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                            Abdias do Nascimento




Dados biográficos

        Abdias do Nascimento nasceu em Franca, no interior do Estado de São
Paulo, em 14 de março da 1914, neto de africanos escravizados e filho de pai
sapateiro e mãe doceira. Estudou no Ateneu Francano, formou-se como Contador,
e, entrando no Exército, participou das Revoluções de 1930 e 1932. Formou-se
em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro, em 1938. Participou da Frente
Negra Brasileira, cujas atividades foram encerradas pela ditadura do Estado Novo
(1937-1945). Foi preso pelo Tribunal de Segurança Nacional por protestar contra
as arbitrariedades do governo de Vargas. Em 1944, fundou o TEN – Teatro
Experimental do Negro, do qual participaram Solano Trindade e outros intelectuais
e artistas afro-descendentes. O objetivo maior do TEN era criar um espaço criativo
nos palcos brasileiros para o negro, excluído, à época, do meio teatral. No ano
seguinte, organizou, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Convenção Nacional do
Negro, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a criminalização do
racismo, no momento em que a Assembléia Nacional Constituinte implantava um
novo ordenamento jurídico no país. Em 1950, organizou, no Rio de Janeiro, o
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Primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Formado na primeira turma do ISEB –
Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundou, em 1968, o Museu da Arte
Negra.

       No ano seguinte, perseguido pela ditadura militar, exilou-se nos EUA, tendo
lecionado nas universidades de Yale, Wesleyan, New York e Temple. Atuou ainda
na Universidade de Ifé, na Nigéria. Nesse período, participou de significativos
eventos internacionais sobre a cultura negra realizados no Brasil e no Exterior. A
África, a América Latina e os EUA testemunharam a sua forte atuação, lutando
sempre com o objetivo de colocar o negro no seu patamar de dignidade e
evidência. Com a abertura do regime militar, põe fim ao exílio e retorna ao Brasil.

       Abdias do Nascimento participou ativamente da vida política do país, tendo
sido eleito Vice-Presidente Nacional do PDT, que ajudou a fundar. Foi responsável
ainda pela fundação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, na PUC
de São Paulo, e pela organização do Terceiro Congresso de Cultura Negra das
Américas. Em 1983, criou a Revista Afrodiáspora, um órgão de divulgação das
atividades, dos problemas e das aspirações do mundo africano, especialmente
nas Américas. O escritor foi protagonista de inúmeros fatos históricos relevantes,
entre eles, a criação do Movimento Negro Unificado, em São Paulo. Ouçamo-lo:

          Eu estava lá, em 1978, nas escadarias do Teatro Municipal, no
          momento em que foi fundado o MNU. Depois, fizemos várias viagens
          por todo o país criando núcleos do movimento negro na Bahia, em
          Minas Gerais e na Paraíba, por exemplo.

      Em 1980, auxilia a criação do Memorial Zumbi; em 1982, elege-se
Deputado Federal pelo PDT do Rio de Janeiro; na década seguinte, ocupa a
cadeira de Senador da República. Foi também titular da Secretaria de Direitos
Humanos e Cidadania do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

       Além de teatrólogo e artista plástico, Abdias do Nascimento destaca-se
como cientista social e como autor de importantes trabalhos que tratam da
temática afro-brasileira, considerados referência obrigatória nesse campo de
estudos. É Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York em
Buffalo, EUA, e Doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (1990) e pela Universidade Federal da Bahia (2000). Em 2001, recebeu o
prêmio “Herança Africana”, oferecido pelo Schomburg Center for Research in
Black Culture, o prêmio UNESCO, categoria direitos Humanos e Cultura da Paz e
o prêmio “Cidadania Mundial”, oferecido pela Comunidade Baha’i do Brasil.

       Em 2003, lançou edição fac-similada do jornal Quilombo, do Teatro
Experimental do Negro, contendo a reprodução dos números 01 a 10, que
circularam entre dezembro de 1948 e julho de 1950.
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Comentário Crítico

                  Abdias do Nascimento: política, poesia e teatro

                                                        Soraya Martins Patrocínio*


       A história de Abdias do Nascimento, ativista e ícone da luta contra a
discriminação racial, confunde-se com as raízes do movimento negro no Brasil e
no mundo. Dramaturgo, pintor, escritor, pensador, ator e, acima de tudo, militante
ferrenho contra a exclusão do negro, o ex-senador da República é um herói vivo e
sua trajetória contribui incisivamente para o contexto afro-descendente no Brasil.
Em um momento de reflexão sobre si mesmo, Abdias afirma:

                    Tenho uma alma libertária e acho que herdei a força para
                    brigar pelos direitos humanos e contra o racismo de minha
                    mãe, que era brigona. O orgulho de ser afro-descendente vem
                    inspirado do meu pai, mais tranqüilo e de uma dignidade
                    enorme. (www.portalafro.com.br)

       O engajamento com a causa negra não é somente retratado em sua obra,
perpassa toda a sua vida que é dedicada a defender o povo negro, a propor a
integração racial e a continuar a grande luta de libertação cujo maior líder é Zumbi
dos Palmares.

O teatrólogo e dramaturgo

     Abdias, como homem de teatro, formou e lançou os primeiros interpretes
dramáticos negros do teatro brasileiro, entre eles: Aguinaldo Camargo, Ruth de
Sousa, Claudiano Filho, Léa Garcia e Haroldo Costa. Dirigiu e representou peças
de Eugene Ó Neill, Lúcio Cardoso, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Albert
Camus, Joaquim Ribeiro.

      A idéia de criar um teatro negro no Brasil surgiu quando Abdias viajava com
um grupo de poetas brasileiros e argentinos para uma série de palestras pela
América do Sul. Em Lima, no Peru, assistiu a uma peça chamada “Imperador
Jones”, interpretado por um ator branco, argentino, pintado de preto. Segundo
Abdias, naquele momento refletiu sobre o teatro e o negro no Brasil e decidiu usar
o palco como instrumento de luta anti-racista: “Eu já conhecia a fama que os
nossos teatros tinham de excluir o negro. Nos teatros municipais do Rio e de São
Paulo, negros entravam apenas para limpar o chão que os brancos sujavam”.
(www.portalafro.com.br)

      Assim nasce o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado para fortalecer
os valores da cultura tradicional africana, para combater o racismo e para que os
valores da personalidade do negro fossem respeitados no Brasil. Nacionalmente,
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a negritude foi empunhada pelo TEN desde sua fundação em 1944. Quer no plano
artístico, quer no campo social, o TEN procurou restaurar, valorizar e exaltar a
contribuição dos africanos à formação brasileira, desmascarando a ideologia da
brancura que implantou entre nós.

       A primeira denúncia do TEN teve como alvo a impostura dos chamados
estudos sobre o negro. O sociólogo Guerreiro Ramos afirmava que o Teatro de
Abdias foi, no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e
sociologia nacional, focalizando a gente de cor à luz do pitoresco ou do histórico
puramente, como se tratasse de elemento estático ou mumificado. Esta denúncia
é uma marca de todas as realizações do TEN, entre as quais o seu jornal
Quilombo, a “Conferência Nacional do Negro” (1949), e o “I Congresso do Negro
Brasileiro”, realizado em 1950.

       Segundo Abdias, o TEN não nasceu para ser apenas uma reação contra a
exclusão do negro no teatro. Ele foi imaginado como frente de luta, por isso tinha
várias ramificações , vários setores a serem atingidos por uma ação
transformadora de nossa realidade. Por isso, ele foi também uma luta da Frente
Negra, mesmo tendo uma ideologia própria. Desse modo, “visava resgatar os
valores perdidos no transcorrer da nossa história, para que os negros não
continuassem apenas representando para a diversão dos brancos”.
(www.portalafro.com.br). A importância do TEN é assim definida por Abdias:

                    Não queríamos que toda a história do negro no Brasil, todo
                    seu sofrimento, suas alegrias e tudo o que ele construiu
                    continuasse figurando de forma acidental na cultura brasileira.
                    Queríamos uma participação organizada, viva, dinâmica e
                    criativa, com olhos para o futuro. (www.portalafro.com.br)

      Dramas para negros e prólogo para brancos propõe-se a cumprir o objetivo
fundamental do TEN já exposto anteriormente. O livro é uma antologia que contém
7 peças: O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso; O Castigo de Oxalá, de Romeu
Crusoé; Auto da Noiva, de Rosário Fusco; Além do Rio (Medea), de Agostinho
Olavo; Filhos de Santo, de José de Morais Pinho; Aruanda, de Joaquim Ribeiro;
Anjo Negro, de Nelson Rodrigues; O Emparedado, de Tasso da Silva e Sortilégio,
de Abdias do Nascimento.

       Sortilégio foi encenada, pela primeira vez, no dia 21 de agosto de 1957, no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e contou com a atuação do próprio Abdias no
papel principal. A peça denuncia a hipocrisia do mundo branco e a opressão que o
negro sofre nesse mundo que o marginaliza. Isso porque, para uma sociedade
racista por essência, o preto serve só para carregar saco no cais, quebrar pedra
debaixo de sol e dizer: “Não sinhô... sim sinhô...”. (1983, p.153). O drama do herói
de Sortilégio tem suas raízes na infância, época em que era chamado de “tição” e
apedrejado por seus “coleginhas” brancos. Assim, nasce a história do preto
Emanuel que, formado em direito, renegou Exu, esqueceu os orixás, desonrou a
Obatalá e se tornou um “preto de alma branca”. Mascarou as próprias raízes na
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tentativa de sobreviver e ser respeitado numa sociedade marcada pelo
preconceito.

       Ambientada numa espécie de “terreiro”, a peça tem uma atmosfera de
fantasia e mistério, que é acentuada por alguns elementos que compõem o ritual
de despacho do candomblé: defumador, charutos, cachaças, farofa e azeite de
dendê. Contudo, a peça não leva para o palco a fotografia etnográfica do
candomblé ou da macumba, nem a simples reprodução folclórica dos rituais
negros. Os “pontos”, músicas para evocar uma entidade, por exemplo, são
“puxados” com fervor e aparecem bem contextualizados e necessários, nos
momentos fundamentais da cena.

                       Ponto de Jubiabá
                       Bis- ô-ô-ô-ô Jubiaba
                       Ô-ô-ô-ô Jubiaba


                       Bis- Não vem mais aqui no terreno
                       Pai de santo que foi guerreiro
                       Bis- Para o reino de Olorum
                       Ele foi junto com Oxum
                       (1983, p. 196).


      O momento em que esse ponto é “puxado” representa o ápice da peça: Dr.
Emanuel aceita ser sacrificado por ter desprezado a religião do seu próprio
sangue. É o momento que o coro evoca Oxum e o reino de Olorum, que é um
lugar dos sonhos, uma Pasárgada, onde o negro não escuta atrocidades e
encontra-se livre do preconceito.


Abdias poeta:
       Sempre fomentando a discussão em torno do racismo e do preconceito, o
líder negro escreveu, entre outros títulos, Sortilégio (mistério negro) (1979),
Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), O negro revoltado (1982),
Axés do sangue e da esperança (1983), O genocídio do negro brasileiro (1978),
Sitiado em Lagos (1981), Orixás: os deuses vivos da África (1995), e O Brasil na
mira do pan-africanismo (2002).

        Em Axés do sangue e da esperança, por exemplo, o eu poético suplica a
libertação do negro, denuncia a “terra que rouba o suor, a carne e os ossos, a
humilhação, as mãos calosas vazias da justa retribuição”. (1983, p.9). Também
expõe, de maneira realista, a perpétua (equivocada) posição social do negro — o
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negrinho menos digno e a negrinha à disposição do prazer do branco —, que
revela uma dolorida inferioridade.

      Em seus versos há sempre um clamor por justiça: o sujeito-lírico deixa
transparecer o seu desejo de que todos escutem as vozes sufocadas das
senzalas e os batimentos de cada coração de negro, ao lembrar dos grandes
nomes que lutaram contra a opressão e a injustiça, como Zumbi, João Cândido,
Luiz Gama, entre tantos outros.

        Em “Padê de Exu Libertador”, poema de abertura, o eu lírico invoca Exu,
que é o princípio da existência individualizada e também o princípio dinâmico da
comunicação. “(...) imploro-te Exu / plantares na minha boca/ o teu axé verbal /
restituindo-me a língua / que era minha / e ma roubaram” (1983, p.10). Em
seguida, pede o hálito de Exu, denunciando a urgência de oxigênio (de vida) para
que “os negros possam estar vivos, morrendo”.(1983, p.10). É importante ressaltar
que esse poema de abertura do livro não ocupa tal lugar por acaso. Ele está como
elemento indispensável à inauguração do ritual que cerimonializa as atividades da
comunidade-terreiro, pois falar de ritualidade é dizer de uma das marcas típicas da
cultura negra. E é fazendo o seu padê de Exu que o poeta “abre os trabalhos”,
rituais para que a sua negra verdade de homem negro possa surgir no xirê de sua
vida de andanças, “feito de terra incerta e perigosa” (1983, p.2).

       Em “Mãe”, relata a força da mulher negra, que não se entrega às
lamentações e tem força para lutar contra a indiferença e a discriminação. O
poema, de uma grande riqueza metafórica, exalta a beleza, os seios grandes, a
cor e o perfume da pele negra, e a textura dos braços que abraçam com ternura.
Também relata os soluços de sensibilidade ferida, as denúncias de um negro
revoltado e o amor generoso pelos seus iguais. No final, o poeta parece mergulhar
no ventre da vida e no sonho de liberdade e esperança.

        Já em “Autobiografia”, o eu poético derrama seu inconformismo e sua
revolta perante a discriminação racial, ao relembrar seus antepassados: “Eito que
ressoa meu sangue / sangue do meu bisavô pinga de tua foice / foice da tua
violação / ainda corta o grito de minha avó” (1983, p.26). Logo afirma que, na
cidade de Franca, sua esperança foi engendrada, a adolescência interrompida e
que sua indignação só aumentou. Essa afirmação é um ato de desabafo de um
negro cansado, “sem pleito/ eleito ao peito/da teimosa esperança/em que me
deito” (Idem).

       No poema “Luciana” se delineia o amor à mulher amada. Uma sensualidade
tépida, que perpassa pelo poema, desvela a sensibilidade do amante em seus
doces apelos à amada: “Vem Luciana pálida / que ao teu luar/beijarei teu lunar”
ou, então, “Vem Luciana pálida / genuflexo beijarei teu sexo” (1983, p. 37) Nesse
poema de amor, em que o poeta fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas
nos volteios de danças e contra-danças do ato de amor... Amplexo. Afinal, já nos
primeiros versos, o poeta fala de um escafandrista que mergulha em profundas
águas enluaradas... .
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       Em “Prece a Oxum”, o eu poético pede perdão por ter sido obrigado a falar
a língua imposta pelos europeus “civilizados”, por evocar nomes profanos e não o
nome da divindade de sua verdade e crença. Num relato indignado, denuncia os
senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacrificaram milhões de
crianças negras, ignoraram sua cultura, seus costumes e, sob a hipocrisia do que
chamam de “sincretismo”, obrigaram-no a se transformar num indivíduo diferente
(“preto de alma branca”).

        Assim, nos versos de Axés do Sangue e da Esperança, há uma
revalorização da condição afro-descendente, na medida em que se exorciza a
raça negra de todos os estereótipos que foram introduzidos desde a colonização,
os quais fixaram no imaginário coletivo a idéia de que o negro representava tudo o
que havia de ruim e negativo, de feio e mau. Logo, há uma reinvenção do discurso
sobre o negro: o engajamento de Abdias do Nascimento vive e agita-se pelo poder
de suas palavras, invenções, explosões com que compõe seus poemas e
cantigas.O mais longevo líder negro do século XX é, sem dúvida, um fundamental
militante no combate à discriminação racial no Brasil. Sua história se confunde
com as conquistas sociais dos negros nos últimos 60 anos. Pois, através da
política, do teatro e dos seus versos, conseguiu promover uma auto-
conscientização do negro a respeito do seu valor e da sua importância, para que
assim pudesse conquistar novos espaços sociais que lhe eram negados pela
cultura dominante.

* Graduanda em Letras pela UFMG


Referências Bibliográficas:

NASCIMENTO, Abdias. Axés do Sangre e da Esperança. Rio de Janeiro: Rioarte,
1983.
NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio. In_______: Dramas para negros e Prólogo
para brancos. Rio de Janeiro: Editora do Teatro Experimental do Negro, 1961.
Entrevista com Abdias do Nascimento em www.portalafro.com.br.


Bibliografia do autor

Obra individual
Dramas para negros e prólogo para brancos. Rio de Janeiro: Teatro Experimental
do Negro.
Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
Axés do sangue e da esperança, (Orikis). Rio de Janeiro: Achiamé; Rio Arte, 1986.
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Não-ficção
O genocídio do negro Brasileiro, 1 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
O quilombismo: documentos de uma militância. Petrópolis: Vozes, 1980.
Sitiado em Lagos: autodefesa de um negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (com trabalhos
apresentados no Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, Rio de Janeiro,
26/08/1950 a 04/09/1950).
Combate ao racismo: discursos e projetos, 6v. Brasília: Câmara dos
deputados,1983.
Orixás: os deuses vivos da África. Rio de Janeiro: IPEAFRO, 1995. Edição
bilíngüe.
“O quilombismo: uma alternativa política afro-brasileira”. In Afrodiásporas. Revista
de Estudos do Mundo Negro.Ano 3, nº 6 e 7, abril/dez. de 1985.
O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: EDUFBA; CEAO, 2002. (inclui
novas edições de O genocídio do negro brasileiro e Sitiado em Lagos).



Fontes de consulta

OLIVEIRA, Eduardo (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo:
Congresso Nacional Afro – Brasileiro; Brasília: Secretaria Nacional de Direitos
Humanos do Ministério da Justiça, 1998.
CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Imprensa Oficial, 1987.
BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Editora
Mercado Aberto, Trad. Marta Kirst, 1983.




Links do autor

www.portalafro.com.br/entrevistas/abdias/internet/abdias.htm
www.portalafro.com.br/entidades/falapreta6/abdias.htm
www.afirma.inf.br/htm/politica/biografia_abdias.htm
www.verinhaottoni.com/abdiasdonascimento/
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Textos selecionados

Autobiografia

EITO que ressoa no meu sangue
   sangue de meu bisavô pinga de tua foice
   foice de tua violação
   ainda corta o grito de minha avó

LEITO de sangue negro
    emudecido no espanto
    clamor de tragédia não esquecida
    crime não punido nem perdoado
    queimam minhas entranhas

PEITO pesado ao peso da madrugada de
                             chumbo
   orvalho de fel amargo
   orvalhando os passos de minha mãe
   na oferta compulsória do seu peito

PLEITO perdido
   nos desvãos de um mundo estrangeiro
   libra... escudo... dólar... mil-réis
   Franca adormecida às serenatas de meu pai.
   sob cujo céu minha esperança teceu
   minha adolescência feneceu
   e minha revolta cresceu

CONCEITO amadurecido e assumido
   emancipado coração ao vento
   não é o mesmo crescer lento
   que ascende das raízes
   ao fruto violento

PRECONCEITO esmagado no feito
   destruído no conceito
   eito ardente desfeito
   ao leite do amor perfeito
   sem pleito
   eleito ao peito
   da teimosa esperança
   em que me deito

            (In: Búfalo, 25 de janeiro de 1979)
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Olhando no Espelho
(Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto)


Ao espelho te vejo negrinho
te reconheço garoto negro
vivemos a mesma infância
a melancolia partilhada do teu profundo olhar
era a senha e a contra-senha
identificando nosso destino
confraria dos humilhados
a povoar a terna lembrança
esta minha evocação de Franca

Éramos um só olhar
nos papagaios empinados
ao sopro fresco do entardecer

Negrinho garota negra
vivemos a mesma infância
nos cafezais brincamos
nas jabuticabeiras trepamos
chupamos a mesma manga e melancia

Éramos uma única ansiedade
à subida multicor dos balões
pejados de nossos sonhos e ilusões
Negrinho meu irmão
como te chamavas tu?
Felisbino Sebastião Geraldo?

Serias menina: Rosa
Negra Alice Tarsila?
Ou te chamarias Aguinaldo?

Lembro nosso emprego:
     lavar vidros
     entregar remédios
     fazer limonada purgativa
     limpar as sujeiras de uma farmácia

E aquele grito em nosso ouvido
“– Acorda preguiçoso”? era o patrão
outra vez cochilaste reclinado ao chão
Assustados teus olhos dançaram
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desgovernados pelas lágrimas
saltaste inutilmente lépido

Um dedo irrevogável
te apontou a porta do desemprego
assim regressaste
à casa que já não tinhas
na noite anterior morrera
tua pobre mãe que a mantinha

Negrinha garoto negro
sei que somos uma
prosseguimos os mesmos
ao abandono de nossa orfandade

Assim juntos e sem nome
devemos continuar nosso sonho
nosso trabalho
reinventando as nossas letras
recompondo nossos nomes próprios
tecendo os laços firmes
nos quais
ao riso alegre do novo dia
enforcaremos os usurpadores de nossa infância

Para a infância negra
construiremos um mundo diferente
nutrido ao axé de Exu
       ao amor infinito de Oxum
       à compaixão de Obatalá
       à espada justiceira de Ogum

Nesse mundo não haverá
     trombadinhas
     pivetes
     pixotes
     e capitães-de-areia

                   (In: Búfalo, 1980)



Contraponto de um negro e
Um paternalista branco

      (Para Ironides Rodrigues, esteta da Negritude)
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Irmão negro meu irmão
  não amargue tua boca em vão
  evoque a memória do senhor bom
  reza ladainha procissão

– A lembrança esta indelével
  na roleta da opção
  risquei ponto laroiê
  ave o Exu da libertação

Irmão negro meu irmão
  esqueceu nossa bonita relação
  contada até no folclore de
  mamãe preta e pai João?

– Está tudo registrado
  com cuidado e devoção
  tambor do sangue martirizado
  batendo toque de rebelião

Irmão negro meu irmão
  por que morder no ódio
  a hóstia do perdão
  perder a ressurreição?

– Ressuscitarei gritando não
  ao cristo da consolação
  do meu caminho quero a paixão
  do humano amor expresso em ação

      (Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1980)



O sangue e a esperança

Corre corre o sangue nas veias
Rola rola o grão das areias
Só não corre só não rola a esperança
Do negro órfão que só corre e cansa

Cansa do eito corre das correntes
Corre e cansa do bote das serpentes
Só não corre só não cansa de amar
O amor da Mãe-África no além-mar

Além-mar das águas e da alegria
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Mar-além do axé nativo que procria
Aqui é o mar-aquém do desamor frio
Aquém-mar do ódio do destino sombrio

Sombrio corre o sangue derramado
No mar-aquém de tanta luta devotado
Mas o sangue continua rubro a ferver
Inspirado nos Orixá que nos faz crescer



Crescer na esperança do aquém e do além
Do continente e da pele de alguém
Lutar é crescer no além e no aquém
Afirmando a liberdade da raça amém

             (Rio de Janeiro, 14 de março de 1982)



Mãe

(Em memória de minha mãe Josina Georgina Ferreira do Nascimento)

Quero navegar Franca tuas Campinas
onde ao roçar teu capim mimoso
as siriemas de alongadas pernas
me devolvem aos ouvidos
cansados de tanto ouvir
o eco do seu canto metálico
martelando espasmódico teus
horizontes de fugitivas miragens

Navego teus cafezais
(outros navegaram canaviais)
à fresca lima transparente
refresco a febre ressecante
da minha ânsia adolescente

Não navego ainda
(conforme deveria)
as águas primordiais de Olokum
pois
temerário navegador das águas secas
remando vou a terra roxa
da qual o joão-de-barro
incessante
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constrói sua morada

Nado braçadas de léguas
léguas dos teus cafezais
que infinitam em verde
este escuro olhar
gerado ao tempero cheiroso do marmelo
ao caldo suculento do mocotó
à pasta fervente da goiaba
escarificando nos
reluzentes braços de minha mãe
buquês de queimaduras e cicatrizes

Navego o sangue de tua terra
arroxeada ao sangue pisado
no plantio das árvores
na colheita rubro-negra do
"melhor café do mundo"


Mergulhador do sangue nasci
de nascença sei que pouco importa
ao sangue a
peripécia sofrida
quando o próprio sangue
o teu mãe
nos ensina ao coração
que desfalece e renasce
de tua bondade humana
de teu amor valente
jamais enfraquecido
na queixa ou na lágrima

Navego teu leite
perfume da flor de laranjeira
mergulho teu seio materno
que me devolve à boca
o leite primai de Isis
irmãe
amantesposa
Isis que me pariu
em seus negros seios
leite negro me nutriu

Navegador do sangue
navegador do leite
sei dos que vieram
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e se foram antes de mim
pois no sangue deles flutuo

Navego a santificação
do seu martírio de escravos
celebro seus quilombos levantados
suas Áfricas
enfurecidas em minhas veias
plenas de eguns antepassados

Navegador de auroras e desastres
um sabiá canta no meu sangue
esta gota rubra trazida pela manhã
ao gotejar dos meus crispados olhos

O bisturi da madrugada
revolve as feridas enquanto
o sonho mal sonhado
intensifica a pulsação dorida
deste navegar de morte e vida
protoplasma do meu leite
              do meu sangue
viagem sem volta
         só de ida

Piloto das tempestades
com Efrain e Gerardo
navego o absurdo
as piranhas da peripécia
neste navegar aos pegos e pagos
a caminho em Villaguay descerei
no sorriso angélico
del hombre verde
uma ardente orquídea plantarei
em Ipueiras um presente
do africano Apolo
(disfarçado em grego)
entregarei
bacamarte chapéu de couro
alpercata de rastreador ao
poeta do rastro dos Mourões
tripulantes da irmandade
Raul Bó Godo Napoleão
no rastro da liberdade
desde o prata ao solimões
navegamos a maldição
deste navegar de solidões
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Mergulho a doçura da mãe
adoçada no amargo doce
ígneo algoz queimador da
beleza dos teus braços

Braços vigorosos nos quais
navego teus abraços
nesses braços que são teus
traço a ternura dos lábios meus
 à flor borbulhante do sangue
que chamusca tua pele escura
 no tacho da tua existência
tão curta de alegria
tão sofrida de vivência
 raiz fincada na terra
 ao infinito de tua compaixão
unicamente partilhada
 à graça pura da doação

Navego os que virão
e nem semente ainda são
no espelho refletida
esta rubra gota tua
me vejo e me reconheço
membro da raça daqueles
esculpidos de rochas e troncos
de cujo vinho junto a
Ogum nos embebedaremos e
à direita e à esquerda
à frente e atrás
deceparemos cabeças
neste atlântico sangüinolento
aos gemidos do sangue maldito
navegaremos
do mar de orelhas cortadas
ao mar do sangue vindicado
navegando nossas armas da liberdade

Navego o pus e o luto
que rutilam a gota do teu sangue
profanado
jorrando em mim
séculos de gritos
milénios de ritos

Esta terra roxa
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terra francana
principio da navegação
não te enterrou
mãe
não foi tua amarração
esta terra se alimentou
              do teu suor
              dos teus ossos
              da tua carne
golpeada pela necessidade
mas
a verdade de ti mesma escapou
da cova aberta neste chão

Soluçando meu pranto
navego minha alegria
na gota infinita da tua presença
nutrindo os bagos vermelhos da romã
infundindo delicadeza ao ramo da avenca
afinando o gorgeio dos pássaros
Navego tua gota em mim
espessa gota nos
bagos do meu pai José
não o carpinteiro
mas o sapateiro
José Ferreira do Nascimento
em tua gota navegante
nos bagos de José
vieram o Benedito e o Rubens
também chamado coronel Café
o José Filho alcunhado Dedé
depois o Oliveira metalúrgico
António o doador de coragem e alegria
iluminado dos Orixás

e da materna valentia
perdido vim eu
o navegador sem bússola
 da mesma gota tua
 fertilizante dos óvulos
 da maninha Ismênia
frágil mãe adolescendo
nos doces olhos contritos
 protegendo a criança
 fundida a seu corpo
 num corpo único
sem costura nem conflito
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 lentamente submergindo
 a juventude dos seus gritos
 no inocente silêncio
da correnteza dos aflitos

Gotejando vermelha gota
arroxeando a terra dos espaços
arrochando os espaços do tempo
do Egito antigo a Oshogbo a Franca
tua é a gota miraculosa
a gotejar as águas prístinas
dos mares e oceanos de Olokum
nestas águas escuras
todos nós
à proteção dos girassóis de Xangô
os que vieram ontem
os de hoje
os que virão amanhã
enia dudu de sangue imperecível
nadaremos nosso mar de sangue
mergulharemos nosso oceano de leite
varando os cabos de tormentas
náufragos do sonho
bêbedos da esperança
 bebedores do sangue e
das águas da
liberdade
na fonte do
teu ventre
                     mãe

                   (In: Búfalo,1977.)



Teatro

Sortilégio II (mistério negro de Zumbi redivivo) é uma peça de teatro, cujo cenário
é um bosque no alto do morro, onde são realizados rituais afro-brasileiros. O
recorte de tempo se passa numa noite em que Emanuel, um negro, assassina sua
mulher, que era branca. Atormentado pela idéia de ser encontrado pela polícia, ele
foge para o morro e, sem desconfiar, é atraído para o local onde seu destino seria
cumprido por intervenção de divindades do culto. A cena retirada é o ápice da
peça; quando o trabalho é realizado e Emanuel se dá conta da realidade que
criara para si a partir dos moldes de civilização do branco:
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                                          EMANUEL


            São eles. Vêm subindo. Me levaram as duas: a esposa e a mulher
            amada. Me roubaram tudo. Melhor. Muito melhor assim. (gritos de
            triunfo, intercalados com riso alto até o momento em que entra no
            pegi) Agora me libertei. Para sempre. Sou negro liberto da bondade.
            Liberto do medo. Liberto da caridade e da compaixão de vocês.
            Levem também esses molambos civilizados, brancos. (enquanto
            fala, tira a camisa, as calças, fica só de tanga. Vai atirando tudo pela
            ribanceira abaixo). Tomem seus troços! Com estas e outras malícias
            vocês abaixam a cabeça dos negros... Esmagam o orgulho deles.
            Lincham os coitados por dentro. E eles ficam domésticos...
            castrados... bonzinhos... de alma branca... Comigo se enganaram.
            Nada de mordaça na minha boca. Imitando vocês que nem macacos
            amestrados. Até hoje fingi que respeitava vocês... que acreditava em
            vocês. Margarida muito convencida que eu estava fascinado pela
            brancura dela! Uma honra para mim ser chifrado por uma loura.
            Branca azeda idiota. Tanta presunção e nem percebia que eu
            simulava... procedia como pessoa educada, ouviu? Como mulher
            você nunca significou nada para mim. Olha: que, tinha nojo era eu.
            Aquelas coxas amarelecidas que nem círio de velório me reviravam
            o estômago. Seu cheiro? Horrível! O pior: teus seios mortos de carne
            de peixe. E o nosso filho... lembra-se? Outro equívoco... novo
            engano de sua parte. Você o matou para se desforrar da minha cor,
            não foi? Mas ele era também seu sangue. Isto você deixou de levar
            em conta. Que eu não poderia amar uma criatura que tinha a marca
            de tudo aquilo que me humilhou... me renegou. Desejei um filho de
            face bem negra. Escuridão de noite profunda... olhos parecendo um
            universo sem estrelas... Cabelos duros, indomáveis... Pernas
            talhadas em bronze... punhos de aço... para esmagar a hipocrisia do
            mundo branco...


                                            FILHA I


            Aniquilar os falsos sonhos da brancura.


                                          EMANUEL


            Brancura que nunca mais há de me oprimir, estão ouvindo?
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                                           FILHA II


            Erradicar o ódio do mundo branco.


                                         EMANUEL


            Está ouvindo, Deus do céu?


                                           FILHA III


            Obliterar o poder destrutivo do mundo branco.


                                         EMANUEL


            Eu quero que todos ouçam!


                                           FILHA II


            Apagar o ódio do mundo branco!


                                         EMANUEL


            Venham todos, venham!


                                           FILHA I


            Da terra.



                                           FILHA II
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             Do céu.


                                           FILHA III


             Do inferno.

                   (Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo, p. 121-123)



(In: Alegre: Mercado Aberto, 1983.)

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Abdias do Nascimento: ativista e ícone da luta contra o racismo

  • 1. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Abdias do Nascimento Dados biográficos Abdias do Nascimento nasceu em Franca, no interior do Estado de São Paulo, em 14 de março da 1914, neto de africanos escravizados e filho de pai sapateiro e mãe doceira. Estudou no Ateneu Francano, formou-se como Contador, e, entrando no Exército, participou das Revoluções de 1930 e 1932. Formou-se em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro, em 1938. Participou da Frente Negra Brasileira, cujas atividades foram encerradas pela ditadura do Estado Novo (1937-1945). Foi preso pelo Tribunal de Segurança Nacional por protestar contra as arbitrariedades do governo de Vargas. Em 1944, fundou o TEN – Teatro Experimental do Negro, do qual participaram Solano Trindade e outros intelectuais e artistas afro-descendentes. O objetivo maior do TEN era criar um espaço criativo nos palcos brasileiros para o negro, excluído, à época, do meio teatral. No ano seguinte, organizou, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Convenção Nacional do Negro, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para a criminalização do racismo, no momento em que a Assembléia Nacional Constituinte implantava um novo ordenamento jurídico no país. Em 1950, organizou, no Rio de Janeiro, o
  • 2. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Formado na primeira turma do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundou, em 1968, o Museu da Arte Negra. No ano seguinte, perseguido pela ditadura militar, exilou-se nos EUA, tendo lecionado nas universidades de Yale, Wesleyan, New York e Temple. Atuou ainda na Universidade de Ifé, na Nigéria. Nesse período, participou de significativos eventos internacionais sobre a cultura negra realizados no Brasil e no Exterior. A África, a América Latina e os EUA testemunharam a sua forte atuação, lutando sempre com o objetivo de colocar o negro no seu patamar de dignidade e evidência. Com a abertura do regime militar, põe fim ao exílio e retorna ao Brasil. Abdias do Nascimento participou ativamente da vida política do país, tendo sido eleito Vice-Presidente Nacional do PDT, que ajudou a fundar. Foi responsável ainda pela fundação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, na PUC de São Paulo, e pela organização do Terceiro Congresso de Cultura Negra das Américas. Em 1983, criou a Revista Afrodiáspora, um órgão de divulgação das atividades, dos problemas e das aspirações do mundo africano, especialmente nas Américas. O escritor foi protagonista de inúmeros fatos históricos relevantes, entre eles, a criação do Movimento Negro Unificado, em São Paulo. Ouçamo-lo: Eu estava lá, em 1978, nas escadarias do Teatro Municipal, no momento em que foi fundado o MNU. Depois, fizemos várias viagens por todo o país criando núcleos do movimento negro na Bahia, em Minas Gerais e na Paraíba, por exemplo. Em 1980, auxilia a criação do Memorial Zumbi; em 1982, elege-se Deputado Federal pelo PDT do Rio de Janeiro; na década seguinte, ocupa a cadeira de Senador da República. Foi também titular da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Além de teatrólogo e artista plástico, Abdias do Nascimento destaca-se como cientista social e como autor de importantes trabalhos que tratam da temática afro-brasileira, considerados referência obrigatória nesse campo de estudos. É Professor Emérito da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo, EUA, e Doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1990) e pela Universidade Federal da Bahia (2000). Em 2001, recebeu o prêmio “Herança Africana”, oferecido pelo Schomburg Center for Research in Black Culture, o prêmio UNESCO, categoria direitos Humanos e Cultura da Paz e o prêmio “Cidadania Mundial”, oferecido pela Comunidade Baha’i do Brasil. Em 2003, lançou edição fac-similada do jornal Quilombo, do Teatro Experimental do Negro, contendo a reprodução dos números 01 a 10, que circularam entre dezembro de 1948 e julho de 1950.
  • 3. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Comentário Crítico Abdias do Nascimento: política, poesia e teatro Soraya Martins Patrocínio* A história de Abdias do Nascimento, ativista e ícone da luta contra a discriminação racial, confunde-se com as raízes do movimento negro no Brasil e no mundo. Dramaturgo, pintor, escritor, pensador, ator e, acima de tudo, militante ferrenho contra a exclusão do negro, o ex-senador da República é um herói vivo e sua trajetória contribui incisivamente para o contexto afro-descendente no Brasil. Em um momento de reflexão sobre si mesmo, Abdias afirma: Tenho uma alma libertária e acho que herdei a força para brigar pelos direitos humanos e contra o racismo de minha mãe, que era brigona. O orgulho de ser afro-descendente vem inspirado do meu pai, mais tranqüilo e de uma dignidade enorme. (www.portalafro.com.br) O engajamento com a causa negra não é somente retratado em sua obra, perpassa toda a sua vida que é dedicada a defender o povo negro, a propor a integração racial e a continuar a grande luta de libertação cujo maior líder é Zumbi dos Palmares. O teatrólogo e dramaturgo Abdias, como homem de teatro, formou e lançou os primeiros interpretes dramáticos negros do teatro brasileiro, entre eles: Aguinaldo Camargo, Ruth de Sousa, Claudiano Filho, Léa Garcia e Haroldo Costa. Dirigiu e representou peças de Eugene Ó Neill, Lúcio Cardoso, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Albert Camus, Joaquim Ribeiro. A idéia de criar um teatro negro no Brasil surgiu quando Abdias viajava com um grupo de poetas brasileiros e argentinos para uma série de palestras pela América do Sul. Em Lima, no Peru, assistiu a uma peça chamada “Imperador Jones”, interpretado por um ator branco, argentino, pintado de preto. Segundo Abdias, naquele momento refletiu sobre o teatro e o negro no Brasil e decidiu usar o palco como instrumento de luta anti-racista: “Eu já conhecia a fama que os nossos teatros tinham de excluir o negro. Nos teatros municipais do Rio e de São Paulo, negros entravam apenas para limpar o chão que os brancos sujavam”. (www.portalafro.com.br) Assim nasce o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado para fortalecer os valores da cultura tradicional africana, para combater o racismo e para que os valores da personalidade do negro fossem respeitados no Brasil. Nacionalmente,
  • 4. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro a negritude foi empunhada pelo TEN desde sua fundação em 1944. Quer no plano artístico, quer no campo social, o TEN procurou restaurar, valorizar e exaltar a contribuição dos africanos à formação brasileira, desmascarando a ideologia da brancura que implantou entre nós. A primeira denúncia do TEN teve como alvo a impostura dos chamados estudos sobre o negro. O sociólogo Guerreiro Ramos afirmava que o Teatro de Abdias foi, no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e sociologia nacional, focalizando a gente de cor à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se tratasse de elemento estático ou mumificado. Esta denúncia é uma marca de todas as realizações do TEN, entre as quais o seu jornal Quilombo, a “Conferência Nacional do Negro” (1949), e o “I Congresso do Negro Brasileiro”, realizado em 1950. Segundo Abdias, o TEN não nasceu para ser apenas uma reação contra a exclusão do negro no teatro. Ele foi imaginado como frente de luta, por isso tinha várias ramificações , vários setores a serem atingidos por uma ação transformadora de nossa realidade. Por isso, ele foi também uma luta da Frente Negra, mesmo tendo uma ideologia própria. Desse modo, “visava resgatar os valores perdidos no transcorrer da nossa história, para que os negros não continuassem apenas representando para a diversão dos brancos”. (www.portalafro.com.br). A importância do TEN é assim definida por Abdias: Não queríamos que toda a história do negro no Brasil, todo seu sofrimento, suas alegrias e tudo o que ele construiu continuasse figurando de forma acidental na cultura brasileira. Queríamos uma participação organizada, viva, dinâmica e criativa, com olhos para o futuro. (www.portalafro.com.br) Dramas para negros e prólogo para brancos propõe-se a cumprir o objetivo fundamental do TEN já exposto anteriormente. O livro é uma antologia que contém 7 peças: O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso; O Castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé; Auto da Noiva, de Rosário Fusco; Além do Rio (Medea), de Agostinho Olavo; Filhos de Santo, de José de Morais Pinho; Aruanda, de Joaquim Ribeiro; Anjo Negro, de Nelson Rodrigues; O Emparedado, de Tasso da Silva e Sortilégio, de Abdias do Nascimento. Sortilégio foi encenada, pela primeira vez, no dia 21 de agosto de 1957, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e contou com a atuação do próprio Abdias no papel principal. A peça denuncia a hipocrisia do mundo branco e a opressão que o negro sofre nesse mundo que o marginaliza. Isso porque, para uma sociedade racista por essência, o preto serve só para carregar saco no cais, quebrar pedra debaixo de sol e dizer: “Não sinhô... sim sinhô...”. (1983, p.153). O drama do herói de Sortilégio tem suas raízes na infância, época em que era chamado de “tição” e apedrejado por seus “coleginhas” brancos. Assim, nasce a história do preto Emanuel que, formado em direito, renegou Exu, esqueceu os orixás, desonrou a Obatalá e se tornou um “preto de alma branca”. Mascarou as próprias raízes na
  • 5. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro tentativa de sobreviver e ser respeitado numa sociedade marcada pelo preconceito. Ambientada numa espécie de “terreiro”, a peça tem uma atmosfera de fantasia e mistério, que é acentuada por alguns elementos que compõem o ritual de despacho do candomblé: defumador, charutos, cachaças, farofa e azeite de dendê. Contudo, a peça não leva para o palco a fotografia etnográfica do candomblé ou da macumba, nem a simples reprodução folclórica dos rituais negros. Os “pontos”, músicas para evocar uma entidade, por exemplo, são “puxados” com fervor e aparecem bem contextualizados e necessários, nos momentos fundamentais da cena. Ponto de Jubiabá Bis- ô-ô-ô-ô Jubiaba Ô-ô-ô-ô Jubiaba Bis- Não vem mais aqui no terreno Pai de santo que foi guerreiro Bis- Para o reino de Olorum Ele foi junto com Oxum (1983, p. 196). O momento em que esse ponto é “puxado” representa o ápice da peça: Dr. Emanuel aceita ser sacrificado por ter desprezado a religião do seu próprio sangue. É o momento que o coro evoca Oxum e o reino de Olorum, que é um lugar dos sonhos, uma Pasárgada, onde o negro não escuta atrocidades e encontra-se livre do preconceito. Abdias poeta: Sempre fomentando a discussão em torno do racismo e do preconceito, o líder negro escreveu, entre outros títulos, Sortilégio (mistério negro) (1979), Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), O negro revoltado (1982), Axés do sangue e da esperança (1983), O genocídio do negro brasileiro (1978), Sitiado em Lagos (1981), Orixás: os deuses vivos da África (1995), e O Brasil na mira do pan-africanismo (2002). Em Axés do sangue e da esperança, por exemplo, o eu poético suplica a libertação do negro, denuncia a “terra que rouba o suor, a carne e os ossos, a humilhação, as mãos calosas vazias da justa retribuição”. (1983, p.9). Também expõe, de maneira realista, a perpétua (equivocada) posição social do negro — o
  • 6. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro negrinho menos digno e a negrinha à disposição do prazer do branco —, que revela uma dolorida inferioridade. Em seus versos há sempre um clamor por justiça: o sujeito-lírico deixa transparecer o seu desejo de que todos escutem as vozes sufocadas das senzalas e os batimentos de cada coração de negro, ao lembrar dos grandes nomes que lutaram contra a opressão e a injustiça, como Zumbi, João Cândido, Luiz Gama, entre tantos outros. Em “Padê de Exu Libertador”, poema de abertura, o eu lírico invoca Exu, que é o princípio da existência individualizada e também o princípio dinâmico da comunicação. “(...) imploro-te Exu / plantares na minha boca/ o teu axé verbal / restituindo-me a língua / que era minha / e ma roubaram” (1983, p.10). Em seguida, pede o hálito de Exu, denunciando a urgência de oxigênio (de vida) para que “os negros possam estar vivos, morrendo”.(1983, p.10). É importante ressaltar que esse poema de abertura do livro não ocupa tal lugar por acaso. Ele está como elemento indispensável à inauguração do ritual que cerimonializa as atividades da comunidade-terreiro, pois falar de ritualidade é dizer de uma das marcas típicas da cultura negra. E é fazendo o seu padê de Exu que o poeta “abre os trabalhos”, rituais para que a sua negra verdade de homem negro possa surgir no xirê de sua vida de andanças, “feito de terra incerta e perigosa” (1983, p.2). Em “Mãe”, relata a força da mulher negra, que não se entrega às lamentações e tem força para lutar contra a indiferença e a discriminação. O poema, de uma grande riqueza metafórica, exalta a beleza, os seios grandes, a cor e o perfume da pele negra, e a textura dos braços que abraçam com ternura. Também relata os soluços de sensibilidade ferida, as denúncias de um negro revoltado e o amor generoso pelos seus iguais. No final, o poeta parece mergulhar no ventre da vida e no sonho de liberdade e esperança. Já em “Autobiografia”, o eu poético derrama seu inconformismo e sua revolta perante a discriminação racial, ao relembrar seus antepassados: “Eito que ressoa meu sangue / sangue do meu bisavô pinga de tua foice / foice da tua violação / ainda corta o grito de minha avó” (1983, p.26). Logo afirma que, na cidade de Franca, sua esperança foi engendrada, a adolescência interrompida e que sua indignação só aumentou. Essa afirmação é um ato de desabafo de um negro cansado, “sem pleito/ eleito ao peito/da teimosa esperança/em que me deito” (Idem). No poema “Luciana” se delineia o amor à mulher amada. Uma sensualidade tépida, que perpassa pelo poema, desvela a sensibilidade do amante em seus doces apelos à amada: “Vem Luciana pálida / que ao teu luar/beijarei teu lunar” ou, então, “Vem Luciana pálida / genuflexo beijarei teu sexo” (1983, p. 37) Nesse poema de amor, em que o poeta fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas nos volteios de danças e contra-danças do ato de amor... Amplexo. Afinal, já nos primeiros versos, o poeta fala de um escafandrista que mergulha em profundas águas enluaradas... .
  • 7. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Em “Prece a Oxum”, o eu poético pede perdão por ter sido obrigado a falar a língua imposta pelos europeus “civilizados”, por evocar nomes profanos e não o nome da divindade de sua verdade e crença. Num relato indignado, denuncia os senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacrificaram milhões de crianças negras, ignoraram sua cultura, seus costumes e, sob a hipocrisia do que chamam de “sincretismo”, obrigaram-no a se transformar num indivíduo diferente (“preto de alma branca”). Assim, nos versos de Axés do Sangue e da Esperança, há uma revalorização da condição afro-descendente, na medida em que se exorciza a raça negra de todos os estereótipos que foram introduzidos desde a colonização, os quais fixaram no imaginário coletivo a idéia de que o negro representava tudo o que havia de ruim e negativo, de feio e mau. Logo, há uma reinvenção do discurso sobre o negro: o engajamento de Abdias do Nascimento vive e agita-se pelo poder de suas palavras, invenções, explosões com que compõe seus poemas e cantigas.O mais longevo líder negro do século XX é, sem dúvida, um fundamental militante no combate à discriminação racial no Brasil. Sua história se confunde com as conquistas sociais dos negros nos últimos 60 anos. Pois, através da política, do teatro e dos seus versos, conseguiu promover uma auto- conscientização do negro a respeito do seu valor e da sua importância, para que assim pudesse conquistar novos espaços sociais que lhe eram negados pela cultura dominante. * Graduanda em Letras pela UFMG Referências Bibliográficas: NASCIMENTO, Abdias. Axés do Sangre e da Esperança. Rio de Janeiro: Rioarte, 1983. NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio. In_______: Dramas para negros e Prólogo para brancos. Rio de Janeiro: Editora do Teatro Experimental do Negro, 1961. Entrevista com Abdias do Nascimento em www.portalafro.com.br. Bibliografia do autor Obra individual Dramas para negros e prólogo para brancos. Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro. Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Axés do sangue e da esperança, (Orikis). Rio de Janeiro: Achiamé; Rio Arte, 1986.
  • 8. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Não-ficção O genocídio do negro Brasileiro, 1 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. O quilombismo: documentos de uma militância. Petrópolis: Vozes, 1980. Sitiado em Lagos: autodefesa de um negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (com trabalhos apresentados no Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, 26/08/1950 a 04/09/1950). Combate ao racismo: discursos e projetos, 6v. Brasília: Câmara dos deputados,1983. Orixás: os deuses vivos da África. Rio de Janeiro: IPEAFRO, 1995. Edição bilíngüe. “O quilombismo: uma alternativa política afro-brasileira”. In Afrodiásporas. Revista de Estudos do Mundo Negro.Ano 3, nº 6 e 7, abril/dez. de 1985. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: EDUFBA; CEAO, 2002. (inclui novas edições de O genocídio do negro brasileiro e Sitiado em Lagos). Fontes de consulta OLIVEIRA, Eduardo (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso Nacional Afro – Brasileiro; Brasília: Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, 1998. CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Imprensa Oficial, 1987. BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, Trad. Marta Kirst, 1983. Links do autor www.portalafro.com.br/entrevistas/abdias/internet/abdias.htm www.portalafro.com.br/entidades/falapreta6/abdias.htm www.afirma.inf.br/htm/politica/biografia_abdias.htm www.verinhaottoni.com/abdiasdonascimento/
  • 9. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Textos selecionados Autobiografia EITO que ressoa no meu sangue sangue de meu bisavô pinga de tua foice foice de tua violação ainda corta o grito de minha avó LEITO de sangue negro emudecido no espanto clamor de tragédia não esquecida crime não punido nem perdoado queimam minhas entranhas PEITO pesado ao peso da madrugada de chumbo orvalho de fel amargo orvalhando os passos de minha mãe na oferta compulsória do seu peito PLEITO perdido nos desvãos de um mundo estrangeiro libra... escudo... dólar... mil-réis Franca adormecida às serenatas de meu pai. sob cujo céu minha esperança teceu minha adolescência feneceu e minha revolta cresceu CONCEITO amadurecido e assumido emancipado coração ao vento não é o mesmo crescer lento que ascende das raízes ao fruto violento PRECONCEITO esmagado no feito destruído no conceito eito ardente desfeito ao leite do amor perfeito sem pleito eleito ao peito da teimosa esperança em que me deito (In: Búfalo, 25 de janeiro de 1979)
  • 10. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Olhando no Espelho (Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto) Ao espelho te vejo negrinho te reconheço garoto negro vivemos a mesma infância a melancolia partilhada do teu profundo olhar era a senha e a contra-senha identificando nosso destino confraria dos humilhados a povoar a terna lembrança esta minha evocação de Franca Éramos um só olhar nos papagaios empinados ao sopro fresco do entardecer Negrinho garota negra vivemos a mesma infância nos cafezais brincamos nas jabuticabeiras trepamos chupamos a mesma manga e melancia Éramos uma única ansiedade à subida multicor dos balões pejados de nossos sonhos e ilusões Negrinho meu irmão como te chamavas tu? Felisbino Sebastião Geraldo? Serias menina: Rosa Negra Alice Tarsila? Ou te chamarias Aguinaldo? Lembro nosso emprego: lavar vidros entregar remédios fazer limonada purgativa limpar as sujeiras de uma farmácia E aquele grito em nosso ouvido “– Acorda preguiçoso”? era o patrão outra vez cochilaste reclinado ao chão Assustados teus olhos dançaram
  • 11. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro desgovernados pelas lágrimas saltaste inutilmente lépido Um dedo irrevogável te apontou a porta do desemprego assim regressaste à casa que já não tinhas na noite anterior morrera tua pobre mãe que a mantinha Negrinha garoto negro sei que somos uma prosseguimos os mesmos ao abandono de nossa orfandade Assim juntos e sem nome devemos continuar nosso sonho nosso trabalho reinventando as nossas letras recompondo nossos nomes próprios tecendo os laços firmes nos quais ao riso alegre do novo dia enforcaremos os usurpadores de nossa infância Para a infância negra construiremos um mundo diferente nutrido ao axé de Exu ao amor infinito de Oxum à compaixão de Obatalá à espada justiceira de Ogum Nesse mundo não haverá trombadinhas pivetes pixotes e capitães-de-areia (In: Búfalo, 1980) Contraponto de um negro e Um paternalista branco (Para Ironides Rodrigues, esteta da Negritude)
  • 12. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Irmão negro meu irmão não amargue tua boca em vão evoque a memória do senhor bom reza ladainha procissão – A lembrança esta indelével na roleta da opção risquei ponto laroiê ave o Exu da libertação Irmão negro meu irmão esqueceu nossa bonita relação contada até no folclore de mamãe preta e pai João? – Está tudo registrado com cuidado e devoção tambor do sangue martirizado batendo toque de rebelião Irmão negro meu irmão por que morder no ódio a hóstia do perdão perder a ressurreição? – Ressuscitarei gritando não ao cristo da consolação do meu caminho quero a paixão do humano amor expresso em ação (Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1980) O sangue e a esperança Corre corre o sangue nas veias Rola rola o grão das areias Só não corre só não rola a esperança Do negro órfão que só corre e cansa Cansa do eito corre das correntes Corre e cansa do bote das serpentes Só não corre só não cansa de amar O amor da Mãe-África no além-mar Além-mar das águas e da alegria
  • 13. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Mar-além do axé nativo que procria Aqui é o mar-aquém do desamor frio Aquém-mar do ódio do destino sombrio Sombrio corre o sangue derramado No mar-aquém de tanta luta devotado Mas o sangue continua rubro a ferver Inspirado nos Orixá que nos faz crescer Crescer na esperança do aquém e do além Do continente e da pele de alguém Lutar é crescer no além e no aquém Afirmando a liberdade da raça amém (Rio de Janeiro, 14 de março de 1982) Mãe (Em memória de minha mãe Josina Georgina Ferreira do Nascimento) Quero navegar Franca tuas Campinas onde ao roçar teu capim mimoso as siriemas de alongadas pernas me devolvem aos ouvidos cansados de tanto ouvir o eco do seu canto metálico martelando espasmódico teus horizontes de fugitivas miragens Navego teus cafezais (outros navegaram canaviais) à fresca lima transparente refresco a febre ressecante da minha ânsia adolescente Não navego ainda (conforme deveria) as águas primordiais de Olokum pois temerário navegador das águas secas remando vou a terra roxa da qual o joão-de-barro incessante
  • 14. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro constrói sua morada Nado braçadas de léguas léguas dos teus cafezais que infinitam em verde este escuro olhar gerado ao tempero cheiroso do marmelo ao caldo suculento do mocotó à pasta fervente da goiaba escarificando nos reluzentes braços de minha mãe buquês de queimaduras e cicatrizes Navego o sangue de tua terra arroxeada ao sangue pisado no plantio das árvores na colheita rubro-negra do "melhor café do mundo" Mergulhador do sangue nasci de nascença sei que pouco importa ao sangue a peripécia sofrida quando o próprio sangue o teu mãe nos ensina ao coração que desfalece e renasce de tua bondade humana de teu amor valente jamais enfraquecido na queixa ou na lágrima Navego teu leite perfume da flor de laranjeira mergulho teu seio materno que me devolve à boca o leite primai de Isis irmãe amantesposa Isis que me pariu em seus negros seios leite negro me nutriu Navegador do sangue navegador do leite sei dos que vieram
  • 15. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro e se foram antes de mim pois no sangue deles flutuo Navego a santificação do seu martírio de escravos celebro seus quilombos levantados suas Áfricas enfurecidas em minhas veias plenas de eguns antepassados Navegador de auroras e desastres um sabiá canta no meu sangue esta gota rubra trazida pela manhã ao gotejar dos meus crispados olhos O bisturi da madrugada revolve as feridas enquanto o sonho mal sonhado intensifica a pulsação dorida deste navegar de morte e vida protoplasma do meu leite do meu sangue viagem sem volta só de ida Piloto das tempestades com Efrain e Gerardo navego o absurdo as piranhas da peripécia neste navegar aos pegos e pagos a caminho em Villaguay descerei no sorriso angélico del hombre verde uma ardente orquídea plantarei em Ipueiras um presente do africano Apolo (disfarçado em grego) entregarei bacamarte chapéu de couro alpercata de rastreador ao poeta do rastro dos Mourões tripulantes da irmandade Raul Bó Godo Napoleão no rastro da liberdade desde o prata ao solimões navegamos a maldição deste navegar de solidões
  • 16. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Mergulho a doçura da mãe adoçada no amargo doce ígneo algoz queimador da beleza dos teus braços Braços vigorosos nos quais navego teus abraços nesses braços que são teus traço a ternura dos lábios meus à flor borbulhante do sangue que chamusca tua pele escura no tacho da tua existência tão curta de alegria tão sofrida de vivência raiz fincada na terra ao infinito de tua compaixão unicamente partilhada à graça pura da doação Navego os que virão e nem semente ainda são no espelho refletida esta rubra gota tua me vejo e me reconheço membro da raça daqueles esculpidos de rochas e troncos de cujo vinho junto a Ogum nos embebedaremos e à direita e à esquerda à frente e atrás deceparemos cabeças neste atlântico sangüinolento aos gemidos do sangue maldito navegaremos do mar de orelhas cortadas ao mar do sangue vindicado navegando nossas armas da liberdade Navego o pus e o luto que rutilam a gota do teu sangue profanado jorrando em mim séculos de gritos milénios de ritos Esta terra roxa
  • 17. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro terra francana principio da navegação não te enterrou mãe não foi tua amarração esta terra se alimentou do teu suor dos teus ossos da tua carne golpeada pela necessidade mas a verdade de ti mesma escapou da cova aberta neste chão Soluçando meu pranto navego minha alegria na gota infinita da tua presença nutrindo os bagos vermelhos da romã infundindo delicadeza ao ramo da avenca afinando o gorgeio dos pássaros Navego tua gota em mim espessa gota nos bagos do meu pai José não o carpinteiro mas o sapateiro José Ferreira do Nascimento em tua gota navegante nos bagos de José vieram o Benedito e o Rubens também chamado coronel Café o José Filho alcunhado Dedé depois o Oliveira metalúrgico António o doador de coragem e alegria iluminado dos Orixás e da materna valentia perdido vim eu o navegador sem bússola da mesma gota tua fertilizante dos óvulos da maninha Ismênia frágil mãe adolescendo nos doces olhos contritos protegendo a criança fundida a seu corpo num corpo único sem costura nem conflito
  • 18. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro lentamente submergindo a juventude dos seus gritos no inocente silêncio da correnteza dos aflitos Gotejando vermelha gota arroxeando a terra dos espaços arrochando os espaços do tempo do Egito antigo a Oshogbo a Franca tua é a gota miraculosa a gotejar as águas prístinas dos mares e oceanos de Olokum nestas águas escuras todos nós à proteção dos girassóis de Xangô os que vieram ontem os de hoje os que virão amanhã enia dudu de sangue imperecível nadaremos nosso mar de sangue mergulharemos nosso oceano de leite varando os cabos de tormentas náufragos do sonho bêbedos da esperança bebedores do sangue e das águas da liberdade na fonte do teu ventre mãe (In: Búfalo,1977.) Teatro Sortilégio II (mistério negro de Zumbi redivivo) é uma peça de teatro, cujo cenário é um bosque no alto do morro, onde são realizados rituais afro-brasileiros. O recorte de tempo se passa numa noite em que Emanuel, um negro, assassina sua mulher, que era branca. Atormentado pela idéia de ser encontrado pela polícia, ele foge para o morro e, sem desconfiar, é atraído para o local onde seu destino seria cumprido por intervenção de divindades do culto. A cena retirada é o ápice da peça; quando o trabalho é realizado e Emanuel se dá conta da realidade que criara para si a partir dos moldes de civilização do branco:
  • 19. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro EMANUEL São eles. Vêm subindo. Me levaram as duas: a esposa e a mulher amada. Me roubaram tudo. Melhor. Muito melhor assim. (gritos de triunfo, intercalados com riso alto até o momento em que entra no pegi) Agora me libertei. Para sempre. Sou negro liberto da bondade. Liberto do medo. Liberto da caridade e da compaixão de vocês. Levem também esses molambos civilizados, brancos. (enquanto fala, tira a camisa, as calças, fica só de tanga. Vai atirando tudo pela ribanceira abaixo). Tomem seus troços! Com estas e outras malícias vocês abaixam a cabeça dos negros... Esmagam o orgulho deles. Lincham os coitados por dentro. E eles ficam domésticos... castrados... bonzinhos... de alma branca... Comigo se enganaram. Nada de mordaça na minha boca. Imitando vocês que nem macacos amestrados. Até hoje fingi que respeitava vocês... que acreditava em vocês. Margarida muito convencida que eu estava fascinado pela brancura dela! Uma honra para mim ser chifrado por uma loura. Branca azeda idiota. Tanta presunção e nem percebia que eu simulava... procedia como pessoa educada, ouviu? Como mulher você nunca significou nada para mim. Olha: que, tinha nojo era eu. Aquelas coxas amarelecidas que nem círio de velório me reviravam o estômago. Seu cheiro? Horrível! O pior: teus seios mortos de carne de peixe. E o nosso filho... lembra-se? Outro equívoco... novo engano de sua parte. Você o matou para se desforrar da minha cor, não foi? Mas ele era também seu sangue. Isto você deixou de levar em conta. Que eu não poderia amar uma criatura que tinha a marca de tudo aquilo que me humilhou... me renegou. Desejei um filho de face bem negra. Escuridão de noite profunda... olhos parecendo um universo sem estrelas... Cabelos duros, indomáveis... Pernas talhadas em bronze... punhos de aço... para esmagar a hipocrisia do mundo branco... FILHA I Aniquilar os falsos sonhos da brancura. EMANUEL Brancura que nunca mais há de me oprimir, estão ouvindo?
  • 20. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro FILHA II Erradicar o ódio do mundo branco. EMANUEL Está ouvindo, Deus do céu? FILHA III Obliterar o poder destrutivo do mundo branco. EMANUEL Eu quero que todos ouçam! FILHA II Apagar o ódio do mundo branco! EMANUEL Venham todos, venham! FILHA I Da terra. FILHA II
  • 21. LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Do céu. FILHA III Do inferno. (Sortilégio II: mistério negro de Zumbi redivivo, p. 121-123) (In: Alegre: Mercado Aberto, 1983.)