O documento descreve as características do "cinema de arte" ou modo narrativo cinematográfico específico, incluindo: ênfase no realismo psicológico e fático ao invés de enredos lineares; expressão da visão autoral do diretor através de técnicas como ambiguidade e desvio de convenções clássicas; e ênfase na lacunas e paralelismos na narrativa em vez de causalidade direta.
2. Cinema de arte?
Nem todo filme passado em “cinemas de arte” seguem esse
modo cinematográfico, assim como nem todo filme deste modo
se restringe a este circuito das salas “de arte”; mas há entre eles
uma correlação.
Considera-se aqui o “cinema de arte” como um modo narrativo
cinematográfico específico, que tem:
• Uma existência historicamente definida – principalmente a partir
do Neorrealismo italiano;
• Um conjunto de convenções formais (e estilísticas);
• E procedimentos de apreciação implícitos.
Os dispositivos estilísticos e os motivos temáticos destes filmes
são variados, mas as funções gerais do estilo e da forma são
constantes, produzindo-se um modo coerente de discurso
cinematográfico. 2
3. Exemplos
Grande parte das produções dos cinemas novos (francês,
alemão, brasileiro, etc.) e determinados filmes de diretores:
• Federico Fellini: 8 ½, A Estrada da Vida;
• Alain Resnais: Muriel, Hiroshima meu amor, A Guerra Acabou;
• Ingmar Bergman: Morangos silvestres, O sétimo selo, Persona;
• Michelangelo Antonioni: O eclipse, A aventura, O deserto
vermelho;
• Vittorio de Sica: Ladrões de bicicletas, Umberto D.;
• Roberto Rossellini: Roma: cidade aberta;
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4. Exemplos (continuação)
• Bernardo Bertolucci: A estratégia da aranha, O conformista;
• Akira Kurosawa: Rashomon, Sonhos;
• François Truffaut: Jules e Jim, O quarto verde;
• Eric Rohmer: Minha Noite Com Ela;
• Roman Polanski: Faca na água;
• Andrei Tarkovsky: O espelho, Nostalgia;
• Jean-Luc Godard: Acossado, Viver a Vida;
• Pier Paolo Pasolini: Teorema;
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5. Realismo, autoria e ambiguidade
Enquanto, no cinema clássico, a narrativa motiva a
representação cinematográfica, o “cinema de arte” define-se
explicitamente contra o modo narrativo clássico:
• Em particular, limitando os encadeamentos causais dos eventos.
No modo “cinema de arte”, tais encadeamentos tornam-se mais
soltos e tênues.
Dois princípios organizam esse modo cinematográfico: o
realismo e a expressão autoral, os quais investem fortemente na
ambiguidade e muitas vezes se misturam.
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6. “Realismos” do cinema-de-arte
O “realismo factual”;
• filmado em locações, com luz natural, figurinos não-produzidos;
• problemas do mundo real (pobreza e desemprego, “alienação”,
incomunicabilidade, sexualidade);
O “realismo psicológico”:
• Realismo como complexidade psicológica dos personagens;
• Personagens com características e metas inconsistentes,
enigmáticas ou hesitantes;
• Em vez de esforços voltados a um objetivo, perambulações pelos
episódios do filme (viagens, idílios, buscas ou biografias) fazendo
poucas escolhas (muitas vezes vagas);
• Expressão dos seus estados psicológicos pela fala: contando
histórias, sonhos, fantasias e eventos autobiográficos. “Reação,
em vez de ação - é um cinema e efeitos psicológicos em busca de
suas causas”.
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7. Autoria
O autor como um componente formal do próprio filme “de
arte”:
Como o gênero e os astros no cinema comercial, a autoria é uma
estrutura que (no lugar do gênero e dos astros) organiza a obra de
dentro;
Assumindo-se que esse autor tenha mais liberdade criativa que o
Hollywoodiano, o autor torna-se a força textual que se expressa ou
que comunica algo, uma visão, através do filme;
Solicita-se assim leitores competentes, que reconheçam as marcas
recorrentes e comparem os filmes na condição de capítulos de uma
obra maior.
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8. Autoria
Consequências comerciais da predominância autoral:
Festivais (a alternativa ao sistema Hollywoodiano de distribuição),
revistas especializadas e escolas de cinema introduzem os códigos
autorais e normas de gosto para os apreciadores;
Não é à toa que a política dos autores (Cahiers du Cinéma) ocorreu
na aurora do “cinema de arte” – e muito dessa política consistiu em
aplicar essas estratégias de leitura a filmes do cinema clássico (John
Ford, Alfred Hitchcock, Howard Hakws, Otto Preminger).
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9. Autoria
Como esse código autoral se manifesta? Através de violações
recorrentes das normas clássicas.
Enquanto no filme de detetive o quebra-cabeça é a fábula, aqui o
quebra-cabeça é a trama: quem está contando a história? Por que
ela é contada assim?
Como conciliar princípios tão divergentes quanto o realismo e a
expressão autoral? Através da ambiguidade.
O apreciador pode decidir que um ângulo de câmera é um
comentário autoral, enquanto por exemplo o tema narrado é
realista.
Ou algumas características (a cor estourada em O deserto vermelho)
podem ser lidas dos dois modos.
Um ideal é o final aberto (Ladrões de bicicletas, Os
incompreendidos...), de preferência que faça o espectador “sair
pensando” – pois a ambiguidade não acaba com o fim do filme.
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10. Narração “cinema-de-arte”
Menor redundância na trama:
Acontecimentos-chave e mudanças nos motivos e características
dos personagens são mostrados en passant;
Lacunas permanentes na fábula:
O que realmente se passou em A Aventura em e Rashomon?
A exposição é postergada e apresentada homeopaticamente:
Em vez da exposição concentrada no início, conhecemos pouco a
pouco (e nunca completamente) os personagens e as situações;
Ausência de deadlines:
Evita-se uma resolução clara das hipóteses narrativas;
O paralelismo é mais forte que a causalidade:
O filme se assemelha mais a um comentário sobre o mundo que a
um mergulho numa estória que se desenrola sozinha.
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