Este documento analisa o poema "A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução" de Jayro Luna, que se inspira no ensaio de mesmo nome de Walter Benjamin. O texto discute a forma do poema, os verbos usados e a ocorrência anagramática da palavra "aura" em diversos versos, relacionando isso com os conceitos de originalidade e aura na obra de arte discutidos por Benjamin.
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Comentários sobre “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”, poema de Jayro Luna acerca do texto de Walter Benjamim
1. Comentários sobre “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”,
poema de Jayro Luna acerca do texto de Walter Benjamim
Robertson Kircher
UFSCAR
Resumo: Neste breve artigo fazemos uma tentativa de análise do poema “A Obra de Arte
na Época de suas Técnicas de Reprodução”, poema de Jayro Luna que tem título
homônimo ao texto de Walter Benjamin e tem declarada relação de conteúdo com o escrito
do teórico alemão, além de fazer referência ao poeta português Antero de Quental. Após,
análise da forma e de seus aspectos significantes, buscamos demonstrar como o poema em
questão apresenta uma estrutura microestética e uma relação de reciclagem formal que o
torna um poema rico em significações e ressignificações no contexto do Metamodernismo.
Palavras-chave: Poesia brasileira, Metamodernismo, Jayro Luna, Walter Benjamim,
Antero de Quental, aura.
O poeta Jayro Luna, que se autodenomina, poeta metamoderno, sendo inclusive um
dos criadores do termo, em 1986, é autor do soneto “A Obra de Arte na época de suas
técnicas de reprodução (Hipótese Estética)” que é um título homônimo ao famoso texto de
Walter Benjamin, publicado numa primeira versão e logo após numa segunda versão, no
ano de 1955. O ensaio traduzido em português por José Lino Grünewald e publicado em A
idéia do cinema (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996) e na coleção Os pensadores,
da Abril Cultural, é a segunda versão alemã, que Benjamin começou a escrever em 1936 e
só foi publicada em 1955. Por isto o poema de Jayro Luna é dedicado a Walter Benjamin,
mas também é dedicado a Antero de Quental, poeta português que no século XIX travou
intensa discussão estética acerca da poesia realista e do positivismo.
Formalmente o poema é um soneto decassílabo, mas com acentuação ligeiramente
irregular, com um clara predominância do verso heróico (acentos na 6.ª e 10.ª sílabas), o
que ocorre nos versos 1, 3, 4, 5,6,7,9,10,12 e 14; ou seja, em 10 dos 14 versos. Apenas 4
fogem ao esquema de acentuação do heróico, são os versos 2 - com acentos na 3.ª, 8ª e 10
sílabas; o 8 – com acentos na 2.ª, 5.ª e 10.ª sílabas; o 11 – com acentos na 3.ª, 7.ª e 10.ª
sílabas e o 13 – com acentos na 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas, este o único no esquema sáfico. O
esquema de rimas é de rimas interpoladas nos quartetos (ABBA) e de emparelhadas nos
tercetos, com uma cruzada no terceiro verso destes. Porém, nos tercetos surgem rimas,
quanto à sonoridade, são imperfeitas (virulenta / experimento; caos / nau).
No que se refere aos verbos, parecem-nos de importância para entendimento estético
do poema. O verso final do primeiro terceto (n.° 11) nos diz “Verbo ao ruído de fragmentos
e caos...”, não tem verbo explícito, uma vez que ele está subentendido pelo verso anterior
(“Chama(r)”), e ao mesmo tempo tem uma direta referência ao verbo ou à ausência dele,
conforme se entende o poema.
No primeiro quarteto os dois verbos dos versos 1 e 2 (valer e ver) estão no presente
do indicativo, já no verso 3 o verbo se dilui numa adjetivação à luz (fotografada – particípio
do verbo fotografar, portanto, forma nominal). O verso 4 não tem verbo. No segundo
quarteto os versos 5 e 6 à semelhança dos dois primeiros do quarteto inicial, estão no
presente do indicativo (esvair e respirar); no verso 7 não tem verbo, e o 8 tem o verbo no
presente do indicativo com uma partícula reflexiva. No primeiro terceto temos apenas um
2. verbo (chamar – presente do indicativo) no verso 10, que reverbera subentendido, como já
dissemos, no verso 11. No último terceto surge o verbo ser (v. de ligação) nos versos 12 e
14 e neste último verso é o único em que um verbo ocorre duas vezes.
Observamos também, no que tange, a um aspecto microestético, que as iniciais em
maiúscula dos versos, apenas um tem inicial em vogal, todos os demais começam com
consoante.
Se anotamos num gráfico a questão dos acentos dos versos, ao lado da observação
quanto aos verbos e das iniciais maiúsculas dos versos temos o seguinte quadro:
Análise quanto ao Ritmo dos Versos, Verbos e Iniciais Maiúsculas dos Versos
N.° do verso Ritmo Verbo / Tempo verbal Inicial Maiúscula
1 Dec. Heróico Presente do Indicativo C
2 Dec. Irregular Presente do Indicativo C
3 Dec. Heróico Forma Nominal C
4 Dec. Heróico Sem verbo C
5 Dec. Heróico Presente do Indicativo C
6 Dec. Heróico Presente do Indicativo C
7 Dec. Heróico Sem verbo A
8 Dec. Irregular Presente do Indicativo C
9 Dec. Heróico Sem verbo C
10 Dec. Heróico Presente do Indicativo C
11 Dec. Irregular Verbo Subentendido C
12 Dec. Heróico Presente do Ind (v. de lig.) C
13 Dec. Sáfico Sem verbo C
14 Dec. Heróico Presente do Ind. (v. de lig)-2x C
Destaquemos de cada coluna aquilo que foge a um padrão de ocorrência e que
aspecto singular. No caso do ritmo, existe apenas um verso sáfico (n.° 13), na segunda
coluna, apenas um com forma nominal (v. 2) e um com duas ocorrências verbais (v. 14) e
na terceira coluna, apenas um verso com inicial maiúscula vogal (v.7).
Os versos assim destacados são aqueles que têm ao menos uma característica dentre
as levantadas que não têm elemento semelhante em outro verso. São originais em um destes
três aspectos. A questão da originalidade é fulcral para entendimento do texto de Walter
Benjamin:
“O culto foi a expressão original da integração da obra de arte no seu
contexto tradicional. Como sabemos, obras de arte mais antigas
surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso. É,
pois, de importância decisiva que a forma de existência desta aura, na
obra de arte nunca se desligue completamente da sua função ritual. Por
outras palavras: o valor singular da obra de arte "autêntica" tem o
seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso
original e primeiro”.
Neste sentido, a obra de arte tem um valor na sua originalidade, mas ao mesmo
tempo, é nas técnicas de sua reprodução, que esse valor é passado, transferido para um
3. contexto sócio-cultural em que é a reprodução que, paradoxalmente, mantém a “aura” da
obra inatingível, uma vez que separada da cópia e a ritualiza ao âmbito da leitura,
conferindo-lhe valor cultural.
“Porque a aura está ligada ao aqui e agora. Dela não existe
cópia. A aura que se manifesta em tomo de um Macbeth pode ser
separada da que, para um público ao vivo, rodeia o actor que
representa aquele personagem. A especificidade do registo em estúdio
cinematográfico reside no facto de colocar o equipamento no lugar do
público. Assim, a aura que envolve actor tem de desaparecer e, por
conseguinte, também a do personagem representado”.
A questão do valor da originalidade e da aura na obra de arte entra em conflito com
o conceito de sua reprodutibilidade. Benjamin nos diz que “Por princípio a obra de arte
sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre pôde ser imitado por
homens.” O conceito de imitação é fundamental na poética clássica e subjacente ao âmbito
da Mimesis. Por outro lado, a valorização da paródia na arte moderna é, ao mesmo tempo,
que coloca-se em oposição ao princípio mimético, também, ao mesmo, só existe na relação
com o original, o que em certo sentido, podemos dizer que é uma imitação cuja finalidade é
desconstruir a aura do original, ainda que a imite.
A manutenção do valor do original numa atmosfera ritualística, desprovida de
reflexão sobre seu significado e seu contexto, pode servir às propostas fascistas, segundo
Benjamin, de referenciamento ao status quo e à ideologia dominante como forma de se
evitar à discussão do valor ou dos valores.
“Por essa razão seria errado subestimar o valor de luta de tais
teses. Eliminam alguns conceitos tradicionais – como a criatividade, a
genialidade, o valor eterno e o secreto – conceitos cuja aplicação
descontrolada (e actualmente dificilmente controlável) conduz ao
tratamento de material factual num sentido fascista. Os conceitos
seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se
dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados dos para
fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para formulação de
exigências revolucionárias em politica de arte”.
Voltando ao poema de Jayro Luna, e se valendo por analogia do texto “As Palavras
sob as Palavras” de Ferdinand Saussure, notamos que nos versos deste soneto, em 12 deles
podemos identificar a ocorrência de anagrama da palavra “aura”:
A Obra de Arte Na Época de suas Técnicas de
Reprodução (Hipótese Estética).
Para Walter Benjamim e Antero de Quental
Já não sei quanto vale a nova arte
Quando a vejo nas galerias rifadas,
4. Turva de aspecto, à luz fotografada,
Como chocante pós-tudo encarte...
Sonolento meu olhar se esvai destarte,
Respira fumo e logo embriagada
A artista de alma vasta e agitada
Desfaz-se dos últimos baluartes...
Nossa era irritada e virulenta
Chama à glossolalia experimento,
Verbo ao ruído de fragmentos e caos...
Mas a Arte é no mundo insustentável,
Num céu volátil de ordem fractável...
Tu, sentimento, não és mar, és nau...
Notemos que os versos 7 e 10 não tem todos os fonemas necessários à composição
do anagrama de “aura”. Nos versos 7 e 10, falta-nos a semivogal “u” (embora exista o “v”,
que no latim tinha esta valia) no verso 7. Por sua vez, no verso 3 temos a dupla ocorrência
do anagrama e o verso 11 é o único em que o anagrama ocorre na sua ordem perfeita
(a+u+r+a). O verso 7, que também é o único que começa com inicial maiúscula vogal
completa sua oração com o verso seguinte: “A artista de alma vasta e agitada / Desfaz-se
dos últimos baluartes...” O “a” no verso sete vai compondo uma assonância significativa
com a inicial de “aura” (A ArtistA de AlmA vAstA e AgitAdA) – são dez ocorrências da
letra “A” em 27 grafemas/fonemas, média muito acima da verificada na língua portuguesa,
me que se pese o fato desta vogal ser a mais recorrente na língua (37,03 % no verso contra
14,68 % na Língua Portuguesa). Esta assonância vai continuando no início do verso
seguinte (DesfAz-se) para se concluir no diagrama de “aura” na palavra “Baluartes” que
contém “aura” e “arte”. Assim, a alma do artista (conceito romântico e clássico) entra num
processo de desvinculamento com o conceito de aura na arte para buscar uma nova
formulação, mais moderna ou pós-moderna (veja o verso 4: “Como chocante pós-tudo
encarte...”)
O verso 10 faz referência à glossolalia como experimento poético-artístico. De fato,
a poesia sonora no período das vanguardas européias fez amplo uso de experimentos
glossolálicos para a formulação de poemas sonoros. 1
Notemos como o conceito de
glossolalia - Como sintoma psiquiátrico a glossolalia é uma das manifestações presentes na
esquizofrenia e na afasia sensorial, quando "o indivíduo parece estar falando uma outra
língua; ele produz sons ininteligíveis, porém mantém os aspectos prosódicos da fala
normal"2
, ou ainda, como sintoma de fervor religioso, na qual, o fiel, parece estar falando
em uma outra língua, que supostamente desconhece. Assim, a fala descontrolada oriunda de
um processo inconsciente se liga à ocorrência anagramática de “aura” no poema, uma vez
1
Para um aprofundamento da questão citamos o livro de Philadelpho Menezes, Poesia Sonora: Poéticas
Experimentais do Século XX. (São Paulo, Educ, 1992).
2
Fonte Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Glossolalia)
5. que não existe a ocorrência da palavra de forma explícita no poema, aspecto um tanto
quanto paradoxal, haja vista a importância que o conceito tem no texto de Walter Benjamin.
E neste verso 10, se pensarmos que na língua portuguesa é comum o processo de
transformação do “o” em posição de vogal átona final (experimentU), como em passo
[pásU], tanto [tatu], p.ex. Aí recompomos o anagrama no verso, para o qual só faltava um
som de “u”.
A dedicatória a Antero de Quental, por sua vez, é extremamente reveladora, uma
pista declarada para o entendimento do poema.
Antero de Quental, em Bom Senso e Bom Gosto, abre crítica aberta ao poeta
Castilho, que aparecia como defensor dos valores da poesia clássica eivada de um ar de
romantismo sentimental.
“Dante, que era um barbaro, e Shakspeare, que era um
selvagem, é que rechearam as suas obras de ideal. Victor Hugo
tambem cáe muito nesse defeito. V. ex.ª é que o tem sempre evitado
cautelosamente, e por isso não é um barbaro como Dante, nem
selvagem como Shakspeare, nem um máo poeta como Victor Hugo.
Não é Dante, nem Shakspeare, nem Hugo—mas é amigo do sr. Viale,
que falla latim como Mevio e Bavio.” (QUENTAL, 1865)
Alberto Pimenta analisando a poética de Antero de Quental, comenta como na sua
poesia realista era capaz de trabalhar os opostos, ou certa categoria de opostos, não como
oposição, mas como complementaridade, bem ao modo do pensamento científico
positivista que buscava compreender o mundo, a natureza, no âmbito de gradações ou
classificações.
“As mais conhecidas interpretações da poesia de Antero de
Quental operam semanticamente e atribuem-lhe a expressão do
irreconciliável dos dualismos conceptuais axiomáticos, do tipo
vida/morte, sombra/luz, terra/céu, homem/deus, etc, com a
complicação de algumas destas pontas do eixo se poderem inverter: a
morte que é a vida, o homem que é Deus, etc.” (PIMENTA, 1992)
No caso do poema de Jayro Luna, a oposição entre arte com “aura”, original e arte
reprodutível e reproduzida, se apresenta como discurso paródico, com o sentido de inverter
a discussão, supostamente fazendo um discurso de valorização saudosista da “aura” em
oposição à reprodutibilidade comercial da mesma (“Já não sei quanto vale a nova arte”) e a
nova arte é reproduzida em série, em encartes, rifada nos leilões de galeria, por preços que
superam qualquer expectativa racional, quanto mais o artista seja mitificado. Lembremos
que a família real do Qatar comprou por 260 milhões de dólares o quadro “Os Jogadores”
de Paul Cézanne, que em 2006, um comprador anônimo no leilão de Geffen, arrebatou por
160 milhões um quadro de Pollock (n.° 5, de 1948), ou que Ronald Lauder comprou em
2006 o quadro de Klimt, Retrato de Adele Bloch-Bauer I, por 135 milhões de dólares, ou
ainda, a compra do quadro de Van Gogh, Retrato do Dr. Gachet, pelo empresário japonês
Ryoei Saito por 148 milhões de dólares...Valores todos astronômicos que os pintores em
suas vidas jamais sonharam ganhar.
Como salienta Alcmeno Bastos,
6. “Mas para Benjamin o escritor mais diretamente ligado à questão da
perda da aura foi, sem dúvida, Charles Baudelaire. A ele Benjamin
dedicou um ensaio – Sobre alguns temas de Baudelaire (BENJAMIN,
1994) ─ e a ele ainda se referiu em inúmeras outras passagens de sua
obra. Segundo Benjamin, e de forma inequívoca, Baudelaire “Mostrou
a que preço se conquista a sensação da modernidade: a dissolução da
aura através da „experiência‟ do choque” (p. 70). O “choque” a que se
refere Baudelaire seria aquele experimentado por quem se defronta
com “uma multidão vivaz e em movimento” (p. 70), antes apenas
objeto de contemplação do flaneur”. (BASTOS, s.d.)
.
Todas estão obras são do período das vanguardas européias ao modernismo, obras
do Renascimento, no mais das vezes, têm valor incalculável, haja vista que na maioria dos
casos não estão à venda. A Monalisa de Leonardo Da Vinci, já foi orçada em 670 milhões
de dólares para fins de seguro.
A ordem das coisas no mundo, o valor que determinadas coisas alcançam está
ligada a um complexo sistema financeiro que não se liga ao sentido utilitário – uma vez que
a arte não tem tal fim, mas sim uma proposição estética, nem tampouco ao significado, mas
sim ao aspecto comercial. Daí os versos terminando em “reticências” a apenas sugerir sua
complementaridade sintática “Mas a Arte é no mundo insustentável / Num céu volátil de
ordem fractável...” O céu volátil parece ser referência à inconstância, à mudança, mas
não no sentido renascentista, presente em sonetos de Camões, agora no sentido do mundo
capitalista, das flutuações da bolsa de valores; e, a “ordem fractável”, faz referência à
matemática fractal que busca compreender a irregularidade como aparente, como
reprodução de padrão escalar. O verso final exalta o “sentimento” como sendo mar e caos
(Tempestade e Ímpeto, romântico? Alvo de crítica dos poetas realistas!). Mas este
sentimento não é o romântico, é o sentimento de fruição diante da obra de arte, agora
recoberta por uma camada de valor capitalista. Se milhares de turistas se acotovelam
diariamente numa sala para poder ver e fotografar a Monalisa de Leonardo da Vinci não é
precisamente pelo sentido contextual e estético que o pintor buscou na sua produção, mas
pelo valor que ela adquiriu mercadologicamente no mundo do comércio da arte.
E, ao nos determos na leitura de alguns poemas de Antero de Quental, encontramos
o poema “Tese e Antítese”, composto de dois sonetos, que a seguir, transcrevemos:
Tese e Antítese I
Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Como bacchante após lúbrica ceia...
Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!
7. Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz...
Mas a idea é n'um mundo inalterável,
N'um cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
II
N'um céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.
Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
A idéia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!
Combatei pois na terra árida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da luta,
Té que a fecunde o sangue dos heróis!
O primeiro soneto tem uma declarada relação com a estrutura gramatical do poema
de Jayro Luna, a começar pelo primeiro verso (“Já não sei o que vale a nova idéia” –AQ;
“Já não sei o que vale a nova arte” – JL) e vai assim até o final do poema. Que relação
temos aqui? Não é uma paródia, uma vez que Jayro Luna não altera o sentido original do
poema nem o satiriza, antes, traz um novo discurso, uma outra idéia, que não é oposta, pois
que não está em relação direta com a idéia original. Também não é uma paráfrase, já que
não confirma o discurso original, é, antes, um outro discurso. Quental está a falar da idéia,
esta como representativa do pensamento racional, em conflito com o romantismo
exacerbado que valoriza o extravasar de sentimentos (“Chama à epilepsia pensamento, /
Verbo ao estampido de pelouro e obuz...”). Assim, a oposição idéia racional /
sentimentalismo romântico se transforma no poema de Jayro a oposição aura / reprodução.
O que Jayro mantém do poema de Quental é sua forma sintática, a estrutura de suas orações,
modificando verbos, adjetivos, substantivos para criar um novo contexto com um novo
discurso. Notemos, p.ex., que os anagramas encontrados no poema de Jayro não existem na
mesma disposição e frequência no poema de Quental, ou a questão das iniciais maiúsculas.
O novo poema guarda com o poema de Quental uma relação que se não é de paródia nem
de paráfrase e se constitui no aproveitamento da forma sintática uma nova forma de relação.
Partindo duma concepção homossintática, o poeta Jayro Luna constrói seu soneto, mas
alterando o sentido original, para um novo contexto, um novo discurso. Denomino esta
8. operação de reciclagem de fôrma (marquei aqui o acento diferencial, para não haver
confusão no sentido pretendido), o que num sentido do Metamodernismo3
é perfeitamente
coerente, já que o soneto de Antero de Quental se refere à questão coimbrã, famosa no
surgimento do Realismo em Portugal, ao passo que o poema de Jayro Luna articula um
discurso acerca da relação entre a aura da obra e a sua reprodutibilidade técnica, retomando
as idéias de Walter Benjamim. Esta ressignificação, para usar um termo caro ao Neo-
estruturalismo Semiótico4
, é o que dá sentido ao poema.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Alcmeno. “Literatura e aura – apontamentos sobre ‘A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica’, de Walter Benjamin”, disponível em:
http://www.alcmeno.com/wordpress/wp-content/arquivos/literatura-e-aura-ou-perda-da-
aura2.pdf
BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na época de suas técnicas de reprodução” em: Os
Pensadores: Adorno, Benjamin, vol. XLVIII, 1975. São Paulo, Abril Cultural, 1975.
LUNA, Jayro. Poesia de Jayro Luna, disponível na Internet em Usina de Letras
(www.usinadeletras.com.br) e no site Orfeu Spam (www.orfeuspam.com.br.).
PIMENTA, Alberto. “Antero de Quental: Método Paradoxal, Pontual” em: Revista de
Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 249-266. Disponível em:
http://www.csarmento.uminho.pt/docs/ndat/rg/RG102.11.pdf
QUENTAL, Antero. Poesias. Rio de Janeiro, coleção Nossos Clássicos, Agir, 1983.
________. O Bom Senso e o Bom Gosto. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1865.
Disponível na Internet em: http://www.gutenberg.org/files/30070/30070-h/30070-h.htm
STAROBINSKI, Jean. As Palavras Sob as Palavras: Os Anagramas de Ferdinand de
Saussure. São Paulo, Perspectiva, 1974.
3
Acerca do conceito de Metamodernismo em Luna, ver o livro de LUNA, Jayro. Participação e Forma:
Algumas Reflexões sobre a função social da Poesia. São Paulo, Epsilon Volantis, 2001.
4
Sobre a concepção de Neo-estrututuralismo Semiótico, veja-se o livro de LUNA, Jayro. Teoria do Neo-
estruturalismo Semiótico. São Paulo, Vila Rica, 2006.