muitas vezes eu ficava lá lon-
  • 43. Gigi. De volta ao passado 43 ge, no caminho e ela, coitada, benzia-me de longe mesmo. Acho que fez efeito, pois estou por aqui até agora. O rio límpido A roupa de todos era lavada no mesmo ribeirão de onde era apanhada a água para uso doméstico, só que após o mesmo local. Lavar roupa... que trabalho cansativo! Na beira do rio era colocada uma tábua lisa, com uma pon- ta dentro d’água e outra fora, e, ali as mulheres se punham de cócoras e esfregavam as roupas com as mãos, batendo de vez em quando nessa “tábua da fonte”, quarando-as ao lado, esten- didas na grama. Depois enxaguadas no rio e estendidas para “en- xugar” – o termo mais usado na época. Passar roupa de uso diá- rio não era hábito nesse tempo. Na casa da vovó existia um “fer- ro-de-engomar”, aquecido à brasa, que não servia para engomar nada, não sei até hoje a razão desse nome... um trabalho pesado, com o qual eram passadas as roupas para os dias de festas ou ocasiões muito especiais, como os Terços no “Matinho”. O ribei- rão onde minha família lavava roupas e retirava água potável é hoje, e escrevo isto com um nó no coração, o receptor de dejetos do Sistema de Esgoto da Sanepar.
  • 44. Jocelina Santana Bonatto44 Nesse ribeirão pesquei muitas “Piavas”, Acarás, Nhundiás, era límpido, transparente, ao fundo vez por outra aparecia um cágado, existiam uns mariscos pretos, cardumes de peixinhos nadavam ali. Quanto banho tomávamos nesse rio nos dias de muito calor! Infelizmente está morto! Nada mais pode ser feito. O progresso o engoliu. Em volta desse rio havia um belo bana- nal, plantavam-se roças de arroz, área que foi invadida por pes- soas que vieram de fora. Hoje é totalmente habitado. São muitos barracos. Essas pessoas não imaginam quanto aquela área foi, ou melhor, é produtiva. Não cultivam ali nem cebolinha verde. Progresso: encontrar alimentos no resto das lixeiras. Para que tra- balhar? Afinal o progresso chegou!... Evolução? É, assim que o “Matinho” que eu vi está evoluindo. Todas as famílias viviam da lavoura artesanal, da pesca, da caça para o alimento. Faziam com suor de seus rostos: sua casa, plantavam, teciam suas esteiras, seus balaios, tiravam a lenha para uso em casa, faziam farinha, o biju, salgavam os peixes. Quero dizer que vi minha gente trabalhando das 4:00h da manhã até o anoitecer.
  • 45. Gigi. De volta ao passado 45 A diferença de hoje é que não passavam fome nunca, não possu- íam luxo, mas, dignidade, pobres, mas altivos, dignos! Hoje fico muito triste ao verificar que tudo é pior – a quali- dade de vida terrivelmente pior! A pescaria Durante o ano havia tempo para tudo: para roçar, derru- bar, covarear (limpar o terreno), plantar, carpir, decepar (podar), colher. A posição da lua era respeitada para tudo. A lua minguan- te, boa para o plantio e assim por diante. A pescaria era feita com tarifaras – alvas tarrafas de fio “tro- ça”, caniços espinheis, redes de lanço (arrastão). A pescaria mais importante nessa época era ainda a de tainha, que era feita mais na Prainha, Caiobá e Perequê. Depois da colheita do arroz os pescadores eram convida- dos a participar da pescaria da tainha, mudando-se para esses locais que já me referi, com mulher, filhos e tudo o mais. Aco- modavam-se em ranchos de palha, construídos à beira-mar e lá permaneciam até o fim do período dos lances de tainha, meados
  • 46. Jocelina Santana Bonatto46 de maio até o fim de junho. Pegavam enormes quantidades de tainha, às vezes mais de 5000 tainhas, que eram limpas, porém, conservadas as escamas, escaladas, salgadas e secas. A esse tipo de conservação da tainha era dado o nome de “Cambira”. So- mente a tainha servia para fazer Cambira. Duravam até um ano. Serviam de alimento durante muito tempo. Não estragavam. As mulheres eram especialistas em conservação dos peixes. Pobres mulheres! Como trabalhavam! Nessa ocasião todos ganhavam algum dinheiro. Quem não lanceava comprava as tainhas para secar, pois já tinham vendi- do o arroz. Ressalte-se que o transporte de tudo era sempre feito nos ombros, não havia estrada, só existiam caminhos. Refiro-me às famílias que moravam no Tabuleiro. A prin- cipal via de acesso era o Caminho-do-Pique, hoje Avenida Paraná. Terminada a pescaria de tainha, vendido o arroz, algumas sacas de farinha, levados no ombro até o Cabaraquara e de lá em ca- noa a remo para Guaratuba. Era tempo de comprar uma calça de casimira, um casaco novo de caxá (tecido apeluciado), enfim fazer alguma melhoria no baú de roupas e se preparar para a festa do Divino em Guaratuba, que era o grande acontecimento de todos os anos. O que venho regis- trando refere à década de 30 ou melhor, 1935 em diante.
  • 47. Gigi. De volta ao passado 47 A religiosidade Em 1939 o papai construiu para nós uma casa no “Matinho”. Afinal, vários banhistas já passavam temporadas aqui, constru- indo casas de férias, demonstrando que o “Matinho” iria virar um balneário, progressista. Viemos morar para cá, nossa casa era nas proximidades do Colégio Gabriel de Lara. As roupas para as festas eram passadas a ferro, dobradas e trazidas do Tabuleiro numa cesta de vime. Era um luxo possuir uma cesta daquelas! Entre todos existia um profundo sentimento de religiosi- dade e também de solidariedade. Todos eram católicos. O Tabu- leiro nesse tempo ainda era habitado por poucas famílias: a nos- sa – de Urbano Jacinto Ramos, casado com Otília Luzia da Silva Ramos, José Francisco da Silva (Zé Chico) casado com Ana da Silva (D, Aninha), Balduino Crissanto, com Floripa Freire Crissanto, Joaquim Isabel dos Santos, com Parmena Freire dos Santos, Abílio Crissanto, com Carmelina Freire dos Santos, Virgina Crissanto, assim como a do José Curitibano, assim cha- mado por ter os olhos azuis. São as que me lembro, e ainda José Fernandes Ramos, casado com Alcídia Ramos, irmã do vovô Ur- bano. Não sei se existia mais alguma.
  • 48. Jocelina Santana Bonatto48 Como já disse, o sentimento de religioso era muito forte. Na Sexta-feira Santa todos rezavam. Era até proibido acender fogo e cozinhar algum alimento. Na véspera era cozida uma pa- nela de canjica e pronto. Nada de comida, varrer casa, nem pen- tear os cabelos. Mamãe nos reunia em sua volta e lia orações que nós acompanhávamos atentamente, orações tão antigas que o papel já estava amarelecidos pelo tempo, já que pertenceram a outras gerações. Mas que fé! Ai daquele que não prestasse aten- ção. Terminada a Sexta-feira Santa, dormíamos e só sábado to- mávamos café. A terça-feira de carnaval era dançada rigorosamente até a meia-noite. Relógio poucos possuíam. Então era convidado al- guém reconhecidamente acertador de horário baseado na posi- ção da lua, que depois de observá-la atentamente dizia: “É meia- noite!” Acabou o carnaval. A viola, o pandeiro, a rebeca, o cavaquinho eram virados com as cordas para a parede para não correr nenhum risco de alguém passar os dedos e ser ouvido al- gum acorde musical durante a quaresma. Quanto respeito! Todos os anos, lá pelo mês de maio ou começo de junho, co- meçavam os preparos para esperar as bandeiras do Divino Espí- rito Santo e da Santíssima Trindade que vinham de Guaratuba
  • 49. Gigi. De volta ao passado 49 onde eram festejados por todos os habitantes da região: a do Di- vino vermelha e da Trindade branca. Como eu as achava lindas! Cheias de fitas coloridas, fotografias de crianças, as quais eram ali colocadas em agradecimento por alguma graça recebida. Era um acontecimento marcante de muita emoção. Ouvia- se ao longe de toque andar: o tambor batendo, pum...pum!... Logo depois chegava a bandeira, geralmente recebida pela dona da casa, que muitas vezes chorando de tanta emoção conduzia para dentro de sua casa para o cântico dos foliões. Nesse dia quase ninguém ia trabalhar para esperar a bandeira. Era dia santifica- do decretado pela comunidade de acordo com sua cultura. Ao se ouvir ao longe o bater do tambor se dizia: está can- tando na casa do Zé Chico, ou outro vizinho. Veja, agora é toque de andar. Quase todos acompanhavam, de casa em casa, a pas- sagem da bandeira, uns vindos do Sertão, outros das Palmeiras, de Caiobá, do “Matinho”. Aprendi um verso que sempre era can- tado na chegada: O Divino vem chegando Lhe trazer felicidade Vem trazer muita saúde, Paz, amor, prosperidade.
  • 50. Jocelina Santana Bonatto50 Os versos eram cantados com acompanhamento dos instru- mentos que já citei. Dentre os que cantavam, quase sempre exis- tia um jovem de voz muito aguda o “Tripe” que dava um tom muito especial com sua voz. Essas bandeiras saíam da Igreja de São Luiz de Guaratuba e percorriam todos os arrabaldes. Como o “Matinho” pertencia ao município de Guaratuba, elas passavam por aqui. Recolhiam oferendas em dinheiro para realização da festa no mês de julho. Percorriam todas as casas e almoçavam, jantavam e dormiam onde fossem convidados. Recebiam muitos convites, pois era uma honra receber os “foliões” (assim eram chamados) da bandeira. Quando almoçavam, antes de sair cantavam em agradecimento, todos adoravam ouvi-los. Era honra ainda maior oferecer-lhes pernoite. Ao anoitecer, todos vinham para casa do hospedeiro, ali rezando um terço cantado, com hinos especiais para a oca- sião. Lembro-me de um hino que começava assim: Divino Espírito Santo Divino Consolador! Consolai as nossas almas, Quando deste mundo “for”.
  • 51. Gigi. De volta ao passado 51 Madrugada todos voltavam para a alvorada. A criançada se alvoroçava. A dona da casa preparava um café cheiroso, qua- se sempre acompanhado de um prato de arroz integral (o que se usava). Soltavam foguetes – Que beleza! Aí, os foliões cantavam versos de despedidas. Eram versos muito especiais, dirigidos as idosos, às crianças, aos jovens, aos enfermos!... muitos chega- vam às lágrimas, indo então embora e voltando no ano seguinte. Depois de alguns dias chegava a bandeira da Santíssima Trindade, começando tudo de novo. Era muito feio para o lu- gar, a bandeira passar sem acompanhamento. Significava pouco caso, falta de respeito. Minha maior preocupação era quando desde cedo a mamãe nos preparava para o terço que seria canta- do à noite. Durava bem umas 3 horas. O sono quase me derru- bava. Aliás, derrubava, pois esquecia do terço, cochilava. Lá pelas tantas começava a ouvir uma Ladainha cantada em latim e pensava com os meus botões: “Já cantaram mais da metade”. O que me lembro daí em diante era do fim do terço e os adultos se cumprimentando. Brincadeira à parte, era esse um evento religioso oficiado com muita fé e respeito, defronte, a um altar onde eram coloca- das várias imagens de Santos, flores, velas e ali os “capelões”
  • 52. Jocelina Santana Bonatto52 ajoelhavam-se e comandavam a reza. O tio Martinho sempre era capelão, auxiliado pelo Antonio Fernandes Ramos, seu “Dório”, Odorico Tavares, Balduino Crissanto, Jacinto Felipe e tantos ou- tros. O capelão e o ajudante cantavam e outros homens e mulhe- res reunidos mais distante respondiam, também cantando. Hoje dou valor. Como aqueles terços, aquelas rezas eram impregna- das de amor a Deus, de fé, religiosidade pura, sem visar lucro financeiro, sem nada. Acredito que nos dias atuais não se conseguiria reunir um grupo igual para cantar um terço igual aos que eu participei, mes- mo com sono, em minha infância. Todos já faleceram. Ninguém conservou essa tradição herdada dos primeiros habitantes daqui. A Ladainha cantada em latim era o máximo! Quem os teria ensinado nos primórdios da civilização desta religião? Os Jesuí- tas? Quem? Raras eram as vezes em minha infância que aparecia um pa- dre por aqui. Sempre estava de passagem para Guaratuba para a Missa da Festa do Divino ou da Santíssima Trindade. Parava no “Matinho”, na casa do Sr. Jacinto Viana de Mesquita para realizar os batizados ou casamentos, e então celebrava uma missa. Fui ba- tizada na volta do padre da festa de N. Senhora do Bom Sucesso –
  • 53. Gigi. De volta ao passado 53 dois de fevereiro – não tinha vinte dias de vida. Meus padrinhos foram João Inácio Freire e Francisca T. Freire, sua esposa. Interessante também eram as “Festas de Reis”. De 1º a seis de janeiro aconteciam as “reiadas”. Durante a noite homens que sabiam tocar viola, rabeca etc, íam cantar de casa em casa, “sim- bolizavam os Reis Magos”, acordavam o dono da casa com cânticos que eram mensagens de muita sorte ao morador que abria a porta e permitia que cantassem dentro de sua casa. Era muito bonito! Típico daqui. Em troca lhes eram oferecidos di- versas prendas: um garrafão de vinho, frutas, doces, o que pos- suíssem em casa. Dia seis de janeiro os “Reieros” se reuniam e dividiam entre si essas oferendas. Era tão bom, naquele silêncio de então, ouvia o som de uma viola, lá fora vozes cantando: Abre a porta meu irmão, O Santo Rei quer entrar... Trouxemos muita alegria, Bênçãos para o seu lar! Entravam, cantavam, batiam um papo, tomavam uma gemada com vinho, agradeciam cantando, se despediam, tam-
  • 54. Jocelina Santana Bonatto54 bém cantando e íam embora prometendo no ano que vem vol- tar. Mas, chegou um dia em que os “Reieiros” não voltaram mais, foram fazer suas “Reiadas” lá no céu. Com eles morreu também uma cultura, uma tradição. Matinho virou Matinhos Nessa época papai já haviam construído uma casa coberta com telas de barro e viemos então morar no Matinho. Essa casa, não esqueci, papai cortou as árvores na mata, puxou com gan- chos e ajuda de amigos organizou um “estaleiro” e serrou todas as tábuas, vigas, sarrafos, somente usando uma Serra Manual. Um homem lá em cima do estaleiro e ele embaixo. Sobe, desce, sobe, desce... e as tábuas uma a uma foram ficando prontas. De- pois, em pequenas quantidades sempre nos ombros, foram trazidas para o Matinho e construída a nossa casa, que possuía um salão bem grande, onde dançaram muitos fandangos, bailes. Havia dois quartos e a cozinha também com fogo no chão, aos moldes da casa da vovó. Depois o papai resolveu oferecer mais “conforto” à ma- mãe e resolveu fazer um caixão grande, enchendo-o de barro, e
  • 55. Gigi. De volta ao passado 55 nele instalou uma chaminé, colocou uma trempe com uma cha- pa de ferro, quando então ela passou a usar esse luxuoso fogão, cujo modelo foi copiado dos pescadores catarinenses que já co- meçavam a se instalar aqui. Nossa mudança aconteceu lá por 1939, começando a ocor- rer a ocupação pelos banhistas. Já existiam algumas casas à beira–mar, como a do Dr. Afon- so Camargo, Wenceslau Glaser, José Pinto Rebello, Fido Fontana, Carlos Ross (a 1º construída junto às pedras), Julio Hoffman mais adiante, Conde Carnacialle, Carlos Wolf e na rua Itacolomi cha- mada de rua dos Italianos as casas da família Wardânega, José João Bigarella, família Gussi e outras cujos nomes minha memó- ria não registrou. Foi aí que resolveram acrescentar um “S” ao nosso “Matinho”, que passou a ser “Matinhos”. Contam os antigos que nome Matinho foi dado pelas pes- soas que viajavam para Guaratuba levando cargas, geralmente em carros de boi, e, entre as duas praias “hoje praia central e “Praia brava” encontravam aquele matinho, onde descansavam, davam capim aos animais, água e conversando diziam uns aos outros quando se encontravam: “Dormi das 3:00h às 5:00h no matinho. Descansei no matinho”. Daí o nome.
  • 56. Jocelina Santana Bonatto56 O Engenheiro Carlos Ross que já havia loteado as terras do povo dos Apolinários como se dono elas não tivessem, com muita visão do futuro, mesmo que sobre essas terras e viessem morado- res inclusive nós, pois meu pai chamava-se Alexandre Leocádio Apolinário de Santana, João Inácio Freire (tio), Vitorino Freire (tio) Leocádio Freire, João Infância de Santana (primo) e outros, ela- borou a Planta Boqueirão do Matinho e acrescentou o famoso “s” tornando o nome mais sofisticado, surgindo então o “Matinhos”, motivo gerador de demanda Judicial por muitos anos. Matinhos e a 2ª Guerra Mundial Transcorria a 2ª Guerra Mundial e Matinhos, costa brasi- leira, ficou sob vigia do exército. Durante esse período dois acon- tecimentos marcavam nossa família. O primeiro refere-se a ida do tio (Manoel da Silva Ramos), graças a Deus aí vivinho, para relembrar comigo este registro. Ocorreu o seguinte: ele foi a Guaratuba para fazer compras, não levou nem seus documentos - carteira de pescador e certidão de nascimento, jamais lembran- do que sua idade era a de servir o Exército Brasileiro. Em virtu- de da guerra, estavam convocando os cidadãos através de listas
  • 57. Gigi. De volta ao passado 57 publicadas nos jornais. Mas, onde ele iria ler jornal? Chegando lá o delegado foi informado de sua presença na cidade. Imedia- tamente foi detido e dois dias depois encaminhado às autorida- des como submisso. Que choradeira! Ninguém se conformava com tamanha desdita. O tio Juvêncio veio em Matinhos, para na passagem da diligência entregar-lhe o chapéu. Nem o chapéu havia levado! Daí há uns vinte dias chega a primeira carta em que dizia: “Estou em Curitiba, incorporei na 5º Companhia de Comunicações, sediada no Portão”. Ocorre que ele fez carreira no exército, até aposentar-se. Do lavrador um pouco pescador, virou cabo, sargento, subtenente, tenente, finalmente capitão. A guerra declinou o seu destino. Outro foi o que ocorreu com nossa irmãzinha Otília (a Tilinha) de 1 ano e 8 meses. Febre alta, convulsão, um tumor na cabeça, não havia médico. Meus pais tentaram levá-la a Paranaguá, mas se fazia necessáriao uma permissão do coman- dante das unidades militares sediadas aqui para poderem sair de Matinhos. Houve um desencontro e não foi conseguida a per- missão. Passaram-se alguns dias até que o médico do próprio exército a examinasse e diagnosticasse meningite. Não resistiu; era tarde, lamentavelmente faleceu.
  • 58. Jocelina Santana Bonatto58 A época da guerra, foi dificílima para nós. Ao anoitecer não se podia acender nem um palito de fósforo. Escuridão total! Ha- via perigo de que submarinos inimigos se encontrassem no mar da costa brasileira. Não tínhamos açúcar, tomávamos café adoça- do com caldo de cana. Às vezes no quarto fechado durante 8 dias. Até as pequenas frestas eram fechadas. Tantos outros percalços! Mas também havia o lado alegre. A nossa Matinhos cheia de soldados, muitos namorados para as moças, bailes animadíssimos na nossa casa ao som da gaita do seu Ernesto Waighert, acom- panhado pelo violão do Lacrides, músicas cantadas pelo Isidoro Batista... um período diferente! Ninguém podia falar alemão ou italiano. As casas dos fun- dadores de Matinhos viraram quartéis, pois todos descendiam de alemães e Italianos. Exercícios de guerra em direção ao mar deixavam todos apavorados. Tiros de canhões, metralhadoras... um barulho infernal! Nessa época, havia começado a construção de Igreja de São Pedro, hoje Museu! Porém, as pessoas responsáveis pela cons- trução pertenciam a famílias italianas ou alemães: D. Maria Brenna, Sr. José João Bigarella e sua querida dona Otília e ou-
  • 59. Gigi. De volta ao passado 59 tros, que em função da guerra já não conseguiam viajar livre- mente. As obras pararam. Quanto brinquei nos muros (paredes) já erguidas! Pulei à vontade na igreja; mal sabendo que ali eu viria a me casar, bati- zar meus filhos. Éramos uma turminha de moleques que saía- mos da escola e vínhamos brincar ali. Eu, a Nena Waess, Carlos Freire, Olga de Silva, Neusa da Silva, meu irmão Dodó e outros moleques que hoje são os sessentões que estão por aí. Nós fomos as crianças, as primeiras crianças a crescerem em Matinhos, cujos filhos agora atuam nas mais diversas atividades de Matinhos. Nós nascemos, crescemos e estamos envelhecendo na nossa terrinha. A escola Que saudade da Escola Isolada onde agora funciona a Câ- mara Municipal, com o prédio reformado, mas que ainda con- serva o estilo primitivo. No pátio havia os sinais dos nossos pés pulando caracol, corda, brincando de chicote-queimado de se esconder, de ciranda-cirandinha, de bom-barqueiro. Saudade da padaria do Seu Abílio Francisco ao lado, que ainda sinto o chei- rinho de pão assando.
  • 60. Jocelina Santana Bonatto60 Lá papai abriu um crédito para que eu, o Dodó, mais tarde a Elsa (meus irmãos) comprássemos diariamente um pão para cada, pois na escola que eu aprendi o bê-a-bá, não existia me- renda escolar, cada criança levava para merendar na hora do re- creio o que tinha em casa: um ovo cozido, uma banana, um pe- daço de bijú, uma batata doce. O Tonico, ex-prefeito de Matinhos, não gostava de resol- ver problemas de aritmética. Meia volta lá vinha ele: “Gigi, você faz meu problema que eu te trago uma batata doce cozida.” Eu fazia e garantia a merenda para o dia seguinte. Mais tarde, muitos anos depois, o Tonico foi Prefeito de Matinhos, e eu, Chefe do seu Gabinete. A vida é assim. Aposen- tei-me quando ele era prefeito. Havia trabalhado quase 32 anos em serviço público, mais tempo—20 anos, lecionando, tendo co- meçado a trabalhar na mesma escola onde aprendi a ler. Não es- queço da minha primeira professora, Dona Maria Miguel Karuta, hoje Nascimento. Jacira Serafim Rocha, Alaíde Nascimento, Nilza Soares da Silva, Haydée Ribeiro, Alice de Melo Cordeiro, Hilda Zimmerman. Abnegadas?... Trabalhavam com mais de 40 crian- ças de 1º, 2º e 3º anos e conseguiam bons resultados.
  • 61. Gigi. De volta ao passado 61 O transporte Matinhos dos meus primeiros anos de vida é o que me faz lembrar da diligência do Germano Russi, dirigida pelo “Cama- rão” que vinha pela praia, quando a maré estivesse baixa, por- tanto sem horário definido. O bar do Sr. Alberto Ferreira, na rua que liga as duas prai- as, ao lado do local onde funcionou a Garaparia da Ica era o ponto final. É a Matinho da lotação do Seu Ernesto Wegert, depois do Seu Waldemar, movidas a Gasogênio, era tempo de guerra e não havia gasolina, o jeito era usar carvão como combustível. O lotação apanhava os passageiros em casa às 6:00 horas e só chegava em Curitiba no meio da tarde, isso se não quebrasse no caminho. É do Matinhos do Hotel Beira-Mar de propriedade do Sr. Rainoldo Sheffer, do Clube Familiar de excursão, depois Sociedade Duque de Caxias, do Hotel do Seu Albano Muller, sempre lotados nos períodos de férias. Maré alta Uma cena que não esqueço: uma manhã íamos para a esco- la e resolvemos dar uma voltinha. Tinha acontecido uma maré
  • 62. Jocelina Santana Bonatto62 muito alta e o Seu Reinoldo criava galinhas para uso nas refei- ções do hotel. Que surpresa! Quantas galinhas mortas boiando! A maré foi tão alta que não se salvou nenhuma. Morreram todas afogadas. Ele estava com tanta, mas tanta raiva que mandou a criançada juntar as galinhas e levar para a casa para serem apro- veitadas. Foi zás-trás, juntamos várias, levei três galinhas para casa. Foi uma festa! O rádio Matinhos da casa do Jonas, ponto de encontro de todos os parentes. Ali casaram-se três filhos daquela casa com três da casa da vovó. Ficava ao lado da igreja, esquina onde hoje é o restau- rante da família Ache. Ali todos se reuniam. Existia na casa do Jonas uma cadeira de balanço que era o meu encanto. Adorava me embalar naquela cadeira. À noite, saíamos de casa para ouvir rádio naquela casa; era o único de Matinhos, procurávamos através dele ouvir as notí- cias. Imagine o Sr. Odorico Tavares, capataz da colônia de Pes- cadores com o ouvido colado ao rádio e umas seis crianças pu- lando e gritando ao seu redor. Coitado! Acho que contou, de- pois, todas as notícias erradas. Ouvir certas de que jeito?
  • 63. Gigi. De volta ao passado 63 Vejamos a cena que presenciei muitas vezes: Um rádio com muitas descargas transmitindo a “Hora do Brasil” e aquele barulhão! Não dava para entender nada. No dia seguinte a mes- ma cena. Manguesal e goiabeiras Matinhos onde existia um manguesal, desde os fundos do Hotel Beira-Mar, até o “Rio Matinho”, mais tarde aterrado, quan- do Matinhos já se transformara em Distrito. Esse manguesal ficou sob os cuidados do Sr. Max Roesner que contratou carrocinhas tipo “toco-duro”, lembro de uma pilotada pelo Sr. Inácio Crisanto e outra por seu filho Eurípedes (o charuto) que realizaram o aterro. Demoraram muito, mas conseguiram. Acabou o mangue, acabaram os ninhos de marrecos da D. Bernardina Mesquita onde a gente ia procurar ovos e entregar-lhe religiosamente, um por um, pois foi assim que o papai nos ensi- nou e exigia que o fizéssemos, mas restava-nos a esperança de ga- nhar algum ovo. Matinhos onde íamos cortar goiabas, araçás, camarinha, murta, pitanga, e agora é a agência do Banco H.S.B.C.
  • 64. Jocelina Santana Bonatto64 Matinhos do Rio do Gabriel Mesquita, hoje o local onde está construída a casa do Sr. Jorgito Cury, onde ali se lavavam os pés, quando vindos do Sertão, Tabuleiro ou Cambará e calçavam-se os tamancos para ir a vila. As festas Matinhos das Festas de Santo Antonio e Nossa Senhora da Conceição na casa do Sr. Jacinto Viana de Mesquita, com terço, fandango, fogueira, quentão, doce de goma, gemada com vinho. Quanta simplicidade, mas também, quanta alegria! Onde era a casa que citei acima, hoje está instalada a floricultura de seu neto Luiz Antonio de Mesquita Ramos (o Tuta). Da festa de São Gonçalo na casa do Sr. Manoel Ferreira Go- mes, nome respeitado por aqui, família muito grande! Nesta fes- ta, com um terço cantado, casais, ao término dançavam em fren- te ao altar para o Santo, um par de cada vez. Foguetes, licor, as outras bebidas e iguarias que formavam o hábito do nosso povo nos dias festivos. Não podia também faltar um fandango. Um costume que nunca esqueci: no meio do fandango ha- via uma pausa para os violeiros descansarem e nessa pausa a
  • 65. Gigi. De volta ao passado 65 dona da casa vendia pratos de canjica ou café com arroz servi- dos em pratos fundos. Tomavam café com arroz para ganharem mais uma forcinha, o que permitia que pudessem “bater” (ter- mo usado) o fandango até amanhecer. 1.945 – Terminou a 2º Guerra Mundial. Por aqui tudo vol- tava ao normal. A igreja foi concluída. Começaram as festas de São Pedro Apóstolo, eleito Padroeiro de Matinhos que há pou- cos anos era apenas um núcleo de pescadores. Nos dias de festa, durante muitos anos eram feitos leilões, cujas prendas eram tainhas recheadas, bolos, pratos de sonho, fran- gos assados, pães, e vai por aí... Depois de alguns anos, meu cu- nhado José Bonatto, Juiz de Paz, pessoa séria, assim como o Sr. José Santoro, ambos de descendência italiana, passaram a cuidar da realização das festas. Assim como eles, muitas outras pessoas também participavam desse acontecimento. O maior acontecimen- to religioso da vila. Armavam uma pequena roleta, determinavam que as moças vendessem bilhetinhos, enquanto depois dos atos religiosos próprios, missas, procissão, batizados, casamentos, gri- tavam a todo vapor: Vai corê!... Vai corê!... Ambos já não estão mais entre nós.
  • 66. Jocelina Santana Bonatto66 O sino da igreja Marcaram muito minha infância o badalar do sino da igre- ja. Aos meus ouvidos parecia que diziam algumas palavras. Era tocado pelo Seu Manoel Rosa (Mané Rosa) católico fervoroso que assumiu essa missão. Quando as badaladas eram para chamar os fiéis para a missa diziam: está ali São Pedro... está ali sentado: Está ali São Pedro... está esperando! Para avisar que havia morrido alguém, e que naquela hora ía ser sepultado, bem lento, soava: Dona Dirce... D. Inês...ele foi... não volta mais. Quando o Padre tinha chegado de Paranaguá: Farofa tem...é só “pra” nós, Farofa tem, é só prá nós e assim cada vez mais rá- pido. Hoje ao ouvir o badalar de um sino, sinto uma saudade indescritível. Não encontro palavras para traduzir o que me vai na alma. Os sambaquis Até aproximadamente o ano de 1.947 meus pais ainda vi- viam do trabalho na roça e pescaria artesanal para o sustento da
  • 67. Gigi. De volta ao passado 67 família, que não era pequena, nove filhos. As roças de meus pais no morro do Sertãozinho, onde mais tarde foi vendido ao Sr. Francisco Jacinto Mesquita. Ao sopé desse morro foi construída uma olaria, que não prosperou. Quantas vezes acompanhei ma- mãe ao serviço na roça. Eu não trabalhava, só chupava cana, as- sava espigas e outras iguarias mais. Caminhei muitas vezes no caminho do Sertãozinho. Vi o Dr. José Loureiro Fernandes estudando o sambaqui que haviam demolido (acho que o D.E.R.) para revestir ruas e estradas. Che- guei a presenciar a retirada de um crânio humano do meio dos berbigões e cascas de ostras (Sambaquis). Nunca imaginei que bem ali, um dia, meu filho instalaria uma loja de materiais de construção! A Praiana. Aprontamos algumas! Pobre mamãe, quantos dias nos deixava em casa e ía sozi- nha trabalhar na encosta daquele morro. Levantava-se muito cedo, nos dava café, muitas vezes com um ovo cozido e partia em dias de frio ou calor. Ao meio-dia voltava para fazer nosso almoço e ver como as coisas andavam em casa. Eu, por ser a fi-
  • 68. Jocelina Santana Bonatto68 lha mais velha dirigia o time. Mamãe ficava satisfeita, pois qua- se tudo corria bem. De fato, uns varriam a casa, outros íam bus- car água no rio, outros lenha fina para acender fogo com maior facilidade quando ela chegasse, até cuidávamos do feijão que fi- cava cozinhando! Mas tudo tem a sua primeira vez. Tínhamos uma vaca com bezerro e era dela que nossos pais tiravam leite para nos alimen- tar. Um dia estavam demorando a voltar para casa. A fome aper- tava! Aí tive uma idéia que me pareceu brilhantíssima: Abri a porta da cozinha, amarrei uma corda ao pescoço da vaca e o Dodó e a Elsa empurravam e eu puxava . Sabem para onde? Para den- tro da cozinha que era da altura do solo. Lá entrou a vaca. Ten- tamos tirar leite, pois pretendíamos comer com farinha. Nada de leite! Puxa a teta daqui, puxa dali, cadê o leite? Nessas alturas a dita fez um montão daqueles! Pior. Deitou no chão e ficou ali ruminando. E agora? Nada da vaca levantar. O bezerro berrava lá fora, a vaca na cozinha. Não teve jeito de resolvermos a situa- ção. Subimos na parte mais alta da casa e ficamos aguardando o retorno dos nossos velhos, que ao chegarem depararam com aquela cena. Papai ria sem parar e mamãe estava furiosa. Claro, ela teve de limpar o montão que a vaca fez. Levamos uns bons
  • 69. Gigi. De volta ao passado 69 tabefes, naquele tempo os pais davam tabefes e não ficavam traumatizados. Agora ficam. Só que os filhos daquele tempo obe- deciam aos pais, os de agora, será que ainda fazem uso da obe- diência? A vaca foi colocada para fora e eu nunca mais esqueci essa molecagem da minha vida. Mas aprontamos outras tantas! Era comum esperarmos o ovo sair, é, dali mesmo da gali- nha, para fazermos uma boa farofa. Havia um acordo de nin- guém contar nada para a mamãe. Então quando brigávamos era aquele medo! Um ameaçando os outros dizendo: Eu conto para a mamãe que você fez farofa do ovo que a galinha botou. — Não conte, amanhã o ovo é seu. Assim seguiam nossas vidas sem briga, um com o rabo preso ao outro. Para a mamãe só restava o trabalho de dar milho as galinhas. Os outros irmãos ainda eram pequenos - não tomavam parte nessas artes. “Berço de Ouro” Comíamos basicamente o peixe, às vezes seco, ou pegos a noite com a tarrafa, e que mamãe já deixava salgado antes de sair para a roça. Lá chegava ela com o balaio na cabeça, cheio de
  • 70. Jocelina Santana Bonatto70 aipins, bananas, batata doce, batata inglesa e salsa não existiam por aqui, começando agora os afazeres domésticos. Fazia comi- da nos alimentava, mandava lavar louça, corria até o rio, (não sei que fim levou aquele rio) que nos forneceu água por tantos anos e que passava nas imediações da rua (Itaporã), antes da atual Avenida do Contorno, digo rua Tabajara, parece-me que mais na direção de Caiobá. Naquele rio, sobre uma tábua lisa coloca- da em sua margem mamãe ia lavar nossas roupas. De nossa casa, onde hoje vivem minhas irmãs Elsa e Maria, lá também a casa deixada por nossa falecida irmã Zoraide saia um caminho, caprichosamente aterrado a muque por papai, auxiliado apenas por uma velha enxada. Ali vi muitas saracuras, bem cedo, catando seus alimentos. Havia bandos de Arapuã, que os nossos chamavam de Araquã, canários da terra e tantos outros pássaros que desapareceram. Árvores de Guanandis às suas margens. De vez em quando vinha o pessoal da malária coletar amos- tras para verificar se ali havia focos de mosquitos causadores da febre maleita. Uma vez até extraíram todas as bromélias (gravatás) que cresceram nos guanandis e outras árvores, com isso visando eliminar todos os possíveis focos de mosquitos. Mas, meia–volta alguém estava com febre, até que com esse trabalho não tivemos mais notícias de maleita em Matinhos.
  • 71. Gigi. De volta ao passado 71 Quando meu filho Hamilton foi candidato a Prefeito, por ser Eng.º Civil e entendendo que poderia realizar um trabalho planejado tecnicamente, perdeu as eleições, pois a campanha con- tra sua candidatura foi a de quem vinha de uma família nascida em berço de ouro. Rico não conhecia a vida do pobre. De pirão como alimento, esteira para dormir, pés descalços até boa parte da vida, se ser rico é esse tipo de vida, realmente nascemos riquíssimos! É como disse um dia o poeta: “Se caráter vale algu- ma coisa, eu pago o preço!” O Cambará Estrada para o Sertãozinho não existia. Era um caminho cheio de atoleiros, banhados em quase toda a extensão. O pesso- al que morava no Cambará vivia uma verdadeira epopéia, para vender seus produtos necessários à própria sobrevivência. Vive muito nitidamente em minha memória a imagem da- queles homens e mulheres, no inverno, muitas vezes molhados, descalços, pálidos, cobertos até a barriga por respingos de lama, com um balaio sobre a cabeça, cheio de mimosa, um feche de palmitos, farinha de mandioca, bananas, algumas galinhas para
  • 72. Jocelina Santana Bonatto72 vender e na volta, com o mesmo balaio na cabeça, já quase noite, caminharem de 15 longos km, levando sal, querosene, açúcar, uma pinguinha, (que ninguém é de ferro). Muitas dessas pessoas ainda vivem, mas mudaram-se do Cambará, onde justamente hoje existe ali um centro turístico - O Parque Aquático Águas Claras, um hotel fazenda, o Hotel Mata Atlântica. Com a construção de uma rudimentar estrada de chão batido, lá por 1.947-48 tudo melhorou. Hoje esse trecho é asfal- tado. É a bela estrada Alexandra–Matinhos. Não foi o suficiente para que o Cambará prosperasse nas mãos dos seus nativos. Já estavam idosos, cansados, esgotados de tanta luta e partiram em busca de uma vida melhor. A estrada de chão batido foi construída quase na base da força humana. Eram muitos homens acampados às margens do traçado da mesma, a maioria com a família, os quais eram cha- mados de “Arigós”. Com muita força e suor a estrada ficou pron- ta. O material para o aterro dos trechos mais baixos, eram trans- portados em carrinhos de madeira, que corriam sobre trilhos, igualmente de madeira, os quais eram chamados de “Galiotas”. Esses carrinhos eram carregados com pás e também descarrega- dos pelos Arigós no lugar necessário. Muito trabalho desses ho- mens. Quanto suor derramado!
  • 73. Gigi. De volta ao passado 73 Dessas famílias, poucas ficaram em Matinhos. A que mais conheci foi a família Pacheco, cujo chefe o velho Pedro Pacheco viveu o resto de sua vida no Sertãozinho. No local que morou ainda vivem seus filhos e netos. Até pouco tempo atrás ainda existia a antiga casa do Pacheco, marco de desenvolvimento da zona rural de Matinhos, hoje o próspero bairro do Sertãozinho. O Pacheco tornou-se amigo do meu marido, trabalhando com ele em serviços braçais em caminhões por algum tempo. Fa- zia aniversário no dia 29 de junho. Dia de São Pedro. Era certo que cedo todos os anos nessa data ele aparecia em nossa casa para lembrar-nos que era aquele o dia do seu aniversário. Cumprimen- távamos, dávamos o seu presente que já estava guardado e lá ia o Pacheco feliz da vida! Essa era a maior festa do seu aniversário. Vi- veu mais de oitenta anos. O Pacheco foi um Arigó- moreno de alma muito branca. Vive na lembrança de todos nós. Quem não lembra dessa figura que fez tipo em Matinhos? De vez em quando tomava uma “Barra Velha” (marca de pinga) e ficava teimoso, briguento, mas logo passava e aí ressurgia a criatura boa, alegre, trabalhadora, humilde que sempre foi.
  • 74. Jocelina Santana Bonatto74 A vinda dos catarinenses Matinhos se desenvolvia aceleradamente. Começaram a vir cuidar da pesca muitas famílias catarinenses. Moravam em casi- nhas pequenas na beira da praia, ao lado do local onde agora existe o mercado do peixe. Os catarinenses trouxeram outros métodos de pescaria. Os nativos, como meu pai, abandonaram as canoas à remo de voga, remo de pá ou velas e juntos começa- ram a instalar motores nas canoas. Papai deixou definitivamente a lavoura nos morros. Os catarinenses usavam enormes redes para a pesca do cação. Era comum a gente ir à praia pela manhã e vê-los chegando com as canoas cheias desse peixe que eram jogados ali mesmo na praia e limpos. O cação, principalmente a Mangona, o Tanhopen, o Cabeça Redonda e outros eram escalados e salgados em mantas, depois de secos ao sol em varais de varas de madeira. Era uma paisagem notável, barcos à beira da praia, redes estendidas, balaios, remos encostados e muito cação secando. O fígado era aproveitado para fazer azeite. Era colocado em tachos enormes e derretidos. Ao longe, sentia-se um cheiro muito forte que ema- nava dali. Conheci os pescadores: Manoel Flor, João e Antonio
  • 75. Gigi. De volta ao passado 75 Cunha (Tota) Domingos e Nésio Batista (irmãos) Virgílio Zacarias que chamavam de Dorico, Aniceto Zacarias, Alípio e Olímpio Pereira (irmãos) João Eleodoro, Manoel Joaquim e Antonio Joa- quim da Silva, José Valessia, Primitivo Corrêa e Martinho Corrêa. Meu pai entrosou-se com eles e passou a pescar junto. Chamava-me a atenção o capricho com que suas casas eram cuidadas, os armários eram feitos de caixões pregados nas pare- des, mas todos com prateleiras ornamentadas com bicos de pano bordados a mão com fios coloridos. Panos de parede também bordados eram colocados em suas cozinhas. Os lençóis que forravam as camas, já com colchões, eram feitos de saco, mas precisamente com sacos de sal desocupados, comprados para a salga do cação. Como eram brancos! Anilados! Nem pareciam serem feitos de saco. Na cozinha suas panelas bri- lhavam. Eram areadas todos os dias. Ao lado da vila dos pesca- dores existia uma torneira coletiva, onde todas as mulheres ins- talavam seus coxos de lavar roupa e varais para secar. Era tam- bém dessa torneira que era apanhada a água e levadas em vasi- lhas, geralmente latas, para casa. Então, era comum a gente ver aquela quantidade enorme de roupa secando ao sol e quarando no capim que existia por
  • 76. Jocelina Santana Bonatto76 ali. Aquela era a “Boca Maldita” de Matinhos da época. Todas as fofocas que se prezasse passa por ali, através das lavadeiras. Coisa rápida. Nada grave. Passaram-se alguns anos lá por 1.952, esses pescadores foram deslocados para o outro lado do rio de Matinhos e construída, no local uma colônia de férias do pessoal da aeronáutica (oficiais). Era hábito dos pescadores irem pescar nas ilhas dos Curraes e Itacolomi – o peixe que mais apanhavam era anchovas. Às vezes permaneciam na ilha dos Curraes até um mês. Traziam o peixe seco para a praia. Era uma vida muito dura, de muito risco, pois seus barcos eram muito frágeis e no verão ocorriam tempestades com ventos muito fortes. Mamãe quase morria de susto, rezava o tempo todo pedindo a Deus que prote- gesse ao papai e seus companheiros. O progresso Morávamos à beira-mar. Como eram deslumbrantes as noi- tes de lua cheia. Aquela lua enorme, vermelha que parecia sur- gir do mar e logo iluminando as ondas do mar que prateadas formavam um espetáculo ímpar. Ao amanhecer, ainda ao raiar do dia, abrir a janela e ver a Estrela Dalva lá no céu! Era nesse
  • 77. Gigi. De volta ao passado 77 horário que os pescadores saíam para a labuta diária. Muitos motores dos barcos numa batucada muito forte, que até bem dis- tante ainda emitiam o seu som: Pô-pô-pô e lá, se íam eles voltan- do lá pelas 10 horas com suas canoas cheias de balaios de pei- xes, camarão e outros pescados. A praia ainda era larga, com muita areia fina. Caminhar na beira da ressaca era uma delícia! Batuiras, manini, conchas, águas vivas, garoçás, lá adiante uma gaivota tentando apanhar algu- ma coisa para o almoço, atobás sobrevoando o mar. A sensação era de que vivíamos num paraíso. Perdemos quase tudo. Muda- ram nossas casas. Será que aqueles oficiais tiveram a sensibili- dade para apreciar o espetáculo que a natureza e os pescadores proporcionavam? Tomara. O balneário se desenvolvia, agora era distrito de Paranaguá e como entre a população já existiam muitos eleitores, o interes- se dos políticos paranaenses pela conquista dos votos foi desper- tado, procuraram proporcionar alguns melhoramentos para Matinhos. Instalaram aqui uma sub-Prefeitura de Paranaguá e nomearam o Sr. Rosalino Fernandes como sub-Prefeito. Foi ele que aproveitou boa parte das conchas extraídas dos sambaquis e revestiu as ruas de Matinhos e Caiobá com esse material. Os ecologistas não perdoam o órgão governamental que destruiu os
  • 78. Jocelina Santana Bonatto78 sambaquis, pois os de Matinhos seriam muito importantes para estudos arqueológicos. O cinema e o comércio Foi instalado um motor movimentado a diesel que forne- cia luz, isso quando não quebrava, das 13:00h às 24:00h e mais tarde das 8:00h às 24:00h. Melhorou bastante, pois D.Valentina, até montou um cinema. Foi o Cine Matinhos, no local onde hoje é a Loja Capri de seu neto Hélio Brenner de Oliveira. Quantas matinês! E que filmes! O Mazzaropi estava sem- pre em cartaz. Bons tempos! Nessa época o Sr. Mustafa Salomão instalou o “Bar do Banhista”, na atual rua das Sereias. Era uma espécie de bar dançante. Os jovens ficavam lá dentro mesmo ou na frente do estabelecimento. Tomavam sorvete, refrigerante, na- moravam e dançavam quando quisessem, pois sempre havia uma música tocando. Depois, vendeu ao Sr. Pedro Buiar, que tam- bém fez funcionar como cinema. Era normal estarmos assistindo um “episódio” de bang-bang e pumba... o motor quebrou! Nes- ses casos levávamos um vale para voltarmos para assistir o resto do filme quando o motor tivesse sido consertado.
  • 79. Gigi. De volta ao passado 79 Num barracão na rua Itaporã, também funcionou um cine- ma do Sr. Albano Müller, nos mesmos moldes dos outros. Augusto Bonatto instalou um armazém de secos e molhados, mudando depois para a casa do Jonas, na Praça da Igreja, até mudar-se para o prédio que construiu na rua Roque Vernalha, esquina com Rainoldo Sheffer, trazendo para trabalhar com ele meu marido Alberto Bonatto, que depois trouxe seus irmãos José e João, comprando o armazém de seu primo Augusto que foi embora para Curitiba. Também foi construída a nova Igreja de São Pedro. Mas o ponto mais chic de Matinhos lá por 1951, 52 era o bar e sorveteria do Sr. Felipe Laffite. Lá fora um posto de gasoli- na. Dentro muito bem montada a sorveteria, lanchonete, bar. Ali era o ponto de encontro obrigatório das famílias para tomar sor- vete, e que sorvete, conversar, e os jovens fazer sua paquera. Ha- via também um terraço onde dançavam ao som das músicas de sucesso: Cerejeira em Flor, Perfídia, Asa Branca, A Média Luz, Luzes da Ribalta e tantas outras. O comércio era muito pequeno. O Armazém do Alberto Bonatto, o do Sr. Jorge Borges, na esquina da praça onde existe a rodoviária, a lojinha da Léa Vialle Curi e seu marido Jorgito, a
  • 80. Jocelina Santana Bonatto80 padaria do Maneco Leonel, o Hotel do seu Albano Müller, este com a primeira sorveteria que apareceu em Matinhos, a farmá- cia do Sr. Mário Corrêa de Paranaguá, depois a Petiscaria do Sr. Henrique Santos! E o seu Fritz e a D. Ilse que já começaram a trabalhar em sua padaria à rua da Fonte. Se existiam outros não me lembro! Pouca coisa registrei em minha época sobre esse período, pois morei em Curitiba. De 1.960 a 1967 aconteceram melhorias que culminaram com a criação do Município de Matinhos em 12 de junho de 1967. Nosso sistema de luz elétrica tornou-se o mes- mo da rede estadual, acabou o suplício dos motores a diesel, foi construído o Colégio Gabriel de Lara, depois o ginásio. Onde está aquela Matinhos Em 19 de dezembro de 1.969 instalou-se o Município de Matinhos. Essa é outra história. É a história de Matinhos cheia de arranha-céus, automóveis, servido por telefonia de ótima qua- lidade, ruas asfaltadas e tudo o mais. Matinhos dos meus filhos. Que teria nossa geração feito daquela Matinhos tão bela, tão serena? Por que teria sido perdido totalmente tudo isso? Por mais que refeita, não consigo entender por quais motivos em tão pou-
  • 81. Gigi. De volta ao passado 81 cos anos, os valores que empregnaram nossas almas se perderam totalmente. Anotei estas lembranças a pedido dos meus filhos, com muita insistência do Hamilton, o meu filho Matinhense (os outros nas- ceram em Curitiba), que é professor, gosta muito de ouvir falar de suas raízes e lamenta que uma cultura tão rica em detalhes te- nha sido esquecida, abandonada. Para que seus filhos no futuro não tenham nem idéia de como era dançado um fandango, de como eram feitos os lances de tainha, de outros costumes, quando na verdade essa foi a vida de seus bisavós, ou de sua avó, esta que dentro de seus limites, procurou nestas linhas, em rápidas pin- celadas registrar o que ainda vive em sua memória, que teve uma infância muito participativa nessa vivência. A vida continua Mas a vida continua. Tudo muda muito rapidamente e logo, certamente, Matinhos será uma grande cidade, um grande Cen- tro Turístico Nacional, eis um sonho, já que elementos para tan- to não lhe falta! Praia, serra, floresta, mar!... e meus filhos tam- bém contarão sua história que por certo começará assim:
  • 82. Jocelina Santana Bonatto82 ...Era um Sábado após o carnaval. Matinhos foi inundada por ônibus, isto no fim do século passado, em 1999, os quais chega- ram lotados de todas as cidades do Estado. Vinham repletos de sambistas. Chegavam para participar da Festa do Ressacão que se realizou no centro de nossa cidade. Escolas-de-samba que chega- vam também para o desfile . As ruas se enchiam de gente, carros de som, músicas estridentes, aplausos para as passistas. Era ma- drugada e acontecia a escolha da campeã do Ressacão, enquanto ao amanhecer o Padre Joaquim, Pároco da cidade, autografa e ven- de seu livro “Deus é Mãe”. De 1.968 a 1.999 muitas mudanças acon- teceram. Meus filhos melhor que eu saberão contar. Somente Deus sendo Mãe para aceitar tudo isso, se fosse eu que estivesse escrevendo sobre esse período. Como serão meus filhos, meus netos, está tudo certo. O novo século se aproxima. Tudo mudou. Só uma coisa não mudou. O povo dos Apolinários são os legítimos fundadores de Matinhos. Os antigos se foram, mas nós estamos aqui contando a história que eles escreveram. GIGI - JOCELINA SANTANA BONATTO.